PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Renato de Lima da Costa

Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra

“A sociedade pós-moralista”

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Renato de Lima da Costa

Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra

“A sociedade pós-moralista”

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Dr. João Décio Passos.

SÃO PAULO

2012 ERRATA

Agradeço também à “Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior” (CAPES), pela bolsa de estudos a mim conferida durante 4 semestres deste curso, permitindo- me a continuidade dos meus estudos.

Banca Examinadora:

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Dedico este trabalho ao meu Senhor e Salvador Jesus Cristo, cujo sublime amor para comigo foi demonstrado em sofrimento voluntário numa cruz.

“As palavras que eu lhes disse são espírito e vida”

(João 6.63b). Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus reconhecendo a sua bondade para comigo me ajudando no desenvolvimento de cada etapa desta pesquisa.

Agradeço à minha querida esposa Silvia pelo amor, companheirismo e pelas palavras de encorajamento durante todo o curso.

Agradeço aos meus pais por tudo o que me ensinaram e pelo que representam para mim.

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. João Décio Passos pela excelente orientação cujo fruto se vê na finalização deste trabalho.

Agradeço também aos irmãos da Igreja Evangélica Batista em Vila Antonieta pela compreensão, orações e apoio nas fases finais da escrita deste texto.

Resumo

A presente dissertação expõe o pensamento de Gilles Lipovetsky, analisando de forma específica a obra A sociedade pós-moralista, na qual o autor trata detalhadamente da questão ética na contemporaneidade. No âmbito da tradição filosófica francesa, Lipovetsky propõe um estudo de fenômenos sociais mais específicos, tendo como objeto central a sociedade hipermoderna. Nesta sociedade determinada pelo consumo, a ética coloca-se sob novos parâmetros. Na obra supracitada, o autor dedica-se a compreender os paradoxos que circulam as discussões em torno da questão ética, constatando que uma ética do pós-dever, cujo propósito se volta para a satisfação plena dos desejos subjetivos dos indivíduos nas mais variadas ações, determina hoje as relações sociais dos indivíduos nas esferas sociais. A teoria do autor a respeito da ética do pós-dever traz elementos significativos para uma melhor compreensão da questão religiosa, sobretudo em sua dimensão ética. As contribuições do autor apontam para a emergência de uma religião secularizada a gravitar no cenário social dado, cujas características são expostas nesta dissertação. Ao contrapor as considerações de Lipovetsky com as teorias de outros autores, é possível perceber a existência de pontos convergentes e divergentes nas propostas éticas que eles apresentam. A análise de Lipovetsky se mostra pertinente para a discussão de uma possível ética global, comum a todos os povos.

Palavras-chave: ética, consumo, individualismo, modernidade, religião.

Abstract

The present dissertation exposes the thought of Gilles Lipovetsky by examining specifically his book The post-moralistic society, in which the author treats in detail the ethical issue in contemporaneity. Under the French philosophical tradition scope, Lipovetsky proposes a study of more specific social phenomenons, by having as central object the hypermodern society. In this society determined by consumption, the ethics puts itself under new parameters. In the book mentioned above, the author is dedicated to understanding the paradoxes that circulate the discussions around the ethical issue, he notes that an ethics of post-obligation, whose purposes is the full satisfaction of the subjective desires of individuals in the most variety of actions, today determines the social relations of individuals in the social spheres. The author's theory concerning to the ethics of post-obligation brings significant elements for a better understanding of the religious issue, especially in its ethical dimension. The contributions of the author pointed to the emergence of a secularized religion to gravitate in the given social setting, whose characteristics are exposed in this dissertation. By opposing the considerations of Lipovetsky with the theories of other authors, it is possible to realize the existence of convergent and divergent points in the ethical proposals that they present. Lipovetsky's analysis shows itself pertinent to the discussion concerning to the possibility of a global ethics, common to all peoples.

Key-words: ethics, consumption, , , religion.

Sumário

Introdução...... 11

Capítulo I: Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual...... 15

1. A França e a Filosofia do Iluminismo...... 16

2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea...... 19

3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade...... 24

4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky...... 32

5. Categorias principais da filosofia de Gilles Lipovetsky...... 39

5.1. A emergência dos tempos do hiper: a hipermodernidade...... 40

5.2. O individualismo consumado: o hiperindividualismo...... 44

5.3. Para além da exibição social: o hiperconsumo...... 50

Capítulo II: A ética na sociedade pós-moralista...... 56

1. A constatação do movimento ético na sociedade atual...... 57

2. As matrizes clássicas da ética...... 61

2.1. Primeira matriz: a ética subordinada à religião...... 62

2.2. Segunda matriz: a ética civil...... 65

2.2.1. O surgimento da modernidade...... 65

2.2.2. A sacralização do dever...... 68

2.2.2.1. Os reflexos da ética do dever na esfera sexual...... 70

2.2.2.2. Os reflexos da ética do dever na esfera familiar...... 71

2.2.2.3. Os reflexos da ética do dever na esfera do trabalho social...... 72

3. A ruptura com as matrizes anteriores: a ética do pós-dever e a sociedade pós-moralista....74 3.1. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera sexual...... 78

3.2. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera do consumo...... 81

3.3. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera da saúde...... 84

3.4. Os reflexos da ética do pós-dever na relação entre o indivíduo e seus deveres para consigo mesmo...... 86

4. Proposições éticas para os tempos do hiper...... 89

4.1. Rumo a uma nova moral?...... 90

4.2. Rumo a um mundo sem valores?...... 95

4.3. Rumo a uma ética de responsabilidade?...... 99

Capítulo III: Elementos sobre religião no pensamento de Lipovetsky...... 103

1. A religião na contemporaneidade...... 105

2. Uma religião secularizada...... 110

2.1. A espiritualidade do consumo...... 112

2.2. O fim de um altruísmo de sacrifício e a emergência de um altruísmo indolor de massa...... 116

2.3. O trabalho voluntário cujo fim é o indivíduo que o realiza...... 122

2.4. A tolerância indiferente...... 125

2.5. Um pluralismo religioso ou uma busca plural do indivíduo religioso?...... 128

2.6. A manifestação de um neofundamentalismo?...... 131

2.7. O culto ao ego...... 133

2.8. O retorno da moral sexual de tradição ou sexo comedido?...... 136

3. Questões a se considerar...... 140

Capítulo IV: Contribuições de Lipovetsky para a compreensão da relação entre ética e religião nos tempos atuais...... 143 1. Uma religião hipermoderna do pós-dever, é possível?...... 144

2. Um projeto de ética mundial num universo pós-moralista, é possível?...... 156

2.1. A proposta de um conjunto de valores globais estruturado sobre um referencial ambiental...... 156

2.2. Uma ética global a partir de um diálogo entre as religiões...... 162

2.3. Para além do individualismo: uma ética global a partir do sujeito...... 172

3. A sociedade pós-moralista e seu futuro...... 177

Considerações finais...... 181

Bibliografia...... 187

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- Introdução -

A obra de Lipovetsky se mostra relevante para o estudo de questões relacionadas ao campo da ética. Em A sociedade pós-moralista, o autor rompe com um paradigma já estabelecido que relacionava a ética às prerrogativas do dever, da obrigatoriedade, do comprometimento e engajamento de causas com fins comuns, enfim, à necessidade de considerar o modo como o semelhante será afetado a partir de ações e práticas individuais e posturas assumidas pelos indivíduos em seus mais variados campos de atuação. Na perspectiva do autor, este paradigma marcado por uma lógica do dever está consumado, prevalecendo agora, em tempos hipermodernos, come ele prefere denominar a configuração social e cultural presente, uma lógica do pós-dever, refletindo a emergência de um hiperindividualismo social desconhecido em épocas anteriores. As correntes campanhas sociais e publicitárias cujo foco de atuação se volta para a conscientização das massas quanto à necessidade de responsabilidade ambiental e social, bem como de respeito ao próximo em sua liberdade de expressão, pensamento e escolha, para o autor, apenas atestam para o imperativo da lógica do pós-dever se impondo em todas as esferas sociais nas quais os indivíduos constroem suas relações, uma vez em que apesar da intensificação de campanhas que promovem mensagens desta natureza, ainda assim o hiperindivíduo não se vê obrigado a se comprometer com o bem estar alheio, a se engajar em favor de causas comuns. À época moralista, dos bons costumes e dos valores partilhados, sobrepõe-se a época pós-moralista, onde indivíduos se engajam sem o estabelecimento de vínculos permanentes, contribuem sem que se sintam obrigados a isso. Seguramente, essa mudança no cenário social concernente ao campo da ética, da moral e dos valores privados e coletivos, afeta também o campo religioso em toda a sua dimensão ética. A obra em questão traz uma contribuição significativa para uma melhor compreensão da questão religiosa em tempos hipermodernos. 12

A proposta é a de uma análise do pensamento do autor a respeito do modo como ele trata a questão ética atual e, a partir disto, verificar se as suas constatações fornecem elementos para uma melhor compreensão também da questão religiosa, sendo este o objeto formal da pesquisa. Esta análise será feita a partir de um estudo de seu pensamento, sobretudo na obra A sociedade pós-moralista, obra esta que se constitui como sendo o objeto material. O que o objeto apresenta a respeito de ética e religião no pensamento de Lipovetsky, os pontos em comum e os pontos conflitantes entre as duas realidades na perspectiva do autor, as possíveis relações de influência que uma esfera exerce sobre a outra, as suas considerações a respeito disto e as suas proposições serão aqui colocadas. Este projeto de pesquisa pretende contribuir para uma compreensão mais precisa quanto ao modo como as mudanças sociais relacionadas ao campo da ética têm se refletido também no universo das religiões. Ainda que Lipovetsky não tenha uma teoria de religião, pretende-se mostrar como as suas constatações relacionadas ao estudo da ética contribuem para uma análise eficiente da natureza das mudanças inferidas também no campo religioso, quando em sua dimensão ética, moral e comportamental, em virtude deste campo, de natureza plural, se encontrar também localizado dentro de contextos sociais específicos, portanto, não podendo escapar das transformações que a eles incorrem. A fim de se ter uma melhor compreensão a respeito do objeto proposto, outras obras do autor também serão estudadas. Há muitos problemas e questionamentos para os quais esta pesquisa pretende apresentar apontamentos e considerações mais plausíveis, entre eles, se é possível afirmar que a sociedade contemporânea desfruta de um momento histórico caracterizado por um reencantamento do sentimento de responsabilidade mútua nas ações entre os indivíduos em todas as esferas sociais de atuação, tendo em vista o aumento significativo de campanhas e incentivos para a prática de ações responsáveis que zelem pela preservação do meio ambiente, pelo bem estar alheio e pela solidariedade para com aqueles que vivem em situações desprivilegiadas. Cogita-se também se, na perspectiva de Lipovetsky, é possível considerar a possibilidade de um retorno aos grandes engajamentos das massas em causas nacionalistas, comuns e coletivas a partir dos grandes ajuntamentos que são correntemente organizados quando reveses naturais atingem e comprometem a vivência e os modos de vida em regiões menos desenvolvidas. Em relação à corrente intensificação de campanhas de promoção social e ambiental, bem como o aumento no número de indivíduos que aderem aos seus princípios, questiona-se se elementos como estes apontam para uma suposta desaceleração dos imperativos da lógica social individualista ou, contrariamente, poderiam apenas atestar para a exacerbação desta lógica. Há, seguramente, a dificuldade em conciliar a manifestação de 13

grandes movimentos sociais em prol de causas solidárias com a hipótese que de que se presencie hoje um individualismo mais hiperindividualista do que em tempos passados. Há ainda alguns problemas acerca de qual seria o reflexo das mudanças correntes no campo da ética no universo das religiões. Em que a lógica do pós-dever, com os seus imperativos e prerrogativas singulares, e sobre a qual Lipovetsky fundamenta a razão das mudanças no campo ético da contemporaneidade, implica também no campo religioso? Lipovetsky considera ser possível encontrar no universo destas mudanças sociais elementos que permitam identificar na sociedade um retorno do sentimento de responsabilidade para uma prática solidária mais consistente, cujos reflexos também possam ser encontrados na religião? É possível, a partir desta suposta constatação, dizer da manifestação de um sentimento religioso voltado para uma dimensão prática solidária mais que dogmática na contemporaneidade? Ou pelo contrário, presencia-se exatamente o seu oposto, ou seja, uma intensificação do sentimento de aversão à prática religiosa? Essas e outras questões são levantadas pelo próprio objeto desta pesquisa quando colocado em questão, e pretende-se ponderar a respeito delas de forma coerente a fim de se ter considerações que possam apontar para descobertas relevantes. Como hipótese, essa pesquisa pretende constatar se o pensamento de Lipovetsky, sobretudo em sua análise precisa da questão ética atual, pode fornecer elementos para uma melhor compreensão também das mudanças inferidas no campo religioso contemporâneo. Como sub-hipótese, pretende-se constatar se as mudanças, deslocamentos e rupturas com paradigmas passados para a emergência de novos paradigmas no campo ético atestam para a manifestação de uma religião secularizada permeando o cenário social contemporâneo. A pesquisa bibliográfica está disposta no seguinte percurso metodológico. Num primeiro momento, tornou-se imprescindível uma leitura mais precisa do conjunto de obras de Lipovetsky a fim de que um melhor entendimento do todo do seu pensamento fosse possível. A partir disto, foi feito também um levantamento de outros autores que trabalham com conceitos e teorias que contribuem para uma melhor compreensão acerca da questão ética. A partir disto, optou-se pelos títulos que mais se aproximam dos objetivos a que este estudo se propõe. Por fim, os textos levantados foram lidos e avaliados em vista de uma melhor compreensão das principais considerações dos autores. Pensadores como Hans Kung, Leonardo Boff e Alain Touraine, entre outros, trazem uma contribuição significativa para os fins desta pesquisa. Suas considerações a respeito da modernidade e dos desafios que elas impõem à questão ética, bem como à questão religiosa são consideradas e confrontadas com as colocações de Lipovetsky. Entre os aspectos tratados 14

por estes autores, destacam-se as suas colaborações no intuito de despertar as consciências para a necessidade de elaboração de um projeto de ética global, a saber, um conjunto de valores mínimos que possam ser compartilhados por indivíduos de contextos sociais, culturais e de crenças distintos, em virtude de grandes problemáticas, como a questão ambiental e os conflitos armados, que colocam em dúvida a possibilidade de sobrevivência da humanidade nos tempos futuros. Tais propostas, seguramente relevantes, são confrontadas com as constatações de Lipovetsky a respeito da sociedade contemporânea. O capítulo primeiro apresenta um panorama histórico da tradição filosófica francesa, na qual Lipovetsky se encontra inserido, bem como as principais categorias de seu pensamento. Segue-se a este capítulo uma descrição precisa do objeto de pesquisa proposto, a saber, as constatações do autor acerca da questão ética em sua obra A sociedade pós- moralista. O terceiro capítulo situa a questão religiosa na contemporaneidade e ressalta também como as análises do autor são relevantes para se pensar também a respeito da questão religiosa na contemporaneidade. Por fim, o quarto capítulo apresenta as contribuições do pensamento do autor para a compreensão da questão religiosa contemporânea.

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- Capítulo I -

Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual

O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta primeiramente um panorama histórico da tradição filosófica francesa, pontuando suas principais contribuições para o desenvolvimento da disciplina, bem como para promover mudanças e rupturas no cenário social, cultural e político não somente no seu universo de atuação particular, ou seja, a própria França, mas também em todo o Ocidente, e também apresenta de forma breve quais foram os seus principais representantes, bem como as teorias que propuseram.

Após um breve olhar acerca da filosofia do iluminismo, cujo centro e auge ocorreram na França, e cuja prática de elaboração e aplicação dos conceitos a apresentava como uma disciplina filosófica mais voltada para uma análise e crítica do contexto histórico-social do que para a elaboração de grandes teorias, há também um tópico dedicado a uma análise do modo como se constituiu a crítica à modernidade que a filosofia francesa produziu durante todo o século XX, com pensadores como Foucault, Sartre, Lyotard e Baudrillard, entre outros.

Esse panorama mostrará que a filosofia de Lipovetsky se enquadra dentro de uma tradição filosófica marcada pela crítica ao contexto histórico social de seu tempo. Lipovetsky é influenciado por pensadores que o precederam, como Lyotard e Baudrillard, mas também os ultrapassa quando propõe como objeto de estudo acadêmico fenômenos sociais até então renegados pela filosofia, pelo menos quanto à necessidade de uma abordagem filosófica mais rigorosa que ofereceria as condições básicas para uma compreensão séria da complexidade desses fenômenos.

Uma introdução ao pensamento de Lipovetsky é apresentada considerando elementos como a formação acadêmica do autor, sua militância política, os principais autores e textos 16

que o influenciaram e, por fim, uma síntese das principais categorias de análise de sua filosofia, como a hipermodernidade, o hiperindividualismo e o hiperconsumo.

1. A França e a filosofia do iluminismo

A França possui uma tradição filosófica relevante tendo sido o país que serviu como o centro da filosofia do iluminismo. Alguns nomes, em especial, tiveram uma participação direta no estabelecimento deste movimento cultural e intelectual iniciado no final do século XVII, e que tinha como objetivo principal enaltecer a razão e suas potencialidades à categoria de entidade humana provedora de liberdade de reflexão e pensamento, a despeito dos pressupostos determinantes da religião. Foi a filosofia do iluminismo a corrente filosófica responsável pela exaltação de novas possibilidades de concepção e interpretação do mundo daquela época.

Para que se compreenda em que consistiu a filosofia do iluminismo, bem como sua origem e propósito, faz-se necessário atestar para o fato de que ainda que o seu início seja localizado historicamente a partir das últimas décadas do século XVII ou início do século XVIII, muitas de suas concepções foram, de fato, pensadas e questionadas previamente ao seu estabelecimento, já no emergir da idade moderna. O iluminismo, portanto, representou uma fase histórica em que essas concepções foram desenvolvidas em construções teóricas mais bem elaboradas. Comentando acerca da Filosofia do Iluminismo, Cassirer considera

Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que ela produziu não consistem num conteúdo doutrinal que ela teria tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do que isso: ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e sua demonstração.1

À luz das considerações de Cassirer, a filosofia de Descartes (1596-1650), nesse sentido, representa um tipo de pensamento que, embora tendo influenciado diretamente a corrente filosófica do iluminismo, o precedeu historicamente. Na perspectiva de Descartes, todo indivíduo detinha a capacidade de duvidar e refletir acerca de qualquer objeto,

1 Ernst CASSIRER, A filosofia do Iluminismo, p. 9. 17

capacidade esta que lhe fora atribuída inerentemente, virtudes que lhe conferiam a possibilidade de alcance da verdade e do sentido presente nas coisas e nos fatos que delas decorriam. Descartes, com a instituição do método cartesiano e a elaboração de outras teorias, é reconhecido como um dos pensadores responsáveis pela revolução científica, cujo ápice culminaria num rompimento, nominal e formal, com as prerrogativas impostas pela igreja, instituição dominante na regulação das relações sociais, da moral e do pensamento daquela época.

Assim como a filosofia de Descartes, os experimentos de Newton (1643-1727) também contribuíram diretamente para a formação do pensamento iluminista. Suas descobertas acerca de fenômenos naturais desacreditavam o discurso religioso que, por sua vez, atestava para uma regulação e ação divina presente em cada fenômeno manifesto pela natureza. Newton demonstrou empiricamente que cada fenômeno seguia um curso natural, lógico e, portanto, desprovido de manipulação de divindades. Os absolutos impostos pela igreja, bem como o seu reconhecimento social como instituição provedora de sentido para a vida começavam a ser questionados.

Mediante o benefício da dúvida, da observação, do experimento e da reflexão, além de outras virtudes outorgadas pela razão, muitos pensadores foram influenciados a crer na suficiência da razão para a regulação e manutenção da vida em todas as suas esferas, como nas relações sociais, na esfera política, da economia e das relações de classes, enfim, a razão desmistificou as respostas limitadas que a religião oferecia e, em fazendo isso, lhe expropriou o potencial de instituição orientadora das massas. Neste sentido, a filosofia de Locke (1632- 1704) também foi precursora do Iluminismo. Em sua obra Primeiro tratado sobre o governo civil (1689), Locke critica diretamente a concepção corrente de que os reis detinham direitos, autoridade e benefícios que lhes foram outorgados mediante o querer divino manifestado pelo reconhecimento da igreja. Na segunda parte deste texto, Segundo tratado sobre o governo civil (1689), Locke expõe a sua teoria sobre a criação de um Estado liberal. Foi a criação do Estado o fator determinante para a desvalorização do papel do monarca como representante divino na sociedade e para a conseqüente desestruturação do absolutismo na Inglaterra. Para Locke, todo indivíduo detinha o direito à vida e à liberdade, direitos esses conferidos desde o nascimento.

Para os iluministas, a religião não poderia interferir nas questões políticas da sociedade. Seguindo as teorias de Locke, Montesquieu (1689-1755) em Do espírito das leis (1748), contribuiu para o estabelecimento do pensamento de Locke ao propor a criação de um 18

governo cujos poderes não fossem concentrados em um representante único, mas sim que fossem divididos, compartilhados, sendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além de Locke e Montesquieu, Voltaire (1694-1778) também argumentou de forma contrária ao regime monárquico, sustentando seus argumentos a partir da contestação de uma lógica de interesses particulares presente em toda ação e dominação monárquica. Era o escopo de interesses privados presente na política realizada pelos monarcas que comprometia o desenvolvimento social em seu todo.

Estabelecendo também uma crítica à sociedade de seu tempo, outro nome relevante na filosofia do Iluminismo foi o de Rousseau (1712-1778). Seu pensamento alcançou relevância ao afirmar que a sociedade era a responsável por extrair a bondade inerente de cada homem, por corrompê-lo em sua natureza e essência.

Descartes, Locke, Voltaire, Montesquieu e Rousseau contribuíram diretamente na concretização dessa corrente filosófica que dominou a França a partir dos fins do século XVII e início do século XVIII. No entanto, foi com a obra Enciclopédia (1751-1772), editada por Diderot (1713-1784) e com a contribuição de muitos outros pensadores, que as suas prerrogativas principais foram difundidas alcançando popularidade em todo o ocidente.

Foram as idéias iluministas que atuaram como fatores determinantes para que novas concepções acerca do governo e da economia, bem como de suas atribuições, fossem levantadas, fazendo da filosofia francesa um instrumento prático de contestação do universo social dado, desde o seu nascimento, auge e também no decorrer de todo o século XIX, quando novas correntes filosóficas surgiram, como o utilitarismo, o marxismo, o positivismo e também o pragmatismo. No entanto, foi principalmente nas últimas décadas do século XIX e durante todo o século XX, que a filosofia francesa produziu uma crítica bastante contundente à modernidade, quando seus principais teóricos apresentaram contestações bem localizadas que apontavam para uma tentativa de abrangência do fenômeno moderno em seu todo, considerando benefícios e malefícios, causas e conseqüências. Evidentemente, dar conta de um fenômeno de tão grande amplitude e de complexidade singular como a modernidade constituiu-se tarefa sobremodo pesarosa e, de fato, sobraram ainda lacunas carentes de observação e análise críticas.

Os principais representantes da filosofia francesa no século XX, bem como suas principais teorias, são colocados abaixo.

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2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea

Um dos pensadores que se destacou no cenário filosófico francês em virtude do estabelecimento de uma crítica consistente à modernidade foi Michel Foucault (1926-1984), nascido em Paris, França. A obra foucaultiana é bastante complexa e difícil de ser compreendida sem que se leve em conta o panorama histórico social no qual o filósofo se encontrava inserido. De forma sucinta, pode-se afirmar que os seus escritos se concentram em maior parte numa análise crítica das práticas e das relações de poder oriundas e necessárias com o advento da modernidade. No entanto, Foucault não dirige o seu foco de pesquisa para categorias mais teóricas de análise do poder, ou seja, não faz parte de sua preocupação os temas que dizem respeito à origem do poder, ao seu surgimento e outras questões localizadas apenas no universo teórico da pesquisa, pelo contrário, o filósofo volta o seu olhar para os locais onde as ações práticas do poder são aplicadas de forma mais direta e efetiva, enfim, onde o poder exerce dominação de forma incontestável. É nesta perspectiva que se compreende o desenvolvimento de uma crítica constante em relação às práticas de algumas instituições sociais modernas, como os hospitais psiquiátricos e os presídios, na relação com indivíduos marginalizados pela dinâmica social moderna, doentes mentais, prisioneiros e estrangeiros, entre outros. Para Foucault, que estabelece uma análise em um contexto histórico social bem localizado, a saber, o Ocidente, este grupo de pessoas representa uma ameaça em graus diversos para o padrão social pretendido pela modernidade, sendo necessária a sua exclusão e confinamento em locais que ele denomina de “instituições disciplinares”, como citado anteriormente, os presídios, manicômios, asilos etc.

É em virtude deste foco específico de pesquisa que Foucault cria conceitos como o de “biopoder” ou “biopolítica”, que para ele diz respeito ao controle exercido pelo poder soberano, ou seja, de quem o detêm socialmente, sobre o âmbito dos processos relacionados à natalidade social. Na perspectiva de Foucault, esse controle é exercido a partir de critérios não apenas sociais, mas também relacionados a questões políticas e econômicas, definindo-se, portanto, como mais uma forma de controle e domínio social.

Foucault, no início de 1980, também se deteve numa linha de pesquisa e crítica acerca de questões relacionadas à “verdade”. É colocado por ele em questão, por exemplo, os atos a que se propõem certos grupos de indivíduos, como os grupos cristãos ascéticos, a fim de alcançarem a verdade presente nos fatos, significados e relações do cotidiano. 20

O rompimento com o modo como as noções de poder, saber e sujeito social eram concebidos pela modernidade, fez com que alguns teóricos considerassem Foucault como um pensador pós-moderno, ainda que o próprio Foucault guardasse ressalvas quanto à aplicabilidade do termo, preferindo antes se dispor a uma discussão mais precisa a respeito de seus significados, questionando também se era plausível uma possibilidade de rompimento com um momento histórico social definido como a modernidade, cujas prerrogativas ainda se faziam ver e ainda influenciavam as relações sociais em seu todo. De fato, a obra foucaultiana é muitas vezes descrita como pós-moderna ou pós-estruturalista, sobretudo em virtude da publicação de trabalhos como História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), e ainda que Foucault tivesse se filiado ao termo pós-estruturalista, posteriormente ele o renegou afirmando não estar adaptado a uma abordagem formalista.

Além de Foucault, Jean Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980), nascido também Paris, França, se destacou no cenário filosófico francês como um dos críticos da modernidade. Em sua perspectiva, os teóricos precisavam atuar de forma mais ativa na sociedade, pensamento este que levou Sartre a se colocar como um filósofo e escritor militante apoiando, sobretudo, causas de esquerda. Nascido em 1905, Sartre se tornou um dos representantes principais do existencialismo ateu. Dentre seus conceitos principais, destaca-se a questão da existência, que de seu ponto de vista, precede a essência quando o ser em questão é o ser humano, e também a questão da liberdade vista como algo para o qual todo homem está condenado.

Para Sartre, ainda que um objeto qualquer, como uma caneta, tenha a sua essência precedendo a sua existência, ou seja, antes de se tornar o objeto como tal, este mesmo objeto fora concebido para então ser construído para fins previamente propostos, tal lógica se inverte quando aplicada ao ser humano. Em sua perspectiva, não há uma suposta essência humana pré-concebida ou pré-determinada, portanto, Sartre nega a possibilidade de existência de um Deus que estaria a definir a essência e o destino do homem como advogava o existencialismo cristão. “Para-si” é o termo usado por Sartre para dizer que a consciência humana difere das demais por deter consigo a capacidade de conhecimento acerca de si próprio e do ambiente em seu entorno, portanto, conclui Sartre que o “Para-si” não tem essência definida, sendo somente ao longo de sua vivência, ou de sua existência, que a sua essência será compreendida. É este o aspecto principal que a difere dos seres “Em-si”, os demais seres no 21

mundo que não possuem a mesma capacidade de conhecimento acerca de si próprios e que, portanto, possuem essência definida, como uma caneta ou qualquer outro objeto.

As teorias de Sartre trazem implicações diretas no campo das ações humanas. Sendo o homem o único ser detentor de uma consciência capaz de refletir e pensar a respeito de si mesma e do mundo à sua volta, cabe a si mesmo a responsabilidade única por suas ações, por suas escolhas, opções e por escrever um futuro pretendido. O homem traz consigo a responsabilidade por suas próprias ações e decisões, bem como pelas conseqüências que delas resultam para si mesmo e para o contexto social no qual ele se encontra inserido. Em certo sentido, cada indivíduo torna-se também, então, responsável pela construção do mundo no qual manifesta a sua existência. São estes pressupostos que estarão a definir o conceito de liberdade em Sartre, para quem o homem é responsável pelo seu passado, presente e futuro. Para Sartre, o “homem está condenado a ser livre”.

É este também o fundamento de toda angústia atribuída aos existencialistas, ou seja, um sentimento oriundo da consciência de liberdade de ação, de escolhas, de posturas, portanto, de existência, que cada indivíduo carrega consigo, bem como a consciência de que o exercício desta liberdade afetará diretamente o mundo no qual se vive e os outros também inseridos neste mesmo universo. Segundo Sartre, os conflitos existentes entre os seres humanos são oriundos das escolhas, portanto, das existências individuais manifestas socialmente. Cada indivíduo manifesta a sua existência em virtude de projetos singulares, privados e nos quais se encontra engajado. No entanto, tendo em vista a singularidade dos interesses de cada indivíduo e a liberdade de escolher livremente, interesses privados esbarram no escopo de interesses privados alheios, surgindo daí o conflito. No entanto, o filósofo considera necessário o conflito, portanto, a convivência com o semelhante, afirmando que somente pela convivência mútua um indivíduo pode enxergar-se por inteiro.

Sartre militou em favor da Resistência francesa durante a segunda guerra como meteorologista e durante a ocupação de Paris pelos alemães, porém, sua arma era a palavra mais do que as armas propriamente ditas. Ele fez uso também do teatro para transmitir seus conceitos e manifestar a sua militância. Nos anos 50, no entanto, Sartre tornou-se um militante político cuja postura se mostrava mais comprometida. Engajou-se publicamente em defesa da libertação da Argélia do colonialismo francês e abraçou as idéias comunistas. Apesar de ter recebido o prêmio Nobel de literatura de 1964, Sartre o negou por afirmar categoricamente que nenhum escritor poderia ser transformado em instituição. 22

Jean François Lyotard (1924-1998), nascido na cidade de Versalhes, França, é um dos nomes exemplares da filosofia francesa no estabelecimento de uma análise crítica à modernidade no século XX. Sua principal publicação, A condição pós-moderna, de 1979, expressa uma condição de vivência a que se encontram sujeitos os indivíduos no final do século XX. A primeira tradução para o português propunha como título desta obra a expressão O pós-moderno, no entanto, esta se mostrava ineficaz e limitada no intuito de transmitir com clareza a proposta central do livro, ou seja, de que a pós-modernidade é uma condição e não um estado dado. A falta de correspondência com o título original da primeira tradução para o português poderia sugerir que seu autor se identificava com o suposto fenômeno pós- moderno, assumindo consigo uma postura apologética de suas prerrogativas. No entanto, tal sugestão nunca faria justiça às propostas de Lyotard, pelo contrário, no todo de sua crítica e análise do fenômeno social produzida posteriormente ao lançamento do texto em questão, percebe-se a postura de um filósofo cuja crítica à sugestão pós-moderna se apresenta de forma bastante consistente.

Fazendo uso de um método proposto por Ludwig Wittgenstein, “os jogos de linguagem”, Lyotard considera que o “vínculo social observável é feito de ‘lances’ de linguagem”.2 A partir desta e de outras premissas, Lyotard constrói a sua teoria e a aplica no universo social posto da segunda metade do século XX, mostrando, entre outros levantamentos, as mudanças que estavam em curso na modernidade de seu tempo. Lyotard considera este tempo como aquele que estava a testemunhar do fim da credibilidade antes atribuída aos grandes discursos científicos e políticos, o fim das paixões nacionalistas, dos engajamentos de massa, enfim, é o tempo da desconfiança para com os grandes discursos e promessas antes tão comumente proferidos como ferramentas de engajamento social e unificação das massas. Como resultado deste desencantamento social para com as promessas proferidas, bem como em relação aos grandes ideais proferidos pela modernidade em sua época clássica, Lyotard vê emergir a pluralidade de centros provedores de significação social e a relativização dos absolutos. A sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, é aquela cujos atores interpretam vidas isoladas dentro de um contexto social comum. A condição pós- moderna confere aos seus indivíduos essa possibilidade singular e inédita de exibição de narrativas de vida distintas e fragmentadas em um ambiente social único. Mais do que a expressão de uma identidade singular de um grupo, com hábitos, crenças e valores em comum, a sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, apresenta um grupo de

2 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. 17-18. 23

indivíduos que assimilam e interpretam de forma divergente hábitos, crenças e valores comuns, criando possibilidades para a exposição de identidades correspondentes mais a aspirações de foro íntimo do que coletivo.

Além de Foucault, Sartre e Lyotard, muitos outros nomes importantes compuseram a escola filosófica francesa em seu espectro de análise e crítica histórico social durante o século XX, como Morin, Castoriádis, Lefort, Camus, Ricoeur e, entre eles também o do filósofo e sociólogo (1929-2007). Baudrillard desenvolve o conceito de “hiper- realidade”, ou seja, de uma realidade construída socialmente a partir do impacto constante dos veículos midiáticos e de comunicação na sociedade e cultura contemporâneas, conceito este diretamente inferido em outro tema abordado pelo autor, o do simulacro, cuja explanação precisa se encontra em sua obra Simulacros e simulação, de 1981. O conceito de simulacro serviu aos propósitos dos irmãos Wachowski na criação da trilogia Matrix, embora o próprio Baudrillard tenha afirmado posteriormente que o filme não reflete em si a sua teoria por apresentar duas realidades distintas em seu enredo, a realidade propriamente dita e a realidade virtual. Na perspectiva de Baudrillard, ambas as realidades se misturam no universo das relações sociais em que os indivíduos convivem.

Em sua obra, O sistema dos objetos, publicada em 1968, Baudrillard coloca como objeto de sua análise, entre outros elementos, o poder da mídia, da comunicação e da publicidade em sua ação coercitiva sobre os indivíduos levando-os à aquisição de objetos de consumo. Ele pretende mostrar a complexidade de um sistema simbólico existente e determinante nas relações dos indivíduos com os objetos, e entre os conceitos expostos em seu texto, desenvolve o da “lógica do Papai Noel”, afirmando

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não aprenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e, todavia a mantemos. No fundo a “demonstração” do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me fazer crer nele. É a velha história do Papai Noel: as crianças não mais se interrogam sobre a sua existência e jamais a relacionam com os brinquedos que recebem como causa e efeito – a crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais [...]. Esta relação 24

miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma crença que é o seu prolongamento ideal.3

Nem o caráter normativo da publicidade que, de fato, se faz de modo muito precário, tampouco as potencialidades do produto em si, são os responsáveis pela decisão de compra do indivíduo, mas sim os benefícios simbólicos agregados à mercadoria e veiculados nas mensagens publicitárias. Para Baudrillard, o indivíduo “não ‘acredita’ na publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma forma a uma situação infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela”.4 Essa temática compreende todo o enredo de O sistema dos objetos, no qual Baudrillard explora as suas infinitas possibilidades abordando ainda questões relacionadas ao que ele denomina de “milagre da compra”, “o objeto abstraído de sua função”, “o objeto-paixão”, “o objeto personalizado”, “o festival do poder da compra”, e outras abordagens.

Essa rápida passagem pela tradição crítica do pensamento francês expõe a preocupação comum dos pensadores: construir uma crítica de sua época em nome da liberdade e do compromisso social. Rompendo com a tradição clássica, o pensamento francês contribuiu na teoria e na prática com a construção da modernidade, bem como com a crítica da mesma em tempos mais recentes.

Lipovetsky é um autor que se localiza na mesma linha dessa tradição filosófica francesa que, como já apontado anteriormente, se caracteriza por uma prática filosófica voltada para uma análise crítica da contemporaneidade. O que o torna singular são as suas abordagens de fenômenos até então considerados marginais pela filosofia, o luxo, a moda, a feminidade, e também uma abordagem mais precisa do fenômeno do consumo e da sua capacidade de inferência e de determinação das relações sociais como se dão.

Após localizar Lipovetsky na tradição filosófica francesa, será considerado a seguir a pessoa do filósofo, sua formação, suas influências e suas principais categorias de pensamento.

3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade

Muitos autores têm proposto termos e elaborado categorias que possam definir com maior precisão aquilo que a contemporaneidade tem manifestado e se permitido revelar como

3 Jean BAUDRILLARD, O sistema dos objetos, p. 175-176. 4 Ibid, p. 176-177. 25

ordem social atual. Em virtude das correntes mudanças no cenário social, nas relações entre os indivíduos em razão das mudanças e inovações tecnológicas, bem como das ferramentas de comunicação, grande parte dos sociólogos e filósofos consideram que a modernidade atual é diferente daquela conhecida em seu nascimento. Desta forma, este tópico pretende apresentar quais são as principais categorias propostas como definição da contemporaneidade ao longo dos séculos XX e XXI, termos que pretendem encerrar em seus significados a complexidade do fenômeno moderno, ou pelo menos captá-lo com maior sensibilidade.

Modernidade é o termo empregado para classificar a contemporaneidade e cujos representantes resistem à proposição de que haja elementos suficientes para afirmar a emergência de um momento histórico social divergente daquele que nasceu em oposição à era pré-moderna. Anthony Giddens é um dos que compartilham desta afirmação. Para este sociólogo inglês, ainda que as correntes inovações tecnológicas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, e o alargamento das capacidades de comunicação imponham uma dinâmica social que possibilita um modo de organização de vida distinto daquele conhecido em décadas e até mesmo em séculos passados, tais movimentos apenas fazem jus àquilo que a modernidade vem representando desde o seu início, ou seja, uma fase histórica em que a razão vem sendo empurrada para os limites de sua atuação, provendo aos indivíduos modernos todas as condições necessárias para a construção e manutenção de um viver promissor, auto- suficiente e, portanto, alheio às demandas imperativas da religião.

No entanto, ainda que Giddens não se familiarize com outras definições que sugerem uma fase histórica pós-moderna como característica da contemporaneidade, ele reconhece o tempo atual como singular e inovador e adota a expressão Modernidade tardia, ou Alta modernidade para descrever com maior presteza os desencaixes sociais vistos e reconhecidos nas últimas décadas. Como “desencaixes” compreendem-se as complexas mudanças percebidas no cenário social, compreendendo desde as relações sociais entre os indivíduos, incluindo a legitimação de comportamentos antes reprimidos e as novas formas de organização da vida, as inferências da lógica de variação, inovação e exibição pertinentes à lógica da moda nas relações dos indivíduos com os objetos, e as possibilidades de realização social e significação existencial a partir dos engajamentos privados nos empreendimentos de consumo massivos.

Giddens, tratando da proposta de uma modernidade tardia, considera a relevância de uma abordagem reflexiva em relação ao objeto que é a própria sociedade em si, que a todos está posta, a fim de que uma apreensão precisa e responsável pelos indivíduos seja possível 26

Nas situações a que chamo de modernidade “alta” ou “tardia” – nosso mundo de hoje -, o eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído reflexivamente. Mas essa tarefa deve ser realizada em meio a uma enigmática diversidade de opções e possibilidades.5

A tarefa reflexiva proposta por Giddens faz-se relevante também em virtude dos riscos inéditos que incorrem aos indivíduos e que foram introduzidos pela alta modernidade. “O mundo moderno tardio [...] é apocalíptico não porque se dirija inevitavelmente a calamidade, mas porque introduz riscos que gerações anteriores não tiveram que enfrentar”.6 Há o risco da não possibilidade de manutenção do eco sistema, apontando para o fim eminente dos fornecimentos de vida abundante, há o risco de um colapso da economia mundial, do aumento no número dos desfavorecidos e marginalizados pelo sistema moderno, de pequenas novas guerras e maiores e conhecidos grupos de indivíduos dizimados, enfim, riscos que fazem da modernidade tardia um fenômeno paradoxal, pois na tentativa de criar condições para o seu prolongamento pretendido, a modernidade fornece também elementos para que o risco de um fim eminente seja plenamente possível. Giddens coloca que “na alta modernidade, a influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos, e sobre as intimidades do eu, se torna cada vez mais comum”.7

Em face dos riscos iminentes postos acima, Giddens afirma ser a modernidade “uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional”.8 Tendo relativizado os absolutos, a modernidade radicalizou o princípio da dúvida, do questionamento, das inseguranças, das ansiedades e necessidades de se colocar em verificação toda e qualquer afirmação que se pretenda ser categórica. Nas palavras de Giddens, “a modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese [...]”.9

Modernidade líquida é outra tentativa de dar um nome mais preciso e coerente àquilo que os tempos contemporâneos têm revelado. Quem deste termo faz uso é o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Fazendo uma analogia com a idéia de fluidez ou liquidez, ou seja, se referindo a não consistência dos objetos desta natureza, de sua incapacidade de solidificação, de resistência a intervenções externas, a pressões vindas de seu exterior, enfim, de sua limitação e incapacidade de resistência temporal, Bauman busca compreender com

5 Anthony GIDDENS, Modernidade e Identidade, p. 10-11. 6 Ibid, p. 12. 7 Ibid, p. 12. 8 Ibid, p. 10. 9 Ibid, p. 10. 27

maior clareza a natureza dos movimentos que a história moderna tem presenciado. Em suas palavras

Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade no “discurso da modernidade” e está familiarizado com o vocabulário usado normalmente para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de “liquefação” desde o começo? Não foi o “derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi “fluída” desde sua concepção?10

Bauman desenvolve o seu argumento afirmando que a modernidade tratou de provocar em seus próprios eixos de sustentação, a saber, suas instituições modernas caracterizadas como centros plurais provedores de significação social e de normatização da vida, e também o seu sistema de produção de mercado regido pelo modo econômico capitalista, o derretimento dos sólidos. Como sólido, Bauman compreende todo e qualquer elemento que resista aos chamamentos de mudança em virtude das transformações e inovações no cenário moderno social. O “derretimento dos sólidos” significa a compreensão de que o espírito era moderno “na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da ‘mão morta’ de sua própria história”.11 Bauman ressalta ainda de forma contundente que “os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”.12

A modernidade em sua fase líquida, portanto, caracteriza-se como sendo o tempo dos desprendimentos às noções de obrigações e determinações éticas nas relações sociais em todas as suas esferas, sem, no entanto, estar alheio aos seus apelos. Em virtude da ausência de absolutos, pluralizam-se as propostas de instituições que reivindicam para si a competência de atuação como estruturas sociais provedoras de regulação e significação existencial. A modernidade, seguindo seu curso natural, continua a provocar rupturas, inovações e novas possibilidades, no entanto, se depara em sua fase líquida com o exílio de elementos que proporcionem bases sólidas para a sua manutenção e para o estabelecimento de valores e normas comuns. A ética em sua faceta ambiental, o respeito aos direitos e escolhas dos indivíduos com os quais o espaço social é dividido, o apego a alteridade, a aceitação de modos de vida divergentes dos modelos tradicionais, entre outros elementos, são estruturas

10 Zigmunt BAUMAN, Modernidade líquida, p. 9. 11 Ibid, p. 9. 12 Ibid, p. 10. 28

muito rasas, sem sustentação e em constantes deslocamentos, pois são regidos pela lógica da moda e do consumo.

Fazendo uso desta metáfora, Bauman constrói sua teoria aplicando-a a outros elementos que também são afetados pelas novas imposições da modernidade em sua fase atual. Obras como “Amor líquido”, “Vida líquida”, “Medo líquido” e “Tempos líquidos”, além de outros títulos, expressam bem esse emprego.

Pós-modernidade é o termo empregado por Jean François Lyotard em seu livro A condição pós-moderna para tentar encerrar num conceito único as mudanças presenciadas no cenário cultural moderno. Na perspectiva de Lyotard, o termo pós-modernidade “designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”.13

Lyotard é ainda mais perspicaz ao considerar que a idéia de pós-modernidade reflete uma época em que as grandes narrativas perdem a credibilidade e a admiração dos indivíduos, e com isso, a capacidade de domínio das consciências. As promessas enunciadas pela ciência em razão de sua ilimitada capacidade de inovação, a incapacidade do Estado de provocar o engajamento das massas a partir de um sentimento de paixão nacionalista, a incapacidade da religião de promover ajuntamentos dentro de seus ambientes de atuação, as incertezas presente nas consciências em relação à capacidade da razão de organizar cenários culturais e sociais ideais, em virtude da contemplação do cenário catastrófico do mundo pós-guerra, enfim, a crise na crença aos grandes discursos de pretensão a uma aplicabilidade universal de suas propostas, enunciados e articulados pelas grandes instituições modernas marca, na perspectiva de Lyotard, o emergir do momento pós-moderno.

David Harvey faz uso do mesmo termo e justifica sua aplicabilidade à luz da mesma hipótese de Lyotard. Segundo Harvey, “a fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco do pensamento pós-moderno”.14

À luz das considerações de ambos os autores, compreende-se que a fase histórica que o pós-guerra compreendeu desqualificou a credibilidade de que os metarrelatos desfrutavam, bem como as instituições que os promulgavam. Dá-se início a uma fase de incertezas, de desconfianças, de questionamentos da realidade dada. A partir desta crise, intensificou-se o

13 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. XV. 14 David HARVEY, Condição pós-moderna, p. 19. 29

individualismo exacerbado, a crise dos absolutos, a relativização do agir e do pensamento éticos, a intensificação do viver o tempo presente com intensidade máxima em virtude das incertezas que um futuro reservava, a escassez de engajamentos de massa, os interesses pessoais suplantaram o escopo de interesses coletivos, a religião viu-se desmanchando em espiritualidades plurais, enfim, o mundo moderno do pós-guerra difere consideravelmente daquele que estava posto em épocas passadas sendo, portanto, pós-moderno. Harvey coloca que “o pós-moderno [...] privilegia ‘a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural’”.15

Sendo o termo contestável, Harvey levanta questionamentos quanto à legitimidade de seu emprego

O pós-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o modernismo ou é apenas uma revolta no interior deste último contra certa forma de ‘alto modernismo’ [...]? Terá ele um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão iluminista) e da sua estreita atenção a ‘outros mundos’ e ‘outras vozes’ que há muito estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua história própria)? Ou não passa de comercialização e domesticação do modernismo e de uma redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo de mercado ‘vale tudo’, marcado pelo laissez-faire?16

Ainda que não haja um consenso quanto à aceitação do termo pós-moderno, mediante os argumentos apresentados pelos expoentes acima, verifica-se evidentemente a existência de uma ruptura significativa nos modos de vida e de organização da sociedade na segunda metade do século XX em relação aos modos de vida em sociedade de épocas anteriores a este momento. Como colocado anteriormente, ainda que a modernidade continuasse a seguir o seu curso natural de inovação e de otimização das potencialidades da razão e da ciência, mudanças ocorridas no pensar e na postura dos indivíduos, ou seja, em seu foro íntimo mais que coletivo, por razões diversas e complexas, são irrefutáveis. Mudanças estas que, de tão relevantes, comprometeram todo o curso da história social, provocando novas rupturas e novas diretrizes na continuidade da história moderna.

O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé propõe o termo Supermodernidade como designação ideal da contemporaneidade. Augé observa os constantes deslocamentos e

15 Ibid, p. 19. 16 Ibid, p. 47. 30

movimentos promovidos pelos indivíduos na sociedade atual para construir o conceito de “não-lugares”, que são os espaços povoados por multidões de passagem, em constantes deslocamentos, permitindo um fluxo contínuo de indivíduos em seus ambientes, porém, sem permanência certa ou possibilidade de promoção de relacionamentos. Aeroportos com seus restaurantes e lojas de conveniência, estações de trem, salas de espera e outros são exemplos de espaços “não-lugares”.

São estes espaços bastante complexos, intensificam o individualismo, pois quaisquer relações que ali se iniciem tendem a não se prolongar, refletem uma absorção do mundo e de seus espaços pela inovação e desenvolvimento tecnológicos, diminuindo a quantidade de espaços vagos para ocupação ao mesmo tempo em que estabelecem novos espaços povoados de indivíduos vazios, são espaços que preenchem necessidades e elevam a efemeridade, enfim, espaços em que o consumo de um tipo não fixado se manifesta. Antes encerrados em lojas e locais específicos de compra, como os grandes centros comerciais, hoje, o consumo se desprende desta estrutura sólida e se transporta a si mesmo para espaços tidos como “não- lugares”, a fim de acompanhar os deslocamentos dos potenciais consumidores. Este tipo de consumo inédito acompanha o indivíduo em aeroportos, no próprio tempo de viagem com as possibilidades de compra oferecidas pelas companhias aéreas durante os trajetos dos vôos, em sua descida ao local pretendido e também em sua própria residência, quando possibilidades de consumo estão disponíveis através da internet.

São nos espaços “não-lugares” que o indivíduo moderno despende a maior parte de seu tempo, podendo-se afirmar, portanto, que a sociedade com sua cultura Supermoderna como Augé designa, vem sendo preenchida ou transformada em pequenos espaços “não- lugares” fragmentados e desconectados entre si.

Na perspectiva de Augé, o termo Supermodernidade reflete a idéia de continuidade e não de uma nova fase histórica se manifestando como implicada na idéia do “pós-moderno”. Trata-se de um tempo em que os excessos têm se multiplicado e com os excessos a perda de referenciais norteadores e de sentido para a vida. Novos espaços de circulação são criados, no entanto, intensifica-se o individualismo, a efemeridade, o vazio e o imediatismo nas mais variadas relações.

A Supermodernidade designa uma cultura paradoxal, com discrepâncias, contradições em seus próprios valores e distâncias singulares. 31

Ainda outros termos têm sido sugeridos como categorias que descrevam o que a contemporaneidade representa, como o emprego de Ultramodernidade, que Jean-Paul Willaime17 comenta da seguinte maneira

Passa-se das certezas modernas das sociedades nacionais às incertezas ultramodernas da sociedade-mundo. A ultramodernidade representa um processo de secularização da modernidade, de desmitologização dos ideais seculares, em nome dos quais, justamente, a modernidade contribuiu para a secularização do religioso. É o desencantamento dos desencantadores. O próprio movimento de modernização crítica que atingiu o religioso alcança agora todas as esferas de atividade e todas as instituições, inclusive a própria modernidade.18

Compreende-se, portanto, que para Willaime, o tempo atual denominado como a fase da Ultramodernidade tem como característica principal, diferentemente da proposta de Augé, que ressalta as discrepâncias produzidas pelo fenômeno, a secularização da própria modernidade, ou seja, desmanchar na e da própria modernidade os seus aspectos religiosos, ou desvestir da modernidade de sua roupagem religiosa.

Desmodernização ou Modernidade dividida é empregado por Alain Touraine para descrever a modernidade atual. Segundo o autor, a Modernidade dividida é a conseqüência dos embates e imposições entre razão e sujeito, cada qual brigando por seus espaços e liberdades de atuação, ambos interferindo nas estruturas sociais da modernidade conforme seus interesses e provocando, conseqüentemente, rupturas de modo a comprometer o bem estar e a vivência entre os indivíduos. A solução para a manutenção da modernidade dividida seria a busca pela unificação entre as duas esferas, a saber, da razão juntamente com a esfera do sujeito. Significaria unir ou diminuir as distâncias discrepantes entre a dimensão da técnica, da razão, da ciência e de suas potencialidades com a dimensão humana que abrange peculiaridades da cultura, da tradição, enfim, de tudo aquilo que expressa a riqueza presente no universo da criação humana.

Após esta breve contextualização daquilo que tem sido proposto a respeito de uma nomenclatura que melhor descreva e compreenda a contemporaneidade em toda a sua complexidade e inovação, há ainda a proposta trazida por Lipovetsky, a saber, de que a

17 Jean Paul Willaime é francês, sociólogo da religião, diretor da École Pratique des Hautes Études (Seção de Estudos da Religião), diretor do Institut Européen em Sciences des Religions, presidente da International Society for the of Religion, membro da Société Groupe, Religions, Laicités. Embora o termo Ultramodernidade tenha sido empregado principalmente por Pierre Legendre, a referência a Willaime é feita em virtude deste autor elucidar de forma mais prática o sentido do termo. 18 Jean Paul WILLAIME, A favor de uma sociologia transnacional da laicidade na ultramodernidade contemporânea, Civitas, v. 11, n. 2, p. 307. 32

sociedade atual vê emergir uma fase inédita que ele denomina de hiper, cujos desdobramentos se fazem ver num consumo de prática hiperconsumista, bem como num individualismo de caráter hiper. São práticas que refletem a manifestação de uma sociedade hipermoderna.

Embora Lipovetsky já tenha sido adepto do termo pós-moderno, o autor agora o considera limitado como categoria científica que dê conta de fenômenos tão singulares do tempo presente. Em sua concepção, há novos paradigmas que estão a impor novas restrições e concepções aos indivíduos, impelindo-os a reorganizarem suas vidas a partir de outras lógicas de direção, como a lógica da moda e do consumo.

Os argumentos apresentados pelo autor como justificativas para o emprego do termo hiper, bem como as características que, segundo ele, refletem um movimento social em direção ao hipermoderno, são apresentados no próximo tópico, quando o pensamento de Lipovetsky, bem como suas principais categorias de pensamento são situados.

4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky

Nascido em 1944, na cidade de Millau, na França, Gilles Lipovetsky é atualmente um dos principais pensadores e críticos da presente sociedade. É filósofo, doutor Honoris Causa pela Universidade de Sherbrooke, no Canadá, e pela Nouvelle Université Bulgare, em , na Bulgária. Lipovetsky é membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do Conselho de Análise Social da França, e já foi condecorado como Cavaleiro da Legião de Honra da França. Atualmente, Lipovetsky é pesquisador e professor da Universidade de , também na França.

No início de seus estudos de Filosofia na Sorbonne, Lipovetsky já assumia um real desinteresse pelos textos clássicos e pelos filósofos fundadores da filosofia. Como ele mesmo afirmou posteriormente, “o que me animava era não as grandes questões da metafísica ou da moral, mas a interpretação do mundo moderno”.19 Como muitos estudantes de sua época, em torno dos anos 60, Lipovetsky também se encontrava possuído pelas convicções marxistas. Em 1965, as idéias do marxismo o levaram a participar de um grupo militante de esquerda, cujo nome era Poder Operário, fundado por Lefort e Castoriadis, do qual também fazia parte Lyotard, Veja e Souyri. O caráter do grupo era militante, marxista revolucionário, denunciava

19 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 110. 33

o capitalismo e a formação de uma sociedade de exploração de classes não apenas no ocidente, mas também na União Soviética. Sua participação no Poder Operário foi de apenas dois anos, vindo após este tempo o afastamento do grupo. A militância de Lipovetsky era inconstante, desinteressada e, portanto, limitada aos ideais antes propostos. Acerca deste afastamento e da frustração em relação ao currículo disciplinar oferecido pela Sorbonne, o autor comenta

Fiquei dois anos nesse grupo, mas, como eu freqüentemente saía de férias, questionaram minha militância um pouco hedonista e descontraída demais!... A nova era do lazer já exercia sua influência... O afastamento se deu sem crise pessoal, sem peso na consciência, sem nenhum sofrimento. Para mim, a “vida de verdade” já estava em outro lugar. A bem dizer, a questão da revolução não me preocupava quase nada, porque eu não acreditava realmente nela – procurava sobretudo ferramentas de análise para compreender o real. E os cursos propostos na Sorbonne não atendiam a essa expectativa.20

Nessa mesma época, os textos de Lyotard e Baudrillard influenciaram fortemente o pensamento de Lipovetsky, fornecendo uma base teórica consistente cujo reflexo crítico seria notado em seus textos futuros. As considerações de ambos os autores acerca do desejo, do gozo, da mídia e do consumo, entre outras, esferas estas que despertariam o interesse de Lipovetsky para uma análise mais minuciosa, foram por ele amplamente discutidas e exploradas em toda a sua complexidade, na medida em que esta se permitia compreender. Nas palavras do autor

Aquelas análises do desejo e do gozo, do consumo e da mídia, tinham o mérito de subverter os domínios teóricos separados, de revitalizar a crítica da economia política ou libidinosa, de abrir um além-do-político ao compor como que odes a uma revolução transpolítica. Desde essa época, julgo que o existencial, os modos de vida, o frívolo devem ser levados em conta, e não ser de imediato considerados a ‘falsa consciência’.21

É a partir deste tempo que Lipovetsky rompe com um paradigma já estabelecido em relação à influência da sociedade no comportamento dos indivíduos. Para ele, não é apenas a lógica da alienação a chave interpretativa para se compreender o porquê de uma assimilação passiva por parte dos indivíduos de conceitos e propostas de vida promulgadas pela sociedade, pelo mercado e pela publicidade. Lipovetsky conseguiu se distanciar desta premissa já inquestionável se mostrando incomodado com esta conclusão que, em sua análise, se mostrava simplista: “... logo me incomodei com a noção de alienação: ela veiculava em

20 Ibid, p. 110. 21 Ibid, p. 112. 34

demasia a idéia de que as pessoas eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas – Debord –, incapazes de distanciamento crítico, de compreensão do que lhes acontecia”.22 Sua percepção rompia com a análise marxista, o que se deu de modo mais incisivo ainda, quando de suas leituras dos textos de Tocqueville, Marcel Gauchet, Louis Dumont e Daniel Bell. Como fruto destas leituras, Lipovetsky comenta:

Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas insubstituíveis, que devolviam um papel de fato produtivo às ‘idéias’ na história: o indivíduo, a revolução democrática, o direitos humanos, tudo isso, já não eram mais a superestrutura, simples “reflexo” da economia. Essas problemáticas me deram maior liberdade para entender a sociedade nova, na qual se observava um impulso de autonomia individual, uma sujeição menor aos enquadramentos coletivos.23

Os autores que foram citados acima fazem parte de um grupo de teóricos que influenciaram diretamente o pensamento de Lipovetsky. Foram estes que deram à Lipovetsky, como ele mesmo atesta, as ferramentas essenciais para que os seus estudos pudessem ser produzidos. Além disso, o contexto social em que o autor se encontrava inserido, preenchido por uma revolução crescente nos modos de vida social, pela expansão das capacidades sociais de comunicação e também pela legitimação de práticas constantes de consumo, entre outros elementos, proporcionaram-lhe as condições necessárias para que as suas análises sobre o individualismo democrático fossem relevantes.

Com análises que refletem uma percepção extremamente aguçada da sociedade e de suas mudanças, Lipovetsky é singular por sustentar suas hipóteses a partir de uma análise mais empírica do que apenas baseada em teorias já existentes. Neste aspecto, o próprio autor estabelece uma crítica à tradição filosófica mais comumente conhecida, distanciando-se dela e afirmando que “a maior parte dos filósofos, mesmo que digam o contrário, é platônica e busca a Idéia atrás dos fatos”.24 Ele é ainda mais incisivo em sua crítica porque em sua perspectiva, aos filósofos, e não apenas aos atuais, faltou ou ainda falta um olhar mais cuidadoso para os detalhes impregnados em cada fenômeno, os quais são percebidos e compreendidos a partir de um estudo mais preciso de suas manifestações.

O apego ao empírico, a um olhar minucioso sobre os fatos como se dão, podendo-se a partir disto compreendê-lo em toda a sua complexidade, aspecto este característico da

22 Ibid, p. 112. 23 Ibid, p. 112. 24 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 148. 35

metodologia de Lipovetsky, é atestado abaixo quando sua obra é analisada por Sébastien Charles, que comenta

Um dos méritos das análises que Gilles Lipovetsky propõe há vinte anos é romper com tais juízos excessivos, sempre demasiado elementares porque olham apenas um aspecto das coisas, a fim de livrar-se de toda a complexidade do real e circunscrever as contradições de que este está urdindo. [...] as análises de Lipovetsky não se contentam com juízos apressados nem submetidos a ditames ideológicos; antes, seguindo um método empirista ou indutivo, procuram partir dos fatos, e do estudo destes no tempo longo, para propor um quadro de análise que possibilite fazê-los falar e dar-lhes sentido.25

Lipovetsky é também perspicaz por fazer de seu objeto de estudo fenômenos até então desconsiderados, pelo menos em termos de um estudo sistemático sério e progressivo, pela análise filosófica. Propondo uma análise histórico-social crítica, apresentando quais foram os elementos então responsáveis para a emergência da presente configuração atual dos fenômenos estudados, bem como as implicações destes na vida social dos indivíduos, Lipovetsky questiona e estuda a lógica da moda, as mudanças no pensar ético, o feminismo, o luxo, o consumo, enfim, fenômenos que circundam a vida social de todo e qualquer indivíduo, independentemente de sua faixa etária e condição sócio-econômica, mas que até então não haviam ainda sido submetidos a uma análise acadêmica rigorosa. Faz-se importante enfatizar mais uma vez que, neste sentido, Lipovetsky é bastante peculiar em relação à grande parte dos filósofos, distanciando-se da filosofia tradicional e rompendo com uma análise que, de seu ponto de vista, não considera os detalhes dos fenômenos, mas o concebe apenas em sua totalidade, em seu aspecto geral e universal, o que para ele, trata-se de uma análise bastante limitada e comprometedora.

Em se tratando de sua paixão por questões diferentes das mais comumente conhecidas e discutidas pela Filosofia, Lipovetsky, na perspectiva de Charles Sébastien, se assemelha ao pensamento de Foucault

O pensamento de Gilles Lipovetsky poderia ser facilmente aproximado ao de Michel Foucault. De fato, nossos dois filósofos – e mesmo que Lipovetsky não recorra exclusivamente ao pensar filosófico – empregam um método genealógico para circunscrever domínios de estudo freqüentemente negligenciados pela confraria filosófica. Assim, ambos evocam fenômenos muitas vezes qualificados de marginais (a loucura ou a

25 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 15. 36

prisão por Foucault, a moda ou a feminidade por Lipovetsky), aos quais é recusada uma análise conceitual rigorosa e histórica.26

Lipovetsky por si mesmo assume um pouco de afinidade com o pensamento de Foucault

Aí está um ator com o qual, em compensação, eu me sinto em profunda afinidade quanto ao método... mas não quanto ao fundo. O método é, de fato, similar. Quando Michael Foucault fala da loucura, ele constrói seu objeto e dele tira a seguir sua conclusão. É no trabalho de construção do objeto que a dimensão filosófica aparece e não a priori. É também o que procuro fazer.27

Nas análises de Lipovetsky acerca de fenômenos como o feminino, a moda, o luxo e, sobretudo, o consumo, percebe-se de forma mais clara esta construção de uma análise a partir de uma construção do objeto em questão, pretendendo o autor dar conta de toda a complexidade de seu objeto a partir da realidade social dada, para então, a partir disto, estabelecer as suas considerações e verificar a validade de suas hipóteses.

Em virtude das conclusões simplistas proposta por muitos filósofos acerca de fenômenos mais precisos da vida social, tais como a moda, o luxo, a feminidade e outros já anteriormente citados, realidades que merecem um estudo mais aprofundado quanto à sua concepção e expressão, o autor, como anteriormente apontado, critica diretamente a Filosofia atual por este suposto descaso, rompendo com teorias simplistas que não consideram o objeto em toda a sua complexidade e os detalhes a ele imbuídos, satisfazendo apenas em parte as problemáticas levantadas. Quando questionado a respeito deste rompimento, Lipovetsky, citando o exemplo da beleza feminina posta em análise e em foco de um estudo acadêmico sério e crítico, diz

Eis o tipo de pergunta que me veio ao espírito e que não interessa ao filósofo: o que é a beleza feminina? É um fenômeno universal ou trans-histórico? Todas as sociedades a valorizaram? E da mesma maneira? E se não, quando isso se estabeleceu? Por quê? O que esse fenômeno significa nas relações entre os homens e as mulheres? Que orientação ele toma em uma sociedade igualitária? Como é possível que em uma sociedade democrática com aspiração igualitária como a nossa se recomponha a dissimetria dos homens e das mulheres no que se refere à aparência física? São questões fundamentais, de cuja existência os filósofos nem sequer suspeitam. Para eles, isso não é

26 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 140. 27 Ibid, p. 150. 37

nem mesmo uma questão, ainda que ponha em causa um valor filosófico essencial, o da igualdade. Eles tendem antes a denegrir a questão, o que para mim é cegueira filosófica. Não querem ver as coisas e não procuram dar-lhes uma compreensão e uma inteligibilidade reais.28

O mesmo teor crítico é notado quando a questão da moda é posta em debate, a qual, segundo Lipovetsky, tem escapado a uma avaliação crítica da filosofia. “Quando os filósofos falam da moda, não conhecem nada sobre ela. Nem sequer vão ver os fatos, uma vez que sabem já interpretá-los. [...] Pois bem, eles não sabem o que é realmente”.29

Em A era do vazio, ensaios sobre o individualismo contemporâneo, este que foi o primeiro livro publicado por Lipovetsky em 1983, o autor ganha repercussão mundial ao apresentar as suas teorias acerca do modo de funcionamento da sociedade pós-moderna, de seus valores, das relações entre seus indivíduos, dos novos paradigmas que estavam a se instituir de modo a redefinir as relações sociais em suas mais variadas esferas de vivência, entre outros. O autor trata do individualismo social com uma percepção aguçada, afirmando que a sociedade se encontra mergulhada num imenso vazio a abranger várias dimensões da vida. Os valores de tradição mais comumente conhecidos estão comprometidos, os grandes discursos da modernidade estão postos em dúvida, o consumo de massa direciona o indivíduo a um comportamento individualista e irresponsável. Essas e outras realidades se manifestam na obra A era do vazio e fazem parte do objeto de estudo proposto pelo autor.

Seis anos após a publicação de A era do vazio, Lipovetsky escreve O império do efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas, publicado em 1989. Neste texto, o autor mostra como a lógica da moda, do frívolo e do efêmero, tem se manifestado também em outras esferas sociais, reapropriando e redefinindo as relações sociais que se dão nestes contextos a partir das prerrogativas desta nova lógica. Ainda que Lipovetsky tivesse desfrutado de reconhecimento acadêmico meritório pela publicação de A era do vazio, o seu segundo livro, O império do efêmero, foi alvo de críticas mais incisivas, tendo em vista uma abordagem proposta pelo autor que não demoniza o fenômeno da moda. Quanto a isso, o autor comenta dizendo

Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos sejam reais, seus benefícios estão muito longe de ser nulos. Eu simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinônimo de “barbárie”, de ruína do pensamento e da liberdade. A questão merece exame mais atento e

28 Ibid, p. 148-149. 29 Ibid, p. 148. 38

juízos mais contrastados do que esses que freqüentemente os “profissionais” da conceitualização e outros minuciosos hermeneutas dos grandes textos canônicos nos oferecem.30

Lipovetsky não faz uso da apologia ou da condenação em suas análises, mas se propõe a expor as suas conclusões a partir das realidades postas.

Em A sociedade pós-moralista, o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos, de 1992, Lipovetsky se propõe a um estudo sistemático da questão ética, tomando como ponto de partida a fase histórica pré-moderna, quando a ética estava estritamente relacionada com preceitos de caráter religioso, sendo estes os pressupostos determinantes para toda e qualquer ação ética dos indivíduos em suas mais variadas esferas sociais de vivência. Num segundo momento, o autor estabelece os marcos que foram fundamentais para que uma ruptura em relação ao paradigma anterior emergisse, sendo a ética, a partir deste momento, concebida ainda de modo subordinado a uma lógica do dever, da obrigação moral para com o semelhante, de ações responsáveis que sejam tomadas de modo a levar em conta o outro que se apresenta perante o indivíduo e que precisa ser afetado pelas ações deste de modo responsável, porém, toda essa dimensão ética impregnada pela lógica do dever será imposta não mais pela instituição religião, mas sim, pelas instituições próprias e oriundas da modernidade. Há, portanto, uma transferência de legislador ético, mas não de preceitos propriamente ditos. É neste ínterim que o autor, ao observar as relações sociais no tempo presente, denominado por ele de hipermoderno, apresenta uma nova hipótese ética, a do pós-dever.

Para Lipovetsky, o indivíduo hipermoderno e hiperindividualista não conhece quaisquer regras que o obriguem a uma vivência que corresponda aos imperativos da lógica do dever. Suas ações são praticadas, mesmo aquelas consideradas como altruístas, tendo em vista primeiramente o seu bem estar próprio, o seu conforto e o seu alívio de consciência, mesmo que o próximo seja um instrumento para que todos esses anseios sejam possíveis. Uma análise minuciosa acerca do funcionamento da lógica do pós-dever é oferecida pelo autor em A sociedade pós-moralista, bem como exemplos variados onde as suas teorias são aplicadas e atestadas.

Muitos outros títulos foram lançados pelo autor no decorrer dos anos apresentando sempre a mesma coerência intelectual e uma consideração da sociedade atual com suas transformações com uma perspicácia ainda mais rica. É o que se percebe em títulos como Os

30 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 116. 39

tempos hipermodernos, de 2004, no qual Lipovetsky em entrevista a Sébastien Charles explica um pouco de sua trajetória intelectual, de sua formação acadêmica e dos autores que o influenciaram. Em 2005, o autor publica O luxo eterno, da idade do sagrado ao tempo das marcas, apresentando uma análise relevante a respeito do modo como o luxo é concebido, fazendo uso de um método histórico e social para mostrar as transformações que se deram nessa concepção ao longo das décadas. Em 2007, Lipovetsky mostra como o consumo foi sendo concebido pelas sociedades ao longo de suas três principais fases com o título A felicidade paradoxal, ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Lipovetsky coloca que o hiperconsumo, termo com o qual ele prefere definir a atividade consumista atual, caracteriza- se como sendo um tipo de consumo mais intimizado, personalizado, que estimula os sentidos e que está desprendido do antigo paradigma da diferenciação social. Na perspectiva do autor, as pessoas consomem na hipermodernidade com vistas às satisfações subjetivas, almejando sensações de bem estar e conforto íntimo, muito mais do que para a exibição de status social. Por fim, em 2011, juntamente com Jean Serroy, Lipovetsky publica A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, obra na qual o autor apresenta a hipótese de que a cultura atual, denominada por ele de “cultura mundo”, é peculiar do momento histórico atual porque é bastante paradoxal nos valores que difunde. O autor apresenta algumas proposições acerca do que o futuro poderá revelar para as relações humanas em sociedade a partir daquilo que se manifesta atualmente.

Os livros de Lipovetsky já foram traduzidos em 18 línguas e suas teorias têm provocado muitos teóricos a repensar a eficiência de estudos já antes conhecidos, paradigmas já pré-estabelecidos, isto em virtude da extrema competência com a qual Lipovetsky desenvolve e apresenta o seu raciocínio acerca da questão ética e da compreensão do cenário social atual. Suas hipóteses e os conseqüentes argumentos que as sustentam são apresentadas de maneira coerente e sobremodo convincente, dando sustentabilidade às suas prerrogativas.

5. Categorias principais da filosofia de Gilles Lipovetsky

Lipovetsky tem sido perspicaz em sua análise da sociedade atual, cunhando, para tanto, termos que caracterizam bem as mudanças e rupturas que a sociedade tem sofrido ao longo dos anos. 40

Os principais termos que compreendem as principais categorias de análise da biografia de Lipovetsky serão aqui postos para uma melhor compreensão de sua linha de pensamento.

5.1. A emergência dos tempos do hiper: a hipermodernidade

Os termos “modernidade” e “pós-modernidade”, entre outros já colocados anteriormente, têm sido objeto de discussão por muitos estudiosos e, ainda hoje, não há um consenso a respeito de qual deles seja o mais apropriado para definir o presente momento histórico. Lipovetsky também concordou com o termo pós-modernidade em tempos passados, sobretudo quando do lançamento de sua primeira obra A era do vazio, ensaios sobre o individualismo contemporâneo. A pós-modernidade era caracterizada, em sua análise, pelo fim dos grandes discursos e das grandes ideologias, pelo enfraquecimento das grandes instituições em sua capacidade de influenciar as mentes modernas, pela ineficácia da religião quanto à imposição de seus valores morais e de tradição, pela dúvida quanto à eficácia da razão para prover ao homem o sentimento de realização de vida e, sobretudo, a provisão de suas necessidades, além de outros fatores que apontavam, em síntese, para uma mudança no cenário social moderno. A primeira modernidade, ou a primeira fase da modernidade, não conheceu limites para as ambições da razão. Foi a razão, a consciência moderna que determinou e regulou as novas normas e obrigações de caráter altruísta. Eram as escolas, o poder legislativo público, a soberania do Estado, enfim, as instituições laicas que atuavam como organismos reguladores da vida social, empurrando a religião para uma presença e atuação marginal na sociedade, uma voz agora sufocada. Essa constatação é descrita por Lipovetsky em sua obra A sociedade pós-moralista, que é objeto de estudo desta pesquisa. No entanto, evidentemente a segunda metade do século XX já não foi testemunha desta primeira fase moderna. Ainda que a ciência continuasse a desfrutar de descobertas cada vez mais surpreendentes, proporcionando maior bem estar ao homem e também mecanismos que tornassem a sua vida mais agitada, ou seja, com maiores possibilidades de atuar no cenário social com mobilidade, flexibilidade e com uma capacidade de comunicação nunca antes conhecida, já não havia neste tempo, na mente humana, o apego às grandes utopias políticas ou às lutas de classe. O sentimento nacionalista de outrora fora simplesmente apagado e cada indivíduo se preocupava mais em lutar em causa própria. É neste tempo que a modernidade parece apontar para a emergência de uma segunda fase, de um segundo grande momento que 41

estaria a romper, em alguns aspectos, com o modelo passado. Comentando sobre Lipovetsky, Charles considera

A pós-modernidade representa o momento histórico preciso em que todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual se esboroam e desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da realização individual, do amor- próprio. As grandes estruturas socializantes perdem a autoridade, as grandes ideologias já não estão mais em expansão, os projetos históricos não mobilizam mais, o âmbito social não é mais que o prolongamento do privado – instala-se a era do vazio, mas “sem tragédia e sem apocalipse”.31

Quanto aos fatores que proporcionaram essa mudança de paradigma, essa pequena ruptura na modernidade em si própria, Charles comenta que

Embora seja possível que este ou aquele escrito tenha desempenhado um papel, que o modernismo na arte ou o advento da psicanálise tenham exercido influência, que a ação da igualdade tenha produzido efeito, o essencial é algo de outra ordem. Na realidade, são antes de tudo o consumo de massa e os valores que ele veicula (cultura hedonista e psicologista) os responsáveis pela passagem da modernidade à pós-modernidade, mutação que se pode datar da segunda metade do século XX.32

De fato, a própria modernidade, ao longo de seu desenvolvimento, criou as condições para que o seu desdobramento fosse possível posteriormente. Foi a modernidade que possibilitou a produção e a difusão em massa de produtos dos mais variados, tornando-os acessíveis a um público cada vez maior. A pós-modernidade como lógica social a irromper na segunda metade do século XX, tratou de desculpabilizar todo e qualquer ato de compra, estimulando o indivíduo a permanecer comprando a partir de mensagens publicitárias que conciliavam status social e significação de vida com a posse de mercadorias e a assimilação de suas marcas.

A pós-modernidade, ou a segunda fase da modernidade compreendida pela segunda metade do século XX, é a época em que o individualismo se afunila, ou seja, se intensifica e se manifesta de forma mais intensa, como por exemplo, na moda e em seu universo de exposição de valores simbólicos. A moda é objeto de análise de Lipovetsky em sua obra O império do efêmero (1987). O autor está convencido de que a estrutura da sociedade de consumo, moderna em sua essência e pós-moderna em sua expressão, é definida pelo processo da lógica da moda em sua plena generalização, ou seja, as prerrogativas

31 Ibid, p. 23. 32 Ibid, p. 23. 42

características da lógica da moda também se manifestam em outras esferas da vida social, redefinindo nestas esferas as relações sociais que ali se dão a partir dos ditames da moda, tais como, a variedade, a preocupação estética e o anseio pelo novo.

É o processo de moda, pós-moderno e hipermoderno em sua plenitude, que se instala impositivamente sobre as indústrias quando da produção de suas mercadorias de consumo, determinando que os novos modelos sejam concebidos a partir de uma lógica centrada numa constante diversidade e com elementos de caráter sedutor, entre eles a cor, o cheiro, a forma e as possibilidades de se experimentar sensações de bem estar mediante a compra.

Lipovetsky coloca que a ordem econômica atual se encontra estruturada semelhantemente à organização propícia do universo da moda, uma vez em que não apenas a concorrência e o constante avanço tecnológico a definem, mas também o interesse permanente pela novidade e variedade dos objetos. Nas palavras do autor, “o novo aparece como imperativo categórico da produção e do marketing, nossa economia-moda caminha no forcing e na sedução insubstituível da mudança, da velocidade, da diferença”.33 É a lógica da moda que justifica as inovações ininterruptas nos objetos, sempre acrescentando um algo a mais às suas versões e provocando, conseqüentemente, um excesso de mercadorias num mercado cada vez mais exigente de inovação, “todos os nossos objetos são destinados à moda, ao espetacular fútil, à gratuidade técnica mais ou menos ostensiva”.34

Não apenas a moda, mas também o consumo e o luxo são concebidos na segunda metade do século XX de maneira bastante divergente àquela propícia da primeira fase moderna, e refletem também essa mudança ocorrida no cenário social.

À luz destas constatações, por que Lipovetsky vê irromper no século XXI uma sociedade não apenas pós-moderna, mas sim hipermoderna? Segundo o autor, os elementos característicos da pós-modernidade são super valorizados nos fins do século XX e neste início do século XXI, reconfigurando o cenário social. “Vários sinais fazem pensar que entramos na era do hiper, a qual se caracteriza pelo hiperconsumo, essa terceira fase da modernidade; pela hipermodernidade, que se segue à pós-modernidade; e pelo hipernarcisismo”.35 Lipovetsky coloca que

Sinônimo de desencantamento com os grandes projetos coletivos, o parêntese pós- moderno ficou todavia envolto numa nova forma de sedução, ligada à individualização

33 Gilles LIPOVETSKY, O império do efêmero, p. 160. 34 Ibid, p. 161. 35 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 25. 43

das condições de vida, ao culto do eu e das felicidades privadas. Já não estamos mais nessa fase: eis agora o tempo do desencanto com a própria pós-modernidade, da desmistificação da vida no presente, confrontada que está com a escalada das inseguranças. [...] É com os traços de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade, que se desenha a modernidade do segundo tipo. Nesse contexto, o rótulo pós-moderno, que antes anunciava um nascimento, tornou-se um vestígio do passado, um “lugar da memória”.36

Lipovetsky, em sua perspectiva, considera que a sociedade atual não é pós-moderna tanto quanto hipermoderna. Charles, compreendendo o pensamento de Lipovetsky, considera que, do ponto de vista do autor, a hipermodernidade é

Uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisam adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer.37

O tempo presente é o tempo do hiper. Há a hipermodernização das mídias, dos espaços destinados para o consumo que, além de serem bem articulados, também se mostram fluídos, ou seja, desprendidos de uma localidade física, proporcionando, assim, possibilidades de compra mediante a tela de um computador em virtude dos recursos da internet. É o tempo também do hiperindividualismo e da manifestação de um sujeito com preocupações e comportamentos paradoxais. As inquietações do indivíduo hipermoderno se localizam no universo de sua saúde física, emocional e também espiritual, já que se testemunha de um reencantamento do mundo mediante o surgimento de novas espiritualidades. No entanto, ao mesmo tempo em que se presencia um indivíduo assistente a academias e a práticas saudáveis de vida, presencia-se também um indivíduo entregue passivamente ao consumo desgovernado de elementos inapropriados ao seu bem estar.

À época hipermoderna, conciliam-se o apego à variedade de mercadorias quase sempre supérfluas, a entrega constante a atividades de lazer em busca de um eterno lúdico, a mercantilização das mais variadas experiências sociais, inclusive as de caráter afetivo e religioso, com práticas que visam à prolongação de seu tempo presente de vida, já que o futuro sustentável se mostra incerto. Nas palavras do autor

Eis-nos no momento em que a esfera comercial se torna hegêmonica, em que as forças de mercado invadem a quase totalidade dos aspectos da existência humana: convivência,

36 Ibid, p. 64-65. 37 Ibid, p. 26. 44

música, tempo livre, patrimônio. Depois do capitalismo industrial, impõe-se um capitalismo cultural, transformando áreas inteiras da vida em experiências mercantilizadas.38

Esses e outros elementos mostram que “a pós-modernidade não terá sido mais que um estágio de transição, um momento de curta duração”.39 Nas palavras do autor

Tudo se passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se não mais de sair do mundo da tradição para aceder à racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria modernidade, racionalizar a racionalização – ou seja, na realidade destruir os “arcaísmos” e as rotinas burocráticas, pôr fim à rigidez institucional e aos entraves protecionistas, relocar, privatizar, estimular a concorrência.40

A hipermodernidade se manifesta claramente ainda a partir da emergência de um neo- individualismo, ou seja, um individualismo exacerbado, completo, sem limites e sem fronteiras. Como produto da hipermodernidade, o hiperindivíduo rompe com as características que definiam quem era o indivíduo pós-moderno. Lipovetsky institui esse sujeito de forma teórica, porém, sua análise é fruto de uma observação precisa e descritiva dos empreendimentos aos quais incorrem os indivíduos no tempo presente, estabelecendo suas relações, seus vínculos e construindo a partir destes a sua história de vida. No entanto, como se define esse hiperindivíduo? Em que ele difere do indivíduo erigido e conhecido na modernidade e também na pós-modernidade, como o autor prefere distinguir? Há, de fato, razões pelas quais seja possível falar de um novo paradigma a respeito do indivíduo que seja pertinente e singular ao ponto de romper com modelos conhecidos anteriormente? Suas justificativas são colocadas abaixo.

5.2. O individualismo consumado: o hiperindividualismo

Na cultura hipermoderna, o primado do “eu” institui-se como valor absoluto, inegável, incontestável. O indivíduo moderno ou hipermoderno não conhece outro referencial sobre o qual deva organizar a sua vida senão o postulado de si mesmo, seu bem estar, seu melhor conforto, a contemplação de seus anseios, enfim, a perpetuidade de suas satisfações subjetivas

38 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 111. 39 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 58. 40 Ibid, p. 56-57. 45

enquanto circula no meio social. Lipovetsky ultrapassa as análises mais comumente conhecidas a respeito desta questão e aponta para a emergência de uma nova configuração do individualismo atual na sociedade hipermoderna.

Refletindo acerca do individualismo como produto da modernidade, criação desta, com seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade plenamente instituídos, Lipovetsky observa que, embora teoricamente e na mente humana esses valores estivessem compreendidos de forma clara, na prática, a aplicação destes deu-se de forma ainda limitada. Com o advento da modernidade o indivíduo encontrou-se liberto das amarras da religião, do peso da tradição que esta impunha, e da dependência de outros referenciais externos, religiosos em sua natureza, que os dirigisse em sua conduta determinando as bases para um agir que fosse reconhecido socialmente como ético. Foi legado ao indivíduo o poder para organizar-se socialmente estabelecendo leis, normas e valores que fossem comuns a todos e que os beneficiassem de forma igualitária, permitindo uma vivência pacífica com o seu semelhante, tudo isso com base na racionalidade humana e no desenvolvimento da ciência. O indivíduo moderno é o indivíduo que detêm direitos e opiniões, escolhas e preferências, razão como ciência e questionamentos, enfim, é alguém plenamente capaz de determinar a maneira como a sua vida será construída a partir de suas próprias vontades e opções de vida. Como coloca o autor, “o individualismo aparece como o código genético das sociedades democráticas modernas. Os direitos humanos são sua tradução institucional”.41

No entanto, na perspectiva de Lipovetsky, essa revolução individualista propícia da modernidade mostrou-se limitada, inacabada, incompleta. Os mesmos princípios estabelecidos pelo indivíduo moderno propiciaram ou criaram as condições necessárias para que regras e regulamentações impostas por instituições modernas fossem instituídas de modo a limitarem os domínios da liberdade individualista. O indivíduo descobriu que ainda havia limites para as suas ações, porém, sob amarras antes desconhecidas. Lipovetsky coloca que “ordem familiar, ideologias revolucionárias e nacionalistas, controle disciplinar, moral autoritária, normas sexistas, uns tantos dispositivos coletivos que contrariaram a afirmação plena e inteira do princípio de individualidade”.42 A liberdade individual ainda se postava como um ideal a ser conquistado, já que sua assimilação com a modernidade se deu de forma parcial. A modernidade não conferia ao indivíduo a possibilidade de agir conforme os seus próprios interesses sem que o outro, com o qual diariamente ele teria que se confrontar, não

41 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 47. 42 Ibid, p. 47. 46

fosse levado em conta. De certa forma, as amarras da tradição e as imposições da religião, elementos coercitivos sobre as ações humanas, foram transferidos para as instituições sociais erigidas na modernidade. O indivíduo encontrou-se ainda sob o domínio de uma vigilância externa, agora as instituições modernas, e com a sua conduta cativa de obrigatoriedades altruístas impostas por estas instituições, o Estado, a família, a construção de um conjunto de elementos que definiam o que era a moral social, enfim, elementos estes que freavam as ambições almejadas pelo homem com o advento da modernidade. Individualismo pleno, desraigado de postulados de regras e regulamentações, talvez esta seja a maior utopia da modernidade, utopia esta que o indivíduo moderno não custou a descobrir.

O autor é bastante perspicaz em sua análise ao constatar que a modernidade criou as próprias condições para que novos organismos reguladores da vida social fossem instituídos, no entanto, os vetores que tornariam possíveis, num futuro próximo, a emergência de um contexto social que permitiria ao indivíduo o desprendimento destas amarras, alcançando enfim o status de liberdade não apenas teórica, mas, sobretudo prática, também foi criado e estabelecido com a própria modernidade. Lipovetsky coloca da seguinte maneira

Os valores hedonistas, a oferta sempre mais ampla de consumo e de comunicação, a contracultura convergiram para acarretar a desagregação dos enquadramentos coletivos (família, Igreja, partidos políticos, moralismo) e ao mesmo tempo uma multiplicação dos modelos de existência: daí o neoindividualismo do tipo opcional, desregulado, descompartimentado.43

O neoindividualismo a que Lipovetsky se refere corresponde ao individualismo atual, que difere do primeiro modelo instituído na modernidade por não se encontrar submisso às imposições e ordenamentos dos organismos ou instituições sociais, estes agora servirão apenas como serviços à disposição dos indivíduos em suas mais variadas escolhas de construção identitária social. Transferiram-se do status de órgãos reguladores, que estavam para dirigir e regular a vida individual, para comporem o leque das opções de serviços disponíveis ao indivíduo, serviços estes que serão escolhidos sem sistematização ou sem qualquer tendência social, mas sim conforme os interesses particulares e convenientes de cada um. Para o autor, o individualismo atual está acabado no sentido de consumado, está completo, plenamente erigido. A utopia proposta em tempos passados agora se torna realidade, provando-se, portanto, verdadeira desde aquele momento, sendo apenas necessário dar tempo para que as configurações sociais necessárias à sua manifestação fossem criadas no

43 Ibid, p. 48. 47

universo social, moral, imaginário e das ambições individuais de cada um. Agora o hiperindividualismo, posto e irreversível, livre e, assim sendo, repleto de possibilidades. Nas palavras de Lipovetsky

A “vida à la carte” tornou-se emblemática desse Homo individualis desenquadrado, liberto das imposições coletivas e comunitárias. Na escala da história, é uma segunda revolução individualista que está em marcha, instituindo desta vez um individualismo acabado, extremo: um hiperindividualismo.44

Trata-se de um individualismo que não conhece outros parâmetros sobre os quais conduzir a existência senão aqueles que convergem para o leque de interesses próprios, pertinentes a cada um, que satisfazem anseios e ambições individuais. Até aí nada de novo, porém, o que caracteriza o momento como peculiar é o fato de não haver instituições ou organismos sociais, sejam eles a religião, a família, a moral social de tradição ou o Estado, que determinarão ou regerão a vida social, pois não há moral absoluta. A ética é repensada e com a hipermodernidade, sua aplicação é relativizada e sujeita a infinitas interpretações, sendo todas elas corretas. Não há estigma social, mas sim o reconhecimento da liberdade de escolha e da possibilidade inédita conferida ao indivíduo de exibir uma identidade construída socialmente e também coerente com uma narrativa de vida interior, exibindo no palco social signos que traduzem contestação, opinião e desconforto, mas também satisfação, liberdade, enfim, bem estar com a própria individualidade.

A análise de Lipovetsky remete a um questionamento que o autor reconhece e, por assim ser, não o despreza, a saber, é o hiperindividualismo uma realidade social paradoxal? A resposta clara e direta à questão é: não! O hiperindividualismo não é uma realidade social paradoxal. É preciso entender o que está no centro das motivações individuais quanto a ações e ajuntamentos específicos em prol de soluções práticas para problemas como a miséria, a fome, o meio ambiente, entre outros, questões estas que refletem preocupações de fundo com os grandes problemas mal resolvidos que o mundo moderno legou à sociedade do hiper. Ainda que as razões de fundo para tais contestações sejam sinceras em sua essência, ou seja, iniciativas para promover a melhoria de vida de milhões de indivíduos que sofrem às margens da sociedade, colhendo no cotidiano as falhas do projeto moderno, que se encontram deslocados da e na dinâmica social do hiper determinada pela velocidade, pela inovação e pela comunicação global, grande parte destas mesmas iniciativas se fazem ainda com um inconsciente particular onde ecoa uma real pretensão a sensações de bem estar, de alívio de

44 Ibid, p. 48. 48

consciência e de conforto social mediante tais ações, ou seja, meios pelos quais aspirações individuais possam ser alcançadas. Mesmo assim, não há nada de novo na questão. Não há nada, por enquanto, que justifique dizer acerca da emergência de um hiperindividualismo, de um pós-individualismo, enfim, de um individualismo que seja diferente daquele oriundo da modernidade.

Para que fique claro a mudança de natureza de um mesmo paradigma, vale notar os fatos. O que é característico do hiperindividualismo, por isso, neoindividualismo, é que, ao contrário de outras fases da modernidade, hoje, não há nada que provoque no indivíduo o sentimento de obrigatoriedade, ou de “dever” para com o engajamento em práticas solidárias, altruístas e assim por diante. O hiperindivíduo não deve satisfações a ninguém de seu egoísmo, não se vê obrigado a ser voz daqueles cujas falas estão sufocadas ou ainda ser braços que acolham os que estão desamparados, e isso é inovador. Não detêm a religião ou as instituições sociais a competência ou o poder para penetrar no seio das motivações do hiperindivíduo numa tentativa de conscientizá-lo quanto a uma suposta responsabilidade em melhorar a realidade posta, para que no futuro o quadro pintado seja diferente. Ainda que, por parte do hiperindivíduo, a prática social solidária possa ser um meio para que os seus anseios de alívio de consciência possam ser alcançados, é o não “dever” como falta de obrigatoriedade para com o outro em necessidade que define quem é o hiperindivíduo na hipermodernidade. Segundo Lipovetsky,

O indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o homem hodierno – despudoradamente agora – não mais titubeia em pôr a nu o caráter individualista de suas preferências. A novidade está precisamente nisto: pensar só em si não é mais tido como algo imoral. [...] A nova era individualista conseguiu a façanha de atrofiar nas consciências a alta consideração de que desfrutava o ideal altruísta, redimiu o egocentrismo e legitimou o direito de viver só para si. [...] Hipertrofia do direito de cada qual viver só para si, nenhuma obrigação de se dedicar aos outros... Francamente falando, é esta a fórmula do individualismo consumado.45

Em face da constatação acima, compreende-se a decadência dos grandes movimentos sociais em prol de grandes causas, a falta de impacto do discurso religioso e o enfraquecimento da credibilidade dos partidos políticos como instituições detentoras de conferir grandes perspectivas. Tudo o que acontece se dá numa esfera muito limitada de localização, de modo que o impacto pretendido é pouco alcançado. O hiperindivíduo se

45 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 107-108. 49

engaja, porém, com ressalva, ele não coloca em risco o seu conforto emocional ou o seu bem estar para consigo mesmo, e muito menos se vê disposto a frear a manutenção diária de seu hiperindividualismo despendendo tempo em causas cujo objeto final é o benefício alheio, seja este alguém próximo ou distante.

Ainda que o hiperindivíduo pretenda cooperar com a promoção da vida alheia, ele não se vê obrigado a isso, não há em seu universo de ideais o senso de dever para com o bem estar do semelhante como uma causa a perseguir. Como fenômeno que faz valer esta teoria, está o aumento incontestável de práticas em prol de uma melhoria da vida própria em todas as suas dimensões. Trata-se de uma tentativa de prolongamento e legitimação do eu, e de modo mais enfático, de sacralização do tempo presente, pois é este o tempo ideal, imune às incertezas de um amanhã caótico. Como conseqüência, o hiperindivíduo se vê envolvido numa busca constante pela criação de condições que permitam que a vida no tempo presente seja desfrutada com saúde em todas as suas áreas, há uma otimização da saúde na hipermodernidade. Se há um senso de dever, este corresponde ao dever de promover o bem estar de si próprio mais do que o bem estar alheio. Segundo o autor

As formas desse neoindividualismo centrado na primazia da realização de si são incontáveis. Paralelamente à autonomia subjetiva, ao hedonismo e ao psicologismo, desenvolve-se uma nova relação com o corpo: obsessão com a saúde, culto do esporte, boa forma, magreza, cuidados de beleza, cirurgia estética... manifestações de uma cultura tendencialmente narcísica. Claro que essas lógicas são desenvolvidas de uma maneira muito desigual em todo o globo, mas por toda parte progridem a dinâmica de individualização, com a autonomização da existência individual cada vez mais voltada para si mesma, a busca de um bem estar pessoal e consumidor.46

A sociedade não está, portanto, se tornando menos individualista. Concluir, em virtude de engajamentos esparsos de altruísmo, sobretudo quando há catástrofes de ordem natural, tais como terremotos, inundações e outras, causas que sensibilizam e deslocam indivíduos de vários contextos distintos, mobilizando-os a agirem em prol de um socorro preciso e unificado, primeiramente em seu próprio universo de deslocamento, mas também num âmbito mais amplo quando partindo diretamente para os locais afetados a fim de prestar auxílio, enfim, concluir que tudo isto é reflexo de uma sociedade hoje menos individualizada e mais solidária do que em tempos passados é um grande equívoco. O hiperindividualismo não é paradoxal, ou seja, o indivíduo é hoje hiperindividualista tal como nunca antes. Tais

46 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 48. 50

deslocamentos citados acima são apenas arranhões no modelo individualista iniciado na modernidade e, “paradoxalmente”, por mais surpreendente que possa ser, refletem o hiperindividualismo pleno no qual a sociedade está centrada. Não há senso de dever, não há engajamentos massíficos prolongados em prol de ações concretas com vistas a soluções mais precisas dos problemas dos que vivem marginalizados, não há grandes esforços mútuos, grandes cooperações de nações e instituições que poderiam provocar mudanças eficientes no cenário social, enfim, o tempo dos grandes ajuntamentos está posto, o que se presencia é apenas pequenas ações individualizadas, esparsas, limitadas e temporais. Ainda assim, o não engajamento não acarreta sobre o hiperindivíduo um estigma social, não o torna alguém sujeito a julgamentos alheios, não o caracteriza como um sujeito sem fé, egoísta ou indiferente aos grandes dramas da humanidade. O tempo das coerções a ações responsáveis é passado. No grande palco da hipermodernidade cada um interpreta um papel para o qual demandam, de antemão, cuidados demasiados que não permitem despender tempo e atenção para as narrativas históricas alheias.

5.3. Para além da exibição social: o hiperconsumo

É em A felicidade paradoxal (2007) que Lipovetsky expõe a sua teoria a respeito do consumo na sociedade ou na cultura do hiper. Hiperconsumo é o termo cunhado pelo autor para descrever o momento histórico atual em que novas prerrogativas e ordenamentos determinam, influenciam e orientam as atividades de consumo na sociedade global, concedendo a indivíduos, independente da faixa etária e da posição em classes sociais, aquilo que seria uma cartilha determinante do comportamento do consumidor plenamente engajado na cultura hipermoderna, onde não apenas um consumo com vistas a um status e a um reconhecimento social se impõe, mas também outras lógicas que romperão com este antigo paradigma determinante em tempos passados, e que permitirão ao indivíduo uma satisfação de anseios mais particulares e de encontros a buscas mais privadas e singulares de sua construção histórica de vida.

O hiperconsumo é o momento em que as fronteiras do consumo se tornam fluídas, em que os espaços para o consumo são amplamente alargados e conquistados, fazendo-se presente em locais onde essa possibilidade nunca antes havia sido concebida, enfim, é o tempo do consumo sem fronteiras, acessível independentemente de espaços físicos 51

previamente estabelecidos, e disponível a todos durante todas as suas vinte e quatro horas de um dia. É este o momento do consumo desculpabilizado, portanto, constante e livre, do consumo supérfluo ou ainda “hipersupérfluo”, porém, competente para corresponder a anseios localizados num universo muito particular de vida dos indivíduos, e que desta forma, por essa natureza, que não permite às grandes marcas o capricho de elaborar mercadorias generalizadas, padronizadas e vendidas de modo sistemático, pois o consumidor hipermoderno é mais exigente e único, distinto, e ele espera produtos que legitimem sua singularidade e que o contemplem emocionalmente.

Na sociedade de consumo, ou nas palavras de Lipovetsky, do hiperconsumo, a indústria que permanece é aquela cujas mercadorias são elaboradas com vistas a corresponder a satisfações específicas do cliente, como a cor, a forma, o cheiro, o tamanho, o propósito, o peso, o tempo de uso, enfim, mercadorias personalizadas de modo a seduzir os indivíduos à compra ininterrupta. É neste sentido que as peças publicitárias atuam, ou seja, mostrando ao potencial consumidor que o produto anunciado fora cuidadosamente elaborado para ele especificamente.

Em seu texto A felicidade paradoxal, o autor justifica a sua hipótese de um hiperconsumo real na sociedade com uma análise detalhada da atividade do consumo em toda a sua dimensão social. Ele parte de uma divisão em três grandes momentos históricos que definiam o consumo de modo peculiar. No entanto, uma de suas principais constatações é extremamente relevante para compreender o todo de sua argumentação exposta em seu livro. Em outras palavras, o autor faz questão de revelar o elemento chave que caracteriza o consumo como hiperconsumo, rompendo com momentos históricos passados. Para Lipovetsky, um consumo com vistas à exibição de um status social, à exposição de valores simbólicos e à conseqüente luta simbólica entre seus expositores, como fator de integração social, enfim, um consumo de caráter puramente ostentatório, não mais define a lógica do consumo na sociedade hipermoderna. É com base nesta constatação que a teoria do hiperconsumo é construída. O tempo em que a lógica de diferenciação social era um fator determinante e preponderante na motivação aos atos de consumo, em que o consumo era percebido e compreendido “como um campo de símbolos distintivos, procurando os atores não tanto gozar de um valor de uso quanto exibir uma condição, classificar-se e serem superiores em uma hierarquia de signos concorrentes” é propício de outra época. 47

47 Gilles LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 38-39. 52

A partir da constatação acima, alguns questionamentos se impõem e o autor não se faz indiferente a eles. Qual é a lógica presente na atividade do hiperconsumo que faz correr a ela indivíduos de várias faixas etárias e classes sociais distintas? Se os signos diferenciais e a busca por um reconhecimento social não se constituem mais como fatores preponderantes em toda a motivação consumista, o que mantém os indivíduos ativos na prática do consumo? Essas e outras questões são reconhecidas pelo autor e respondidas quando de sua observação daquilo que seria a fase III do consumo, ou seja, o consumo que corresponde ao momento atual

Agora, a busca das felicidades privadas, a otimização de nossos recursos corporais e relacionais, a saúde ilimitada, a conquista de espaços-tempos personalizados é que servem de base à dinâmica consumista: a era ostentatória dos objetos foi suplantada pelo reino da hipermercadoria desconflitada e pós-conformista. O apogeu da mercadoria não é o valor signo diferencial, mas o valor experiencial, o consumo “puro” valendo não como significante social, mas como conjunto de serviços para o indivíduo. A fase III é o momento em que o valor distrativo prevalece sobre o valor honorífico, a conservação de si, sobre a comparação provocante, o conforto sensitivo, sobre a exibição dos signos ostensivos.48

No hiperconsumo, os referenciais do conforto, do bem estar emocional, dos lazeres, das felicidades privadas, da observação ostensiva com a saúde, entre outros, estarão localizados no centro das motivações consumistas. Lipovetsky, no entanto, consente que as finalidades de caráter distintivo ainda se fazem presentes no universo do consumo, porém, sua análise é peculiar porque reconhece nesta um aspecto secundário na dimensão consumista, não está no âmago da questão consumir com vistas a um status diferencial. É nesta perspectiva que Lipovetsky comenta que “a época do hiperconsumo apresenta isto de específico: ela conseguiu fazer passar ao segundo plano e por vezes expulsar a luta das consciências, antigamente central no campo do consumo”.49 O autor justifica o emprego do termo hipermoderno

O que se apodera de porções cada dia mais amplas do consumo é uma atividade consumidora sem negativo nem aposta inter-humana, sem dialética nem competição maior. Não vejo termo mais adequado que hiperconsumo para dar conta de uma época na qual as despesas já não têm como motor o desafio, a diferença, os enfrentamentos simbólicos entre os homens. Quando as lutas de concorrência não são mais a pedra

48 Ibid, p. 43. 49 Ibid, p. 42. 53

angular das aquisições mercantis, começa a civilização do hiperconsumo, esse império em que o sol da mercadoria e do individualismo extremo não se põe jamais.50

O hiperconsumo possui funções subjetivas mais que objetivas e esta constatação permeará toda a argumentação de Lipovetsky em seu texto A felicidade paradoxal. Entre as principais considerações que o autor faz a este respeito, algumas podem ser aqui esboçadas para fins de um melhor esclarecimento e compreensão do conceito de hiperconsumo e de seu emprego pelo autor.

O indivíduo compra com um apetite desenfreado não apenas pelo objeto novo em si, mas também pelas possibilidades de experiências emocionais que este novo objeto possa lhe proporcionar. “O amor pelo novo não é mais tão sustentado pelas paixões conformistas quanto pelos apetites experienciais dos sujeitos”.51 Segundo o autor, “passa-se para o universo do hiperconsumo quando o gosto pela mudança se difunde universalmente, quando o desejo de ‘moda’ se espalha além da esfera indumentária”.52 Há quase que um potencial transcendente nas mercadorias à disposição dos indivíduos. São elas as detentoras de significação social, são as promotoras de bem estar e saúde emocional, de atribuição de sentido e valor à pessoa, e também as que garantem ao indivíduo o sentimento de segurança existencial. São nas mercadorias que homens e mulheres depositam votos de confiança para que estas possam lhes prover um sentimento de felicidade e realização de vida. É a isto que o autor denomina de “consumo intimizado”. Lipovetsky é enfático ao dizer que a fase III do consumo reflete, portanto, uma época em que o “consumo assume funções de caráter subjetivo”, ou seja, pertencentes ao escopo de anseios privados do indivíduo e não tanto objetivos.53

O consumo na fase III, ou seja, no momento atual, também assume o potencial de provedor de identidade. “Na corrida às coisas e aos lazeres, o Homo consumericus esforça-se

50 Ibid, p. 42-43. 51 Ibid, p. 44. 52 Ibid, p. 44. Lipovetsky trabalha com a temática da “moda” de forma mais contundente nas obras O luxo eterno, da idade do sagrado ao tempo das marcas, e também O império do efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas. A bibliografia completa de ambos os títulos se encontra no final deste estudo. 53 Para o autor, “diferentemente do consumo à moda antiga, que tornava visível a identidade econômica e social das pessoas, os atos de compra em nossas sociedades traduzem antes de tudo diferenças de idade, gostos particulares, a identidade cultural e singular dos atores, ainda que através dos produtos mais banalizados”. Como exemplo deste fato, Lipovetsky cita a questão dos apartamentos, dizendo que “já não se trata tanto nesse domínio, de exibir um signo exterior de riqueza ou de sucesso quanto de criar um ambiente agradável e estético ‘que se pareça conosco’, um casulo convivial e personalizado”. [...] “o importante sendo menos o valor de posição social que o valor privado e único de ‘sua casa’, tornado possível por um ‘consumo criativo’”. Ibid, p. 44. 54

mais ou menos conscientemente em dar uma resposta tangível, ainda que superficial, à eterna pergunta: quem sou eu?”54

O marketing sensorial é outra ferramenta que testifica das funções subjetivas do consumo. Diferentemente daquilo que representava o marketing tradicional, fundado em estratégias que visavam à coerção à compra pela funcionalidade dos produtos, o que se tem hoje são estímulos constantes aos sentidos do potencial consumidor, sendo estes manipulados de modo a convencer o indivíduo à compra. É desta forma que as lojas, em sua grande maioria, e pequenas ou não, se dedicam à decoração de suas vitrines, a uma ambiência sonora que possa fornecer sensações de alívio e bem estar aos que a ela adentram, e também à manipulação à compra pelo sentir e tocar o objeto oferecido.

Na sociedade de hiperconsumo, as experiências emocionais e afetivas propostas pelo marketing são desfrutadas previamente mediante o toque, o sentir e a manipulação dos objetos. O resultado são as sensações de bem estar que o estimulam à compra. De fato, é a funcionalidade de cada objeto, ou seja, prorrogar sensações já previamente mobilizadas pelas ações de marketing.

É a isto que Lipovetsky chama de “consumo emocional”, visto que são as sensações sentidas que o consumidor deseja comprar muito mais que o objeto por sua composição e valor em si. “A fase III significa a nova relação emocional dos indivíduos com as mercadorias, instituindo o primado do que se sente”.55

O consumo emocional representa mais o sentir para si do que o expressar para outros. Ao consumir, a experiência a que o indivíduo se submete é conhecida apenas por este, isto em virtude da singularidade das experiências na sociedade de hiperconsumo, ainda que os objetos consumidos por outros possam ser os mesmos. É, de fato, este caráter peculiar que mobiliza ao ato de compra. É a sensação de sentir-se único e de experimentar sentimentos singulares que roubam do ser o bom senso em muitos atos de compra. Não importa tanto o julgamento de terceiros quanto sair a representar uma narrativa de vida que expressa em si uma autenticidade para com as vontades particulares, interiores. Tampouco se leva em questão a congruência com outras narrativas de vida, mas é a sensação de resposta aos apelos interiores

54 Ibid, p. 45. O termo homo consumericus é emprego por Lipovetsky para descrever o consumidor contemporâneo, dizendo ser este “uma espécie de turbo-consumidor desajustado, instável e flexível, amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais da posição, passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiências emocionais e de maior bem estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação”. Ibid, p. 14. 55 Ibid, p. 46. 55

que legitima qualquer exibição social ordinária. O indivíduo consumista ou hiperconsumista busca uma relação de fidelidade para com os seus próprios anseios e vontades. Os objetos comprados são os componentes indispensáveis para que isto seja possível, são os elementos que completam o conceito particular de pessoa.

Esses e outros aspectos caracterizam a lógica do hiperconsumo e elevam a atividade consumista a um status inédito nos momentos históricos mais significativos da sociedade moderna.

Seguramente, a análise de Lipovetsky quanto ao hiperconsumo é sobremodo relevante e peculiar também porque traz consigo novos questionamentos a respeito do quadro futuro que esta lógica desenhará para o indivíduo engajado em seus preceitos. Sendo assim, quais serão os limites para o hiperconsumo? É possível conceber um momento histórico-social futuro em que o hiperconsumo como se tem hoje, ou seja, com sua base em referenciais subjetivos, venha a superar-se a si mesmo? O que viria a seguir? Haverá um pós- hiperconsumo? Quais seriam os limites que ainda não foram ultrapassados pela lógica do hiperconsumo, se é que é possível determinar limites em uma atividade cujas características principais são a fluidez, a descentralização em relação aos espaços antes propícios ao consumo e a criação de um consumidor permanente? Haverá outra motivação que não as características do hiperconsumo para o ato de compra no futuro? Essas e outras questões necessitam ainda de reflexão contínua e permitem deixar em aberto uma conclusão mais precisa a respeito do futuro da lógica do consumo nas sociedades que estão por vir.

56

- Capítulo II -

A ética na sociedade pós-moralista

Após uma verificação de como se construiu a tradição filosófica francesa, passando, sobretudo, pela filosofia iluminista, bem como uma apresentação de seus principais representantes e suas teorias propostas que causaram rupturas e mudanças significativas no cenário social, cultural e político em séculos anteriores, cujos reflexos ainda hoje se manifestam na configuração do cenário social atual, foi possível compreender que a filosofia de Lipovetsky se encontra inserida dentro de uma tradição, que é a tradição da filosofia na França, marcada pela contestação e crítica de seu contexto histórico-social. Mais do que se ater às grandes questões ou a objetos de caráter metafísico, a filosofia na França é mais prática, mais aplicada e observável. Lipovetsky segue essa tradição ao analisar fenômenos exclusivos com rigor filosófico singulares. O autor expõe o objeto para tirar conclusões de análise a partir de uma observação daquilo que o próprio objeto lhe apresenta. Não se propõe a uma postura apologética ou de condenação daquilo que observa, pelo contrário, assumindo a neutralidade pertinente a todo pesquisador, consegue sistematizar e transmitir o seu pensamento simplesmente descrevendo aquilo que do objeto se pode verificar.

O presente capítulo, então, expõe as bases do objeto de estudo em questão, ou seja, apresenta as principais características do pensamento do autor expostas em a obra A sociedade pós-moralista, na qual Lipovetsky analisa a questão ética e seu desenvolvimento ao longo dos séculos dentro de três grandes fases históricas, a fase em que a ética estava subordinada ao controle e determinação da religião, o momento em que a ética civil se impôs e, por fim, a fase atual, propícia à hipermodernidade, em que a questão ética também é afetada pelas constantes transformações na dinâmica social. 57

De forma sucinta, porém, direta, o autor também apresenta algumas proposições éticas, considerações a respeito do futuro para o qual as sociedades estão se dirigindo no que se refere à questão ética. Estas também serão aqui apresentadas.

1. A constatação do movimento ético na sociedade atual

A sociedade contemporânea se revela como sendo um palco onde muitos apelos de ordem ética têm sido feitos por protagonistas diversos. Como ideal e como conjunto de valores a serem abraçados e expressados no viver diário individual e social, a ética reclama para si atenção e aceitação de suas prerrogativas nos mais variados campos do conhecimento, ainda que a compreensão do que vem a ser ética bem como de sua implicação sejam ainda de caráter plural. É o que se discerne de campanhas promovidas, por exemplo, por grupos que hoje já não se encontram encerrados apenas às margens da sociedade, mas que, pelo contrário, são capazes de projetarem eficazmente as suas contestações quanto ao uso humano irresponsável do meio ambiente e de seus recursos na pluralidade das mídias e também nas assembléias políticas, reclamando dos governos uma solução para o problema crítico ambiental, com campanhas e conseqüentes ações que prezem pelo uso equilibrado dos recursos naturais, ainda que isto pareça utópico. Quando a natureza reage às intervenções humanas, vê-se a manifestação de catástrofes com um alcance destrutivo sobremodo relevante, trazendo à tona um questionamento já conhecido de muitos acerca dos limites no uso dos recursos naturais, mobilizando grupos a atuarem em favor de uma proteção ao planeta a fim de salvaguardar da extinção as espécies que ainda restam, e ao mesmo tempo, unindo outros grupos no propósito de promover socorro emergencial e humanitário àqueles que foram mais uma vez vítimas de um mal que por eles não foi provocado, que colheram com os reveses da natureza os frutos de sementes das quais eles tão pouco conhecem a essência, porém, cujo amargo gosto se tem experimentado a um custo muito alto. O apelo ético em momentos como o de manifestação da natureza, quando as mentes estão sensibilizadas em virtude do cenário muitas vezes caótico a que se testemunha, se faz de forma dual, sendo os que apelam em favor do socorro humanitário e os que intercedem em favor do meio ambiente. Em ambos os casos, argumentos de caráter ético são colocados em pauta fazendo com que autoridades e indivíduos em particular sejam constrangidos a repensar a questão ambiental a partir de outros parâmetros que não sejam o progresso e o econômico. 58

No entanto, não somente a questão ambiental se mostra em cena no palco social contemporâneo com as suas mais variadas esferas de relacionamento, mas também as questões de bioética e as implicações que ela traz, de modo que debates acerca da legitimação da prática da eutanásia, da manipulação de células-tronco e outros temas desta mesma ordem ainda continuam acirrados e dividindo opiniões em todos os continentes. Tanto os que se mostram favoráveis às práticas inovadoras da ciência para lidar com a vida e a morte, quanto os que se posicionam contrários à aplicação destas mesmas práticas, sustentam seus argumentos baseando-se em pressupostos de caráter ético. Neste sentido, desconhece-se a possibilidade de uma interpretação ética de caráter absoluto. Ainda que valores como a preservação e manutenção da vida possam ser comuns, a aplicação destes ainda é relativa e muitas vezes condicionada aos contextos nos quais se encontram inseridos.

O apelo ao agir ético responsável encontra eco também nas campanhas de combate ao uso de drogas e seu tráfico, nas exigências das massas quanto a uma transparência nas ações e decisões dos que atuam no poder público e do modo como o dinheiro público por estes tem sido empregado, nas contestações quanto às guerras que são travadas em diversos países e contra o quê às vezes pouco se sabe, nas campanhas que denunciam a pobreza mundial, um crime relacionado com a centralização das riquezas para o benefício de poucos em detrimento da complexidade da escassez de muitos, e no combate a pestes como a AIDS, que a despeito do desenvolvimento de técnicas que retardam ou que pelo menos limitam a sua atuação, ainda continua a disseminar vidas, sobretudo na África, onde os recursos são esparsos.

À luz destas e de outras constatações postas por Lipovetsky em sua obra em questão, o autor traz à tona a necessidade de uma reflexão precisa e cuidadosa acerca de como se manifesta o dado ético no tempo presente. Lipovetsky avalia esses dados concluindo que na sociedade contemporânea “idéias de revitalização dos valores e do espírito de responsabilidade se agitam como o imperativo determinante de nossa época: mencionar o padrão ético tornou-se uma imagem corrente para avaliar o novo espírito dos tempos”.56 Esses mesmos dados, no entanto, revelam uma segunda constatação ainda mais provocadora no que diz respeito ao movimento ético na contemporaneidade, qual seja, ainda que a sociedade atual esteja sendo caracterizada por este soerguimento da ética, não se exclui de suas esferas o discurso dos que acreditam ser a ausência de valores, a decadência moral e a precariedade a que tem sido reduzida a vida humana as marcas fundamentais do tempo presente. Sendo

56 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. xxvi. 59

assim, essa segunda constatação aponta para a existência de uma interpretação antagônica acerca do modo como a sociedade contemporânea se compreende no que diz respeito à ética.

O autor considera que é justamente em face dos aspectos maléficos a que tem sido submetidas as vidas, tais como a promulgação de guerras, violência e drogas, entre outros, que a ética tem reclamado para si um tempo de renovação. Porém, assegura ainda que esta única justificativa mostra-se simplista e marginal porque não se sustém perante questionamentos comumente levantados que trazem à tona a questão do individualismo social: “como justapor o fato de que indivíduos voltados unicamente para si, tão indiferentes em relação ao próximo e em relação ao bem público, sejam ainda capazes de se indignar, praticar uma ação generosa, pautar-se por uma reivindicação ética?”57 Como conciliar a promulgação do individualismo com o voluntariado e ainda outros fenômenos sociais completamente paradoxais? Para o autor, há ainda outras questões de fundo, cuja análise e reflexão constituirão o objeto de seu estudo, e cujas implicações e aplicações serão postas paulatinamente no enredo de seu texto.

O tempo presente testemunha de um retorno à moral, de um despertar do bem implicado na prática de ações éticas, de um novo impulso em favor de causas nobres, como a preservação do meio ambiente. “A moral ficou sendo a única utopia: ‘ou o século XXI será ético ou não será nada’”.58 Os exemplos postos anteriormente, ainda que sucintos, atestam para este ressurgimento ético como sendo um novo paradigma a contrapor uma época em que um suposto desencantamento ético predominava nas consciências. No entanto, é preciso ainda admitir que a compreensão do que vem a ser ética, moral, valores ou princípios, escapa ainda a uma clareza de entendimento abrindo brechas para dúvidas. Lipovetsky coloca que “o tema da reativação moral, a bem dizer, da ‘ordem moral’, sem dúvida, floresce. Todavia, de que espécie é esse ressurgir, e de que moral precisamente se trata?”59 A reflexão sobre estes questionamentos, bem como suas implicações, dizem respeito ao objeto principal de A sociedade pós-moralista.

O autor se adianta em revelar a sua hipótese ao afirmar

Adiantemos desde já: não é nosso propósito desmentir a idéia, que erroneamente passa como evidente, de que estaria ocorrendo uma “volta” da moral. Não negamos que a ética, após um período de relativo ocaso, tenha sido agora reconduzida a um pedestal.

57 Ibid, p. xxvii. 58 Ibid, p. xxvii. 59 Ibid, p. xxvii. 60

Entretanto, o esquema da restauração da moral, por demais simplista, admite como verdadeira a idéia de uma volta idêntica ao que era antes, na verdade, justamente o mais característico é o distanciamento do sistema em que a moral funcionava no passado, uma diferença no registro social dos valores. Nossa época não traz de volta o reinado da “boa e velha moral”; ela se afasta.60

O tempo presente inaugura um novo tempo de interpretação e vivência da ética. Para o autor, esta ética, “apesar de admitir os referenciais humanistas de sempre, institui nada menos que um ‘terceiro modelo’ de ética, que já não se inspira nas formas religiosas tradicionais nem em sua versão mais moderna, o dever laico, estrito e categórico”.61 Sendo assim, quais seriam os fundamentos característicos deste terceiro modelo proposto pelo autor e em que eles se diferenciariam de modelos anteriores? Quais as bases filosóficas de sua sustentação ou ainda quais os alcances de sua aplicação? E quais seriam os traços deixados por este novo paradigma no espectro social de modo a ser possível testemunhar de sua manifestação? A estes e ainda a outros questionamentos, o autor coloca que

Está em curso uma nova lógica do processo de secularização da moral, a qual consiste não somente em fazer da ética uma esfera independente das religiões reveladas, mas também em diluir socialmente sua forma religiosa: o próprio dever. Em pouco tempo, cerca de meio século, as sociedades democráticas irão antecipar aquilo que se poderia denominar [...] “o segundo limiar” da secularização ética, isto é, a era do pós-dever.62

É o pós-dever o aspecto original, inusitado que define a questão ética no tempo presente. Não mais a submissão aos preceitos ditados por quaisquer tradições religiosas, tampouco o vínculo obrigatório com atividade de caráter altruísta, mas sim o apego ao bem estar individual mais que coletivo e aos desejos subjetivos mais que objetivos.

A aplicação da ética na contemporaneidade se encontra sujeita aos juízos e determinações do eu individualista. No entanto, como a ética alcançou esta condição denominada por Lipovetsky de pós-moral? Que mudanças histórico-sociais, além de outras esferas, ocorreram para que se contemplasse a emergência de uma ética “moral” para com o próprio indivíduo primeiramente? Considerando a importância destas e de outras questões, Lipovetsky apresenta uma breve análise do rompimento da ética para com a religião e para com o dever imposto pela velha modernidade, rupturas estas que formaram e deixaram como legado as bases para a configuração social atual.

60 Ibid, p. xxvii-xxviii. 61 Ibid, p. xxviii. 62 Ibid, p. xxix. 61

O movimento ético na sociedade contemporânea é paradoxal, apela ao próximo e simultaneamente evoca como necessária a busca pela satisfação de aspirações subjetivas e privadas. Estudar a questão ética, para Lipovetsky, será relevante, porém, indispensável de uma análise daquilo que seriam as matrizes que originaram a configuração ética atual, sendo, em sua perspectiva, duas grandes matrizes: a ética religiosa, propícia de um tempo em que a religião detinha para si o poder de estabelecer regras e preceitos para a vida comum, e a ética do dever, localizada nos primórdios da modernidade, ou seja, num tempo de erosão de preceitos religiosos, porém, caracterizada pela obrigatoriedade em relação ao próximo.

2. As matrizes clássicas da ética

Três grandes matrizes da ética são apresentadas pelo autor em seu texto, ou três grandes fases históricas em que a questão ética fora elaborada e aplicada. A primeira fase caracteriza-se pelo domínio da religião na regulação dos comportamentos dos indivíduos. Era a religião a instituição determinante das questões de ordem ética e moral, avaliando as posturas permitidas e não permitidas nas relações sociais. No segundo momento, oriundo com o advento da modernidade, a competência para regular e determinar os comportamentos de caráter ético e moral é transferida da esfera religiosa para as instituições modernas, como o Estado, a família e outros. Lipovetsky considera que a lógica do dever, ou seja, da obrigatoriedade e da responsabilidade para com o semelhante, com o qual se dividia o espaço social dado, determinava a ética nestas duas primeiras fases. A mudança ocorreu apenas no que se refere à instituição reguladora, sendo a religião a instituição determinante no primeiro momento, e as instituições modernas as que assumiram essa competência quando da modernidade.

A terceira matriz ética é caracterizada por uma lógica do pós-dever e é pertinente do momento histórico atual, quando não há mais o sentido de altruísmo comprometido nas ações éticas dos indivíduos. A lógica do pós-dever presente nos comportamentos e relações sociais na hipermodernidade, como Lipovetskty prefere chamar, institui as bases para a emergência de uma sociedade pós-moralista, ou seja, cujas ações sociais são projetadas para além das obrigações morais de outrora. Não há instituições modernas ou religiosas que possam ainda usufruir do status de instituições reguladoras do comportamento ético do indivíduo. 62

Essa terceira matriz na qual se encontra inserida a questão ética contemporânea é analisada por Lipovetsky numa tentativa de absorver toda a sua complexidade, e as principais considerações são apontadas neste segundo capítulo desta pesquisa.

2.1. Primeira matriz: a ética subordinada à religião

A fim de se compreender a razão pela qual testemunha-se hoje de uma lógica pós- moralista na sociedade, Lipovetsky apresenta uma análise histórico-sociológica do modo como as questões éticas eram concebidas e aplicadas em épocas passadas. Suas considerações a respeito do momento em que a ética se encontrava plenamente sujeita à interpretação e aplicação de autoridades religiosas são sucintas, de modo que se faz necessário recorrer a outros autores a fim de se obter uma melhor compreensão daquilo que representava a questão ética naquele tempo. Para tanto, Comparato contribui ao enfatizar o apogeu da cristandade ao longo do século XIII instituindo-se como entidade reguladora da vida humana e das relações sociais. É neste tempo que a religião regula e determina a vida humana em virtude, não apenas de rogar para si o atributo de representante do sagrado, detendo consecutivamente o grau de autoridade espiritual sobre os homens, mas também por alcançar um status político e militar dominante, subjugando reinos e nações às suas vontades e interesses

A dominação territorial cristã, em primeiro lugar, expandiu-se notavelmente dentro e fora da Europa. Poloneses e húngaros tornaram-se católicos, enquanto os prussianos foram exterminados, e seu território ocupado por alemães católicos. Em 1212, os árabes da Espanha sofreram a sua mais terrível derrota, em Las Navas de Tolosa. No Oriente, a primeira cruzada, já em fins do século XI, levou à fundação do reino europeu de Jerusalém. A quarta cruzada, convocada pelo papa Inocêncio III em 1200, estendeu a dominação ocidental sobre o antigo império bizantino. [...] Sob o longo pontificado de Inocêncio III (1198-1216), a soberania papal sobre os reis suplantou a do imperador. O papa obrigou o rei da Inglaterra a entregar parte do seu reino ao monarca francês, e dispôs livremente das coroas da Hungria, da Dinamarca, de Aragão e de Castela, como se fossem suas.63

Mediante a constatação acima, compreende-se que o mundo daquele tempo não conhecia outra autoridade reguladora da vida a não ser a autoridade da Igreja. No entanto, a influência e dominação religiosa se faziam presentes não apenas na esfera da religião em si e

63 Fábio Konder COMPARATO, Ética, direito, moral e religião no mundo moderno, p. 131. 63

da política, mas estendia-se também a todas as demais esferas sociais nas quais o cotidiano era circunscrito

O clero mantinha tribunais próprios, os únicos competentes para julgar as causas em que eram partes clérigos, viúvas, órfãos, estudantes, bem como todas as demandas em matéria de religião, as quais envolvessem leigos, todos os litígios a respeito de casamentos e adoções, todos os processos penais de blasfêmia ou heresia. Tudo isso sem falar na educação e nas atividades artísticas, inteiramente submetidas à autoridade eclesiástica. 64

Vê-se claramente que as fronteiras sociais nas quais a religião atuava ultrapassavam a esfera do público para fazer-se presente também na esfera do privado, orientando no interior das casas as questões relacionadas à vida conjugal, a educação de filhos e aos papéis a serem exercidos pelos indivíduos em família. Nesta perspectiva, Vázquez salienta a manifestação de uma unidade moral na sociedade daquele tempo, tendo em vista a aceitação pacífica por parte da comunidade em relação aos preceitos que eram colocados pela religião

A moral da sociedade medieval correspondia às suas características econômico-sociais e espirituais. De acordo com o papel preponderante da Igreja na vida espiritual da sociedade, a moral estava impregnada de conteúdo religioso, e como o poder espiritual eclesiástico era aceito por todos os membros da comunidade – senhores feudais, artesões e servos da gleba – tal conteúdo garantia uma certa unidade moral da sociedade.65

Ainda que Vázquez aponte para o elemento de unidade moral presente naquele momento histórico, reunindo os indivíduos em uma comunidade com princípios e normas sociais igualitárias, Comparato atesta para um segundo elemento verificável, que diz respeito àquilo que seria o pré-surgimento do conceito de indivíduo

...é importante assinalar, no terreno da ética, o aprofundamento dado à doutrina do pecado. Em uma antecipação aos tempos modernos, os teólogos cristãos dão sua contribuição decisiva para a afirmação do indivíduo, ao conceberem o pecado não mais como uma falta coletiva, ou uma transgressão dos antepassados a refletir-se na cadeia dos descendentes, mas sim como um ato consciente da vontade individual e que acarreta, conseqüentemente, uma responsabilidade pessoal e intransmissível.66

Após esta compreensão do universo religioso, social e político daquele tempo, em que a religião imperava e fazia valer os seus preceitos, pode-se verificar a consideração que Lipovetsky faz acerca disto no que se refere à questão ética e moral. Segundo o autor

64 Ibid, p. 131. 65 Adolfo Sánchez VÁZQUEZ, Ética, p. 46. 66 Fábio Konder COMPARATO, Ética, direito, moral e religião no mundo moderno, p. 130. 64

No começo da moral era Deus. No Ocidente cristão, até o alvorecer do século das Luzes são raras as mentes que recusam este axioma: Deus é o alfa e o ômega da moral. Somente por sua voz é que as derradeiras prescrições foram conhecidas e é somente pela fé que a virtude impera. Sem o concurso das Sagradas Escrituras e sem o temor a Deus, só pode haver vícios e extravios, pois a virtude meramente profana é desprovida de consistência e autenticidade. Nas épocas pré-modernas, a moral é essencialmente teológica: não se concebe como uma esfera independente da religião.67

Para Lipovetsky, em séculos passados, a moral se encontrava plenamente encerrada nos parâmetros da religião, em outras palavras, uma determinada atitude era ou não moral a partir do quadro moral estabelecido pela religião. O homem tinha na religião o ideal ético a se perseguir. Suas ações para consigo mesmo e para com aqueles que pertenciam ao seu círculo de relacionamento deveriam apontar para as prerrogativas já postas neste ideal, a fim de que fosse julgado um indivíduo moral perante a sociedade e, sobretudo perante Deus.

A implicação deste valor absoluto, ou seja, o ideal de moralidade era aquele que estava posto pela religião, se fazia visível em todas as esferas constituintes de seus relacionamentos, seja no realizar do trabalho diário, seja na vida privada encerrada em seu lar ou na sua vivência em sociedade. As ações do homem eram valoradas a partir do padrão, do modelo ético já previamente estabelecido pela religião. Não havia para o indivíduo daquele tempo a possibilidade de contestação das normas superiores de moralidade, pois estas estavam imbuídas de um caráter sagrado, de modo que qualquer ato de rebeldia aos seus preceitos representava, antes de tudo, uma ofensa ao Deus que as havia estabelecido. A igreja representava o instrumento divino de aplicação desta ética, quando às vezes assumia também o papel de instituidora de normas, reclamando para si uma autoridade equivalente à da Palavra revelada.

Não havia espaço para questionamentos ou para uma interpretação relativa da moral e de seus preceitos. Valores absolutos eram característicos do escopo ético regido pela Igreja, sua eficiência era indubitável e cabia ao homem a submissão às suas prerrogativas a fim de poder lograr o favor divino e, acima de tudo, atribuir a Deus toda a glória de suas ações. Nas palavras do autor, “o motivo que deve nos levar a prática da virtude não é o respeito moral ao homem, mas o desejo e a glória do Altíssimo”.68

67 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 1. 68 Ibid, p. 1. 65

A partir do século XVII testemunha-se o início de um processo de secularização da ética a partir de um rompimento que a modernidade provoca em relação aos imperativos da religião até então determinantes. Há, a partir deste momento, a imposição de um novo paradigma de ordem moral e regulador da vida em sociedade que atuará livremente e emancipado dos postulados da religião, ainda que os preceitos religiosos continuassem a ecoar buscando fazer valer os seus valores, porém de forma marginal e com pouco alcance e significado. É um tempo em que a eficácia de normas religiosas no que se refere à sua aplicabilidade no espectro social será contestada. No entanto, como se deu esse rompimento? Quais são as suas implicações e qual a sua relevância para Lipovetsky e para o estudo em questão? É em busca de respostas a estas e outras questões que Lipovetsky se propõe a analisar as características principais daquela que seria a segunda grande matriz da ética que ele apresenta em seu texto, localizada numa época em que as instituições modernas assumiriam a competência de regulação e avaliação dos comportamentos, competência esta que antes estava conferida à religião.

Lipovetsky se propõe a apresentar o modo como se deu a ruptura com o modelo anterior, bem como a natureza desta ruptura, e em que este novo modelo irá contribuir para que a configuração ética atual alcançasse o presente status.

2.2. Segunda matriz: a ética civil

Para que seja possível verificar minuciosamente em que a ética civil, característica da modernidade e marcada pela lógica do dever, conforme Lipovetsky prefere conceber, diferenciava-se do modelo anterior regido pela religião, é imprescindível compreender os fatos histórico-sociais que se deram e que foram responsáveis pela configuração de um novo quadro social, cujas marcas refletiram-se diretamente no cotidiano dos indivíduos na medida em que vivenciavam em suas relações as questões de ética e moral.

2.2.1. O surgimento da modernidade

A revolução científica e filosófica juntamente com outros fatores históricos permitiu uma emancipação da moral em relação aos preceitos estabelecidos pela igreja, bem como de 66

sua autoridade. À razão, desvinculou-se qualquer noção de limites morais, sendo os limites da própria razão sempre a barreira última a se transpor para que a ascensão progressiva do homem moderno se tornasse plena e desimpedida. Este homem moderno, ao dar forma social a uma narrativa de vida mais coerente com as suas aspirações individuais, subjetivas, do que com as expectativas oriundas de seu contexto coletivo, pertencente ao grupo no qual ele se encontrava inserido, irá atuar em favor de sua própria glória e honra. Para o autor

A irrupção da modernidade não corresponde apenas à elaboração de uma ciência emancipada do ensinamento bíblico e de uma concepção de vida político-jurídica auto- suficiente, alicerçada tão somente nas aspirações humanas. Contém igualmente a afirmação de uma moral emancipada da autoridade da igreja e da crença religiosa, com sustentação meramente humano-racional, sem recorrer às verdades reveladas.69

Da mesma forma que no modelo anterior, a implicação dos pressupostos pertencentes a este novo paradigma imposto pela modernidade deu-se também nas mais variadas esferas sociais nas quais o indivíduo construía progressivamente a sua vivência individual e coletiva. “Exclusivamente os modernos foram capazes de ostentar [...] valores estritamente laicos; exclusivamente, foram os que tomaram a iniciativa de organizar uma estrutura social e política com base em princípios éticos não vinculados a confissões religiosas”, afirma o autor.70 O Estado passou a organizar-se fundamentando-se em princípios estipulados a partir de reflexões desvinculadas de pressupostos religiosos. A igreja passou a atuar de forma menos expressiva e com menor influência na vida social e até mesmo privada dos indivíduos. Leis e projetos sociais foram pensados a partir da razão humana e da competência única e exclusivamente desta acerca do que é ou não moral. A razão emancipou-se da dependência da igreja para discernir o certo do errado e o moral do imoral. Trata-se da emergência de uma ética laica, que renega a segundo plano o postulado religioso e que desconhece outra autoridade que não corresponda à da própria razão. Surgem, neste momento, novos valores sociais, como o indivíduo em si e a igualdade de direitos e deveres, entre outros.

Irrompe o indivíduo moderno como criação da modernidade. Não impera mais o ideal coletivo, o pensar em grupo e pelo grupo, o ser identificado e reconhecido como pertencente a determinado conjunto de pessoas com valores, princípios, e expectativas concernentes a projetos de vida semelhantes, mas projeta-se o ideal individual, sendo o indivíduo moderno o protagonista principal de sua própria narrativa de vida. Lipovetsky coloca

69 Ibid, p. 2. 70 Ibid, p. 2. 67

As idéias de soberania individual e de igualdade civil, parte constitutiva da civilização democrática-individualista, exprimem os “princípios básicos e inquestionáveis” da moral universal, manifestam os imperativos imutáveis da razão moral e do direito natural que não podem ser ab-rogados por nenhuma lei humana. São “verdades evidentes por si”, e simbolizam o novo valor absoluto dos tempos modernos: o indivíduo humano.71

Os direitos dos indivíduos estarão no centro do projeto moderno. Não mais as obrigações de prestação de satisfação às autoridades religiosas acerca de práticas morais ou não morais, aspecto característico do modelo anterior, mas sim a emergência de um novo referencial social, que é o indivíduo, criação da modernidade. Foram os tempos modernos que criaram as condições necessárias para que o indivíduo emergisse como referencial absoluto no meio social. Nas palavras de Lipovetsky

Ao fazerem da ética uma instância criadora, elevando o indivíduo à condição de valor moral primeiro e último, as sociedades se afastaram da imemorial influência do poder religioso. É esse o “código genético” das democracias modernas: uma ética universalista laica.72

A fim de contemplar os seus direitos e as suas aspirações, leis são estipuladas, restrições são colocadas ou removidas e a sociedade aprende a se organizar de forma antagônica àquela que estava estabelecida quando do império da religião. Há uma maior preocupação com os direitos deste indivíduo do que com os deveres que a ele compete, “a imemorial preeminência das obrigações para com Deus cede lugar à preeminência das prerrogativas do indivíduo soberano”.73 É o indivíduo que se encontra no centro da vida social e não mais o elemento religioso, de modo que satisfazer aos seus desejos se tornara um valor quase que absoluto. É neste momento que insurge no homem o anseio pela felicidade, ou seja, pela plena satisfação de suas necessidades

Desde a filosofia das Luzes, a vida feliz e as formas de prazer que lhe são afins granjeiam direito de cidadania e, a partir do início do século XVIII, o ideal epicurista se apregoa claramente. Após séculos de desdém ascético, e uma vez liberto do estigma cristão da natureza humana decaída, o prazer deixou de ser visto sob o signo da miséria humana. Em outros termos, a moral profana sobrepujou-se às leis morais da salvação eterna.74

71 Ibid, p. 2. 72 Ibid, p. 3. 73 Ibid, p. 3 74 Ibid, p. 3. 68

Não mais cativo ou dependente da aceitação e do favor divino, o indivíduo se depara com um mundo de infinitas possibilidades de auto-realização, de contemplação aos seus anseios dos mais variados, como o anseio pelo luxo e pelo signo da diferenciação social. É também na esfera do luxo que se verifica os elementos característicos da modernidade, atendendo às prerrogativas e exigências do indivíduo e não tanto da sociedade em seu conjunto, e o modo como se opunham aos que estavam presentes no modelo anterior dominante da religião.

2.2.2. A sacralização do dever

A modernidade rompeu com a religião e suas obrigações, mas erigiu um novo ideal também revestido de sacralidade, a saber, o dever, a ação responsável, altruísta para com o semelhante. Segundo Lipovetsky

Durante cerca de dois séculos, as sociedades modernas proclamaram solenemente sua fé nas obrigações morais do homem e do cidadão; deram um incomparável realce aos ideais de desinteresse e renúncia a si mesmo; exortaram incessantemente à prática dos deveres para consigo mesmo e para com os semelhantes; procuraram reformar os costumes, elevar os espíritos, promover as virtudes públicas e particulares.75

Lipovetsky é ainda mais perspicaz ao constatar que

Embora alheia a qualquer religião revelada, a criação de uma ética laica como princípio organizador da ordem social redundou, na prática, em fazer vir à tona novamente aquela mesma concepção de religião revelada. De fato, a religião moderna do dever tomou o lugar antes ocupado pelo dever imemorial da religião, e para isso se valeu de uma hipérbole: “você deve...”.76

A noção do dever assumiu um caráter sagrado por ter se tornado, sobretudo, um valor absoluto da modernidade. Uma obrigação para a qual todo indivíduo deveria se dirigir. Da mesma forma que a religião determinou posturas e influenciou ações no modelo anterior, a noção do dever como obrigação moral também sujeitou os indivíduos a um agir pautado pelo bem estar não somente de si, mas também do próximo. Foi essa obrigatoriedade posta que atuou também na regulação dos atos individualistas sem limites, ou seja, “para combater a

75 Ibid, p. 4. 76 Ibid, p. 4. 69

imoralidade e a indisciplina dos costumes individualistas, os modernos sacralizaram a escola do dever moral e cívico”.77 Lipovetsky faz uso da figura do deus Jano para ilustrar a bipolaridade moral característica deste fenômeno, ou seja, “de um lado, a idolatria do imperativo moral; de outro, a radical negação de sua legitimidade”.78 Individualismo para si mesmo e para com o próximo fundiram-se na modernidade, prevalecendo o ideal do dever, da moral, do altruísmo na regulação das práticas dos modernos. Ainda que esta tendência antagônica seja reconhecida, ambas se prescreviam na vida social de modo a deslegitimizar qualquer influência religiosa.

A obrigatoriedade para com o dever reflete a potencialidade moderna de conceber a moral independente da religião. A emancipação em relação à religião não permitiu aos indivíduos uma circulação social desregulamentada e desprovida de valores e de responsabilidades morais. A ruptura com a igreja e suas normas não acarretou ao homem moderno a perda de referencial ético, obrigando os indivíduos a agirem em favor de si mesmos e de forma irresponsável. Tão somente transferiu-se tal referencial, ou o valor absoluto sobre o qual estariam fundamentados os princípios reguladores da vida, sendo o indivíduo, suas aspirações e anseios subjetivos, colocados agora no centro da moral.

Lipovetsky atesta para esta constatação ao dizer que

Certamente a fascinação pelo dever não é uma nota específica da modernidade. É, contudo, a afirmação da obrigatoriedade do dever como algo extrínseco aos dogmas de toda e qualquer religião revelada, a difusão na sociedade de uma moral liberta de uma tutela divina. Nesse ponto, a ruptura ideológica com o passado é categórica, um exemplo da conquista moderna da auto-suficiência terrestre.79

A prerrogativa de que o homem, desprovido da regulação da religião, poderia perder a noção de seus próprios limites, podendo com isso ultrapassar os direitos de seu semelhante e agredi-lo em sua moral e até mesmo em sua integridade pessoal, provou-se como sendo uma inverdade. “Em outros termos, a religião do dever desenvolveu-se à maneira de um dever sem religião”.80 A noção de responsabilidade para com o próximo é oriunda da própria lógica social moderna, estabelecida sobre leis e deveres necessários para o bem estar comum. “A obrigatoriedade moral não é mais uma prescrição que vem de fora, mas algo que provém

77 Ibid, p. 6. 78 Ibid, p. 7. 79 Ibid, p. 8. 80 Ibid, p. 8. 70

exclusivamente do solo profano da vida humana e social”.81 É na modernidade que a moral eleva-se à categoria de esfera autônoma, não mais dependente da religião para prescrever as suas normas, direitos e deveres. Os postulados a serem determinados foram concebidos à luz das necessidades afloradas quando da ruptura com o modelo anterior, o qual, em tempos passados, se mantinha responsável por esta função.

A aplicação dos preceitos característicos deste novo paradigma ético se deu nas mais variadas relações e esferas sociais, e Lipovetsky faz referência a alguns universos específicos onde estas manifestações se revelaram de maneira mais evidente a fim de evidenciar a validade de seus argumentos, alguns deles passam a ser comentados abaixo.

2.2.2.1. Os reflexos da ética do dever na esfera sexual

É também na esfera dos hábitos e costumes pertencentes ao dia a dia que se manifestam as obrigações relacionadas ao dever. Em se tratando da questão sexual e dos relacionamentos amorosos, as mesmas punições características do domínio da religião também se fizeram presentes na modernidade, porém, conforme as suas prerrogativas e, segundo o autor, “por vias do discurso normativo científico”.

Toda e qualquer prática sexual contrária, diversa ao padrão legitimado, reconhecido pela religião, fora contestada abertamente pela igreja e, da mesma forma, também rotulado pelos modernos como doenças, desvios morais e repressivos, passíveis de ferir a integridade alheia.

Vítimas de julgamentos condenatórios, os que se davam às práticas sexuais irregulares, alheias às práticas comuns e reconhecidas pela maioria, se encontraram também às margens da sociedade mesmo num tempo em que os direitos individuais eram evocados como valor supremo.82 Segundo Lipovetsky

...o combate à homossexualidade, à masturbação e a outras anomalias do gênero fazia médicos e professores leigos empenharem-se tenazmente, com o mesmo zelo que a

81 Ibid, p. 8. 82 Lipovetsky aponta uma série de regulamentações próprias daquele tempo que foram estipuladas a fim de regular a prática sexual sob os parâmetros do dever. Afirma que “os sanitaristas do século XIX alertaram os cônjuges sobre as ‘posturas ilegítimas’, que poderiam constituir um risco de provocar esterilidade ou aborto. [...] Condenaram a felação, o coito anal e a masturbação recíproca, rotulada de ‘serviço ignóbil’; incentivaram o comedimento nos passatempos amorosos; em nome da ‘higiene pessoal’, condenaram a excessiva freqüência das relações, bem como a prática do ato sexual após os cinqüenta ou sessenta anos”. Ibid, p. 16-17. 71

Igreja. Aquilo que a Igreja, na matéria, apontava como práticas pecaminosas, eles reputavam doenças ou aberrações.83

Ainda que o postulado da liberdade de agir e de pensamento tivessem sido elevados à categoria de direito moderno, sua aplicação ainda se fazia de forma bastante limitada, de modo que aqueles que se davam às práticas sexuais ilícitas segundo a interpretação daquele tempo, também se encontravam marginalizados dos ciclos de vivência comuns, vulneráveis a julgamentos e condenações de ordem moral por parte da sociedade na qual viviam, e desprovidos de qualquer possibilidade de defesa ou de justificação de seus atos, pois, tais práticas constituíam-se, acima de um direito individual, uma afronta à lógica do dever para com o bem estar alheio. É nesta perspectiva que o autor coloca que “as formas marginais de sexualidade eram objeto de perseguição, e as relações sexuais estavam mais propriamente associadas à noção do dever do que à valorização do prazer”.84 A repressão, a marginalização e a condenação antes articulada pela igreja continuou eficiente, porém, pela instrumentalidade de outros. Ela mesma, a igreja, se aproveitou dessa brecha para fazer valer o seu discurso, reclamando novos espaços para uma atuação mais significativa na sociedade moderna, entre eles, na educação.85 Lipovetsky coloca que “por maior que tenha sido o processo laicizador da sociedade, a moral sexual continuou sob a tutela da moral cristã”.86 Eram poucos os que se arriscavam a romper rigorosamente com as normas morais da religião no campo sexual, e mesmo quando o faziam, davam-se ao cuidado de observar o ambiente privado mais do que o público.

2.2.2.2. Os reflexos da ética do dever na esfera familiar

No espectro familiar, a noção de dever também se faz presente, sendo a instituição família supervalorizada e elevada ao patamar de instituição provedora de bem estar mútuo. Os valores necessários à manutenção do relacionamento conjugal, que só conhece como modelo a união entre indivíduos de sexos opostos, são observados e encerrados no âmbito, sobretudo,

83 Ibid, p. 17. 84 Ibid, p. 17. 85 Lipovetsky cita que a Igreja, mesmo em tempos modernos, continuou a exercer uma forte influência em algumas esferas sociais, entre elas, na educação, de modo que “na França de 1914, a proporção de professores primários padres correspondia quase à metade do número de professores leigos”. O autor, à luz dessa verificação, conclui que a autonomia da moral em face da religião não havia ainda alcançado o status de aceitação plena na sociedade. Ibid, p. 17. 86 Ibid, p. 18. 72

privado do relacionamento, aquele que se dá no interior do lar, onde a possibilidade de felicidade mútua, de satisfação de anseios individuais e de entrega ao bem estar do outro se revela como plenamente acessível. Assim, rupturas em uniões conjugais provocadas por práticas de adultério, por divórcio, pelo acidente de uma concepção pré-casamento, por relacionamentos homossexuais, entre outras, são práticas estritamente condenadas e estigmatizadas tanto pela igreja, que ainda se esforça para dar eco a uma voz quase sufocada, quanto pela sociedade moderna, pois, como já apontado anteriormente, implicam em ações que compromete diretamente o outro em sua integridade e em seu bem estar. De certa forma, a modernidade também impôs uma moral rígida aos indivíduos, de caráter mecanicista em sua ordem e regulação, exaltando o ideal de perfeição do homem em suas práticas racionais, e também no nível de seus relacionamentos. Segundo o autor

Assim como a sexualidade, também a esfera da família se encontra sob a dependência do binômio forma-dever, sujeita às investidas da moralização sanitarista e disciplinar. No século XIX, prevalece a concepção de que o soerguimento moral e a salvaguarda das sociedades liberais impõem o fortalecimento da ordem e das virtudes domésticas, particularmente na classe dos operários. [...] A era inaugural das democracias industriais caracterizou-se, de um lado, por uma estratégia sistemática de normalização disciplinar das formas de comportamento das massas, veiculando terminantemente certos deveres para a obtenção de uma célula familiar asseada, ordenada e comedida.87

No entanto, não é somente na esfera familiar que o elemento do dever se impõe como lógica dominante na questão ética, em outras esferas nota-se também a rigidez moral característica deste tempo, conforme se verifica abaixo.

2.2.2.3. Os reflexos da ética do dever na esfera do trabalho social

As ações empreendidas pelas instituições que promovem o trabalho social também testemunham da ascensão do paradigma do dever na modernidade. Lipovetsky coloca que “na era das grandes ideologias nacionalistas, também o movimento moralizador se internacionalizou; na era dos direitos individualistas, nasceram os ‘militantes do dever moral e social’”.88 Mesmo sob os imperativos de uma ética laica, muitas instituições ainda se encontram vinculadas, senão nominalmente, pelo menos pela influência de princípios, com

87 Ibid, p. 19. 88 Ibid, p. 21. 73

normas de caráter cristão. No entanto, há também os que se empreenderam em promover a ascensão dos valores morais desprendidos de quaisquer alianças com a igreja, numa tentativa de provar para si e para outros que o homem moderno é também capaz de promover ações filantrópicas sob as diretrizes e motivações única e exclusivamente da razão. Assim

Os filantropos modernos definem a si mesmos, antes de tudo, como educadores, reformadores da sociedade civil e da vida privada, voltados à edificação da cidadania republicana. Ao se tornar um serviço social, a moral prática seguiu o mesmo caminho traçado pela secularização do mundo: sua meta primeira não é mais a salvação numa outra vida, mas a salubridade democrática.89

Lipovetsky aponta ainda que os filantropos da modernidade propunham as suas ações tendo como critério de originalidade uma prática realizada sob orientações científicas. Sendo assim, “excluíram a prática da caridade antiga, ao julgarem que, se exercida sem critério moral e sem racionalidade, só era capaz de provocar o aumento da mendicância e da preguiça, da imprevidência e da falsidade”.90 É este aspecto que se contrapõe ao modelo antigo, quando as práticas sociais eram feitas para a glória de Deus, no entanto, o indivíduo beneficiado tenderia a ser encerrado na mesma situação marginal e, sobretudo, miserável na qual se encontrava anteriormente.

Nesta perspectiva, o autor enfatiza que com o advento da modernidade, novas medidas foram tomadas com vistas a resgatar o indivíduo de sua situação marginal, provendo-lhe, entre outras coisas, oportunidades para o aprendizado técnico, orientações quanto à necessidade de higiene, e outros meios que lhe dessem condições de ascender em sua situação precária.91 “Graças aos modernos, a moral intradisciplinar do dever se firmou como instrumento autônomo, capaz de mudar, de melhorar o mundo profano”.92

Enfim, em todas as esferas sociais da modernidade se fazem presentes características que permitem identificar o aspecto singular do nobre dever como motor propulsor das ações. Há como que um espírito de caráter religioso presente nas motivações dos indivíduos, impelindo-os a agirem em prol do bem estar alheio, primeiramente, mas também com propósitos de satisfação pessoal mediante as ações benéficas prestadas. É uma sensação de

89 Ibid, p. 22. 90 Ibid, p. 23. 91 Lipovetsky cita como exemplo, a diversidade de instituições organizadas com fins a prover aos indivíduos melhores condições de bem estar e recolocação social, tais como: “escolas para os necessitados, caixas de poupança, abrigos sociais, aulas no período noturno, bibliotecas circulantes, orfanatos para crianças sem lar, abrigos para moças sem família, associações de mães, casas de recuperação para prostitutas”. Ibid, p. 23. 92 Ibid, p. 23. 74

alívio de consciência, como se esta estivesse em falta com alguém ou algo, talvez superior, que procede a todo aquele que se presta ao nobre dever na modernidade. Por vezes, mesmo o agir altruísta ou inclusive neste, se manifeste claramente os propósitos pertinentes aos anseios individualistas e subjetivos do homem.

Após constatar o dado ético na sociedade atual e de se propor a uma análise das matrizes da ética, sendo a ética subordinada à religião e, posteriormente, a emergência de uma ética marcada pelo dever, apresentando também os elementos que diferenciavam as duas realidades e a aplicabilidade de seus preceitos nas esferas sociais diversas, Lipovetsky passa agora a mostrar um terceiro modelo de ética a emergir na contemporaneidade, a saber, a ética do pós-dever. É este modelo que provocará novamente uma ruptura com os dois quadros anteriores por deter, também, características sobremodo singulares.

3. A ruptura com as matrizes anteriores: a ética do pós-dever e a sociedade pós- moralista

O tempo que conheceu os imperativos de uma ética do dever também se encontra ultrapassado na perspectiva de Lipovetsky. Faz parte de uma história, porém, cujos reflexos de suas prerrogativas se manifestam na atualidade de modo a contribuir fundamentalmente para uma nova reconfiguração do espectro social que está dado. O momento atual no qual se configura as sociedades contemporâneas é regido por outra norma que desconhece qualquer forma de obrigatoriedade perante o bem estar alheio. O altruísmo, antes elevado ao status de valor quase que absoluto foi posto às margens na lista de prioridades e obrigações individuais. O imperativo do dever para o indivíduo contemporâneo lhe é desconhecido, não encontra em sua consciência eco para os seus reclamos. Não que a sociedade atual não testemunhe de ações altruístas, pelo contrário, muitos movimentos com estes fins ainda são organizados com resultados mais promissores do que em tempos remotos, no entanto, os propósitos pelos quais são realizados já se mostram em rompimento com o período da primeira modernidade. A época atual, com suas prerrogativas e modos de organização social singulares propõe um novo paradigma moral, este manifesto de modo a romper com os dois modelos anteriores aqui explanados. Denomina-se o pós-dever, inserido numa lógica pós-moralista.

O culto do dever cedeu lugar à exaltação do pós-dever, cujo espetáculo se encontra centrado no indivíduo, em suas relações, em sua manifestação como protagonista principal a 75

interpretar no palco social contemporâneo as prerrogativas desta nova fase histórica. Segundo o autor, a manifestação do paradigma do pós-dever dá-se a partir da metade do século XX, e sua complexidade de articulação continua a se manifestar ainda nos dias contemporâneos, reconfigurando-se de tempos em tempos e estando plenamente relacionada com as inovações tecnológicas que, por sua vez, acabarão por contribuir para o desenvolvimento e estabelecimento de sua condição.

Lipovetsky coloca que

Dever era um termo que se escrevia com letras maiúsculas; hoje, grafa-se com minúsculas. Antes irredutível, tomou agora a forma de show recreativo. Antes, submissão incondicional da vontade à lei; hoje, uma sincrética conciliação entre dever e prazer, dever e self-interest. A fórmula “é preciso fazer...” cedeu lugar ao fascínio da felicidade; a obrigação peremptória, à excitação dos sentidos; a proibição irretorquível, à liberdade de escolha. A retórica sentenciosa do dever não está mais no cerne de nossa cultura; em seu lugar, o que temos são os chamamentos à boa vontade, os conselhos psi, as promessas de felicidade e de liberdade aqui e agora. Assim como as sociedades modernas eliminaram os sinais exteriores da força política, também fizeram desaparecer as irrecusáveis injunções da moral. Ficou extinta a cultura do sacrifício do dever, entramos no período pós- moralista das democracias.93

À luz da colocação acima, compreende-se que, na perspectiva do autor, o espírito do moralismo prático tanto quanto teórico deixou de ter a primazia nas consciências dos indivíduos hipermodernos. Os reclamos moralistas foram marginalizados por uma lógica que favorece o bem estar e o maior conforto individual. O moralismo conhecido e legitimado pela lógica do pós-dever diz respeito unicamente à manutenção e sustentação do espírito lúdico, saudável e confortável do eu que, por definição, não permite espaços compartilhados com o outro. O aspecto moralista que se manifestava impositivamente, mas também intuitivamente como elemento regulador das posturas e ambições privadas, ou seja, um moralismo como disciplina rigorosa do próprio indivíduo para consigo mesmo, é propício dos tempos do dever.

Lipovetsky define em linhas gerais as características presentes na sociedade atual denominada como sociedade pós-moralista

Sociedade pós-moralista é a designação de uma época em que o sentido do dever é edulcorado e debilitado, em que a noção de sacrifício pessoal perdeu sua justificação social, em que a moral já não exige o devotamento a um fim superior, em que os direitos

93 Ibid, p. 26. 76

subjetivos preponderam sobre os mandamentos imperativos, em que as lições de moral são encobertas pelo fulgor de uma vida melhor, do irradiante sol das férias de verão, do banal passatempo das mídias. [...] Por detrás de toda revitalização ética, vê-se o triunfo de uma moral indolor, última fase da cultura individualista democrática, desvinculada, em sua lógica mais profunda, tanto das conotações de moralidade como de imoralidade.94

Compreende-se, portanto, que ao se referir à manifestação de uma sociedade pós- moralista, o autor não legitima o corrente equívoco científico oriundo de uma análise sociológica marginal que concorda com a plena ausência do critério moral nas relações sociais dos indivíduos em suas mais variadas esferas sociais de atuação. Tal hipótese não se sustém, sobretudo no século XXI, quando, como já colocado anteriormente, verifica-se nos discursos e reivindicações das massas a presença de um apelo em favor da moral e da ética nas ações humanas quase que constantemente. Lipovetsky conclui então que

Cultura pós-moralista não equivale a dizer pós-moral. [...] novas regulamentações sociais surgem, proibições são renovadas, readmitem-se novos valores, [...]. Na verdade, o ritual do dever perdeu o direito de cidadania visível na sociedade, muito embora os costumes não tenham mergulhado na anarquia. O bem-estar e os prazeres são exaltados, mas a sociedade civil anseia por ordem e moderação os direitos subjetivos dominam nossa cultura, mas “nem tudo é permitido”.95

O autor é ainda mais contundente ao colocar

Eis aí a nova cartada pós-moralista: em nossos dias, o que desperta maior reprovação (e até indignação) não é a norma ideal, mas sim uma eventual reativação do conceito de dever absoluto, a tal ponto que o moralismo ficou sendo equiparado, socialmente falando, ao terrorismo e à barbárie. [...] Na era pós-moralista, o que campeia é uma demanda social por justos limites, um senso calculista do dever, algumas leis específicas para defender os direitos de cada um – jamais, o espírito de fundamentalismo moral.96

Desta maneira, o indivíduo que constrói a sua vivência como representante, autor e sujeito ativo e passivo da sociedade pós-moralista é também de caráter neo-individualista ou hiperindividualista, como o autor prefere chamar, ou seja, o seu escopo de posturas, valores e pensamentos compreende em seu todo atribuições de caráter inédito. Ainda que se satisfaça com prazeres hedonistas e de foro íntimo, esse mesmo indivíduo também se mostra indiferente e hostil aos exageros e excessos, suas ações são extravasadas, mas também

94 Ibid, p. 27. 95 Ibid, p. 28. 96 Ibid, p. 27. 77

reguladas, entregues, mas também ponderadas. Não lhe agradam proibições morais categóricas, imposições religiosas subjetivos, enfim, quaisquer que sejam os freios sociais que atuam como impedimentos à manifestação de sua liberdade e identidade própria. No entanto, este mesmo indivíduo também contesta a possibilidade de um caos social e moral generalizado como cenário social futuro, também lhe causa aversão as incertezas ambientais, também lhe preocupa os deslocamentos sociais, ou seja, as mudanças na ordem social freqüentemente contempladas, como a legitimação de práticas antes condenadas e até mesmo impensadas de serem revogadas, enfim, o neo-indivíduo é cauteloso, livre, mas impedido, despreocupado, mas ponderado. O neo-individualismo, para Lipovetsky, é uma ‘desordem organizadora’”97.

Essa emergência de uma nova ética caracterizada pelo pós-dever manifesta-se também como sendo um fenômeno paradoxal. Movimentos a favor de um retorno à moral e de uma valorização da vida são organizados freqüentemente com fins a elevar às consciências majoritárias, aqueles que detêm o poder e a competência para atuarem socialmente de modo significativo, o teor de responsabilidade para com a manutenção da vida humana e também ambiental. É isto que se manifesta em programas televisivos quando grandes shows são organizados com vistas a arrecadarem enormes quantias para o socorro emergente de populações em crise. Personagens célebres são convocados pelas mídias para emprestarem o capital simbólico que desfrutam a fim de atraírem para os grandes eventos as somas de capital almejadas. Porém, ainda que a preocupação com o outro em si seja posta como a razão principal dos grandes ajuntamentos midiáticos de caráter social, as conseqüências ou os frutos a serem colhidos mediante as doações são direcionados mais com vistas à satisfação de necessidades de consolo privado, emocional, de realização existencial daquele que se dispõe a doar, do que para os resultados contemplados nos campos onde os valores serão empregados. Para Lipovetsky, “na sociedade do pós-dever, o mal é transformado em espetáculo atraente, e o ideal é subestimado”.98

Grandes eventos em prol de ações altruístas existem, campanhas de responsabilidade social, de zelo e apreço pelas questões ecológicas motivando o indivíduo a projetar as conseqüências de suas ações para gerações posteriores a fim de garantir a sobrevivência das futuras gerações, entre outros, são presenciados na atualidade, porém, não são preponderantes como funções normativas.

97 Ibid, p. 29. 98 Ibid, p. 27. 78

Lipovetsky é perspicaz em sua análise ao colocar que “o que se define como ‘retorno da moral’ não significa de modo algum uma volta à religião tradicional do dever”.99 Os propósitos, os fins em jogo, atualmente, são outros. A ação altruísta apresenta-se apenas como uma possibilidade de prover àquele que a realiza um melhor bem estar e consolo para a própria consciência. O indivíduo que doa torna-se o fim de sua própria ação. O sentido de obrigatoriedade, de cobrança interior acerca da responsabilidade de contribuir para o bem estar alheio, é algo que pertence ao modelo anterior. Tal ética se encontra deslocada na contemporaneidade. Para Lipovetsky, “são os direitos subjetivos, a qualidade de vida e a realização individual que impulsionam em larga escala nossa cultura, e não mais o imperativo hiperbólico da virtude”.100 As grandes arrecadações organizadas por grandes eventos com a presença de atores célebres são meios pelos quais anseios de caráter privado são alcançados. São os meios disponíveis para que um melhor sentido de bem estar, mediante as doações, sejam alcançados. Na perspectiva do autor, “é a moral que se converte em espetáculo e em sistema de comunicação empresarial. É o caráter militante do dever que se metamorfoseia em permuta recíproca e prazenteira de bons sentimentos”.101 Os modos como serão empregados os valores são postos em segundo plano, não fazem parte do rol de preocupações do indivíduo, de fato, os frutos de sua ação já foram colhidos, pois se encontram impregnados no contexto subjetivo muito mais que objetivo.

3.1. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera sexual

A lógica do pós-dever também se mostra na esfera sexual, reconfigurando os valores que neste campo se articulam. Preceitos relacionados a uma moral de tradição já não são evocados no tempo presente. A relevância bem como a aplicabilidade destes é contestada, de modo que, no pós-dever, impera mais a prática do sexo livre, da liberdade de ceder aos impulsos individuais sem que estes se encontrem subjugados a normas ou preconceitos exteriores, do que o apego a antigos valores familiares e de caráter religioso. A referência moral no espectro sexual é posta pelo próprio indivíduo, conforme os seus anseios, de acordo com as suas vontades. Os discursos de caráter apologético pronunciados principalmente pela religião acerca de um retorno a práticas morais mais comumente aceitas socialmente, têm sido

99 Ibid, p. 26. 100 Ibid, p. 26. 101 Ibid, p. 26. 79

sufocados pela lógica moral do pós-dever. Este é o tempo da felicidade sexual, da não repressão de opções sexuais divergentes do modelo tradicional, é o momento do prazer privado, individual, legitimado pelos novos preceitos estabelecidos por esta nova lógica que se impõe. Perpetuar o sentimento de felicidade subjetiva é uma máxima cuja plena realização se encontra dependente de um estímulo à liberalidade no aspecto sexual. Vale prioritariamente a felicidade do indivíduo do que a observância de regras de cunho religioso. A moral na contemporaneidade se encontra deslocada de um código de referência de valores que estariam a compor e a definir o seu escopo como aconteceu em tempos passados. No presente momento, a moral sexual se constrói individualmente, seus preceitos estão centrados em exigências individuais e não no campo social, e sua lógica de funcionamento não implica em um método definido, mas se mostra plenamente variável, de acordo com a interpretação particular, individual do modo como se concebe a sua definição e conseqüentes implicações. Segundo Lipovetsky

Em poucas décadas, os rígidos princípios da moral sexual ficam em estilhaços; o que era sinal característico da infâmia adquiriu, mais ou menos, direito de cidadania; os escritos dispositivos morais se metamorfosearam em livres opções; o sexo-pecado foi substituído pelo sexo-prazer. Quem ainda considera a castidade e a virgindade deveres de ordem moral? Quem se indigna com a livre sexualidade das mulheres e dos jovens? Quem reprova a masturbação? Até os “desvios” sexuais deixaram de ser alvo de censura.102

Estando desarraigado de prerrogativas antigas vinculadas a prescrições de caráter religioso, o sexo na contemporaneidade tornou-se também um objeto de consumo de massa. Nisto, percebe-se a carência de vínculos afetivos nos relacionamentos entre homens e mulheres e isto em várias esferas da vida social. Tendo assumido o caráter de objeto de massa, também o sexo é vendido, negociado, trocado, descartado na medida em que o seu valor se encontra centrado não tanto na satisfação mútua quanto em sua funcionalidade como provedor de satisfações individuais. O sexo agregado à lógica do consumo se adequou aos ditames dessa lógica. É um objeto para consumir com vistas a exigências subjetivas. A publicidade se apropriou desta lógica erotizando mensagens de produtos dos mais variados tipos, inclusive aqueles cuja natureza não se relaciona com questões de afeto. Mesmo quando o público alvo é ainda infantil, as mensagens publicitárias não deixam de inserir, ainda que em menor proporção, um elemento erótico em suas mensagens. O tempo presente testemunha

102 Ibid, p. 37. Lipovetsky cita como exemplo a Dinamarca, onde a lei reconhece os casais homossexuais. Cita também a França, onde três em cada quatro jovens na faixa dos 15 a 34 anos afirmavam não condenar a homossexualidade. 80

de uma erotização precoce do público infantil. O apelo publicitário de natureza erótica detém um potencial peculiar de estimular os ouvintes à aquisição do produto anunciado, tornando-o uma ferramenta indispensável num tempo cuja moral desconhece fronteiras entre o certo e o errado, entre o tradicional e o liberal e entre o religioso e o laico.

Lipovetsky afirma que “em sua forma radical, o processo pós-moralista designa uma operação de autonomizaçao da sexualidade no que tange à moral”.103 A mídia se apropriou desta prerrogativa legitimando o comportamento sexual de caráter individual, liberto de coerções e julgamentos sociais. É o elemento “prazer” que se mostra como ideal a ser perseguido, de modo que imoral seria a imposição de obstáculos que dificultariam ou impediriam a aquisição deste ideal.104 Estando em busca da felicidade, toda e qualquer ação é justificada, não há mais padrões de referência para a moral, a não ser aquele instituído pelo próprio indivíduo. Conforme coloca Lipovetsky, “não mais uma moral sexual homogênea; o ímpeto dos valores individualistas solapou o consenso que havia na demarcação entre o honroso e a desonra, o normal e o patológico”.105

Outro enfoque em relação à questão do sexo e no modo como este é concebido e pensado na sociedade contemporânea é também apresentado por Lipovetsky, e diz respeito ao comedimento, à reclusão, ao precaver-se em relação ao outro e seu potencial de ameaça à estabilidade e saúde física e mental particulares. Na perspectiva do autor, mesmo essa postura também é testemunha do estabelecimento da lógica do pós-dever no tempo presente. Em suas palavras

A reprovação do sexo – fenômeno que, aqui e acolá, é visto como reflexo de uma nova moral – também deve ser interpretada como uma manifestação da cultura do pós-dever. Com efeito, o que se pretende agora é precisamente não estar na dependência alheia, precaver-se contra o contágio da Aids, desejar cada qual ser objeto de desejo, mas sem um compromisso de natureza íntima. [...] A nova castidade não tem o sentido de algo virtuoso, não é mais um dever impositivo, baseado na idéia de que se respeita em si a própria pessoa humana, mas uma auto-regulamentação inspirada pelo amor e pela religião do ego. É exatamente o ethos de auto-suficiência e autodefesa característico de uma época

103 Ibid, p. 37. 104 Lipovetsky coloca, no entanto, que “...a extinção do dever e o enaltecimento social dos direitos subjetivos à vida livre e consumada não induzem nem um pouco à total liberdade orgiástica”. Na perspectiva do autor, “o desenvolvimento do erotismo se opera sempre dentro de limites estritos: é bem mais alardeado que praticado, bem mais estável que inconstante, bem mais contido que paroxístico”. Ibid, p. 41. 105 Ibid, p. 39. 81

em que o papel exercido pelo outro é bem mais de um risco ou um incômodo a se evitar do que um atrativo a se cobiçar, e a prioridade consiste no gerenciamento de si próprio.106

O precaver-se quanto à pluralidade de opções sexuais, bem como de suas práticas, concorda com um único dever, talvez o ápice moral da contemporaneidade, a saber, a responsabilidade para com a integridade de si mesmo. Tal fato não reflete resquícios da era do dever própria de tempos antigos, mas aponta mais uma vez para a autonomização do indivíduo em relação ao outro. Mais do que corresponder a anseios de terceiros, o indivíduo se preocupa em guardar-se a si mesmo do mal que o outro pode representar. Nessa perspectiva, Lipovetsky aponta para o paradoxismo propício do tempo atual atestando para a emergência de “uma sociedade sem restrições opressivas, mas clean; livre, mas delicada; tolerante, mas ordenada; virtualmente aberta, mas centrada em si”.107 Quanto ao modo como este cenário social estará disposto no futuro, Lipovetsky conclui que “não é para a reabilitação dos adornos de castidade que aponta o futuro; muito mais propriamente, caminhamos rumo ao consumismo pornô diversificado, aos clubes homossexuais de masturbação, à porno- informática, ao prosaico safer sex, ao minimalismo do discurso amoroso”.108

Quais seriam os limites para esta lógica? Ou ainda quais seriam as conseqüências deste pensamento quando posto em prática, não apenas para o indivíduo em si, mas principalmente quando refletido nos seus relacionamentos sociais quando o outro é posto em questão? Essas e outras questões, seguramente, ainda se mostram como sendo um desafio para todo aquele que se dispõe a pensar a questão sexual no espectro social num tempo em que até mesmo o pensar e as implicações disto são relativos.

3.2. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera do consumo

A que se deve essa nova configuração social contemporânea em que a lógica do pós- dever predomina nas relações entre os indivíduos? Quais foram os fatores que contribuíram e ainda contribuem para a sua instituição e estabelecimento no presente cenário social? Na perspectiva de Lipovetsky, os imperativos pertencentes à lógica do consumo foram, sobretudo, determinantes para que o presente cenário social assumisse a forma com a qual

106 Ibid, p. 51-52. 107 Ibid, p. 52. 108 Ibid, p. 52. 82

hoje se apresenta.109 “É preciso reabrir o dossiê do Homo consumans, mais complexo, mais ‘metafísico’ do que uma primeira abordagem sociologista deu a entender”.110 Nessa perspectiva,

Ao estimular permanentemente os critérios de bem-estar individual, a era do consumo como que aposentou, em seu conjunto, as formas coativas e incisivas da obrigação moral, tornando o ritual do dever algo impróprio para uma cultura materialista e hedonista, baseada na auto-exaltação e no estímulo excitante do prazer de cada minuto. “É só querer para ser feliz”: o culto da felicidade de massa disseminou a legitimidade dos prazeres e contribuiu para promover a agitação trepidante da autonomia individual. [...] Tornamo-nos alérgicos às prescrições que exigem sacrifícios, ao espírito normativo das fórmulas morais doutrinárias. Na era pós-moralista, o dever só pode ser expresso em formas amenas: os supermercados, o marketing, o paraíso dos lazeres sepultaram a religião das obrigações.111

Como apontado anteriormente, em A felicidade paradoxal, Lipovetsky se propõe a analisar de forma bastante perspicaz o desenvolvimento da cultura de consumo até que esta foi elevada ao status de cultura hiperconsumista propícia do tempo presente. Rompendo com a lógica de diferenciação social, esta localizada naquilo que Lipovetsky determina como sendo a fase II do consumo,112 o indivíduo contemporâneo consome com vistas mais à satisfação de aspirações privadas do que por motivos concernentes aos enfrentamentos simbólicos em relação ao outro. Assim como a lógica do dever continua a se articular nas relações sociais, porém, sem ter a preponderância pertinente de tempos passados, também o signo diferencial, os enfrentamentos de caráter simbólico, a luta pela exibição de ícones distintivos no meio social continua ainda a se manifestar através da veiculação de diversas ferramentas da publicidade, no entanto, também esta lógica já há muito fora rebaixada de seu status de detentora das motivações fundamentais inseridas em toda prática de consumo. A fase III, característica da sociedade contemporânea, desfruta de um consumo de caráter experiencial, emocional, sensitivo e hedonista que desconhece os imperativos do agir responsável para com o próximo. Aos ideais de possibilidade de prorrogação dos sentimentos

109 Lipovetsky apresenta de forma muito sucinta a contribuição de fatores intelectuais, filosóficos e socioculturais para o estabelecimento da lógica do pós-dever. Entre outras coisas, afirma que “entre as décadas de 1960-1970, a difusão de idéias marxistas, freudianas, nitzscheanas e estruturalistas (tanto nos círculos intelectualizados e estudantis como em toda a vastidão abrangida pela mídia) deu especial relevo à negligência pela religião do dever”. Ibid, p.29-30. 110 Idem, A felicidade paradoxal, p. 61. 111 Idem, A sociedade pós-moralista, p. 29. 112 A fase II, na perspectiva do autor, compreenderia as três décadas do pós-guerra, de 1950 a 1980. Idem, A felicidade paradoxal, p. 26-59. 83

de felicidade proporcionados pela posse das mercadorias, o indivíduo desconhece outra lógica além do consumo com vistas à contemplação dos direitos subjetivos.

Ainda que o consumidor se mostre, na perspectiva de Lipovetsky, liberto da necessidade de exibir uma imagem de si em seu meio social, consumindo em busca de símbolos que ilustrem, na maioria das vezes, um falso eu, o seu apego pelas marcas e imagens, parece se intensificar. Algo como que um grande paradoxo parece se apresentar neste tempo. Segundo o autor, “na verdade, à medida que o consumidor se mostra menos obcecado pela imagem que oferece ao outro, suas decisões de compra são mais dependentes da dimensão imaginária das marcas”.113 Tal fato pode ser compreendido à luz da evolução da publicidade e dos objetivos a que ela se destinava anteriormente e ainda hoje se destina

De fato, a publicidade passou de uma comunicação construída em torno do produto e de seus benefícios funcionais a campanhas que difundem valores e uma visão que enfatiza o espetacular, a emoção, o sentido não literal, de todo modo significantes que ultrapassam a realidade objetiva dos produtos.114

Não é apenas o produto em si que é vendido, aliás, o potencial de um produto de vender-se por si mesmo apenas pelos objetivos a que se destina é muito pouco. Agrega-se a este uma série de valores, conceitos, estilos de vida e outros que passarão a definir quem são os indivíduos que dele compram.115 Assim, o consumidor acaba por comprar porque encontra em determinado objeto a personificação daquilo que ele, como pessoa, sempre almejou ser, o atleta de saúde impecável, a modelo de corpo perfeito, o artista com vestes majestosas, todas estas qualidades representam para muitos os ideais de pessoa perfeita.

O paradoxo contemporâneo está posto

Com efeito, em nossos círculos sociais, que alcance tem enaltecer a prática da virtude, à vista do irrecusável deleite simbolizado pelas lantejoulas do conforto e do prazer palpitante? Como inculcar o sentido de reprimenda moral a uma sociedade obcecada pelos conceitos de saúde perfeita e de eterna juventude, que propaga a largos haustos conselhos dietéticos e estéticos, esportivos e turísticos, eróticos e psicológicos?116

O indivíduo está ainda mais inclinado a contemplar-se a si mesmo do que aos outros. A garantia de seu bem estar, de sua felicidade ainda sobrepõe a exigência do mínimo bem

113 Ibid, p. 46. 114 Ibid, p. 46. 115 Lipovetsky coloca que “nos mercados de grande consumo, em que os produtos são fracamente diferenciados, é o ‘parecer’, a imagem criativa da marca que faz a diferença, seduz e faz vender. Assim, certas marcas conseguiram ganhar notoriedade mundial ‘falando’ de tudo, exceto de seu produto (Benetton)”. Ibid, p. 46-47. 116 Idem, A sociedade pós-moralista, p. 31. 84

estar alheio. Segundo o autor, “nossa época é pós-moralista, porque é predominantemente baseada nas coordenadas da felicidade e da auto-realização, do fascínio e do relacional”.117

Lipovetsky aponta também para a perda dos grandes referenciais na presente sociedade. Em tempos de hiperconsumo, as grandes instituições sociais, como a religião e a política, perderam o potencial de referência social que lhes competia. Mediante a emergência de uma avalanche de outros referenciais atribuindo cada um para si a mesma competência funcional antes localizada em instituições de tradição, as marcas também reclamam um espaço e o potencial de prover identidade e referência de valores e princípios

...a compra e um produto de marca não é apenas uma manifestação de hedonismo individualista, visa também responder às novas incertezas provocadas pela multiplicação dos referenciais, bem como às novas expectativas de segurança estética ou sanitária.118

Verifica-se, portanto, que o ato de compra e o apego à marca realizam-se mais em virtude de necessidades de foro íntimo, privado, do que com vistas a satisfazer exigências determinadas pelo meio social externo.

3.3. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera da saúde

O aspecto saúde também é trabalhado pelo autor. “O Homo consumericus está cada vez mais voltado para o Homo sanitas: consultas, medicamentos, análises, tratamentos, todos esses consumos dão lugar a um processo de aceleração que não parece ter fim”.119 Há algo como que um consumo com vistas a melhoras de saúde. Lipovetsky coloca que não se trata apenas de medicamentos que são consumidos, como por necessidade ou conveniência, mas sim de conceitos que convencem o indivíduo da necessidade de se praticar esportes com mais freqüência, de atender a academias regularmente, de buscar um aperfeiçoamento constante do corpo através de disciplinas rigorosas regidas por exercícios físicos diários e abstenção de alimentos. Todas essas práticas que são sobremodo enfatizadas na contemporaneidade testificam do paradigma do consumo para o bem estar próprio. Para Lipovetsky, “a fase III anuncia-se como o tempo da medicalização da vida e do consumo”.120 Ele explica melhor dizendo

117 Ibid, p. 31. 118 Idem, A felicidade paradoxal, p. 49. 119 Ibid, p. 53. 120 Ibid, p. 54. 85

Espiral dos comportamentos preventivos, inflação das demandas de cuidados, avanço das despesas de saúde: fenômenos que mostram, sem nenhuma ambigüidade, a que ponto o paradigma da distinção tornou-se pouco operante, incapaz que é de explicar um consumo excrescente centrado apenas no indivíduo, em sua saúde e sua conservação. Nada de lutas simbólicas e de vantagens de distinção: apenas a vigilância higienista de si, os medos hipocondríacos, o combate médico contra a doença e os fatores de risco. O hiperconsumo médico constitui a ponta extrema da tendência à dessimbolização em vigor na fase III: aqui não resta mais que a busca da otimização da saúde pela autovigilância e pelas práticas tecnocientíficas.121

Há como que uma “religião da saúde”, aponta Lipovetsky, na qual homens e mulheres devotam tempo, esforços e investimento para atender às suas prerrogativas de melhoras constantes do corpo. “A sedução tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus, e a publicidade é seu profeta”.122 Nesta religião, o texto “sagrado” são as bulas, as receitas médicas, os anúncios de fórmulas para o corpo perfeito e quaisquer outros que reclamem para si a competência para proporcionar aos seus fiéis os recursos necessários para a obtenção do corpo perfeito para si, primeiramente, mais do que para os outros. Os ritos desta religião são as práticas esportivas diárias, incluindo a simples corrida pela manhã, as idas e vindas às academias, além de visitas regulares a nutricionistas e outros profissionais que atuarão como sacerdotes, instruindo acerca da disciplina de práticas diárias a serem observadas pelos fiéis. “Manter a forma, lutar contra as rugas faciais, zelar por uma alimentação sadia, [...]: a felicidade individualista é indissociável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de manutenção, de gerenciamento otimizado de si”.123 Há ainda as restrições alimentares, os sacrifícios exigidos para que o corpo se encontre adequado aos padrões instituídos pelo culto corporativista. A fim de se obter aquilo que se almeja, é preciso privação, merecimento e esforço pessoal. Sendo a religião da saúde uma “religião desinstitucionalizada”, esta também se apresenta como estando alheia a um local específico. Transpondo limites espaciais, a religião da saúde pode ser praticada no interior dos lares, apontando para a sua capacidade de articulação e para a inexistência de uma prática comunitária. Na hipermodernidade, à luz das reflexões de Lipovetsky, o indivíduo continua inserido em diversas práticas de religião, ainda que de caráter ambíguo.

121 Ibid, p. 54. 122 Idem, A sociedade pós-moralista, p.31. 123 Ibid, p. 33-34. 86

3.4. Os reflexos da ética do pós-dever na relação entre o indivíduo e seus deveres para consigo mesmo

No princípio da modernidade imperava como um de seus valores absolutos o ideal de responsabilidade para consigo mesmo, de dever pelo zelo para com a integridade individual em sua totalidade. Havia um ideal de dignidade individual que se mostrava concebido a partir da autonomia da razão, por isso, alheio a vínculos de caráter religioso. Segundo Lipovetsky, “a autonomia individual da ética fez da pessoa humana o valor primordial, cabendo a cada indivíduo a obrigação incondicional de respeitar em si próprio a natureza humana, não agir contra os fins de sua própria natureza e não se despojar de sua dignidade inata”.124 Posto o indivíduo como valor primordial, a modernidade permitiu ao homem a possibilidade de pensamento e de ações emancipadas do julgamento e da valoração religiosa. No entanto, Lipovetsky constata que a contemporaneidade configura-se de modo estranho a esta lógica dos deveres para consigo mesmo

A correlação determinante de cada um em relação a seu próprio ser deixou de estar sujeita a obrigações incondicionais, passando a ser regida unicamente pelo signo dos direitos subjetivos, das volições, do empenho de entretenimento e de livre realização do tipo humano “narcisista”. O sistema que dava o embasamento de legitimidade para os deveres de cada um em relação a si mesmo está fundamentalmente desacreditado; já não sabemos ao certo o que se deve entender por moral individual.125

Lipovetsky aponta acima para mais uma faceta deste novo paradigma contemporâneo do pós-dever. Evidentemente, as campanhas de preservação do corpo, de bem estar, de práticas diárias esportivas, incluindo as corridas às academias, entre outros, nunca encontraram tanto eco para as suas vozes do que no tempo atual, porém, todas estas motivações não detêm o caráter normativo em seus discursos, de fato, nem poderiam tê-lo. O indivíduo contemporâneo tem diante de si um leque maior de escolhas no que diz respeito às práticas e posturas que lhe permitirão uma manutenção mais eficaz de sua vida. São apenas opções que se apresentam diante dele, todas estas sujeitas às suas determinações, às suas vontades, enfim, como constatado pelo autor, cativas de seus direitos subjetivos. O teor categórico de obrigações, de deveres para consigo mesmo como se deu no nascimento da modernidade foi suplantado por um conjunto plural de opções médicas eficazes para a

124 Ibid, p. 59-60. 125 Ibid, p. 60-61. 87

perpetuação da vida. O indivíduo é gerente de si mesmo e de si mesmo trata como lhe convém.

Argumentando acerca da constatação acima, Lipovetsky cita alguns exemplos a fim de mostrar com clareza como as implicações desta nova postura do indivíduo para consigo mesmo podem ser presenciadas no dia a dia social. Citando a questão do suicídio, o modelo antigo o interpretava como sendo uma falta moral mais em relação a si mesmo do que em relação a Deus. Mesmo estando liberto da condenação religiosa, o suicídio era condenado por uma sociedade que supervalorizava o ser e seu potencial de vida. Na era contemporânea, no entanto, o suicídio, longe de ser admissível, é interpretado como um ato de profunda desesperança daquele que o comete em relação à vida. São os seus entes mais próximos que são questionados e, por vezes, acusados quando um ato deste é cometido. Portanto, há um deslocamento moral, a falta, atesta Lipovetsky, é daqueles que não foram sensíveis à possibilidade de suicídio que se apresentava ao indivíduo que o cometeu mais do que do próprio indivíduo.126

Outra questão levantada diz respeito à eutanásia. Na sociedade pós-moralista, cada indivíduo tem o direito de dispor de sua própria vida conforme lhe apraz. Mais do que uma falta moral para consigo mesmo quando do ato de provocar a própria morte, está o direito de liberdade para com a administração do ser. A constatação que Lipovetsky faz acerca do modo como o indivíduo deseja lidar hoje com a questão da morte voluntária é sobremodo pertinente, conforme se lê abaixo

Eis a expressão última do individualismo, enquanto pleiteia o direito de morrer por solicitação própria, isto é, o direito ao “suicídio com assistência médica”. A exemplo do que ocorre com família, sexo, procriação e religião, a relação do homem com a morte tende a se reciclar na lógica do direito subjetivo e das opções livremente aceitas.127

Além das questões relacionadas à morte, o enfraquecimento da lógica das obrigações para consigo é também percebido quando o assunto é alteração corporal, mudança de sexo, entre outros. Tais iniciativas, contrapondo paradigmas passados, são legitimadas socialmente, senão absolutamente, pelo menos por uma parcela considerável da sociedade. A justificativa se dá por conta do testemunho que se têm acerca do enaltecimento dos direitos individuais, ou

126 Segundo Lipovetsky, alguns fatores foram fundamentais para “privar de um sentido imoral intrínseco a morte voluntária”, entre eles o enfraquecimento da religião como entidade provedora de significação social, “a crescente legitimação dos valores da liberdade pessoal e a generalização da chamada cultura psicológica”. Ibid, p.64. 127 Ibid, p. 66. Lipovetsky apresenta em seu texto dados de pesquisas realizadas em diversos países que testificam que a maioria das pessoas, hoje, concorda com a legalização da prática da eutanásia. 88

seja, a cada indivíduo é permitido o uso de seu corpo como bem lhe convém, não sendo por isso, vítima de condenação social.

A questão da higiene se faz também pertinente na argumentação de Lipovetsky. Para este, os cuidados para com o corpo estão também vinculados às motivações de bem estar e de satisfação própria. Com estas prerrogativas em mente, o indivíduo emprega dinheiro, dedica tempo, esforço físico e psíquico a fim de se adequar às fluídas normas estabelecidas pelo corporativismo contemporâneo. Não se trata tanto de ostentar socialmente a limpeza do lar ou de si mesmo quanto de zelar pela própria aparência tendo em vista a contemplação de expectativas privadas, de sentimentos de melhor bem-estar de si e de perpetuação da vida mediante a observação da saúde. Mesmo a questão do conforto é ressaltada, e nisto, Lipovetsky considera que “a sociedade de hiperconsumo caminha junto com a personalização e a emocionalização do conforto”.128 É o conforto, a higiene, a manutenção de um corpo saudável mais para si do que com vistas à ostentação de uma posição social privilegiada em relação a outros.

A mesma lógica se encontra no mundo dos esportes, sendo sua prática centrada na plena satisfação do esportista, na exaltação das suas potencialidades com vistas à manifestação de um espetáculo corporal e individual, por fim, único. Não se vê em quaisquer que sejam as práticas esportivas um senso de obrigatoriedade, de esforço realizado no intuito de se atender às exigências sociais, mas sim um mundo de infinitas possibilidades de realização pessoal, de superação de limites e potencialidades humanas com vistas ao supra- humano. É neste universo pós-moderno e pós-moralista que Lipovetsky localiza e compreende o desenvolvimento do mundo dos esportes, denominando sua manifestação de egobuilding, ou seja, o esporte como possibilidade de autoconstrução do próprio ego. Grandes eventos deste universo testemunham desta realidade, tais como os jogos olímpicos, quando esportistas de diversas nacionalidades competem em jogos de caráter diverso, mas também demonstram os seus valores, a exaltação de seus corpos físicos, o rompimento de limites de suas potencialidades, entre outros. São nos eventos esportivos que as marcas, o consumo desenfreado, a publicidade, a lógica do prazer sexual e emocional mediante a prática dos esportes, além de outras características peculiares do tempo presente se manifestam e se lançam ao mundo alcançando universos de cultura distintos, sendo por estes assimilados e, a partir disto, também vivenciados no dia a dia social.

128 Idem, A felicidade paradoxal, p. 220. 89

4. Proposições éticas para os tempos do hiper

Após observar o movimento ético na hipermodernidade, atestando para as suas divergências e pontos em comum, bem como a maneira como se dá as suas aplicações em diversas áreas do saber humano, Lipovetsky percebe a necessidade de se voltar às matrizes clássicas da ética a fim de compreender com mais clareza o tempo presente. Em virtude disto, o autor se propôs a demonstrar como se dava o dado ético em tempos em que a religião era a instituição dominante, reguladora e mantenedora do comportamento humano, julgando ações e pensamentos. Num segundo momento, quando da ruptura com este modelo subordinado aos imperativos da religião, a questão ética é repensada, surgindo assim o aspecto do “dever” como elemento chave para a compreensão do movimento ético na modernidade. O autor elucida seus argumentos mostrando como seu deu o surgimento da modernidade, bem como quais eram os elementos característicos deste tempo, os quais testificavam diretamente de uma ruptura com o modo como se organizava a sociedade anteriormente. A aplicação do elemento “dever” em algumas esferas sociais nas quais se circunscrevia a vida ética do indivíduo moderno, também é apresentada pelo autor, possibilitando mais clareza na compreensão do movimento lógico de seu texto.

Tendo estabelecido as bases necessárias concernentes à compreensão do desenvolvimento da questão ética, o autor apresenta a lógica do pós-dever como sendo o elemento fundante de um terceiro modelo de ética a se impor historicamente e com a hipermodernidade. É esta lógica do pós-dever que define a questão ética atual, fazendo emergir, mediante a imposição de suas prerrogativas uma sociedade marcada pelo pós- moralismo.

Lipovetsky dedica a maior parte de seu texto para tratar detalhadamente dos movimentos da lógica do pós-dever, a saber, seus imperativos, seus fundamentos e também o seu modo de articulação na vida dos indivíduos. É em face disto que o autor cita algumas esferas sociais onde a manifestação do pós-dever se dá com maior veemência, como na esfera sexual, do consumo e da saúde que aqui foram citadas, entre outras. Mas quais seriam as principais conclusões ou considerações desta análise proposta pelo autor? O que Lipovetsky propõe a respeito de ética? Qual é o quadro futuro da questão ética que é possível visualizar hoje a partir das constatações do dado ético atual? Será possível escapar às amarras invisíveis do pós-moralismo, caso isto seja necessário? Como se exilar do hiper? O que escapa às suas 90

apreensões? O que virá após o “pós-moralismo”? São questões que desafiam a uma continuidade na reflexão e estudo do pensamento de Lipovetsky.

Ao apresentar um quadro do modo como a questão ética está sendo tratada e vivida nas sociedades atuais, o autor traça em seu texto algumas proposições que contribuirão para a identificação e estabelecimento de uma possível sistematização do modo como se articula a questão ética na hipermodernidade.

As próximas considerações são postas em busca de possíveis direções que o autor possa ter dado a respeito do futuro da questão ética, considerações estas que são encontradas não somente no texto em questão, A sociedade pós-moralista, cujas pontuações nesse sentido são colocadas de maneira muito sucinta, mas também em outros textos que foram escritos até mesmo em tempos mais atuais.

4.1. Rumo a uma nova moral?

Para Lipovetsky, é evidente que o tempo atual testemunha de manifestações constantes em prol de um socorro mais efetivo a pessoas desprivilegiadas economicamente.129 Há, inclusive, a emergência de grandes campanhas de caráter altruísta promulgadas por celebridades de universos simbólicos distintos. São pessoas que, usufruindo de um capital simbólico em potencial para influenciar pessoas a seguirem suas campanhas e modos de vida, promovem shows em grande escala a fim de atenderem a demandas cada vez maiores de pessoas que vivem marginalizadas pela dinâmica social de vida que a todos está imposta, indivíduos que se encontram mal localizados e excluídos da lógica da comunicação global, das expectativas do consumo, do status, do sexo livre e do bem estar propícios deste tempo. Basta haver um revés ecológico que multidões se unem a artistas em meio ao trânsito midiático a fim de socorrerem todo aquele que sofre. Lipovetsky usa o termo “empresários da moral” para se referir a esta apropriação da necessidade de ações altruístas feita pelos ícones sociais e segundo os interesses da mídia. Nas palavras do autor

129 Lipovetsky cita, entre outros exemplos, o aumento significativo no número de ONGS cujo universo de atuação não se limita apenas ao contexto no qual foram criadas, mas o ultrapassa alcançando foros internacionais. Segundo ele, o número aproximado de ONGS era de 200 em 1900, 2 mil em 1960, 4 mil em 1980 e quase 40 mil neste início de século XXI. Paralelamente ao aumento no número de ONGS, deu-se também um aumento relevante no orçamento com o qual trabalham, alcançando quase 10 bilhões de dólares no início do ano 2000. Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 137. 91

A era moralista era disjuntiva; a pós-moralista é conjuntiva: harmoniza o strass e a emoção, os decibéis e o ideal, o prazer e a boa intenção. Não se trata mais de inspirar o senso austero e impositivo do dever, mas de sensibilizar, entreter, mobilizar concretamente o público por via do rock e dos pop-stars. Nada mais deve atrapalhar a felicidade consumista do cidadão-espectador, e o próprio infortúnio se tornou ocasião de entretenimento.130

É a presença de ícones sociais, pessoas que alcançaram um status de representação e influência social significativos, que eleva as campanhas de solidariedade à categoria de espetáculos solidários. A ação midiática explorando a imagem destes ícones, substanciando com valores simbólicos as suas campanhas sociais, legitima o ideal pretendido de retorno à prática moral tão comumente proclamado no tempo presente.

Tendo em vista este fato citado acima, parece ficar evidente um novo apego à questão da moral solidária e altruísta tão presente em tempos passados. Nunca antes tantos movimentos e shows globais foram promovidos tendo em vista angariar grandes somas de dinheiro para o emprego em projetos e entidades sociais. À luz desta constatação, parece ser impossível discordar da idéia de um retorno da moral do altruísmo e do dever para com o próximo. Porém, Lipovetsky é bastante perspicaz em seu estudo ao levantar a questão a respeito da natureza desta moral, ou seja, de que moral se trata finalmente. Sendo direto em sua argumentação, o autor identifica um novo paradigma para a ação moral nos tempos hipermodernos, estabelecendo uma proposição que estará a nortear todo o seu escrito

Mais ou menos por toda a parte, a idéia de restauração da moral se desenvolve, sem que, entretanto, se procure definir acertadamente qual seria a essência desse “retorno”. Declaremos desde logo e sem meias palavras: embora a ética tenha readquirido foros de legitimidade, não houve uma reinstalação da antiga e sólida moral de nossos antepassados no cerne da vida social, mas apenas a emergência de uma regulamentação ética de um gênero inusitado. [...] Aquilo que muito impropriamente se denomina de “retorno da moral” serve apenas para acelerar a saída da época moralista das democracias, já que se trata do estabelecimento de uma “moral sem obrigações nem sanções”, segundos as aspirações da massa, que se mostra inclinada por um individualismo-hedonista democrático.131

Lipovetsky, portanto, considera o emergir de uma nova empreitada moral, porém, uma moral de natureza distinta daquela que se conhece tradicionalmente, uma moral orientada sob

130 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 111. 131 Ibid, p. 105. 92

a lógica do pós-dever. Segundo o autor, “no mesmo momento em que a escola do dever declina, testemunhamos por toda parte uma redescoberta da preocupação ética, um reavivar da problemática e da ‘terapia’ moralizadora”.132 O tempo presente vê surgir uma moral orientada mais para a satisfação daquele que a pratica do que para o bem estar do sujeito alvo da ação. Para Lipovetsky “não é, portanto, o princípio do auxílio caritativo que perdeu sua justificação, e sim o princípio de viver em benefício de outrem”.133 O que está posto em questão é a sensação de bem estar desfrutada por aquele que se dispõe a um agir benéfico, ou seja, a moral como uma das possíveis respostas às aspirações individuais por significação existencial ou sentido para a vida. A moral hipermoderna, neste sentido, é também paradoxal

Nossa moralidade é pós-moralista: exprime mais uma introversão individualista do que um ideal que se dirige ao outro; mais um direito subjetivo do que um dever categórico. Fixemos mais uma vez o paradoxo na memória: no momento em que impera o culto do ego é que os valores de tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema. A marcha da moral tem razões que a razão moral desconhece.134

Sob as luzes deste novo paradigma ético a se impor sutilmente, se estabelecendo nas consciências e se manifestando em várias esferas sociais, se dissipam toda e qualquer obrigação ou senso de responsabilidade para com o outro, pelo contrário, há de postular a obrigação e responsabilidade para consigo mesmo em primeiro lugar.135 Na perspectiva do autor, “conquistamos o direito individualista de viver, dispensando o aborrecimento dos sermões encomendados, vivendo a plenos pulmões o espetáculo das variedades e dos deserdados da sorte, do riso e das lágrimas, pois até a moral passa a ser uma festa”.136 Ele acrescenta ainda que “a consciência se via impelida pelo ônus da rigidez moral; hoje, o novo humanitarismo caritativo dispensa isso, exime de responsabilidade, e sempre num ambiente de recreação”.137

A moralidade em si, a compaixão por aquele que sofre não atraí tanto quanto o espetáculo em questão. Cogitar a respeito de um retorno à moral tradicional se faz

132 Ibid, p. 185. 133 Ibid, p. 109. 134 Ibid, p. 127. 135 Lipovetsky cita o reflexo disto na educação e transmissão de valores morais dos pais aos filhos. O autor cita uma pesquisa de 1989, quando “adolescentes entre 13 e 17 anos foram instados a responder quais as duas coisas que verdadeiramente haviam aprendido de seus pais. Como respostas, apontaram em primeiro lugar a necessidade de um grande empenho para uma boa colocação profissional (75%) e, em segundo, estarem aptos para se conduzirem sozinhos na vida (45%). Em cada quatro, só um fazia menção à obrigatoriedade de seguir princípios morais”. Ibid, p. 106. 136 Ibid. p. 111. 137 Ibid, p. 112. 93

imprudente, já que o tempo presente testemunha de uma possibilidade de exaltação das virtudes que faz uso do sofrimento alheio para atender às exigências de suas demandas. Por conta disso, não há para o hiperindivíduo o senso de necessidade de ultrapassar as fronteiras do comodismo e conhecer as reais faltas no campo das necessidades pessoais alheias, de fato, nem poderia haver, pois a hipermodernidade dispõe os meios para que a ajuda chegue eficazmente pelos caprichos da tecnologia. São as campanhas promovidas pelas mídias, doações a órgãos e instituições de apoio social distantes mediante o uso do telefone, da internet ou de transferências bancárias. A possibilidade de engajamento é praticamente impossível, pois o elemento da distância entre beneficiadores e beneficiados não pode ser rompido. Segundo o autor, “o altruísmo do pós-dever é acalentado pela distância. Assim, ficamos mais sensibilizados com a miséria que a tela magnética faz chegar até nós do que com aquilo que somos capazes de tocar com nossos próprios sentidos”.138 Há a impossibilidade de criação de vínculos morais no tempo presente. Os grandes eventos caritativos apenas perpetuam o elemento de distância entre as partes envolvidas. O objetivo, segundo Lipovetsky, é a comoção, instituindo-se assim uma “moral do sentimento”, a qual se manifesta estando desprendida de regras morais rígidas, mas caracterizada por sensações e aspirações individualistas.

No presente momento testemunha-se de um acolhimento de desejos próprios, privados, mais do que uma reflexão em relação às vontades alheias. Segundo o autor, “independentemente da importância que se atribua ao tema do renascer da ética, aos olhos da opinião pública o que caracteriza o momento atual é, propriamente e acima de tudo, o esgotamento dos ideais e o declínio da moral”.139

À luz da consideração acima, mesmo o princípio de responsabilidade está submisso às conveniências de ordem privada na lógica da sociedade pós-moralista, e nas palavras do autor “não é, em nenhuma hipótese, a cultura heróica da abnegação pessoal que reassume o papel central; a responsabilidade pós-moralista é o dever desonerado da noção de sacrifício”.140 Sendo assim, pode-se ponderar que os limites para o agir responsável em relação ao próximo são aqueles que não ultrapassam o próprio bem estar e conforto pessoal. Testemunha-se da intenção de um agir responsável na sociedade pós-moralista, porém, um agir que não afete ou implique em perda na vida daquele ou por parte daquele que se dispõe a tais ações. Deste

138 Ibid, p. 115. 139 Ibid, p. 105. 140 Ibid, p. 186. 94

modo, o homem hipermoderno pode circular fazendo jus a uma narrativa de vida cujo universo idealizado de existência não apresenta espaços para a presença de terceiros.

Toda ajuda altruísta se encontra desprovida de comprometimento no sentido de um apego constante e incondicional ao problema dado. Não há o desejo de apegar-se ao semelhante ou de um envolvimento mais direto, pois isto impediria a contemplação das aspirações individualistas. Em face disto, Lipovetsky vê surgir um “altruísmo indolor de massa”

O individualismo pós-moralista diluiu o ideal de renúncia absoluta e sistemática; só concebe a dedicação restrita, principalmente em situações de urgência, em circunstâncias excepcionais da vida e da morte. [...] O momento do imperativo categórico cedeu lugar a uma ética minimalista e intermitente, a uma forma de solidariedade compatível com o primado do ego.141

As crescentes iniciativas de ações voluntárias também fazem parte deste escopo de características daquilo que se entende como “altruísmo indolor de massa”. Para Lipovetsky, “vê-se que a glorificação do ego não conduz à extinção do desejo de prestar serviços. Nossos meios sociais não exaltam o altruísmo a título de ideal obrigatório, mas o voluntariado assistencial goza da simpatia da opinião pública”.142 Ainda que ideais humanitários sublimes sejam evocados como justificativas e motivações principais para as ações de voluntariado, “além desses referenciais, os elementos que constituem as motivações básicas do voluntariado consistem sobretudo no prazer de reencontrar alguém, no anseio de valorização social, no preenchimento do tempo extra”.143 O indivíduo se envolve e se engaja em trabalhos sociais com vistas à promoção do bem estar alheio, no entanto, ainda se encontram arraigadas em suas prerrogativas interiores, questões correspondentes às motivações privadas. “O novo individualismo, portanto, não erradica a compaixão e o desejo de ajudar nossos semelhantes, mas faz como que um entrosamento entre essas aspirações e a busca de si mesmo”.144 É o trabalho voluntário que detêm o potencial de atribuir àquele que nele se envolve reconhecimento e valor sociais, sentido existencial e o sentimento de que o tempo gasto em atividades desta natureza tem sido relevante e significativo. O autor firma

A natureza da escolha do auxílio mútuo constitui uma das facetas do individualismo pós- moralista. Representa muito mais a procura do bom convívio e a satisfação pessoal, em

141 Ibid, p. 109-110. 142 Ibid, p. 118. 143 Ibid, p. 120-121. 144 Ibid, p. 122. 95

todas as etapas da vida, do que uma pretensa volta dos deveres tradicionais; muito mais um estilo de vida e uma opção personalizada do que a tendência a uma ordem coercitiva. A ascensão das aspirações neo-individualistas não equivale à morte do voluntariado; ao contrário, é um instrumento que acentua a caminhada nesse mesmo rumo.145

É à luz desta constatação que se pode discutir a respeito do que implica o valor da generosidade no tempo presente. Grandes ações sociais promovidas por grandes personalidades são grandes manifestações de generosidade ou se tratam de campanhas de autopromoção simbólica gerada por parte daquele que doa, já que as sobras de grandes quantias são as que estão em jogo? Generosidade implica em doar sobras ou compartilhar coisas comuns e necessárias também para aquele que doa? Quais são os limites da generosidade? Seriam as sobras? Ou seria plena utopia esperar algo diferente? O modo como os valores na sociedade pós-moralista estão sendo concebidos e, conseqüentemente, vividos, acabam por manifestar a necessidade de uma reinterpretação acerca de seus significados, a fim de que os fins a que são propostos não sejam distorcidos.

É esta moral, de natureza egocêntrica, que estará a orientar as ações solidárias neste tempo presente, servindo também de princípio ético para o estabelecimento de futuros engajamentos sociais de grupos dos mais variados. Não se cogita de que a sociedade esteja em rumo a um mundo sem alma146, pois não há fatos que sustentam tal hipótese. O que mudou e tem mudado, no entanto, são os propósitos em torno de cada gesto moral, em ambientes bem localizados e definidos, e também em universos mais distintos, onde circulam as grandes massas e desfilam os grandes ícones sociais.

4.2. Rumo a um mundo sem valores?

Ainda que seja muito difundida a idéia de que a presente sociedade se manifeste estando ausente de valores morais mínimos, valores estes que possam agregar indivíduos sob uma ordem moral comum, sob um conjunto de regras simplista, porém, necessário para que as relações sociais aconteçam de forma a promover uma aceitação de limites para o agir individual sempre que este afete o próximo, Lipovetsky parece não compactuar com tal proposição. Segundo o autor,

145 Ibid, p. 121. 146 Lipovetsky levanta esta questão e a contradiz, dizendo que “a realidade é mais complexa”. Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 132-133. 96

É preciso abandonar a idéia fictícia de um mundo em que todos os critérios foram por água abaixo, em que os homens não se deixariam mais guiar por nenhuma crença ou dispositivo da natureza moral. A socialização do pós-dever exaure a obrigação de se consagrar aos demais, mas cristaliza aquilo que Rousseau chamava de “compaixão”, sentimento entendido como repugnância em ver sofrer e fazer sofrer seu semelhante. [...] Sociedade pós-moralista não significa o desaparecimento de todas as inibições, mas uma busca da moralização de cada indivíduo pela repulsa “sentimental”, vivenciada diante das brutalidades, crueldades e ações desumanas.147

Há a manifestação de valores que atuam de modo a orientar, ainda que de forma marginal, as ações dos indivíduos em seu meio social. Há aquilo que pode ser denominado de valores éticos de base, necessários para que o viver em conjunto seja possível. São valores que alcançam um consenso ético mínimo entre pessoas de um mesmo grupo, e que não agridem a integridade física, emocional e psíquica de seus indivíduos.

Um dos valores que tem sido legitimado diz respeito à tolerância, o respeito pelo outro, pela sua maneira de se comportar e de responder ao mundo e suas interpelações.148 Contrariamente ao que se acreditava na era do dever correspondente aos primórdios da modernidade, a religião não desapareceu em virtude do avanço tecnológico e do elevado status que a ciência alcançou. Pelo contrário, o que se vê é um desabrochar de novas espiritualidades, de novas formas de religião, enfim, testemunha-se na atualidade de um retorno a uma fase de reencantamento do mundo, porém, de natureza diferente, pós-moralista

Deixando de se guiar pelas autoridades oficiais, as concepções religiosas se desestruturam; tornam-se mais fluídas, ficam pautadas pelo self-service e pela diversidade dos elos de ligação. Simultaneamente, as crenças passam a gravitar mais propriamente em torno de uma busca pessoal subjetiva, incorporando, cá e lá, promiscuamente, ingredientes de tradição do Oriente e do Ocidente: espiritualidade e esoterismo, visão de absoluto e bem- estar holístico, meditação e relaxamento, mistérios e terapias corporais.149

A sociedade hipermoderna testemunha também de focos de manifestações religiosas de caráter fundamentalista, porém, ainda que em alguns casos a expressão alcançada seja relevante, tais movimentos pouco abarcam as massas. Esta incapacidade de grupos

147 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 125. 148 Lipovetsky cita como exemplo que “nos países europeus, a tolerância aparece em segundo lugar no espectro das virtudes que os pais desejam incutir aos filhos.” Segue dizendo que “um em cada dois indivíduos a inclui entre as cinco virtudes tidas como primordiais”. Ibid, p. 126. 149 Ibid, p. 131-132. 97

fundamentalistas em contagiar o todo em torno de um ideal comum também é reflexo da dominação da lógica pós-moralista se fazendo presente, inclusive, na esfera da religião

Não laboremos em erro; esse neofundamentalismo de modo algum nos reconduz ao antigo universo da tradição, pois também corresponde a uma faceta da liberdade individual, isto é, a uma procura da própria identidade, a uma livre opção que se caracteriza por casar a autoridade dos dogmas e a submissão à comunidade.150

Lipovetsky considera, portanto, que “por todos os lados, os extremistas conseguem semear a perturbação no seio do público, mas fracassam na tentativa de subverter o ethos do individualismo tranqüilo, amplamente tolerado pela grande maioria”.151

É neste universo religioso pluralista que o valor da tolerância se faz evocar prioritariamente, sendo admitido como valor de massa, aplicável ao âmbito público tanto quanto privado.

A tolerância é um valor necessário não apenas no campo da religião, mas também em outras esferas sociais, como a esfera sexual, política e educacional, entre outras. Lipovetsky constata, no entanto, que “enquanto virtude ética, a tolerância é vista mais como uma ampla ruptura em relação aos sistemas de forte densidade conceitual do que como idéia de obrigação a ser cumprida”.152 Sob esta perspectiva, Lipovetsky propõe que a tolerância, como valor moral, também contribui para a manifestação do projeto individualista de cada indivíduo em sociedade. Trata-se de um valor que se articula de modo a desestabilizar quaisquer que sejam as intenções de manutenção ou promulgação de valores absolutos em quaisquer que sejam as esferas sociais. Neste sentido, tolerar significa mais suportar do que respeitar e aceitar conviver. Desde que não agrida ou ultrapasse as fronteiras da individualidade, cada um roga para si o direito à liberdade de expressão e pensamento, no entanto, não será tolerável a imposição destes como absolutos, pois tal proclamação afetaria diretamente o âmbito de interesses individuais de outros. Segundo o autor

A tolerância de massa é uma virtude indolor, seu crédito se sustenta pelo refluxo das ideologias ascéticas, pelo declínio dos deveres relativos a elucidação, compenetração e conversão das almas. Num ambiente social em que a prioridade de cada um está voltada para si mesmo, todo indivíduo pode pensar e agir livremente, desde que não cause dano a terceiros.153

150 Ibid, p. 132. 151 Ibid, p. 133. 152 Ibid, p. 126. 153 Ibid, p. 127. 98

A conclusão, portanto, de que a sociedade atual manifesta uma ausência de valores ou que caminha em direção a um quadro social cujas amarras do hiperindividualismo prenderiam os seus atores a tal ponto que um caos social se instalaria a partir dos confrontos oriundos da falta de interesses coletivos, se mostra equivocada. O hiperindivíduo reafirma a sua identidade quando sustenta as suas relações sobre o primado de um conjunto de valores comuns, tais como o respeito pelo outro, a tolerância, a aceitação de pontos de vista divergentes de concepções próprias, entre outros.

As novas possibilidades de expressão individual que a sociedade hipermoderna confere aos seus indivíduos, não trazem como reveses a formação preponderante de um contexto social que se caracterize como um palco de enfrentamentos simbólicos entre os seus atores. Ainda que esta realidade seja existente, sob os imperativos do hiperconsumo e da lógica pós-moralista nas consciências, o que se expressa é mais uma busca por autenticidade identitária, por uma expressão de vida que corresponda a concepções próprias, portanto, de fundo, do que uma inquietação quanto à necessidade de fazer valer uma personalidade prevalecente sobre o outro. Em épocas passadas, quando a sociedade ainda se encontrava cativa da lógica de diferenciação social como fator que justificava a corrida desenfreada ao consumo por parte de seus representantes, sendo campo de batalha e cenário de exposição simbólica de signos diferenciais, neste tempo então se podia dizer de uma ausência de valores básicos a permear as relações. Os enfrentamentos de classes entre os indivíduos excluíam a possibilidade de aceitação e convívio mútuo. A necessidade de prevalecer sobre o outro se tornava prioridade social. No entanto, um novo paradigma está posto. Uma vez em que as mercadorias são adquiridas para fazer jus às aspirações subjetivas e para fins de conforto e bem estar pessoal, a necessidade de se destacar socialmente em relação ao outro deixa de ser prioridade e preocupação. Como conseqüência, o outro é visto como alguém que também deseja reafirmar a sua identidade e não mais como um competidor. Sua presença é aceitável e, portanto, cabem valores que legitimem a sua presença e que definam de maneira satisfatória os campos e limites de atuação de cada indivíduo separadamente. Para o hiperindivíduo hipermoderno, a afirmação de valores de base nas relações sociais contribui para que o seu projeto de felicidade pessoal seja garantido. A hipermodernidade não caminha em direção a um mundo sem valores, pelo contrário, ela faz ver hoje pequenos lances de um futuro regido pelo fortalecimento de consensos básicos. E ainda que estejam desprendidos do caráter do “dever”, tais consensos minimalistas sustentarão a vida comum em sociedade.

99

4.3. Rumo a uma ética de responsabilidade?

Lipovetsky aponta para a necessidade de uma ética cujo princípio determinante seja o da responsabilidade.154 Trata-se de promover ações e as suas conseqüentes relações sob as implicações deste princípio, a fim de que um equilíbrio entre o hiperindividualismo e a preocupação com o outro seja possível tornando possível e plausível também a convivência e sustentabilidade da sociedade. É a isto que Lipovetsky denomina de “renovação ética”. Em suas palavras, “a renovação ética corresponde tanto à consagração de um universo individualista liberto do dever categórico quanto à manifestação do descontentamento em face dos alarmantes desvios de um individualismo exacerbado”.155

O referencial ético é ponderado em decisões pertinentes às mais variadas esferas de atuação. Seja no âmbito político, social, ambiental ou ainda da saúde, cada decisão é refletida sob a luz do referencial ético, buscando com isso prever as suas implicações tanto na esfera individual quanto coletiva. A ordem é minimizar os efeitos alarmantes, evitar os confrontos desestabilizadores, preservar e prolongar a possibilidade de vivência das espécies, conter o avanço tecnológico em harmonia com a natureza sem, no entanto, comprometê-lo e limitá-lo, perpetuar o tempo presente, porém, não ignorando o quadro futuro cujas peças já se mostram no hoje, prover condições e meios para que a vida seja desfrutada em sua plenitude, com abundância de saúde, ou seja, prever possíveis males futuros em decorrência da condição humana e da condição social, enfim, a busca por um equilíbrio ético em cada situação é constante em vistas da manutenção da existência e do ambiente em que esta existência se faz possível. Para Lipovetsky, “as injunções formais ao dever estão carcomidas, logo é o momento de exaltar a responsabilidade sem fronteiras, ecológica, bioética, humanitária, econômica ou midiática”.156

O que se entende por ética de responsabilidade? A que se refere essa exaltação ética? De que se trata e quais são os objetivos a que se propõe? Na perspectiva do autor

O princípio responsabilidade emerge como a própria essência da cultura pós-moralista. Se, de um lado, os chamamentos à responsabilidade não podem ser desvinculados da idéia de dever moral, de outro, têm isso de específico: em parte alguma conclamam à auto- renúncia sobre o altar dos ideais superiores. Nossa ética de responsabilidade é uma ética

154 Para uma melhor compreensão da questão ética relacionada à responsabilidade para com a vida alheia, ver Hans JONAS, O princípio responsabilidade, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 155 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 187. 156 Ibid, p. 186. 100

“razoável”, inspirada não na imposição do desprendimento em relação aos fins pessoais, mas num esforço de harmonização dos valores com as conveniências particulares, de harmonização do princípio dos direitos individuais com as coerções da vida social, econômica e científica.157

A ética de responsabilidade somente é possível na cultura pós-moralista, conforme afirmação acima, porque atua sobre outro princípio, que é a manutenção de um equilíbrio entre uma “harmonização dos valores com as conveniências particulares”. O hiperindivíduo hipermoderno não se prestará a pautar a sua vida sob um princípio de responsabilidade, sem que ele perceba neste referencial, benefícios que também o alcançarão.

O princípio do equilíbrio como justificativa para a promoção de uma ética de responsabilidade se mostra, portanto, como o objetivo último pretendido

O intento é tão-somente compensar a ampliação da lógica individualista pela legitimação de novas obrigações coletivas, visando à obtenção de um ponto de equilíbrio entre o dia de hoje e o de amanhã, entre o bem-estar individual e a proteção ao meio ambiente, entre o progresso científico e o humanismo, entre o direito de pesquisa e os direitos humanos, entre os imperativos científicos e os direitos dos animais, entre a liberdade de imprensa e o respeito ao direito das pessoas, entre a eficácia e a justiça.158

Há a necessidade do estabelecimento de limites para as ações humanas mediante o equilíbrio de suas atuações nos universos distintos, a fim de que um esgotamento das possibilidades de existência não seja inevitável. As fronteiras, no entanto, nas quais se delineiam esses limites se parecem muito fluídas, frágeis e difíceis de serem delimitadas precisamente. Além disso, parece haver, mesmo que em menor preponderância do que em tempos da lógica do dever, um choque de interesses entre governos, entre classes, entre grupos específicos, e mesmo entre indivíduos que circulam em universos semelhantes, ocasionando uma pressão nas linhas das fronteiras de ambos os seus lados. Logo, ambos, indivíduos, grupos ou governos, empurram a linha demarcadora dos limites de suas ações para cada vez mais longe, conforme conveniências particulares. Isso fica evidente a cada nova descoberta anunciada pela ciência, ainda que tal descoberta traga consigo um revés ecológico, os benefícios a que se destinam são supervalorizados e, quase sempre, justificam exceções na norma ética já estabelecida. Assim, os limites do equilibro nas ações são vulneráveis e ainda se encontram cativos da interpretação de seus atores.

157 Ibid, p. 186. 158 Ibid, p. 186. 101

Lipovetsky propõe a que se leve em conta o futuro reservado para a sociedade global, futuro este que está sendo construído sobre os pilares da desigualdade social, do aumento da miséria mundial, das catástrofes naturais cada vez mais freqüentes, do hiperindividualismo exacerbado, enfim, “... em cada uma dessas situações, compete à iniciativa ética reagir contra os excessos do ‘deixa pra lá’ individualista, tecnológico, capitalista, midiático, para solidificar o espírito de responsabilidade, único meio de enfrentar os desafios do futuro...”.159

Neste escopo ético, cuja abrangência é preenchida pelo princípio de responsabilidade, este justificado pelo princípio de um equilíbrio necessário entre hiperindividualismo presente e um futuro sustentável a ser determinado, o autor propõe ainda uma atuação mais consistente do indivíduo no âmbito de suas atuações específicas. Tendo em vista o descrédito conferido às grandes narrativas, ao poderio político, às competências da ciência em garantir um futuro promissor e seguro para as gerações por vir, à falta de apego a novas utopias, às paixões nacionalistas e, inclusive, à capacidade das religiões em promover grandes ajuntamentos, além de outros fatores, há a necessidade de um engajamento pessoal mais efetivo por parte de cada indivíduo a fim de que este futuro sobre as bases da harmonia seja possível. “Em outras palavras, entra em cena um novo figurante, a iniciativa ou comprometimento pessoal, isto é, uma nova conscientização perante o caráter imprevisível, criativo e aberto do porvir”.160 O futuro pretendido colocado sobre os cuidados das instituições sociais, religiosas ou sobre os organismos do Estado, revelou-se duvidoso. Cabe ao hiperindivíduo projetar, a partir do seu próprio cenário de atuação, as pequenas bases para o amanhã idealizado. Em face disto, Lipovetsky coloca que

Em suma, o ressurgimento ético é fruto da crise em nossa representação do futuro, bem como do enfraquecimento da fé nas promessas de um racionalismo tecnicista e positivista. Quando os discursos sobre o futuro humano e os cosmos beiram o catastrofismo, assumem papel determinante o livre exercício da responsabilidade humana e suas alternativas civilizadoras.”161

Na perspectiva citada acima, a possibilidade de um não futuro faz irromper a necessidade de um reavivar da ética, partindo principalmente, do escopo individual de atuações. No entanto, seria utópico pensar num hiperindivíduo de caráter hiperconsumista agindo de forma a levar em conta o futuro? Seria este hiperindivíduo capaz de escapar às seduções do hiperconsumo, mesmo cativado e manipulado em seus sentidos e gostos, e

159 Ibid, p. 187. 160 Ibid, p. 187. 161 Ibid, p. 188. 102

mesmo experimentando sensações singulares com a posse das mercadorias adquiridas? Seria o hiperindivíduo o sujeito mais plenamente capaz de frear as avalanches do hiperconsumo, uma vez em que este mesmo sujeito é único competente para dar sentido ao hiperconsumo como se dá atualmente? A estas e outras considerações, Lipovetsky comenta que

A vantagem da época fora-dever é que se enuncia uma demanda ética que não é utópica e contrária aos interesses pessoais, e por essa mesma razão, pode concorrer para o bom encaminhamento de um certo número de práticas sociais e para a promoção de um mundo liberto de rígidas demarcações – não ideal, certamente, mas quem sabe um pouco mais justo.162

O elemento diferencial apontado pelo autor de modo a justificar a emergência de uma nova utopia no âmbito do referencial ético, diz respeito ao fato de que esta proposta ética de responsabilidade também concorda com os interesses pessoais daquele que a pratica. Lipovetsky concorda que “não é algo sublime, mas se mostra apto ao enfrentamento dos grandes perigos do futuro. Não é supereminente, mas se volta especificamente para uma sociedade tecnicista e democrática”.163 Trata-se de uma ética propícia para o tempo presente, que não se subjaz à lógica ultrapassada do dever, mas, pelo contrário, que considera a sociedade com as suas orientações pós-dever, atuando de modo a configurar-se no cenário social a fim de provocar rupturas a partir do âmbito bem localizado e determinado de ação de cada indivíduo, para, então, alcançar transformações e conscientizações significativas, promovendo o equilíbrio no desenvolvimento social.

Em que medida o pensamento de Lipovetsky traz também elementos significativos para uma reflexão também a respeito da questão religiosa na contemporaneidade é um dos assuntos a serem tratados no próximo capítulo desta pesquisa.

162 Ibid, p. 191. 163 Ibid, p. 191. 103

- Capítulo III -

Elementos sobre religião no pensamento de Lipovetsky

No primeiro capítulo dessa dissertação, ressaltaram-se os aspectos principais que caracterizavam a filosofia do iluminismo, seu nascimento, as rupturas que provocaram em relação a outras concepções filosóficas bem como os seus principais expoentes e as contribuições que, como legado, eles deixaram. Este panorama histórico se fez necessário a fim de mostrar que o autor em questão faz parte de uma tradição de pensadores cuja característica principal é a de colocar em foco de análise e crítica o fenômeno moderno como ele se apresenta. Para estes, os grandes temas e teorias da filosofia clássica são questões secundárias.

Introduziu-se, posteriormente, a pessoa do autor, enfatizando aspectos relacionados à sua formação, autores que o influenciaram, principais obras publicadas e, principalmente, as principais categorias que definem o seu modo de fazer filosofia. Em vista disto, três principais categorias de seu pensamento foram selecionadas, a hipermodernidade, termo este empregado pelo autor para se referir a um momento histórico social posterior a pós-modernidade, o hiperindividualismo, que para o autor pode ser compreendido como o reflexo de um individualismo consumado se manifestando na contemporaneidade, e também o hiperconsumo, que possui em sua lógica de funcionamento características e motivações completamente inusitadas em relação às práticas consumistas de outras épocas, quando o signo diferencial ainda predominava nas consciências daqueles que consumiam.

É imprescindível esclarecer também que Lipovetsky não elaborou uma teoria específica de religião em nenhuma de suas obras. Como colocado no primeiro capítulo, suas preocupações filosóficas se situam em torno de questões que estavam sendo consideradas como marginais pela filosofia, relegadas a segundo plano e, portanto, carente de observações 104

filosóficas críticas. Fenômenos como a moda, o luxo e o consumo, entre outros, fazem parte deste escopo e se tornam, então, o objeto principal de análise deste filósofo atento às questões mais práticas e atuais do que clássicas e teóricas. No entanto, ainda que o autor não tenha uma teoria de religião, suas constatações acerca do modo como a sociedade tem se organizado e se transformado, bem como as causas e as contribuições advindas de rupturas e do estabelecimento de novos paradigmas em torno de questões de foro ético, seguramente trazem premissas que contribuirão para uma melhor compreensão da questão ética na religião e também das influências a que estão sujeitos os indivíduos religiosos que circulam entre dois universos, religioso e social, universos estes que, embora lutem para serem distintos ou para se sobressaírem um em relação ao outro, na contemporaneidade se fundem cada vez mais em direção a uma única dimensão. À luz das considerações de Lipovetsky, as bases que formam a sociedade pós-moralista desconhecem as fronteiras entre o profano e o sagrado.

A fim de contextualizar o debate que tem sido travado em torno das contribuições apresentadas por estudiosos do fenômeno moderno a respeito de um termo pertinente para classificar o espírito da sociedade atual, capaz também de provocar um consenso entre os autores, um subitem foi acrescentado com vistas a abordar as principais sugestões que têm sido levantadas. Nomes como Modernidade líquida, Modernidade tardia, Ultramodernidade, entre outros, tem sido sugeridos e aqui são citados.

O segundo capítulo, A ética na sociedade pós-moralista, apresentou de início uma constatação a respeito do dado ético na sociedade atual. São identificadas as principais demandas sociais nas quais o critério ético, cuja aplicação é requerida, tem se esbarrado em interpretações divergentes acerca de uma mesma realidade. Muitas destas questões ainda carecem de um consenso quanto à sua interpretação e são também objetos de discussão que têm provocado rupturas e conflitos nas esferas política, científica e ambiental, além de outros campos.

Após esta constatação do dado ético na sociedade atual, o segundo capítulo apresenta uma descrição do objeto de estudo desta pesquisa, a saber, a obra A sociedade pós-moralista, e a possível relação entre ética e religião presente neste texto. São pontuadas as principais prerrogativas de Lipovetsky, entre elas, a divisão proposta acerca das três grandes matrizes da ética ou as três grandes fases históricas da ética. A primeira grande matriz localiza-se em uma época pré-moderna, com características bem definidas e atuando num universo social peculiar, quando a interpretação e aplicação éticas estavam subordinadas aos juízos e imposições da religião. Já a segunda matriz emerge juntamente com a modernidade, quando 105

as instituições modernas desqualificam a autoridade da religião como órgão competente para organizar e regular a vida dos indivíduos em sociedade, dando início a um processo de secularização da ética, mas também de sacralização de uma lógica marcada pelo dever. Por fim, Lipovetsky disserta a respeito daquilo que ele compreende como sendo a terceira matriz da ética, modelo este que rompe com os padrões erigidos nas duas fases anteriores na medida em que dilui de grandes paradigmas éticos de caráter altruísta a solidez de suas estruturas, ou seja, o seu caráter sagrado. Institui-se nesta fase a lógica do pós-dever, que legitima como ético e moral ações e posturas pautadas na busca assídua pela satisfação de aspirações subjetivas, individuais e pertinentes a cada indivíduo.

O capítulo segundo é finalizado com algumas proposições éticas apresentadas pelo autor no que diz respeito aos movimentos, deslocamentos e encaixes da moral moderna, da incorreta compreensão defendida por alguns expoentes de que o mundo caminha em direção a um exílio absoluto de valores, e também a respeito de uma ética de responsabilidade como saída para o hiperindividualismo.

Tendo sido concluída esta primeira parte da pesquisa, o capítulo terceiro tem como proposta verificar se a hipótese a respeito da possível existência de uma relação entre ética e religião no pensamento de Lipovetsky pode ser comprovada. Como sub-hipótese, pretende-se verificar também se o pensamento de Lipovetsky pode fornecer elementos para uma melhor compreensão dos deslocamentos presentes nas questões de ética e religião em tempos hipermodernos, aspecto este que será mais bem abordado no capítulo quarto deste texto. O capítulo quarto discutirá também a respeito do estabelecimento de uma crítica à obra e reflexão do autor, ressaltando também em que medida o seu pensamento provoca a filosofia contemporânea a repensar a sua maneira de existir, de atuar e de contribuir para a compreensão do tempo atual.

1. A religião na contemporaneidade

Antes mesmo de expor trechos específicos da obra em questão onde o autor se refere às questões de caráter religioso com mais precisão, faz-se pertinente a exposição de um rápido quadro acerca da questão religiosa na contemporaneidade, seus deslocamentos, suas rupturas, seus paradigmas, entre outros aspectos. Este quadro contribuirá para que as colocações de Lipovetsky que serão postas a seguir sejam compreendidas com maior clareza, na medida em 106

que sejam lidas dentro de um contexto mais amplo. Após esta exposição, introduzir-se-á o conceito de religião secularizada, tendo em vista que as colocações de Lipovetsky parecem apontar para a manifestação deste fenômeno na contemporaneidade. O autor, por exemplo, trabalha com a hipótese de uma espiritualidade do consumo.

Com vistas aos objetivos propostos acima, Martelli, cuja exposição acerca da relação entre religião e pós-modernidade ou contemporaneidade se faz de forma bastante perspicaz, contribui eficazmente ao sistematizar as considerações mais provocantes dos teóricos do “pós- moderno”. Segundo o autor

Alguns, entre os quais Danièle Hevieu-Légier, acreditam que existe um nexo entre a crise da modernidade e a persistência da Religião, esta entendida como rede de “comunidades emocionais”. Outros, como Vattimo, insistem sobre o caráter peculiar e inédito da relação que a “pós-modernidade” estabelece com a Religião, esta entendida como “pietas”; outros ainda, como Lyotard, não levam em consideração a relação.164

Martelli, interpretando os distintos pontos de vista colocados acima, explica a possível existência de um nexo entre a crise da modernidade e a persistência da religião a partir das constantes expectativas criadas pela modernidade a fim de satisfazer aspirações específicas dos indivíduos, tais como “a realização ilimitada do indivíduo, o desdobramento universal da consciência, a satisfação de todas as necessidades”165, mas que nunca são em seu todo satisfeitas. Martelli constata então que “não é possível impor limites ou um fim à atividade humana, especialmente ao progresso, a ciência etc. Por isso, a modernidade faz da crise uma condição permanente de dinamização e crescimento do sistema social”.166 Em virtude do não cumprimento de suas promessas, embora o seu anúncio seja necessário para a sua permanência e para os fins a que se propõe, satisfazendo assim as necessidades para o funcionamento de sua lógica em moldes mercadológicos, os apelos de ordem religiosa, em sua persistência, alcançam conseqüentemente atenção e consideração social. Conforme coloca o autor

Em outras palavras, a impossibilidade da modernidade de constituir o horizonte completo das aspirações humanas e sociais repropõe a transcendência como horizonte último de sentido, leva os significados e os símbolos da Religião institucional a serem reconsiderados pela sempre renovada interpretação dos indivíduos.167

164 Stefano MARTELLI, A religião na sociedade pós-moderna, p. 435. 165 Ibid, p. 435. 166 Ibid, p. 436. 167 Ibid, p. 436. 107

A modernidade já se mostrou incapaz em atender aos desejos do indivíduo que ela criou, no entanto, faz parte de sua lógica o constante despertar de tais desejos e aspirações a fim de manter encerrado em seus pressupostos a sociedade que ela molda e dirige. Como resultado de tal incapacidade, há a crise, a qual permite que os reclamos de ordem religiosa continuem a se manifestar.

No que se refere ao caráter peculiar que a pós-modernidade estabelece com a religião, conforme destaca alguns teóricos e Martelli ressalta em sua obra, esta peculiaridade significaria que na pós-modernidade, o processo de secularização tenha alcançado o seu término, ou seja, tenha já se consumado. A ausência de absolutos e os foros de legitimidade alcançados pelo relativismo, bem como o enfraquecimento das instituições modernas como órgãos competentes para prover significação existencial a seus indivíduos, promovendo rupturas e mudança de paradigmas, entre outros aspectos, atestam para a pós-modernidade como um fenômeno mais de derivação ou anulação da modernidade do que de sua consumação. Embora, nesta perspectiva, o processo de secularização tenha já se consumado, na sociedade pós-moderna os traços do pensamento e do agir religioso proposto por tradições diversas continuam ainda a se manifestar. Martelli, interpretando tal proposição, coloca que a secularização atual não pode ser compreendida como “inversão de uma ordem sagrada ou sua superação, e sim como a relação de retomada-manutenção-distorção que, na época ‘pós- moderna’, liga a civilização profana às suas raízes judaico-cristãs”.168

Martelli coloca ainda, como citado anteriormente, que outro grupo de teóricos do pós- moderno não leva em consideração nenhuma relação entre religião e pós-modernidade. Para este grupo, ambas as realidades se mostraram ao longo da história insuficientes para a promoção do bem estar social e consensual, bem como de significação existencial. No entanto, Martelli apresenta ainda uma quarta possibilidade a partir de suas próprias considerações

Segundo o nosso parecer, deve-se considerar uma quarta possibilidade, por enquanto rara entre os teóricos do “pós-moderno”, isto é, que a dessecularização implique a redescoberta, seletiva e interpretativa, da religião institucional, enquanto sua antimodernidade conservou uma concepção do homem a qual, na realidade, já está além da modernidade.169

168 Ibid, p. 437. 169 Ibid, p. 435. 108

Martelli considera que o diálogo entre religião e pós-modernidade deve ser realizado a partir da questão antropológica. Conforme coloca o autor

Como uma das características da condição “pós-moderna” do saber é a sua fragmentação em linguagens especializadas e a “morte do sujeito”, é evidente que nesse terreno, a comunicação apresenta-se de maneira assimétrica. Nessa situação, porém, a Religião hoje tem mais possibilidade de ser ouvida também por quem não é estritamente praticante, pois, assumindo a linguagem do senso comum e fazendo-se portadora das instâncias da opinião pública, favorece a reconstituição de uma “comunidade moral” capaz de colocar limites às pretensões dos saberes especializados, como sobre a questão da experimentação com as biotecnologias.170

Após expor esses que seriam os quatro pontos de vista mais comuns a respeito da relação entre pós-modernidade e religião defendido pelos teóricos do pós-moderno, Martelli propõe sete cenários a fim de apresentar quais seriam as perspectivas oferecidas à questão religiosa na sociedade atual, para ele, pós-moderna. Os sete cenários são: a estratégia de concentração católica, a metáfora do Ocidente, a metáfora da secularização, a metáfora da legitimação da época moderna, a eclesiasticização do Cristianismo, a metáfora da religião civil e, por fim, a metáfora da Igreja como complexidade.

Quanto à “estratégia de concentração católica”, Martelli, com base nos estudos de Hervieu-Légier, se refere à postura inusitada assumida pela igreja católica para se contrapor às propostas modernas, reclamando para si mais uma vez a competência para organizar a vida social e para se por como centro provedor de significação existencial, em virtude dos grandes problemas produzidos pelo ininterrupto progresso moderno, problemas para os quais muitas oportunidades de saídas ainda se mostram fechadas. Martelli coloca que neste aspecto, a crítica católica “não é mais feita em nome dos valores de tradição, e sim em nome dos direitos do homem, que são, hoje, pisoteados, e do bem da humanidade, vítima de catástrofes no ecossistema, provocadas pela cupidez do homo faber, que quer dominar o mundo.171 Em sua perspectiva, “a análise de Hervieu-Légier se transforma numa falácia epistemológica, que consiste em atribuir à Igreja um projeto, a reconquista do mundo, que é claramente impossível”.172

Em se tratando da “metáfora do Ocidente”, Martelli explica que este cenário “delineia um quadro de substancial continuidade entre tradição cristã e sociedade moderna”, e

170 Ibid, p. 443. 171 Ibid, p. 455. 172 Ibid, p. 458. 109

acrescenta ainda que, em se aceitando esta prerrogativa, “a modernidade é o fruto maduro da civilização cristã-ocidental e, coisa ainda mais importante, os valores e as verdades cristãs continuam alimentando e sustentando a sociedade moderna”.173

Sobre a “metáfora da secularização”, o autor ressalta que este cenário manifesta uma ruptura com as imposições da tradição cristã de tempos passados. De fato, o Cristianismo perde o reconhecimento social como tradição necessária para o desenvolvimento da sociedade contemporânea.

No que se refere à pretensão de uma “legitimação da época moderna”, Martelli coloca que tal pretensão “torna-se insustentável ao se tomar plena consciência do ‘paradoxo da modernidade’, ou seja, da dinâmica crescente das expectativas, alimentada pela própria modernidade, e pela conseqüente desilusão que a segue”.174

A suposta “eclesiasticização do Cristianismo” é o cenário no qual Martelli exemplifica que o cristianismo, “contrariamente às expectativas do Iluminismo, não somente não se dissolveu num humanismo genérico, mas, ao contrário, se fortaleceu sob o ponto de vista institucional, atualizando-se com o Concílio Vaticano II”.175

O sexto cenário, “a metáfora da religião civil”, se assemelha ao cenário anterior, ou seja, concorda que o cristianismo, a despeito das previsões iluministas, não desaparece na sociedade moderna, porém, acrescenta que há mudanças no espectro das funções da religião. Martelli coloca que “em particular, o acento cada vez menor sobre as igrejas e as instituições religiosas, e mais sobre a contribuição dada pela Religião, como sistema simbólico, para a estabilização das concepções gerais que regulam as sociedades modernas”.176

Por fim, em relação ao último cenário, a saber, “a metáfora da Igreja como complexidade”, Martelli explica que

A complexidade interna atingida pela religião-de-Igreja, na medida em que permite exercer uma multiplicidade de funções, e de tornar mais seletivas e personalizadas as mensagens dirigidas a um Povo de Deus sempre mais internamente diversificado, impede considerar ser inevitável o confinamento da Religião na função marginal e privatizada, que a sociedade moderna pretendeu assinalar-lhe [...].177

173 Ibid, p. 459. 174 Ibid, p. 460. 175 Ibid, p. 460. 176 Ibid, p. 461. 177 Ibid, p. 468. 110

Martelli considera que esse suposto atributo de complexidade atribuído à religião lhe confere oportunidades mais distintas de trânsito na sociedade moderna ao invés de encontrar- se isolada às margens das questões sociais.

2. Uma religião secularizada

À luz das contribuições trazidas por Martelli, bem como da leitura e compreensão do pensamento de Lipovetsky, verifica-se que as mudanças ocorridas na maneira como a sociedade se organiza e se compreende, bem como nas relações sociais que em suas esferas se dão e, certamente, no distinto campo religioso, podem apontar para a emergência de uma religião secularizada se configurando no cenário social dado. Aquém da emergência de novos fundamentalismos ou de outros movimentos religiosos militantes, ou ainda de novos movimentos na esfera institucional das religiões, ainda que Martelli tenha apontado para posturas inusitadas assumidas pela igreja católica para se colocar frente ao modernismo e para oferecer respostas e saídas em virtude da crise moderna, aquém destas hipóteses, o que se apresenta de maneira mais plausível e coerente é a sugestão de uma suposta manifestação de uma religião secularizada se fazendo presente no cenário social e religioso atual.

Conforme foi apontado no segundo capítulo desta pesquisa, se a modernidade, em seu início, impunha uma suposta religião do dever, a hipermodernidade é o reflexo da criação de condições para que a lógica do pós-dever reestruture a sociedade em bases pós-moralistas, re- significando a essência e a aplicação de princípios e valores morais nas mais variadas esferas sociais. Os indivíduos se apropriam desta lógica, bem como os mercados, a política, a mídia, os ambientes públicos e privados, os contextos coletivos e individuais, seguindo seus postulados, práticas, formas de orientação e construção do cotidiano, além de suas propostas de identidade, sendo possível cogitar, à luz daquilo que o fenômeno pós-dever se permite revelar, da emergência da mais inovadora roupagem religiosa contemporânea, a roupagem religiosa do pós-dever, que seria característica de uma religião secularizada se configurando socialmente. Numa religião secularizada, a condição de sagrado é conferida pelo próprio indivíduo, ou seja, não é algo externo a ele ou além dele, mas sim estabelecido a partir de seus próprios anseios e comportamentos, formas de vida ou práticas que lhe confiram sensações de satisfação existencial, de bem estar para consigo mesmo. É, portanto, secularizada por se estruturar em bases racionais, ou seja, não religiosas, além de não se construir a partir de um 111

conjunto de regras pré-determinados. O que, pelo contrário, a torna singular, é justamente a ausência de padrões.

Lipovetsky, em sua obra, apresenta diversos elementos que parecem atestar para este fato, entre eles, o modo como a educação tem sido ministrada às crianças, análise esta que ele faz a partir de seu próprio contexto social específico, a França. Lipovetsky comenta acerca da educação ministrada às crianças, bem como dos princípios e valores morais que neste processo são transmitidos, concluindo que “mesmo no método de educação ministrado às crianças, a transmissão dos princípios morais de ordem superior passou a constituir apenas uma meta secundária”.178 À luz desta constatação, compreende-se que princípios morais que fazem referência a uma realidade metafísica como sendo fonte instituidora da moral, não são relevados no processo de educação prestado às crianças. Além disso, pode-se afirmar também que toda sorte de princípios morais que tenha em si uma pretensão de alcance altruísta, também é diluído em sua essência e em seu sentido de obrigatoriedade quando transmitido aos alunos. A essa conclusão, o autor observa que “calar a respeito dos principais preceitos morais não é tudo. A era do pós-dever vai além do recurso de silenciá-los: na verdade, os demole pela base”.179

A partir de uma leitura mais precisa da obra de Lipovetsky em seu todo, sobretudo a obra em questão, é possível perceber em diversos momentos de seu texto uma possível relação entre ética e religião, principalmente na maneira como as prerrogativas éticas do tempo atual têm influenciado no comportamento e decisões de caráter ético dos indivíduos, inferindo, conseqüentemente, mudanças também na expressão ética das religiões em si.

O caráter religioso reconhecido a partir de uma devoção prestada a uma correspondência constante de anseios subjetivos, a uma perpetuação das sensações de conforto e bem estar no tempo presente, entre outras características que determinam os comportamentos dos indivíduos nas sociedades pós-moralistas, ecoa nas entre linhas das considerações trazidas pelo autor, sendo possível usar o conjunto de sua obra como ferramenta útil para uma melhor compreensão das transformações constantes que ao campo religioso são inferidas como reflexos das constantes mudanças e inovações sociais, mudanças estas que parecem apontar para a configuração de uma religião secularizada na sociedade atual.

178 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 106. 179 Ibid, p. 107. 112

Os próximos subitens deste capítulo mostrarão a sustentabilidade destas hipóteses com análises de partes específicas do texto base em diálogo com outras obras do autor.

2.1. A espiritualidade do consumo

Lipovetsky trabalha com a hipótese de uma espiritualidade do consumo para caracterizar as motivações que justificam as constantes empreitadas ao consumo nas quais os indivíduos se engajam, a despeito das correntes campanhas de apelo a um desapego de bens em virtude da questão ecológica tão latente nos debates éticos contemporâneos. No entanto, ainda que o problema ecológico já esteja nos limites de sua sustentação, a prática consumista ainda continua a ser velada pelos consumidores hoje mais do que em tempos de outrora. Bauman, por exemplo, constata haver uma vocação para o consumo por parte dos indivíduos

Numa sociedade de consumidores, todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação). Nessa sociedade, o consumo visto e tratado como vocação é ao mesmo tempo um direito e um dever humano universal que não conhece exceção.180

Bauman ressalta o aspecto em torno de um desejo por exibição social como um fator de motivação dos indivíduos às práticas de consumo

Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas obrigações sociais e proteger a auto-estima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso –, consumidores de ambos os sexos, todas idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos.181

A prática consumista pode ser um meio de reforço da auto-estima, bem como de subsistência de uma identidade.182 À luz da consideração acima, verifica-se a existência de um consumidor cativo das amarras do consumo e, por este seduzido, a fim de exibir no cenário social um status de vida. Coelho considera este mesmo aspecto presente nas motivações de compra, e em sua perspectiva

180 Zygmunt BAUMAN, Vida para consumo, p. 73. 181 Ibid, p. 74. 182 Bauman trabalha especificamente com a questão das problemáticas em torno da identidade em seu livro Identidade, que é a publicação de uma entrevista que ele concedeu ao jornalista Benedetto Vecchi. 113

Os publicitários, enquanto produtores de mitos, agem conscientemente, procurando fazer com que o consumidor de um produto transformado em mito assimile (absorva) o sentido (conceito) que se quer atribuir a este produto. Assim, quando um consumidor compra, por exemplo, um automóvel, ele não está comprando apenas um objeto que permite que ele se desloque com rapidez, mas está adquirindo (de acordo com as peças publicitárias) um objeto que o tornará mais desejável, digno de ser invejado, etc.183

Análises como a de Bauman e a de Coelho a respeito do consumo, bem como de outros teóricos, consideram o indivíduo como alguém ingênuo, plenamente passivo, inconsciente de suas ações e das investidas dos mercados em sua consciência. Neste paradigma, o mercado é considerado uma instância opressora que seduz e destrói os indivíduos na medida em que os mantêm cativos de sua lógica.184

O peculiar da análise de Lipovetsky, no entanto, diz respeito à sua perspicácia em notar que a entrega passiva aos chamamentos do consumo é reflexo hoje mais de uma devoção prestada à sua lógica, bem como aos símbolos que a definem, marcas, referência identitária, locais onde ele se manifesta, do que a uma disputa de signos diferenciais travada pelos indivíduos em busca de exclusividade social. Na perspectiva do autor, o consumo cujo fim é a ostentação de bens, marcas e posses que possam conferir ao indivíduo que deles faz uso distinção em seu meio, pertence a outras épocas. Portanto, consumir hoje corresponde mais a anseios de ordem privada do que a necessidades de reconhecimento externo. Ainda que o desejo de distinção social detenha foros de legitimidade, hoje há outro paradigma determinante instituindo-se nas motivações do consumo, a saber, a satisfação de anseios subjetivos mais que objetivos, a busca pelo conforto e bem estar emocional particular, o bem estar consigo mesmo mais que a aceitação coletiva. O consumo para “ser” ocupou o lugar do consumo para “ter”. Não se trata tanto do grau de autenticidade que o indivíduo alcança em seu meio em virtude daquilo que ele veste, mas sim de dar vida às aspirações pessoais através daquilo que se consome. Portanto, construir uma identidade a partir do consumo e seus símbolos, agregando para si valores simbólicos mediante a aquisição de suas mercadorias não é mais o fator preponderante. Na hipermodernidade, trata-se de expor uma identidade ou um conjunto de aspirações privadas com o uso de símbolos disponíveis no mercado de consumo. São os símbolos do consumo que darão forma a uma identidade que se pretenda manifestar.

O consumo prevalece em relação aos apelos daqueles que tentam lhe colocar freios na medida em que manipula os sentidos de seus consumidores, trata-se de um consumo

183 Cláudio Novas Pinto COELHO, Publicidade: é possível escapar?, p. 50-51. 184 Ver também Franz J. HINKELAMMERT & Hugo ASSMANN, A idolatria do mercado. 114

emocional, experiencial e sensitivo. Não são as mercadorias que conferirão aos consumidores distinção, mas sim que lhes permitirão serem indivíduos a partir de seus próprios anseios.

Em sua análise sobre o “luxo”, Lipovetsky exemplifica esta mudança de paradigma operada na lógica do consumo, libertando os seus adeptos de uma busca frenética por exclusividade social para almejar satisfações de âmbito particular. Assim, o autor coloca que “a paixão pelo luxo não é exclusivamente alimentada pelo desejo de ser admirado, de despertar inveja, de ser reconhecido pelo outro, é também sustentada pelo desejo de admirar a si próprio, de ‘deleitar-se consigo mesmo’ e de uma imagem elitista”.185 Enfatiza ainda que “os sentimentos elitistas, a exigência de comparar-se vantajosamente com os outros não têm nada de novo, mas se recompõem hoje a partir da própria lógica do neo-individualismo, mais para si do que com vista à estima do outro”.186 Lipovetsky considera que a lógica de diferenciação social ainda se faz presente nas motivações do consumo, porém, não se configura mais como o paradigma preponderante, e afirma que

O universo do luxo não funciona mais exclusivamente segundo a oposição clássica dos mais ricos e dos menos ricos, dos dominadores e dos dominados, dos herdeiros e dos novos-ricos. Para toda uma categoria de consumidores de produtos de grande luxo (estrelas, ídolos etc.), trata-se não tanto de ser admitido em um grupo ou de confirmar um estado de riqueza quanto de exprimir uma personalidade singular, uma originalidade, um gosto pessoal livre das formas e dos quadros convencionais. Hoje, o luxo está mais a serviço da promoção de uma imagem pessoal do que de uma imagem de classe.187

Para Lipovetsky, “o luxo tende a pôr-se a serviço do indivíduo privado e de suas sensações subjetivas. Um luxo para si”.188

O consumo roga para si a capacidade para responder significativamente às buscas por realização e sentido para a vida dos indivíduos. Na medida em que o indivíduo encontra nas múltiplas ofertas do consumo respostas e satisfação para as suas buscas subjetivas, ele se compromete com esta prática lhe prestando devoção contínua. É neste sentido que o consumo parece rogar para si um atributo de caráter místico, cativando, seduzindo e determinando ações e pensamentos dos que a ele se apegam, um tipo de religião secularizada, descomprometida, individual e fluída no espaço. Isto se dá em virtude do enfraquecimento das instituições religiosas em sua capacidade de se colocarem como centros organizadores e de

185 Gilles LIPOVETSKY & Elyette Roux, O luxo eterno, da idade do sagrado ao tempo das marcas, p. 52. 186 Ibid, p. 52. 187 Ibid, p. 52-53. 188 Ibid, p. 55. 115

referência para a vida. Lipovetsky coloca que, em virtude desta perda de competência que antes detinham os organismos religiosos, “a tendência forte é para a individualização do crer e do agir, para a afetivização e a relativização das crenças”.189 O autor acrescenta ainda que “cada vez mais, é a busca da realização psicológica do sujeito que se encontra no centro tanto das experiências dos crentes propriamente ditos quanto das novas ‘religiões sem Deus’”.190

Uma questão também relevante a se considerar, diz respeito à maneira como esta lógica do consumo hipermoderno tem sido apropriada pela dimensão religiosa. O autor coloca que

...o espírito de fé não pode ser confundido com o espírito pragmático do consumismo. Mas não é menos verdade que a reafirmação contemporânea do religioso se acha marcada pelos próprios traços que definem o turboconsumidor experiencial: participação temporária, incorporação comunitária livre, comportamentos à la carte, primado do maior bem-estar subjetivo e da experiência emocional. Nesse plano, o Homo religiosus aparece mais como a continuação do Homo consumericus por outros meios que como sua negação.191

Lipovetsky considera que “assistimos à extensão da fórmula do supermercado até os territórios do sentido, à penetração dos princípios do hiperconsumo no próprio interior da alma religiosa”.192 Portanto, a religião não se apresenta como uma instituição a se colocar entre o consumo e o indivíduo, antes, faz bom uso de sua lógica para garantir seus fins.

Na sociedade hipermoderna, presencia-se a mercantilização não apenas dos afetos, dos sentimentos, das relações entre os indivíduos, mas também das experiências religiosas. São as prerrogativas que o consumo veicula que agem de modo a reconfigurar e a determinar também as práticas religiosas. Lipovetsky exemplifica sua argumentação localizando-a em questões práticas do cotidiano dos indivíduos

Nessa esfera de influência, multiplicam-se as livrarias especializadas e os salões de exposição, toda uma oferta comercial feita de grupos de trabalho com gurus, centros de desenvolvimento pessoal e espiritual, estágios de zen e de ioga, grupos de trabalho sobre os “chacras”, consultas de “medicina espiritual”, cursos de astrologia e de numerologia etc.193

189 Gilles LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 132. 190 Ibid, p. 132. 191 Ibid, p. 133. 192 Ibid, p. 133. 193 Ibid, p. 132. 116

Na perspectiva do autor, “na sociedade de hiperconsumo, mesmo a espiritualidade é comprada e vendida”.194 Experiências religiosas de caráter diverso estão à disposição do indivíduo mediante a prática do consumo. Tais experiências também se enquadram dentro da lógica do consumo-moda, ou seja, comercializadas em excesso, obedecendo às necessidades de inovação, da variedade e da necessidade de despertar o interesse pela compra mediante o estímulo dos sentidos e das emoções.195 Lipovetsky coloca que “hoje, mesmo a espiritualidade funciona em auto-serviço, na expressão das emoções e dos sentimentos, nas buscas animadas pela preocupação com o maior bem estar-pessoal”.196 Ele atesta para o mesmo fato em outra obra, quando diz que “as novas religiosidades refletem muito mais a preocupação com um maior bem estar pessoal ou com uma felicidade intramundana do que a busca da salvação no outro mundo”.197

Por razões como estas que foram apontadas acima, verifica-se nas práticas de consumo uma vertente de um tipo de religião secularizada a se manifestar na contemporaneidade, a qual o pensamento de Lipovetsky contribui para discerni-la e compreendê-la. Um tipo de religião de natureza diferente, um tipo de religião profana, dirigida por princípios seculares, mas que, no entanto, reclama de seus adeptos a mesma devoção religiosa contínua prestada a quaisquer outras práticas religiosas.

2.2. O fim de um altruísmo de sacrifício e a emergência de um altruísmo indolor de massa

Não é apenas na esfera do consumo que é possível verificar traços de uma religião secularizada, Lipovetsky também trabalha com a noção de altruísmo e as mudanças a ele inferidas em virtude das pressões impostas pela lógica do consumo-moda, de modo a ser possível constatar nas ações onde sua aplicação é requerida mais um aspecto deste tipo de manifestação religiosa.

194 Ibid, p. 132. 195 Ver também João Décio PASSOS, Ser como Deus: críticas sobre as relações entre religião e mercado. In: BAPTISTA, Paulo Agostinho N. & SANCHEZ, Wagner Lopes (Orgs.), Teologia e sociedade: relações, dimensões e valores éticos, p. 145-160. 196 Gilles LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 132. 197 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 134- 135. 117

Quando disserta a respeito das “metamorfoses da virtude”,198 alguns comentários que o autor faz são, de fato, relevantes, por exemplo: “raro são hoje os locais e circunstâncias em que palpita o sentido de consagrar sua vida ao próximo”, e também “o imperativo proverbial do coração puro, os apelos ao devotamento total, o ideal hiperbólico de viver para os outros, nenhuma dessas exortações já encontra ressonância coletiva”.199 Parece ser possível, então, dizer que o sentido de sacrifício moral em prol do benefício alheio não detém mais o poder e a capacidade de motivar ações altruístas na contemporaneidade.

Lipovetsky contempla este quadro social contemporâneo e verifica haver nele também um grande vazio que ele denomina de “deserto”. Conforme sua argumentação em A era do vazio, não se trata de um deserto apocalíptico como aquele já conhecido em épocas passadas, construído em virtude de intervenções militares de soberanos sobre dominados em prol de postulados hegemônicos, de manipulações dos recursos naturais empurrando ao limite a capacidade de sua sustentação, de grandes elucubrações nacionalistas e científicas que ainda deixaram sem resposta muitos questionamentos das massas, mas trata-se de um deserto “paradoxal, sem catástrofe, sem tragédia ou vertigem, que cessou de se identificar com o nada e com a morte”.200 Nas palavras do autor

Consideremos essa imensa onda de ausência de investimento por meio da qual todas as instituições, todas as finalidades e todos os grandes valores que organizaram as épocas anteriores são aos poucos esvaziados da sua substância – o que é isto senão uma deserção em massa que transforma o corpo social em um corpo exangue, em um organismo desativado?201

As grandes instituições modernas perderam o status de instituições reguladoras da vida em sociedade. Seus postulados perderam a credibilidade e suas promessas foram postas em dúvida.

Com o enfraquecimento das instituições como órgãos normativos, fragilizaram-se absolutos antes irredutíveis, elevaram-se novos pontos de vista de caráter relativo multiplicando-se assim os referenciais. Segundo o autor

O hedonismo individualista, ao minar as instâncias tradicionais de controle social e expelir do campo social toda transcendência, priva de referenciais certo número de indivíduos e

198 Título do capítulo 4 da obra A sociedade pós-moralista, p. 104-133. 199 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 104. 200 Idem, A era do vazio, p. 18. 201 Ibid, p.18. 118

favorece um relativismo desmedido que parece dar livre curso a todas as lucubrações possíveis.202

Lipovetsky, comentando acerca das conseqüências desta deserção das massas em virtude do enfraquecimento das instâncias tradicionais e da negação à transcendência como referência social, relegando o indivíduo às suas próprias escolhas, diz

Os valores hedonistas, a oferta sempre mais ampla de consumo e de comunicação, a contracultura convergiram para acarretar a desagregação dos enquadramentos coletivos (família, Igreja, partidos políticos, moralismo) e ao mesmo tempo uma multiplicação dos modelos de existência: daí o neoindividualismo do tipo opcional, desregulado, descompartimentado. A “vida à la carte” tornou-se emblemática desse Homo individualis desenquadrado, liberto das imposições coletivas e comunitárias. Na escala da história, é uma segunda revolução individualista que está em marcha, instituindo desta vez um individualismo acabado, extremo: um hiperindividualismo.203

O autor é perspicaz em notar que, ainda que sejam poucos os apelos a um engajamento voluntário em campanhas altruístas das mais diversas, “o indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o homem hodierno – despudoradamente agora – não mais titubeia em pôr a nu o caráter individualista de suas preferências”.204 Na perspectiva do autor, a sociedade atual vê erigir-se sobre as mais variadas relações que se dão no cotidiano de suas esferas, determinando assim o caráter destas relações, um individualismo do tipo consumado, pleno, satisfeito, ou seja, uma postura individualista cujo diferencial em relação a épocas anteriores está justamente no status de legitimidade social alcançado pelo egocentrismo ético. “A novidade está precisamente nisto: pensar só em si não é mais tido como algo imoral”.205

A contemporaneidade é o tempo em que viver só para si e em torno de si, sem estigmas, sem olhares reprovativos, sem punições ou quaisquer outros ônus ao indivíduo alcançou legitimidade, é quase um direito de cidadania. É em virtude desta constatação que o autor considera

Eis apenas uma amostra dos paradoxos que caracterizam a hipermodernidade: quanto mais avançam as condutas responsáveis, mais aumenta a irresponsabilidade. Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais

202 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p.37. 203 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 48. 204 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 107. 205 Ibid, p. 107. 119

adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos.206

Lipovetsky afirma que “a época atual renegou a fé no imperativo de viver para o próximo, no ideal preponderante de lhe prestar serviço”.207

Um exemplo pertinente de engajamento nacionalista diz respeito à situação vivida pelo povo de Nicarágua, a qual vale aqui ressaltar. Dissertando a respeito do engajamento comprometido dos cristãos na luta pela libertação do povo nicaragüense da opressão provocava pela ditadura na segunda metade do século passado, Assmann apresenta aspectos que refletem um comportamento social daquele povo estritamente contraditório àquilo que se reconhece na contemporaneidade e que Lipovetsky se encarrega de expor. Em seu artigo A fé dos pobres na luta contra os ídolos208, Assmann aponta “a lição de uma unidade tão difícil, mas também construída com tanta segurança”209, para se referir ao engajamento único de jovens, mulheres e dos cristãos nicaragüenses na luta daquele tempo. Conclui Assmann dizendo: “foi todo um povo – cristão em sua maioria absoluta – que se lançou a uma revolução sem reclamar adjetivos cristãos para ela”.210 Havia nas consciências um senso de obrigação moral em relação aos compatriotas que vertiam sangue nas lutas, sentimento este que fora refletido no conseqüente alistamento de jovens e adultos, homens e mulheres na luta armada. No entanto, é a sentimentos como este expressado pelo povo nicaragüense que Lipovetsky se refere quando considera que

Na sociedade atual, o altruísmo apresentado como princípio permanente de vida é um valor depreciado, equiparando-se a uma vã mutilação da própria pessoa. A nova era individualista conseguiu a façanha de atrofiar nas consciências a alta consideração de que desfrutava o ideal altruísta, redimiu o egocentrismo e legitimou o direito de viver só para si.211

Compreende-se, portanto, que o tempo das lutas sociais, partidárias, sindicalistas, enfim, manifestações públicas radicais que conseguiam conciliar reivindicações de interesse massifico com pretensões individuais, já está ultrapassado. Prestar sacrifícios a uma divindade, a um objeto qualquer de culto ou mesmo a um semelhante que compartilha da

206 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 27-28. 207 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 107. 208 Hugo, ASSMANN. A fé dos pobres na luta contra os ídolos. In: VV.AA. A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador, p. 267-308. 209 Ibid, p. 270. 210 Ibid, p.270. 211 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 107. 120

mesma fé, é um aspecto que não encontra mais foro de legitimidade nas ações de ordem moral nos tempos do hiper.

Ainda que a moral corrente na modernidade em sua concepção tivesse sido caracterizada como sendo mais uma faceta da religião, em virtude da manutenção do imperativo “dever”, ou seja, mudando apenas de instituidor em relação àquilo que acontecia no período pré-moderno quando as instituições religiosas eram determinantes na compreensão e juízo daquilo que era ou não moral, a hipermodernidade corrói todo e qualquer sentido religioso que se pretenda a reclamar direitos de reconhecimento nas ações morais que se dão no cotidiano.

Lipovetsky exemplifica aquilo que está claro em sua percepção, ou seja, a exclusão do sentido de sacrifício pessoal altruísta nas ações morais da contemporaneidade, ao citar os shows caritativos tão correntes na atualidade. Para o autor, os ícones da música hoje são os popstars que “tomam o bordão de peregrinos e se põem a serviço das boas causas”.212 Considera também que “a atuação dos pop-stars tomou o lugar dos arautos das prédicas morais; os shows substituíram as reiteradas admoestações”.213 Na perspectiva de Lipovetsky, eventos dessa natureza não refletem um possível retorno à moral sólida, impositiva, determinante e constrangedora, pertinente de épocas passadas, mas tão somente fortalecem a hipótese de que a contemporaneidade vê estabelecer-se em seu meio social uma “moral sem obrigações nem sanções, segundo as aspirações da massa, que se mostra inclinada por um individualismo-hedonista democrático”.214 Os reveses que acometem terceiros se transformam em oportunidades de recreação quando absorvidos pela lógica do show caritativo pós- moralista. Não se trata de descaso, mas sim de extrair alguns benefícios recreativos a partir do infortúnio alheio. Assim, “conquistamos o direito individualista de viver, dispensando o aborrecimento dos sermões encomendados, vivendo a plenos pulmões o espetáculo das variedades e dos deserdados da sorte [...], pois até a moral passa a ser uma festa”.215 O autor conclui dizendo que “a beneficência midiática é pós-moralista, opera como uma nova modalidade do consumo de massa, e é o sobressalto de uma bondade de ocasião – ‘pequeno surto de bem-estar participativo’, sem acarretar ilusões ou esforços”.216 Portanto, na religião do pós-dever, não há a imposição de um código de ética regulador e mantenedor da vida, cuja falta no cumprimento de suas prerrogativas implique na imposição de duras sanções e perdas

212 Ibid, p. 105. 213 Ibid, p. 112. 214 Ibid, p. 105. 215 Ibid, p. 111. 216 Ibid, p. 112. 121

sob o olhar de um estigma social. No entanto, tão pouco o seu extremo oposto é verdade, ou seja, a plena ausência de normas mínimas que garantam a perpetuidade da vida em sociedade. O que se manifesta singularmente como brilho desta roupagem religiosa hipermoderna é o esfacelamento da rigidez moral impositiva, do sentido de obrigatoriedade altruísta nas consciências, entre outros. A religião do pós-dever desculpabiliza “o viver para si” lhe concedendo foros de legitimidade.

Lipovetsky observa que “o altruísmo do pós-dever é acalentado pela distância”, ou seja, a miserabilidade humana que alcança a atenção da mídia sendo por ela transmitida, mesmo que referente a contextos sociais distantes e distintos, detém um poder de provocar inquietação e sensibilidade nos indivíduos receptores maior do que as necessidades de pessoas mais próximas com as quais se divide espaços e hábitos comuns de vivência. Com isso, Lipovetsky não tem como hipótese a possibilidade de que os órgãos da mídia estejam sendo elevado ao status de “novas instâncias moralizadoras dos indivíduos”.217 Em sua perspectiva, seria mais coerente dizer de um poder de provocação de mobilização moral, de altruísmo e de comoção nas massas garantido pela mídia. O autor justifica seu argumento dizendo

Em suma, trata-se de algo tão incontrastável quão circunscrito, tão amplo quão efêmero, pois as campanhas midiáticas têm sua eficácia condicionada ao fato de que não entram na rotina, mas são bastante espaçadas entre si. Daí em diante, logicamente concebidas, as campanhas filantrópicas devem levar em conta os fatores de saturação e fastio do público. [...] Os meios de comunicação não desempenham o mesmo papel que as instâncias tradicionais da moral; quer dizer, não dão origem a uma consciência sistemática, compenetrada em relação aos deveres, mas apenas “gerenciam” a opinião social em doses intermitentes e põem em evidência, de modo seletivo, alguns “produtos” receptores.218

Verifica-se que a mídia seleciona fatos específicos e os exibe em programações específicas, mesclando imagens e textos com notícias de outras naturezas, tendo o devido cuidado para cativar a atenção do receptor sem, no entanto, perdê-lo. Essa lógica de transmissão de fatos provoca reações variadas como o sentimento de indignação, comoção e de altruísmo, porém, como atestado pelo autor, com pouca capacidade de orientação a ações morais sistemáticas, refletindo mais uma gerência de sentimentos moralizantes.

Em tempos hipermodernos, a lógica do pós-dever veste-se com uma roupagem religiosa na medida em que determina ações morais que possam, antes de privar indivíduos da

217 Ibid, p. 114. 218 Ibid, p. 114. 122

realidade da exclusão de bens mínimos necessários à vida, provocar alívio nas consciências, satisfação moral nas massas com a possibilidade de engajamento mínimo em campanhas caritativas espaçadas, localizadas e distantes, insuficientes para provocarem o desconforto que uma militância altruísta assídua poderia gerar. Como manifestação de uma suposta religião secularizada, o pós-dever promove um individualismo de participação coletiva.

O tema da preocupação ética retoma foros de legitimidade em contextos científicos, políticos e sociais também. Em face disto, o autor vê emergir “no mais profundo das mentalidades, um altruísmo indolor de massa”.219 Ou seja, trata-se de uma doação de si ao semelhante concebida apenas de forma bastante limitada, restrita, se manifestando mais veementemente em contextos emergenciais, e ainda assim, com pouca capacidade de perpetuação. É um altruísmo esgotado de sacrifícios pessoais, sendo este o seu limite. É um altruísmo que não encerra em seu foco de ação perdas pessoais, tão pouco se pretende ao nível do comprometimento a causas alheias. Lipovetsky salienta que “individualismo e egoísmo não são termos equivalentes”, ou seja, a sociedade contemporânea é individualista ainda que se manifestem correntes campanhas e ações que apontem para o seu oposto. É individualista ainda que em menor escala seja generosa.

Na hipermodernidade, mais do que egoísmo e indiferença social, o que se manifesta são picos de generosidade descomprometida, socorros à precariedade humana sem que as ações benéficas possam ser interpretadas como vínculos duradouros, comoção sem eliminação das diferenças, secularismo da religião e religião secularizada mais que comprometimentos em ordens religiosas incapazes de proverem respostas aos anseios subjetivos dos indivíduos, “solidariedade compatível com o primado do ego”.220

No entanto, não é apenas no universo das ações altruístas que se percebe pequenos picos de manifestação de uma religião secularizada, também nas considerações do autor a respeito do trabalho voluntário compreende-se a sua manifestação.

2.3. O trabalho voluntário cujo fim é o indivíduo que o realiza

Ainda que uma suposta religião secularizada proponha uma ética egocêntrica, individualista ao extremo, ou como prefere classificar Lipovetsky, que “glorifica o ego”, o

219 Ibid, p. 109. 220 Ibid, p. 110. 123

trabalho voluntário beneficente alcançou reconhecimento social. Segundo o autor, “nossos meios sociais não exaltam o altruísmo a título de ideal obrigatório, mas o voluntariado assistencial goza da simpatia da opinião pública”.221 Essa simpatia referida é conseqüência de fatores como o desprestígio social agregado paulatinamente aos grandes discursos e promessas de ordem política, e também, ainda que de forma paradoxal, a elevação do individualismo exacerbado. A isto Lipovetsky considera como o “novo status do voluntariado”, que em sua perspectiva, “está na confluência de dois caminhos: a erosão da fé naquilo que é ‘exclusivamente político’, de um lado, e a expansão crescente dos ideais de autonomia individual, de outro”.222

Em se tratando ainda da questão do voluntariado como sendo mais uma manifestação que reflete a solidificação do crescente individualismo na contemporaneidade, Lipovetsky é perspicaz ao identificar referenciais para as práticas de voluntariado que são distintos dos mais comumente compreendidos, como aqueles que se referem aos grandes ideais humanos, entre eles o cuidado mútuo, além de outros. Em virtude das influências da lógica do pós-dever também na dimensão das ações beneficentes, “os elementos que constituem as motivações básicas do voluntariado consistem sobretudo no prazer de reencontrar alguém, no anseio de valorização social, no preenchimento do tempo extra”.223 São elementos que prevalecem sobre a motivação altruísta genuína, e que em sua gênese de manifestação se encontram implicados fatores como o esfacelamento de vínculos duradouros entre os indivíduos em virtude da manutenção de uma dinâmica de vida que cria condições para o contínuo isolamento social. Além disto, instituições tradicionais que serviam como pontos de encontro entre os indivíduos e como instituidoras de referenciais sociais, na contemporaneidade, são substituídas por redes sociais, onde os relacionamentos são virtuais, os comprometimentos são suplantados pela distância e pela própria natureza da relação, e onde também os conflitos gerados nestes encontros virtuais também são mínimos. No entanto, a necessidade de encontrar o outro, mesmo que sufocada ainda permanece, sendo os engajamentos beneficentes uma prática com vistas a suprir este anseio. Lipovetsky coloca

A própria sociedade atual, enquanto cria o isolamento entre os indivíduos e suprime as redes tradicionais de solidariedade, leva à apetência de novos elos de sociabilidade e a novas formas de intercâmbio social. Eis porque a ocupação voluntária corresponde a essa necessidade de participação e inserção numa comunidade, desempenhando a função de

221 Ibid, p. 118. 222 Ibid, p. 120. 223 Ibid, p. 120-121. 124

meio de afirmação pessoal e social, precisamente numa época de desqualificação, de perda de pontos de referência quanto à identidade social e conseqüente busca de compensações simbólicas.224

É desta maneira que se verifica na atualidade um tipo de individualismo que concilia nas práticas de voluntariado o desejo de prestar assistência a outrem, mas também de alcançar aspirações de ordem privada. É através dos frágeis laços estabelecidos com indivíduos desafortunados mediante engajamentos descomprometidos em ações beneficentes que se compreende o trabalho voluntário na contemporaneidade cujo fim é inverso, ou seja, aquele que o realiza mais do que o indivíduo beneficiado. Como coloca o autor, “hoje, as aspirações beneficente não tem mais lugar na cultura das prescrições obrigatórias, e está baseada sobretudo na procura de um suplemento existencial, num ‘superávit de vida’”.225

À lógica do pós-dever vestida com uma roupagem de religião secularizada não se aplica a afirmação de que a sociedade atual é caracterizada por um vazio de valores, pela extinção de práticas de quaisquer naturezas que consideram a dignidade individual e coletiva ou ainda pelo apego e aceitação pacífica de condutas irresponsáveis e agressivas. Nas palavras do autor

Quaisquer que sejam as manifestações de um individualismo extremado, é forçoso observar que não atingimos o grau zero de valores. O senso de indignação moral não foi de modo algum erradicado, nossas sociedades reafirmam um núcleo estável de valores partilhados: os direitos humanos, a honestidade, o respeito pelas crianças, a rejeição da violência e da crueldade. [...]. O culto ao presente impera, mas o senso de responsabilidade para com as gerações futuras não desaparece de modo algum, como demonstram a sensibilidade ecológica e o interesse pelo desenvolvimento duradouro.226

Por pós-moralista e ainda por individualismo consumado, o autor não pretende dizer que a época atual equivale a um exílio de ações responsáveis para consigo mesmo e também para com o semelhante, muito pelo contrário, há, de fato, um conjunto de regras mínimo, básico e consensual, sem caráter coercitivo, necessário à vivência em comunidade, não fundamentado em critérios metafísicos, e que regula e torna possível a vivência mútua de forma agradável. Portanto, a análise sociológica que demoniza o momento atual se mostra precipitada, não considerando tantos reclamos manifestados na contemporaneidade em favor

224 Ibid, p. 121. 225 Ibid, 122. 226 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 135. 125

de um viver responsável para com os recursos naturais, para com o meio social que se partilha, enfim, para com a vida humana.

Uma religião secularizada, comprometida com o descomprometimento, que cultua o ego, deslocalizada e, portanto, fluída no espaço, permite em seu universo os chamamentos à vida responsável um vez em que estes apelos concordam para o bem estar pessoal e para a perpetuidade da vida presente. Neste universo, engajar-se em trabalhos sociais voluntários em benefício de outros é mais um dos caminhos que o indivíduo trilha em busca de sua plena realização pessoal.

2.4. A tolerância indiferente

Um dos valores básicos que angaria apreço e relevância social nos contextos pós- moralistas é o valor da tolerância. Elevado a categoria de valor de massa, o valor da tolerância justifica e também legitima a pluralidade de opções e interpretações disponíveis em universos distintos, como o religioso e também o sexual. Lipovetsky coloca que

A tolerância adquire uma maior fundamentação social não tanto pelo fortalecimento da compreensão dos deveres de cada um perante o próximo, mas em razão de uma nova dimensão cultural que rejeita os grandes projetos coletivos, exaurindo de sentido o moralismo autoritário, diluindo o conteúdo das discussões ideológicas, políticas e religiosas de toda conotação de valor absoluto, orientando cada vez mais os indivíduos rumo à sua própria meta de realização pessoal.227

É desta maneira que a tolerância reflete o paradoxismo do tempo atual, pois a sua ascensão é também o reflexo da rejeição da coerção dos deveres em relação à aceitação de normas impositivas de ordem política ou religiosa, e também no que diz respeito ao sentimento de obrigatoriedade presente nas consciências de que se deva responder satisfatoriamente às expectativas sociais relacionadas a um comportamento social ideal. Nas palavras do autor, “no momento em que impera o culto do ego é que os valores de tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema”.228

227 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 126-127. 228 Ibid, p. 127. 126

Ainda que tolerar a expressão e opinião de indivíduos semelhantes seja um valor consagrado nos tempos pós-moralistas, o autor é enfático em destacar que, tampouco, o relativismo está consumado, ou seja, não pode ser compreendido como categoria social totalizada. Muitos comportamentos e opções são rejeitados, sobretudo quando ultrapassam os limites que demarcam os espaços das escolhas e opiniões individuais, colocando em risco a segurança privada e coletiva. Por exemplo, condutas religiosas que comprometem esses limites quando difundem suas práticas são terminantemente rejeitadas, pois transgridem um princípio maior implicado nas relações sociais que é aquele que diz respeito à liberdade pessoal. Da mesma forma, práticas sexuais abusivas também não desfrutam da aceitação das massas. Outros temas de caráter ético ainda dividem opiniões e provocam debates constantes nos campos da política e da ciência, como as que dizem respeito ao aborto, a eutanásia e todas as demais possibilidades oferecidas pela engenharia genética de manipulação da vida. Segundo o autor, “a tolerância pós-moralista não se identifica com a derrocada geral dos valores ou com a renúncia a todas as convicções. [...] o diferencial pós-moderno comporta limites, nem tudo se equivale – há apenas interpretações equivalentes”.229

Mesmo que os limites referidos acima sejam estreitos, eles existem e fazem valer os seus espaços refletindo também a existência de uma incoerência e até confusão no modo como a tolerância tem sido aplicada e compreendida. É o que Lipovetsky considera ao afirmar que “a consciência individualista é uma mescla de indiferença e repugnância pela violência, de relativismo e universalismo, de incerteza e imposição absoluta dos direitos do homem, de abertura às diferenças ‘dignas de consideração’ e recusa às diferenças ‘inadmissíveis’”.230

Analisando a temática da indiferença no momento atual, Lipovetsky considera que esta perspectiva cresce sendo reconhecida em várias esferas sociais, como no ensino, onde os professores perderam o respeito e a admiração que antes lhes eram atribuídos, também na política, em virtude da redução no número de interessados à participação política que define as autoridades de uma cidade ou nação, e inclusive na família também, pois, entre outros aspectos, aumenta o número de casais que desejam viver sem filhos. À luz destas constatações, o autor coloca que

O momento moderno é muito mais do que uma moda: revela o processo da indiferença pura no qual todos os gostos e todos os comportamentos podem coabitar sem se excluírem, tudo pode ser escolhido à vontade, tanto o mais operacional quanto o mais

229 Ibid, p. 127. 230 Ibid, p. 127. 127

esotérico, tanto o novo quanto o velho, tanto a vida simples-ecologista quanto a vida hipersofisticada, em um tempo desvitalizado sem referência estável e sem maior coordenação.231

A religião do pós-dever não é impositiva, tampouco categoricamente tolerante, permitindo em seu campo expressões identitárias diversas, compreensões religiosas distintas e até conflitantes, e também um conjunto de ética mínimo, elementos estes que estão todos eles sujeitos ao primado ostensivo do ego, do eu individualista, zelando pela preservação de sua integridade.

A fim de elucidar suas observações a respeito da tolerância, Lipovetsky põe em foco de análise a questão da tolerância quando aplicada ao campo religioso em toda a sua complexidade e diversidade.

Considerando a contemporaneidade como uma época que reflete um re-encantamento do mundo, ainda que muitas manifestações ditas religiosas se tratem mais de espiritualidades respaldadas em bases mágicas e, portanto, não sistematizadas, com pouca estrutura sólida de religião, se manifestando em espaços diversos, não específicos, e até mesmo com poucas referências às principais categorias que qualificam as religiões como tal, Lipovetsky concorda que há lances isolados de pequenos e também de grandes grupos religiosos que refletem práticas intolerantes mais que tolerantes, algo como que uma tentativa de reafirmação do espírito religioso absoluto ou fundamentalista de um grupo específico.232 No entanto, o autor considera também que tais ações são de um alcance muito limitado, prevalecendo nas mentes dos indivíduos o desejo de se esgueirar dos ordenamentos religiosos e de rejeitar os discursos autoritários. Em suas palavras, “deixando de se guiar pelas autoridades oficiais, as concepções religiosas se desestruturam; tornam-se mais fluídas, ficam pautadas pelos self-service e pela diversidade dos elos de ligação”.233

O autor reconhece nesta postura de rejeição a autoridades religiosas, também uma manifestação do espírito individualista contemporâneo, de uma religião do tipo secularizada circulando nas esferas sociais e influenciando as consciências em suas condutas e modos de vida, ainda que imperceptivelmente. “Na era hiper-individualista, a autonomia subjetiva se

231 Idem, A era do vazio, p. 23. 232 O autor cita fatos isolados e sem datação como atentados provocados por grupos cristãos contra clínicas abortistas e incêndios de salas de cinema que exibiam filmes considerados sacrílegos. Comenta também a respeito das tentativas de grupos religiosos maiores de reafirmar as suas concepções, como os grupos islâmicos que reconhecem apenas o Corão como regra de vida. A sociedade pós-moralista, p. 130-131. 233 Ibid, p. 131. 128

manifesta, na maioria dos casos, pela desvalorização das autoridades morais externas àquilo que brota do próprio indivíduo”.234

2.5. Um pluralismo religioso ou uma busca plural do indivíduo religioso?

O pluralismo religioso tão reconhecido no tempo atual é entendido por Lipovetsky como sendo a manifestação não apenas de diversas religiões, espiritualidades ou práticas mágicas a disposição de consumidores afoitos por novidades também no universo religioso, que reclamam para si a posse de uma verdade absoluta, o código de ética mais correto, o conhecimento acerca do futuro ou uma fórmula para a posse de um futuro pretendido, embora manifestações desta natureza e com estes fins aconteçam e sejam facilmente reconhecidas no cenário social atual. Porém, segundo o autor, todos estes picos de religiosidades diversas podem refletir também uma busca subjetiva e privada de caráter plural feita por cada indivíduo religioso, aquilo que o autor denomina como sendo uma prática religiosa promíscua, englobando em si uma multiplicidade de elementos, símbolos e ritos pertencentes a grupos diversos, concedendo, no entanto, ao indivíduo a capacidade de manipulá-los tão livremente de modo à resignificá-los para que sejam aptos a atenderem os propósitos individualistas particulares.

A época atual reconhece como legítima a prática sincrética porque seu valor fora suplantado pelo valor do indivíduo que a busca. Conforme abaixo

Simultaneamente, as crenças passam a gravitar mais propriamente em torno de uma busca pessoal subjetiva, incorporando, cá e lá, promiscuamente, ingredientes de tradição do Oriente e do Ocidente: espiritualidade e esoterismo, visão de absoluto e bem-estar holístico, meditação e relaxamento, mistérios e terapias corporais. A busca intensiva de uma verdade subjetiva e sincrética ocupou o vazio dos dogmas livremente aceitos; a “nova dimensão da consciência” ficou no lugar do dirigismo disciplinador da alma; a autenticidade espontânea ocupou a posição das antigas regulamentações.235

Parece ser possível considerar, à luz das colocações aqui feitas, que a busca plural do indivíduo religioso pressupõe que o sentido seja encontrado no excesso da oferta, na absorção contínua e fluída não de concepções isoladas, mas de postulados religiosos diversos cuja

234 Ibid, p. 132. 235 Ibid, p. 131-132. 129

verdade fundamental se encontre manifesta em fragmentos espalhados no conjunto de representações que preenchem o distinto campo religioso. Há o convencimento social nas consciências de que o sentido não pode ser retido em um espaço específico ou discernido em um postulado específico. Por conseguinte, tal constatação fragiliza também a estrutura religiosa de grupos que prestam um significado particular a localidades de relevância fundamental às suas crenças, como lugares onde a religião foi fundada ou lugares em que sua compreensão recebeu uma significação especial. O sentido, tampouco, pode ser apreendido em toda a sua proporção por uma só instituição, seja ela religiosa ou não, pelo contrário, compreende-se que sua apreensão somente é possível quando da tentativa individual de se juntar os seus diversos fragmentos espalhados pelos campos. Pode ser possível cogitar também que o sentido, para o indivíduo hipermoderno, não se localiza consigo mesmo. A simpatia que muitos nutrem em relação às espiritualidades modernas ratifica a hipótese de que a hipermodernidade não exclui a dimensão religiosa de seu escopo social, pelo contrário, ela se faz necessária na medida em que seve também de opção para que as aspirações subjetivas sejam satisfeitas plenamente. Há ainda a concepção de que o próprio sentido é plural, sua qualificação, portanto, depende da correspondência que instituições, tradições ou religiosidades possam conferir às aspirações privadas dos indivíduos. O autor considera, então que “nesse universo incerto, caótico, privado de referências coletivas estruturantes, crescem necessidades de unidade e de sentido, de segurança emocional, de reconforto, de ancoragem e de calor comunitários: essa é a nova competência das espiritualidades religiosa e laicas”.236

Na sociedade pós-moralista, os indivíduos que buscam religião o fazem na tentativa de incorporar em sua religiosidade praticada a mesma lógica do prazer, da variedade, da novidade e da satisfação que perambula na sociedade atual, cujo comprometimento em causas alheias é frágil, cuja negação a uma observância rigorosa de regras e normas é latente, cujos engajamentos de doação é limitado apenas ao plano da conveniência ao bem estar pessoal. Segundo o autor, a hipermodernidade não equivale à hipótese de um neofundamentalismo se fazendo presente nos meios sociais, antes, “volta-se para a emancipação dos espíritos em face das práticas, vinculações e dogmas religiosos”.237

O autor é ainda perspicaz ao considerar como improvável a hipótese que admite ser a época atual um momento de retorno da esfera religiosa em sua capacidade de prover

236 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 134. 237 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 131. 130

significação para a vida. Ainda que reconheça a manifestação de um novo apego à questão desta natureza, Lipovetsky consegue discernir a complexidade desta realidade afirmando que

“Retorno” do religioso não é o termo adequado, visto que o fenômeno se apresenta como essencialmente pós-tradicional, desprendido da autoridade heterônoma de uma tradição imposta e baseado no engajamento subjetivo dos indivíduos, com tudo o que daí decorre em matéria de falta de participação, de bricolagem das crenças, de conversões, de neomisticismo, de afetivização do crer, de crença sem vínculo. Com a desinstitucionalização do religioso, o momento é da individualização, da dispersão, da emocionalização das crenças e das práticas.238

Na contemporaneidade, não são as religiões que dão forma aos indivíduos, mas são os indivíduos que dão forma às religiões, as adequando conforme as suas necessidades, juntando suas ofertas em um único pacote que lhe possa satisfazer. No entanto, é fato também que muitas espiritualidades se originam em favor do aparecimento de novas demandas que trazem consigo novas exigências.

Em tempos em que o pós-moralismo impera, os grandes discursos religiosos voltados para o altruísmo como causa a ser seguida, ou a busca pelo bem estar coletivo mais que privado na dinâmica do cotidiano, entre outras motivações sublimes, perdem a sua legitimidade. O pós-moralismo implode discursos deste tipo em seu próprio eixo, ou seja, fragilizando as grandes tradições na medida em que os seus próprios adeptos se voltam para práticas religiosas mais confortáveis e menos dispendiosas. É nesta perspectiva que, simultaneamente, o pós-moralismo cria as condições para o nascimento de grupos que se devotam ao indivíduo buscando satisfazê-lo em suas aspirações privadas, tratam-se das religiões midiáticas que, a despeito da pouca estrutura que desfrutam, bem como de uma temporalidade evasiva, ou seja, alcançando picos de aceitação e também se tornando focos de pesadas reprimendas, alavancam multidões com discursos abstidos de dever altruísta ou quaisquer outros ônus, mas discursos sim enriquecidos com boas medidas de promessas de realização pessoal. Nas palavras do autor, “aí está a nova era das religiões, agora em kit, direcionadas para o próprio eu – eqüidistantes tanto de um modelo global de intolerância religiosa como de uma visão racional que recusa o sentido do transcendente”.239 A busca religiosa plural pelo indivíduo religioso é fato, este considera ser possível aproveitar um pouco de tudo o que lhe é oferecido em termos de religião. No entanto, também é verificável a

238 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 133- 134. 239 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 132. 131

manifestação de ofertas religiosas inusitadas que prometem lhe satisfazer em buscas e anseios específicos, tudo a um custo relativamente muito baixo. Também é fato o interesse religioso plural por indivíduos até então não religiosos, o que acontece em virtude do potencial que as religiões e espiritualidades detêm de prover e satisfazer buscas privadas.

As espiritualidades que compõem todo um escopo de religião de caráter secularizado se manifestam à disposição do consumidor. Sua prática sincrética une não apenas concepções religiosas de tradições diversas em uma única prática religiosa, mas também englobam em si os devotamentos ao consumo, ao luxo, ao bem estar subjetivo, enfim, à lógica moda tão presente na hipermodernidade.

2.6. A manifestação de um neofundamentalismo?

Mesmo que o universo religioso em toda a sua complexidade e pluralidade, compreendendo neste universo a emergência de novas espiritualidades e de novas formas de se praticar religião ou de se concebê-la, goze da simpatia do indivíduo hipermoderno, e que haja também manifestações isoladas de grupos de caráter fundamentalista reclamando direitos de propriedade, a posse de verdades absolutas e também o reconhecimento de suas demandas, para Lipovetsky, não há provas concretas que reconheçam como válida a hipótese de que a hipermodernidade seja característica de um tempo de um retorno ao fundamentalismo religioso. Em suas palavras

Não laboremos em erro; esse neofundamentalismo de modo algum nos reconduz ao antigo universo da tradição, pois também corresponde a uma faceta da liberdade individual, isto é, a uma procura da própria identidade, a uma livre opção que se caracteriza por casar a autoridade dos dogmas e a submissão à comunidade.240

Para Lipovetsky, ainda que haja manifestações deste tipo, tais ações não detêm o poder de engajar as massas reunindo pessoas em torno de um objetivo comum, tampouco detém prestígio social ou a admiração do público, pelo contrário, para a maioria das consciências há que se zelar pela prudência e comedimento em toda e qualquer ação pública, há que se prestar o devido respeito aos espaços e opiniões alheias, principalmente quando estes espaços se configuram em torno de confissões religiosas, enfim, a maior parte dos indivíduos se inclina mais à promoção de condições de vida pacíficas em comunidade do que

240 Ibid, p. 132. 132

a mudanças angariadas pelo recurso da força e da violência. O que está em risco, para aquele que se compromete, é o exercício de sua própria autonomia e liberdade individual. São as suas escolhas, preferências e pretensões que podem ser perdidas em virtude dos interesses de um grupo pequeno de indivíduos. Desta maneira, tais ações tampouco conseguem provocar grandes rupturas sociais ou políticas, são apenas focos isolados de atuação promovidos por grupos minoritários que de forma mais ousada buscam fazer valer as suas aspirações, grupos que, agindo sob uma pretensa nacionalista, buscam no extremismo de suas ações também a contemplação de anseios exacerbados de caráter privado.

Ainda que não detenha o poder para instituir paradigmas passados, Lipovetsky ressalta as conseqüências geradas pelas ações de grupos desta natureza

Uma das vertentes da hipermodernidade é, assim, o aumento do caos balcanizado, das seitas e dos movimentos terroristas. Mesmo que não consigam romper a democracia, as minorias ativas conseguem pô-la em estado de choque, aterrorizar o cotidiano, abalar repetidamente a tranqüilidade pública. Mais sólida do que se imagina, a sociedade liberal não soçobra, mas os efeitos disso também são consideráveis. Tendo ao fundo a desestabilização psicológica dos indivíduos, o perigo por vir não reside na destruição violenta das democracias liberais, mas em seu assédio pelas minorias perigosas, em um processo de insecuridade crônica.241

Na hipermodernidade, o neofundamentalismo reflete os limites de um individualismo consumado, satisfeito, a saber, aquele tipo de prática que faz valer as pretensões, de ordem privada, pelo uso da força, da imposição. Lipovetsky considera que fenômenos como os levantes neo-fundamentalistas não são evasivos ou isolados, pelo contrário, segundo o autor, “tudo leva a crer que vai prosseguir em razão das novas demandas identitárias originadas por uma hiperindividualização causadora de ansiedade”.242 No entanto, a pouca admiração que movimentos desta natureza angariam, bem como a limitação no número de seus adeptos, também aponta para a verdade de que o indivíduo hipermoderno preocupa-se consigo, com seu bem estar garantido, com sua condição de vida confortável, passiva e tranqüila, mais do que com a nação, sua condição ou com os reclamos de grupos minoritários.

O suposto neofundamentalismo pós-moralista é de caráter evasivo, está presente aqui e acolá, “as porções periféricas extremadas desfraldam vistosas suas bandeiras, mas em

241 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 52-53. 242 Ibid, p. 52. 133

profundidade isso pouco repercute. Não há mais corrente mística de nenhuma natureza em condições de desviar o curso da sociedade civil de sua orientação global”.243

A sociedade pós-moralista busca a reconciliação mais que a ruptura, os encaixes mais que os desencaixes, a boa vivência mútua mais que os conflitos individuais e coletivos, a religião confortável, light, prazerosa, secularizada e sem custo ou risco pessoal mais do que os enquadramentos em grandes causas neofundamentalistas cujos propósitos não concordam e tampouco garantem os mesmos benefícios que a vida descomprometida e individualizada assegura aos seus indivíduos.

2.7. O culto ao ego

Além das esferas que foram citadas acima, a supervalorização da higiene, de hábitos que sejam saudáveis e que promovam a perpetuação da vida, a apreciação pela exibição constante de um corpo perfeito, e outros aspectos desta mesma natureza, também compreendem o escopo de análise do autor. Neste sentido, o elemento religioso também se faz presente nas entre linhas de suas reflexões, sendo sua apreensão possível quando se considera a mudança de paradigma que a hipermodernidade proporcionou também nesta esfera social.

O autor considera que “a profissão de fé da moral individual”, pertinente à modernidade em sua ascensão, elevava a observância pela higiene e pelo bem estar corporal ao status de dever social, portanto, obrigatório a todo indivíduo.244 Segundo o autor, na modernidade, “a limpeza é exigida em nome do respeito aos demais, mas também do respeito a si próprio”.245 Os ambientes coletivos legitimavam a observância a práticas de higiene sob pesadas reprimendas que eram feitas àqueles que se descuidavam desta exigência moral social. A presença de indivíduos descuidados desta norma em estabelecimentos públicos e, portanto, coletivos, causava aversão e o desejo de exclusão social, além de olhares severos de reprovação e de julgamentos condenatórios lançados sobre os faltantes. É nesta perspectiva que a conduta daqueles que se demoravam com o álcool, por exemplo, era terminantemente condenatória. Também, os que desprezavam o corpo se entregando a práticas libidinosas, da mesma maneira, o faziam de forma discreta a fim de conservar a dignidade pessoal. Além da

243 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 133. 244 Ibid, p. 77. 245 Ibid, p. 77. 134

falta para consigo mesmo, indivíduos desta estirpe comprometiam o cuidado de outros que dependiam de sua disciplina pessoal, como por exemplo, quando um chefe de família se via engendrado nestes e em outros vícios, comprometendo assim o bem estar daqueles que estavam sob sua responsabilidade. A sociedade moderna daquela fase, de um modo geral, estava convencida de que práticas não zelosas pela saúde e integridade pessoal se classificavam como desvios repugnantes e inaceitáveis, uma vez que comprometiam também a ordem social ideal.

A hipermodernidade, por sua vez, tampouco representa o fim dos discursos da saúde. Aquilo que teve início com o advento da modernidade ainda se faz presente na contemporaneidade, porém, sob a luz de novas razões. Pode-se dizer que um novo paradigma se impõe com a hipermodernidade de modo a reconhecer novos aspectos presentes nos ainda constantes apelos sanitários. Segundo o autor

O discurso sanitarista está, de fato, mais do que nunca presente; contudo, simultaneamente, deixou de entoar loas aos deveres individuais. Nos pontos capitais, a ligação individual com o próprio corpo deixou de ser considerada em termos de obrigação incondicional; as referências ao bem-estar e às aspirações pessoais é que se tornaram predominantes, sobretudo o que tenha relação com os conceitos de limpo e sujo. [...] As práticas de higiene deixaram de remeter aos deveres para consigo mesmo, passando a ser exercidas na cadência dos prazeres íntimos.246

Mesmo os cuidados básicos necessários para com a saúde foram absorvidos pela lógica do pós-dever e da satisfação pessoal. Nesta perspectiva, tornaram-se também objetos de mercado para o consumo experiencial e emocional. Lipovetsky justifica seu argumento acrescentando que “por toda parte, o que prevalece é um verdadeiro hino de louvor à sedução, ao amor de si, ao bem-estar narcisista”.247

É neste sentido que se compreende as intenções de propagandas de produtos de higiene que praticamente suplantam as funções em si do produto para dizer prioritariamente dos benefícios simbólicos que ele pode conferir. Aspectos relacionados à sensualidade, ao erotismo, à capacidade de sedução para provocar a atração alheia estão quase sempre presentes em propagandas deste tipo, pois atingem exclusivamente o campo de anseios íntimos dos indivíduos, anseios estes por significação existencial, reconhecimento social e aceitação própria, mas que são traduzidos pelas propagandas com vistas a um convencimento

246 Ibid, p. 78-79. 247 Ibid, p. 79. 135

de seus receptores como sendo anseios por beleza física reconhecida, por uma aparência condizente com os critérios mínimos de beleza erigidos pela sociedade, pela exibição de um corpo perfeito e com saúde impecável. Lipovetsky cita, como exemplo, o sabonete, dizendo que “antes, a idéia de sabonete vinha associada aos conceitos de energia, saúde, disciplina moral; hoje, em vez disso, os produtos de toalete frisam a doçura, o charme da boa aparência”.248

Uma suposta religião secularizada também permeia o universo sanitário hipermoderno, nas palavras de Lipovestsky, verifica-se um verdadeiro “culto à saúde” se manifestando no cotidiano atual.249 Há como que uma mística em torno das práticas de higiene pessoal, do corpo perfeito, de um ideal de saúde perpétua elevado ao status de valor primeiro na escalada das necessidades individuais.

Os empreendimentos a que os indivíduos se engajam com vistas ao alcance do corpo ideal mais para si do que para a contemplação alheia pode ser entendido abaixo, conforme constata o autor

Em nome da religião da saúde, é preciso informar-se sempre mais, consultar os profissionais, vigiar a qualidade dos produtos, sopesar e limitar os riscos, corrigir nossos hábitos de vida, retardar os efeitos da idade, passar por exames, fazer revisões gerais. Foi- se a época feliz e despreocupada da mercadoria: o tempo que chega é o da hipermercadoria medicalizada, reflexiva e preventiva, carregada de preocupações e de dúvidas, exigindo sempre mais a atividade responsável dos atores.250

O engajamento na corrida sanitária, na busca pela saúde perfeita, na perpetuação da vida saudável também reflete o desejo de perpetuação do presente. Não apenas isto, mas principalmente o desejo individual de encontrar-se bem consigo mesmo, de reconhecer-se no meio social com satisfação. Aspectos estes que marginalizam o desejo de diferenciação perante os demais.

Na hipermodernidade, o indivíduo busca na saúde perfeita e no corpo perfeito a satisfação de anseios antes compreendidos como sendo de natureza religiosa. Simultaneamente, o mercado da saúde também roga para si a competência em responder a estes anseios assumindo ele mesmo um caráter quase que religioso na maneira como se articula e também no modo como faz valer as suas pretensões e promulga os seus discursos,

248 Ibid, p. 79. 249 Idem, A felicidade paradoxal, p. 55. 250 Ibid, p. 54. 136

assegurando aos seus adeptos segurança no presente e também no futuro, o prolongamento da vida e a capacidade de desfrutá-la com um bem estar contínuo. Mensagens deste tipo são veiculadas com o intuito de convencer as consciências de sua veracidade.

A luz destas constatações, Lipovetsky coloca que “dá-se por encerrado o ciclo da obrigação perante si e perante os demais; a higiene corporal, os cuidados dentários e com os cabelos agora se vinculam à sedução e à auto-satisfação”.251 Não se trata mais de uma correspondência às expectativas alheias ratificadas por uma moral social ideal, “nada concretiza melhor o declínio do ethos do consumo pelo prestígio que a evolução das demandas e dos comportamentos relacionados à saúde”.252 O que se presencia atualmente é sim uma busca constante por sensações que propiciem um sentimento de satisfação e de esmero para com as expectativas relacionadas à própria aparência.

A devoção ao ego eleva-se prioritariamente nas motivações que levam os indivíduos a engajarem-se nas corridas em prol da saúde. Portanto, também na esfera sanitária parece ser possível identificar a manifestação de uma religião secularizada se fazendo presente na sociedade atual. Na hipermodernidade, o ego é um deus e o corpo perfeito é um de seus ídolos.

2.8. O retorno da moral sexual de tradição ou sexo comedido?

A modernidade legitimou ao longo dos tempos todas as formas, práticas e opções sexuais localizando-as como pertencentes ao escopo de direitos privados de cada indivíduo. Por sua natureza, esse escopo ou conjunto de pretensões está aquém da violação e de julgamentos de tradições religiosas ou sociais. Não pode ser medido a partir de um padrão pré-estabelecido, pois é peculiar da modernidade em seu momento hiper demolir padrões, conjuntos, sistemas e tudo aquilo que possa inibir a espontaneidade individual, inclusive no que diz respeito a questões sexuais.

O direito a felicidade e a realização amorosa individual esfacelaram a rigidez da moral sexual de tradição. Os valores relacionados a uma prática sexual comedida, responsável, que observa as condições mínimas necessárias para um ato sexual seguro e preventivo, sofreram dura repressão social na segunda metade do século passado. Antigos preceitos sexuais que

251 Idem, A sociedade pós-moralista, p. 79. 252 Idem, A felicidade paradoxal, p. 53. 137

visavam o estabelecimento e a manutenção de um modelo ideal de comportamento sexual, modelo este fortemente impregnado de pressupostos de natureza religiosa, foram sendo descartados e pouco valorados na modernidade.

No entanto, a despeito do enfraquecimento da religião como instituição reguladora da moral sexual, e também da concepção de liberdade de opção e prática sexual sem que a escolha individual estivesse condenada a viver sob o estigma de um comportamento social errante, a partir da análise de Lipovetsky verifica-se que nos tempos do hiper seria precipitado descrever o quadro social dos relacionamentos amorosos e sexuais como sendo puramente libertino. Pelo contrário, em sua perspectiva, o que se manifesta atualmente são correntes motivações a uma prática sexual cujo zelo pela perpetuação da saúde física e mental seja considerada como valor primordial, um novo paradigma a ser observado. Lipovetsky coloca que

Com efeito, o que se pretende agora é precisamente não estar na dependência alheia, precaver-se contra o contágio da Aids, desejar cada qual ser objeto de desejo, mas sem um compromisso de natureza íntima. Logo, o que antes era uma obrigação de natureza moral passou a ser apenas uma escolha individual intermitente, uma vida saudável num kit, uma salvaguarda e um culto narcisístico.253

Libertinagem, prática sexual desenfreada, concessão de plena liberdade à satisfação dos desejos privados, busca por experiências sexuais inusitadas, práticas sexuais em grupo, entre outras iniciativas que alcançaram legitimidade à medida que a modernidade sufocou os sermões morais da religião e de outras instituições, não encontram referência na contemporaneidade. A hipermodernidade reflete, ao contrário daquilo que se reivindicava em décadas passadas, um retorno ao zelo pelo corpo, a abstenção de aventuras que possam colocar em risco o bem estar individual em seu aspecto físico e emocional. Nas palavras do autor

“A onda sexual chegou ao fim”. Após o imperialismo orgástico das décadas de 1960- 1970, a sociedade atual, saturada de idolatria sexual e agoniada pela disseminação dos vírus, estaria a caminho de reestruturar o “amor à distância” e o refreamento dos sentidos. Temperança em vez do prazer sexual; conduta moral saudável em vez das sucessivas experiências sexuais; “sexualidade tranqüila” em vez da revolução sexual; gestos de afeto e idealização do amor em vez do amor libidinoso.254

253 Idem, A sociedade pós-moralista, p. 51. 254 Ibid, p. 50. 138

Lipovetsky é taxativo em sua maneira de compreender os movimentos sociais relacionados à esfera sexual, dizendo que “foi-se o tempo em que a virgindade, fidelidade ou continência em matéria de sexo eram valores tidos como ultrapassados”.255 A razão deste deslocamento, justamente quando aqueles que buscavam o reconhecimento do direito a busca por opções sexuais distintas de um padrão conhecido alcançaram o êxito de seus reclamos, se dá em virtude também das conseqüências que uma prática sexual liberal outorgou a seus adeptos. No entanto, além disso, tais mudanças correspondem também e, principalmente, às transformações que a cultura do pós-dever tem legado a sociedade atual. Segundo o autor

O fenômeno de particularização do elemento sexo, portanto, não constitui em nada uma negação dos princípios que engendraram o culto orgástico. Em outros termos, não se trata de um renascer do tradicionalismo em matéria de deveres, mas, pelo contrário, de uma outra modalidade da mesma dinâmica dos direitos à autonomia individual. Eliminando-se essa última obrigação normativa, pôr o sexo “em quarentena” implica tão-só um desdobramento da lógica do direito individualista de cada um viver como bem entende.256

Desta forma, a antipatia que se nutre atualmente para com uma vida sexual irresponsável, libertina, entre outros aspectos, não é reflexo do soerguimento da moral do dever em busca de foros de legitimidade nos tempos atuais, pelo contrário, o indivíduo que se nega a engendrar-se em aventuras sexuais de todo tipo busca garantir o seu próprio bem estar. Trata-se prioritariamente de um dever responsável para consigo mesmo, muito mais do que uma consideração responsável para com o parceiro sexual com quem se divide a relação. É nesta perspectiva que Lipovetsky salienta mais uma vez que o ego tem sido erigido, ainda que de forma desvairada e plural, a categoria de instância privada de natureza religiosa

A nova castidade não tem o sentido de algo virtuoso, não é mais um dever impositivo, baseado na idéia de que se respeita em si a própria pessoa humana, mas uma auto- regulamentação inspirada pelo amor e pela religião do ego.257

O culto prestado ao ego, no sentido de preservá-lo e mantê-lo íntegro, com uma devoção sem comedimento, ou seja, observando suas necessidades, abstendo-se daquilo que possa prejudicá-lo e organizando a vida em torno de seu bem estar, práticas que refletem quase que uma adoração ao corpo em si, parece refletir ainda mais um aspecto de uma religião secularizada gravitando socialmente nos tempos do hiper. Segundo o autor, “deixamos de crer

255 Ibid, p. 50. 256 Ibid, p. 51. 257 Ibid, p. 51. 139

na fantasia de que é possível ‘mudar a vida’; agora, só há o indivíduo soberano, dedicado a gerir sua qualidade de vida”.258

O indivíduo deixou de servir ao seu semelhante nos relacionamentos que com ele partilhava, inclusive os afetivos e sexuais, para prestar culto e serviço com devotamento irrestrito e incondicional a um senhor ainda mais rigoroso e inflexível, a saber, o seu próprio ego. Sendo assim, sua soberania pode ser questionada no que se refere aos seus limites de atuação. Trata-se de um status de autonomia individual alcançado pela libertação das obrigações relacionadas a compromissos benéficos com o semelhante em toda e qualquer relação, ou seja, o direito de viver só para si. No entanto, estaria o indivíduo contemporâneo cativo de maiores restrições, regras e ordenanças erigidas por um senhor ainda mais insaciável e rigoroso, ou seja, o seu próprio ego? Seria o ego um senhor mais cruel, impositivo e exigente do que o ego alheio a quem antes se prestava serviço? Estaria o indivíduo hipermoderno, de fato, livre da religião? Ou libertando-se dos compromissos com o seu semelhante, percebeu-se ele mesmo preso a uma instância de natureza religiosa muito mais sutil e inflexível que se põe a reclamar continuamente devoção e sacrifícios de seu servo? Estas e outras questões fortalecem a hipótese de que o pensamento de Lipovetsky contribui efetivamente para se pensar em uma religião secularizada se desenvolvendo na contemporaneidade.

A religião do ego, conforme coloca o autor, é por natureza prioritariamente individualista, porém, isto não equivale a dizer que em sua concepção e observância não haja uma consideração mínima pelo outro. O autor cita como exemplo a “prostituta respeitada”, salientando que a prostituição tem sido objeto de estigma e de dura reprovação social desde tempos remotos, porém, na contemporaneidade, sua prática já alcança alguns foros de legitimidade e valoração social. No entanto, “isso não quer dizer que a cultura neo- individualista, a bem dizer, aprove a prostituição: ‘apenas cessou de lhe atribuir a qualificação de algo abjeto’”.259 Lipovetsky coloca ainda que “cada um é senhor de seu próprio corpo; logo, o pecado da fornicação perdeu o sentido em face da coletividade, mas nem por isso o comércio sexual passou a ser legitimado no âmbito da sociedade”.260 A violência, deploração e exploração a que estão sujeitas estas profissionais sensibilizam a opinião pública ao invés de provocar repúdio ou julgamentos vexatórios e condenatórios em virtude dos riscos a que se submetem com o exercício da prostituição. Lipovetsky conclui dizendo que “na sociedade

258 Ibid, p. 51. 259 Ibid, p. 57. 260 Ibid, p. 57. 140

atual, a prostituição é mais digna de pesar do que de repulsa, pois hoje a linha divisória entre o bem e o mal só é definida pelo critério de causar dano aos outros”.261

Compreende-se também que a religião do ego não é reflexo de uma sociedade que perambula entre dois extremos ao longo de sua história. O tempo da “hiperpermissividade”, conforme coloca o autor, ou seja, característico de uma intensa corrida à liberalização moral e sexual, entre outras marcas, é pertinente de outras épocas. Tampouco hoje se presencia o insurgir da moral com uma força dominante ainda maior do que em suas épocas de glória. A sociedade contemporânea encontra-se hoje no equilíbrio, ou seja, “a era pós-moralista não é nem muito transgressora nem dada a afetações de virtude ou gravidade – é correta”.262 Há a aceitação e o reconhecimento das buscas, opções e escolhas privadas, desde que estas não transgridam os limites do espaço alheio, mas há também a necessidade de manutenção de uma ordem mínima, com valores mínimos necessários a sustentação das relações sociais.

3. Questões a se considerar

À luz das constatações acima, foi possível notar em diversos trechos da obra em questão alguns elementos críticos para se pensar a questão religiosa na contemporaneidade. Evidentemente, a religião não escapa às mudanças ocorridas no meio social, de modo que as suas manifestações, seu escopo de regras e valores, o comportamento de seus adeptos e, inclusive, os espaços nos quais a religião e as espiritualidades se fazem presentes, também refletem as conseqüências que a lógica da variedade, da inovação, do consumo subjetivo mais que objetivo, da corrida à vida saudável, do culto ao ego, enfim, do pós-dever a eles inferem.

O autor é perspicaz ao constatar ainda que

Também o individualismo pós-moralista fabrica regras que, embora menos moralizantes, menos draconianas, menos seguras de si, nem por isso deixam de articular e organizar como que uma nova convenção social em torno das sensações carnais.263

É em meio a esta nova convenção que traços de religião ou de pensamento com tendência e características religiosas permeiam. Entretanto, quais seriam as bases de sustentação desta nova convenção social? Como elaborar suas estruturas e solidificá-las de

261 Ibid, p. 57. 262 Ibid, p. 54. 263 Ibid, p. 58. 141

modo imparcial e justo? Seria a filosofia, através do instrumentário da razão, plenamente suficiente para sistematizar os pensamentos, compreender os deslocamentos no campo social, interpretar suas transformações e prever suas futuras irrupções? Poderia essa disciplina tratar das questões éticas e bioéticas tão comumente em voga nas discussões sociais de modo imparcial? Estas e outras questões carecem ainda de reflexão e verificação acadêmica, se apresentando, portanto, como novos desafios à reflexão inclusive no universo científico dos estudos de religião.

A devoção à integridade do corpo, a uma saúde impecável, à prática do consumo emocional e experiencial, entre outros aspectos, estão tão arraigadas no cotidiano do indivíduo contemporâneo que é possível cogitar se sua conduta constante e fiel a estes reclamos não reflete a manifestação de uma religião secularizada permeando o ambiente social. Se for possível cogitar a este respeito, um novo questionamento se coloca diante da sociologia e, mais precisamente, das ciências da religião, a saber, se há uma religião secularizada gravitando no cenário social, então, com quais símbolos ela se manifesta? Seriam as ofertas nas vitrines das lojas, as ofertas das academias, os apelos à prática constante de esportes, entre outros, pequenos traços de sua manifestação, como que pequenas teofanias? Seriam as academias os seus templos assim como os shoppings centers foram considerados os templos do consumo em outras análises científicas? Ou a peculiaridade desta religião estaria justamente em sua natureza efêmera, desestruturada, transitória e desarticulada, o que impossibilitaria qualquer noção de símbolos ou ídolos, inclusive por seu caráter fortemente individual?

Outros questionamentos também se colocam não apenas em relação aos símbolos, mas também quando se confronta a afirmação de uma religião secularizada com as categorias mais comumente conhecidas e reconhecidas a definirem uma religião. Por exemplo, quais seriam os ritos desta prática religiosa? Seriam as constantes indas e vindas às academias em busca do corpo perfeito? É possível cogitar a este respeito. Pode-se dizer também das procuras constantes por ofertas que combinem luxo, satisfação pessoal e novidade com baixo custo e estilo. O que dizer, no entanto, dos sacrifícios que esta prática exige? De que natureza seria? Seguramente, mais subjetivo que objetivo. Não basta apenas abster-se de hábitos que comprometeriam, por exemplo, a saúde, mas faz-se necessário também crer que tais sacrifícios contribuem de fato para tal fim. Deste modo, a religião secularizada pode se localizar no interior de cada um. Ela não reclama para si localidades específicas, como espaços públicos reconhecidos onde os ajuntamentos se fazem possíveis. Tampouco procura 142

desenvolver um tipo de proselitismo. Pelo contrário, lhe é peculiar a prática subjetiva, portanto, individual. É no modo como o indivíduo concebe e compreende a hipermodernidade, movida por uma lógica do pós-dever, a qual se caracteriza pela legitimidade do viver para si sem ônus e nem estigma social, que a religião secularizada se articula. É na maneira mística com a qual o indivíduo se relaciona com os produtos de higiene e de beleza, com as mercadorias e os mercados de consumo, com o seu ego, com o sexo, enfim, com o seu corpo e com a manutenção deste de forma saudável que este tipo de religião se manifesta, sendo, desta forma, uma expressão de um convencimento que já aconteceu interiormente.

A religião secularizada pode ser entendida como de natureza prioritariamente subjetiva mais que objetiva, individual mais que comunitária, singular mais que plural, fluída mais que sólida, enfim, é uma religião concebida e organizada ao gosto de cada um, ainda que não seja reconhecida pelo próprio indivíduo, porém, regulando e qualificando os seus comportamentos e relacionamentos em torno de um caráter religioso.

Considerar a contemporaneidade o cenário propício para a emergência e sustentação de uma religião de natureza secularizada, com pressupostos, normas e condutas desprovidos de uma divindade ou instância instituidora, com ritos e sacrifícios de natureza distintas dos mais comumente conhecidos, com a ausência de ídolos reconhecíveis, além da ausência também de um livro sagrado, constitui-se ainda um desafio acadêmico instigante, pois traz consigo implicações em diversos campos do saber, requerendo, portanto, a contribuição de outros pesquisadores em suas próprias especialidades. No entanto, os questionamentos levantados podem apresentar novos caminhos pelos quais os estudos da religião podem ser ainda explorados.

143

- Capítulo IV -

Contribuições de Lipovetsky para a compreensão da relação entre ética e religião nos tempos atuais

O pensamento de Lipovetsky provoca a sociologia atual, bem como as ciências da religião, a repensar a maneira como se dão as relações existentes entre ética e religião e os reflexos que as transformações que ocorrem em um destes campos inferem no outro, e vice versa, em tempos contemporâneos.

Com uma análise detalhada e crítica de fenômenos sociais específicos, os quais não tinham sido ainda objetos de estudo com tal rigor científico, realidades complexas como o consumo e os valores que ele veicula, as motivações de compra a ele relacionadas e a estética das mercadorias, bem como o luxo e também a moda, enfim, fenômenos cuja lógica de funcionamento tem determinado também o funcionamento da própria sociedade enquanto realidades vivenciadas pelos indivíduos em seus cotidianos, o autor apresenta problemáticas reconhecíveis, ressalta mudanças e rupturas ocorridas em fases e contextos específicos na história da sociedade, justifica as razões de tais transformações, exemplifica os seus argumentos e levanta hipóteses que trazem novas possibilidades e conseqüentes novas reflexões na maneira como se compreende o universo social atual, bem como a implicação deste no universo religioso contemporâneo. À luz de suas argumentações é possível uma reflexão a respeito do papel que exerce o campo religioso na sociedade contemporânea, ou na 144

sociedade do hiper como Lipovetsky prefere designar, ou seja, é este campo apenas mais uma esfera do todo social, ou ele se articula de forma distinta e autônoma, de modo a não se permitir influências que advém do meio em que está inserido? São muitas as hipóteses que podem ser levantadas e especuladas a partir da obra do autor e não apenas aquelas que se relacionam com a questão ética, mas também para um tratamento mais profundo da questão religiosa.

As constatações expostas na obra de Lipovetsky rompem com análises anteriores fundamentadas em paradigmas já comumente conhecidos e pouco questionados, identificando, desta forma, a emergência de uma nova configuração no cenário social dado, cujas implicações são relevantes para se compreender também as mudanças no distinto campo religioso.

Neste último capítulo desta pesquisa, pretende-se apontar algumas contribuições e intuições que se podem obter do pensamento de Lipovetsky, considerando também a contribuição de outros autores cujas análises enfocam a mesma temática envolvendo ética e religião.

1. Uma religião hipermoderna do pós-dever, é possível?

No capítulo segundo, verificou-se que Lipovetsky concorda que a modernidade rompeu com as coerções impositivas de uma moral sagrada determinada pela religião, porém, o autor afirma que um novo paradigma também revestido de sacralidade se origina com a emergência do fenômeno moderno, a saber, o “dever”. O autor reconhece a permanência impertinente do mesmo espírito religioso de outrora também nos modos como a moral moderna começava a ser concebida

Embora alheia a qualquer religião revelada, a criação de uma ética laica como princípio organizador da ordem social redundou, na prática, em fazer vir à tona novamente aquela mesma concepção de religião revelada. De fato, a religião moderna do dever tomou o lugar antes ocupado pelo dever imemorial da religião, e para isso se valeu de uma hipérbole: “você deve...”.264

Os mesmos ordenamentos impositivos da religião permaneceram na modernidade através de ações coercitivas agora impostas pelas instituições modernas. O indivíduo

264 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 4 145

continuou escravo de uma ordem superior, a saber, a obrigação por observar práticas e um tipo ideal de conduta que fossem benéficos ao semelhante e a comunidade. As faltas no cumprimento destas obrigações acarretavam sérias penas e repressão, além do estigma social já pré-estabelecido.

Cogitar a respeito de uma “religião moderna do dever”, expressão proposta pelo autor conforme a citação anterior é uma afirmação que provoca consigo inquietações e que apresenta, ao mesmo tempo, novas possibilidades para a reflexão a respeito da natureza da religião na contemporaneidade ou mesmo do modo como a religião se organiza e se manifesta em tempos atuais. Evidentemente, a expressão acima é colocada sem grande rigor científico e sem preocupações com as categorias de religião ou com as grandes definições de religião já conhecidas, é usada apenas para elucidar o argumento em questão, no entanto, um pouco de especulação pode contribuir para o levantamento de novas reflexões e conseqüentes novas pesquisas no campo religioso atual.

Considerando ainda a expressão “a religião moderna do dever”, cujas características já foram apontadas, ou seja, o dever como entidade autônoma, elevada ao status de realidade soberana, sacralizada, cujos veículos de comunicação com os indivíduos, a saber, as instituições modernas, determinam valores e estabelecem o juízo entre o certo e o errado, enfim, à luz da constatação de Lipovetsky a respeito da existência desta realidade na história moderna, seria possível cogitar também acerca de uma religião hipermoderna do pós-dever na contemporaneidade? Ou seja, em que sentido o devotamento a um comportamento individualista com vistas mais à contemplação de anseios privados e subjetivos do que a fazer valer a autenticidade de um modo de vida perante um meio coletivo, pode ser compreendido como uma postura de caráter distintamente religiosa? Ou de que maneira o próprio sentimento ou postura individualista pode ser compreendido como forma de religião? Seguramente, questionamentos deste tipo originam problemáticas relevantes, podendo ser até mesmo forçoso se cogitar a respeito de tais possibilidades, no entanto, de especulações aparentemente infundadas podem se originar compreensões mais precisas a respeito de um objeto tão plural e complexo como a religião. Sendo assim, relacionando a hipótese, reconhece-se ainda muito vaga, de uma possível religião hipermoderna do pós-dever, de natureza secularizada, com as principais definições de religião, algumas delas clássicas, quais os resultados que se poderia obter a partir de tais cruzamentos? Divagações apenas ou proposições um pouco mais concretas? De que maneira se identifica no dinamismo do pós-dever a presença de categorias competentes o suficiente para solidificar a estrutura de um sistema religioso emergente e 146

secularizado, mesmo que de baixa complexidade? Há ritos? Há sacrifícios? Há uma prática religiosa reconhecível, templos ou cultos? Se a lógica do pós-dever, tão efêmera, evasiva e fluída possui, em algum sentido, uma natureza religiosa, seria a conduta de perpetuação do tempo presente um de seus sacrifícios? Seria a prática do consumo, mais experiencial que retraído, mais sensitivo do que ostensivo e mais subjetivo do que objetivo um de seus ritos? Seria o culto ao corpo em busca de um ideal físico e os engajamentos nas corridas da saúde um de seus braços espirituais? A possibilidade de perpetuação da felicidade a partir dos enquadramentos nas atividades de lazer, conforto e bem estar pode ser um dos mitos desta religião secularizada? Ou então, explorando ainda mais as possibilidades, poder-se-ia afirmar que a religião hipermoderna do pós-dever origina consigo, em seu espectro religioso, categorias também singulares, erigindo-se como um tipo de religião de caráter inusitado?

O capítulo terceiro desta pesquisa mostrou ser possível afirmar a presença de uma religião secularizada tomando forma no cenário social atual. Verificou-se sua presença nos devotamentos ao consumo e na capacidade que este detém de prover aos indivíduos clientes a satisfação de suas buscas por significação existencial, de sentido para a vida, de bem estar para consigo mesmo e de realização pessoal. A prática consumista mais para si do que para os outros, para “ser” mais do que para “ter”, atesta para o fato de que as mercadorias na contemporaneidade detêm o poder de corresponder às aspirações mais íntimas de seus consumidores. Trata-se de consumir para ter vida e não apenas para exibir vida.

Além das práticas consumistas, nas ações altruístas observam-se apenas engajamentos descomprometidos, limitados à capacidade de retorno de maior bem estar pessoal permitido mediante as ações em prol de um alívio ao infortúnio alheio. Na religião secularizada, ações altruístas, bem como a manifestação de novos grupos e ONGs de voluntariado, refletem a constante construção individual de um “eu” que seja satisfatório às aspirações do indivíduo. Trata-se sempre do referencial “eu” em toda e qualquer ação solidária muito mais do que o outro. A hipermodernidade não é o momento do caos moral, não reflete uma sociedade da decepção, não aponta para um mundo cujos valores morais terão lugar apenas no exílio das consciências ou nos discursos de caráter nacionalistas cujas palavras já não inflamam mais pequenos ou grandes grupos, muito pelo contrário, o tempo atual é o momento onde se erige como valor reconhecido aquilo que é correto, que é justo e que é benéfico, no entanto, o eixo central em torno do qual tudo se realiza é o próprio indivíduo e a garantia de sua satisfação pessoal. Nesta perspectiva, não se trata de sufocar os reclamos dos desafortunados ou de torná-los invisíveis, pois na hipermodernidade não se configura um hiperindividualismo do 147

tipo irresponsável, mas trata-se sim de agregar à lógica do consumo-moda, ou seja, da possibilidade de bem estar subjetivo e de conforto à consciência pelas mercadorias, todos os outros meios disponíveis de vivência, entre eles, as práticas de socorro às necessidades alheias. É desta maneira que as faltas de muitos contribuem para que esta lógica continue funcionando, pois até mesmo o universo das diferenças sociais e das faltas alheias é agregado à nova lógica de funcionamento da sociedade, estruturada em bases puramente pós-moralistas. O amor e o cuidado para com o próximo, valores reconhecidos em praticamente toda e qualquer religião, também se fazem presentes na religião secularizada da hipermodernidade, porém, de forma inusitada são expressos em favor do próximo, mas com vistas primeiramente à satisfação de anseios pessoais.

Ainda em outras constatações, a análise de Lipovetsky reflete a possibilidade desta religião secularizada. Verificou-se tal hipótese na emergência do valor da tolerância como valor primordial, porém, aplicado de forma descomprometida, reflexo de uma aceitação do outro, de seus hábitos e de suas crenças, porém, de forma puramente indiferente e desde que a vivência alheia não ponha em risco o cotidiano individual.

Ainda que haja também uma busca plural por experiências religiosas realizada pelo indivíduo, prática esta que agrega em si elementos de várias tradições e espiritualidades cujo conjunto possa ser compatível com a realização das necessidades do ego, e também a manifestação de picos de ações de caráter fundamentalista, não se entende a hipermodernidade como o tempo que testemunha de um retorno do religioso ou como um tempo em que a religião volta a angariar a simpatia dos indivíduos, muito pelo contrário, o frágil interesse por questões de religião também acontece dentro da lógica do consumo-moda, ou seja, de satisfação de anseios subjetivos.

À luz de todas estas constatações, a obra de Lipovetsky é útil para a reflexão acerca do modo como se dá a questão religiosa atual e também para se pensar a respeito de novas formas de se fazer ou de se conceber a religião. No entanto, os questionamentos antes levantados permanecem abertos, carentes de respostas. Se há, de fato, uma religião secularizada, o que se mostrou ser possível a partir da análise de Lipovetsky, como entendê-la quando confrontadas com as principais definições e categorias de religião? Há sustentação teórica para tal afirmação? As próximas considerações podem contribuir para maiores esclarecimentos a fim de que especulações sem sentido não sejam lançadas de forma irresponsável, mas sim como pareceres mais concretos e bem estabelecidos. 148

Identificar num fenômeno a presença de categorias mais comumente conhecidas e pertinentes a uma religião, com toda a sua complexidade de compreensão, contribui para reconhecê-lo e classificá-lo como tal, porém, em que sentido se entende como religião as práticas espirituais singulares, fragmentadas e de caráter inusitado, mas que trazem consigo pretensas de ordem religiosa? Ou seria a ausência de ritos, sacrifícios, textos, orações, entre outros, a caracterização de mais uma manifestação mágica de uma realidade? Ou seja, seria a religião secularizada apenas uma prática mágica? Seria apenas uma manifestação de uma mística consagrada ao consumo, ao lazer, ao culto ao ego e ao corpo perfeito, entre outras práticas?

A aplicação de algumas definições de religião mais consensualmente aceitas à hipótese aqui levantada, ou seja, de uma religião secularizada hipermoderna do pós-dever, poderá revelar se tal proposição possui alguma força de sustentação. Em qual definição de religião a religião hipermoderna do pós-dever se enquadra? Ou a sua manifestação contribui exatamente para se repensar a maneira como a religião tem sido compreendida?

Considerando uma definição clássica de religião, proposta por Durkheim, compreende-se que a religião é “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem”.265 À luz desta perspectiva, torna-se difícil enquadrar a hipótese em questão, pois quais seriam as crenças e as coisas sagradas que o pós-dever organiza na forma de sistema? O pós-dever é uma realidade cuja lógica corresponde mais a um desordenamento admitido do que a um sistema organizado, mais a um conjunto de práticas desconexas, desorganizadas, efêmeras e fluídas do que a uma estrutura totalizante fundamentada em bases sólidas de tradição. Durkheim ainda considera a existência de uma comunidade moral, em sua compreensão, exemplificada pela igreja. Seria, portanto, a própria sociedade a suposta comunidade moral onde os indivíduos membros desta ordem do pós-dever fazem valer os seus postulados de natureza religiosa? Evidentemente, torna-se impossível uma aproximação entre a definição de Durkheim e a proposta em questão, ainda que o próprio Durkheim admita que não existam religiões que não sejam verdadeiras, pois suas bases são essencialmente sociais, refletem às condições postas pela existência. Durkheim chega às suas conclusões a partir do estudo de um universo simbólico completamente distinto daquele que Lipovetsky observa. Seguramente, as considerações a que chegam ambos os autores são divergentes, pois o objeto em questão,

265 Émile DURKHEIM, As formas elementares da vida religiosa, p. 32. 149

ainda que seja a religião e a ética, é estudado em contextos divergentes em tempo, natureza e espaço. Ainda que Durkheim proponha o seu estudo e a sua definição de religião como matriz para a compreensão das religiões em seu todo, uma aplicação de suas conclusões aos objetivos desta pesquisa revela-se forçoso e, portanto, inapropriado.

No entanto, quando se compreende a religião como sendo um “sistema de compensadores gerais baseados em suposições sobrenaturais”, conforme Stark propõe,266 é possível traçar aproximações e cogitar se a lógica do pós-dever também não se desenvolve de modo a “compensar” nos indivíduos faltas e anseios de caráter subjetivo e privado, tais como o desejo de encontrar sentido e significação existencial no meio social, preenchimento do vazio interior, meios de escape ao ócio admitido, valoração no ambiente de existência coletivo, encontros que impeçam a fugacidade da vida e de seu cotidiano, razões que justifiquem os engajamentos solidários, e até mesmo parâmetros sobre os quais uma identidade possa ser construída. Reconhecendo as faltas que há no interior, o indivíduo hipermoderno encontra no consumo, na exibição de um corpo perfeito, nos alistamentos as práticas de lazer e de maior conforto fontes potenciais a saciá-lo em seus anseios privados por significação existencial. Tal competência sempre foi outorgada às tradições religiosas ou por ela reclamadas, no entanto, na hipermodernidade, são outros os elementos que angariam tal apreço. Neste sentido, portanto, Stark traz uma contribuição relevante de modo a sustentar com base teórica a hipótese em questão. Porém, a mesma aproximação também é comprometida, assim como fora a definição de Durkheim, quando a segunda parte da definição proposta por Stark em sua teoria da religião é considerada, ou seja, de que esse sistema de compensadores que qualifica uma religião esteja baseado em suposições sobrenaturais. A lógica do pós-dever é oriunda das próprias transformações do meio social que a fundou, como as inusitadas obras da tecnologia e da ciência, bem como o alargamento nas capacidades de comunicação, encurtando as distâncias e multiplicando o tempo disponível para a realização de empreendimentos particulares de vida. Sua base, portanto, é bastante racional e científica, criada pelo homem e para o homem. Não há pressupostos sobrenaturais que baseiam a religião secularizada do pós-dever, pois não há referência a uma divindade a quem se deva prestar devoção, bem como a um lugar que proceda à existência, ou ainda a qualquer conjunto de dogmas a se observar, pelo contrário, são as pretensões a que reclama o pós-dever que forma paulatinamente nas consciências dos indivíduos a convicção de uma natureza sobrenatural em sua constituição.

266 Rodney STARK & William Sims BAINBRIDGE, Uma teoria da religião, p. 52. 150

Mais distante ainda o pós-dever se coloca em relação à definição de Crawford, para quem a “religião é uma crença em Deus, que é o fundamento incondicionado de todas as coisas, e em seres espirituais, resultando em experiência pessoal de salvação ou iluminação, comunidades, escrituras, rituais e um estilo de vida”.267 No pós-dever não há divindades ou seres espirituais. O “ego” é a única entidade que reclama para si uma natureza divina e é em face disto que se cogita a respeito de um culto ao ego permeando o cotidiano social. Todas as relações, ações e motivações na hipermodernidade encontram seu fundamento na lógica do consumo-moda, com sua variedade de mercados, de inovação ininterrupta dos objetos e da vida e com sua troca intermitente de posturas e modos de vida, justificando assim a legitimação de escolhas e opções de caráter plural a que o pós-dever outorgou aos seus indivíduos. O que fundamenta o pós-dever ou a religião secularizada do pós-dever é o próprio pós-dever. Suas elucubrações são oriundas de si mesmo formando um círculo de funcionamento social ininterrupto com ofertas diversas e inovadoras de coisas que possam promover a satisfação subjetiva e temporária de seus adeptos, provocando seguidamente novos anseios que serão respondidos a partir do oferecimento de novas ofertas de demandas de vida e sua aquisição, e assim sucessivamente. Há, conseqüentemente, a experiência pessoal, ainda que temporária, de salvação ou iluminação no pertencimento ao pós-dever, como Crawford coloca e que pode ser entendido como a experiência de realização oriunda do envolvimento nesta nova lógica, no entanto, o resultado disto não implica no estabelecimento de nenhuma estrutura mais concisa de religião com textos ou ritos mais tradicionalmente conhecidos.

Um avanço significativo também se dá quando da tentativa de fundamentar a hipótese de uma religião secularizada a partir da abordagem de James, o qual aponta para a realidade de uma dimensão mais individualizada e sentimental apreendida pela religião. Em sua perspectiva, o que constitui ou preenche o conteúdo da religião são os sentimentos, atos e experiências dos indivíduos em sua solidão, na medida em que estes indivíduos vêem-se a si mesmos relacionados com tudo aquilo que possam considerar divinos.268 Trata-se de uma abordagem mais psicológica do fenômeno religioso, localizando no próprio indivíduo os elementos que a sustentam. Nesta perspectiva, entende-se que é o próprio indivíduo quem qualifica um determinado objeto, relação ou sentimento como sendo de caráter religioso. Contrapondo tal afirmação com as constatações de Lipovetsky, verifica-se que ainda que o indivíduo contemporâneo não afirme a existência de um aspecto sagrado em sua devoção ao

267 Robert CRAWFORD, O que é religião, p. 220. 268 Ver William JAMES, The varieties of religious experience. 151

ego ou ao próprio ego em si, o modo como se entrega e se devota a práticas que possam conferir ao “eu” satisfação plena acaba por convencer a existência deste sentimento em seu interior. Desta forma, os sentimentos, os atos e as experiências que são conseqüência deste devotamento, como as que foram expostas a partir da análise de Lipovetsky, na perspectiva de James, estariam a constituir um tipo de religião, neste sentido, mais individual.

Parece ser possível afirmar que, para James, qualquer indivíduo é capaz de atribuir um tom de sacralidade a objetos diversos, se propondo também a organizar a sua vida em torno desta crença e desenvolvendo, assim, uma religião íntima, particular e individualizada que pode cativar a admiração e apreço de outros. Considerando as colocações de Lipovetsky entende-se, no entanto, que a lógica do pós-dever instigou o indivíduo a prestar adoração descomedida ao próprio ego como resposta aos seus anseios. Sua entrega a esta lógica reflete, portanto, não somente uma vontade voluntária, mas também uma rendição passiva aos encantamentos a ela recorrentes. O que a isto decorre preencheria com conteúdo a religião individual de devotamento ao ego.

A dificuldade em aplicar quaisquer que sejam as definições citadas acima à realidade exposta pela lógica do pós-dever é evidente, sendo, portanto, difícil localizar o fenômeno como um tipo de religião a se desenvolver na contemporaneidade. As constantes questões cujas respostas permanecem abertas revelam a fragilidade de uma hipótese que considere a religião do pós-dever como um tipo de religião equiparada a outras instituições mais tradicionalmente conhecidas. Há a escassez de elementos que proporcionem bases sólidas para que uma idéia de uma possível estrutura religiosa se sustente. Sendo assim, uma consideração mais plausível pode localizar-se na proposta de uma espiritualidade e devoção de caráter inusitado permeando o cenário social atual.

Considerando a existência de um tipo de religião secularizada, onde os apelos ao culto e à idolatria ao ego são constantes, não como uma religião em si, inclusive por conta dos problemas de definição e de categorias apontados anteriormente, mas sim como um tipo de espiritualidade, ou de comportamento místico, permeando nas consciências e nos modos de vida, e se expressando no cotidiano social nos tempos do hiper, um avanço maior no sentido de uma verificação mais plausível acerca da hipótese da existência de comportamentos e motivações de natureza mais que natural no cotidiano dos indivíduos na sociedade atual, pode ser obtido. Neste sentido, a ética do pós-dever poderia ser compreendida como sendo mais um tipo de rito profano dos tempos modernos, ou seja, de rito exaurido de conteúdo sagrado propriamente dito. Para elucidar a proposição levantada, recorre-se a Rivière, para quem 152

muitos costumes, hábitos e comportamentos humanos na contemporaneidade se caracterizam como ritos profanos a definir fases específicas da vida.

A dimensão ritual permeia o cotidiano e determina as ações dos indivíduos. Há, em sua concepção, os pequenos ritos de infância, os ritos presentes na adolescência, há um processo de ritualização no universo da educação, como aquele necessário à aceitação e reconhecimento de um indivíduo calouro no ambiente de uma universidade, há os ritos vivenciados no ambiente de trabalho, no modo como se tomam as refeições, e também os ritos que se manifestam no universo dos esportes, os quais refletem uma devoção prestada em espaços consagrados, específicos e bem reconhecidos, como os estádios e as arenas, aderindo os adeptos ao uso de uma indumentária reservada elaborada para aquele propósito, com sacrifícios constantes a serem observados pelos esportistas para que a prática do esporte seja possível, com hinos de exaltação às equipes, nações ou grupos que competem, além da presença de expectadores que vibram exaltados, cantando e gritando nas arquibancadas devotando atenção e prestígio aos que exibem seus talentos e superam os limites das competências humanas. Os jogos olímpicos constituem um exemplo clássico das considerações de Riviére.269 Há, manifesto no universo dos esportes, o desejo de superação dos limites do corpo por parte daqueles que testam as suas capacidades, desejo este que exige um processo complexo de ritualização para que os seus objetivos se concretizem, envolvendo assistência contínua às academias em busca da forma ideal para a prática da competição, privação de momentos mais contínuos de lazer e da companhia de parentes e amigos, e também a abstenção de determinados tipos de alimentos.

As constatações acima se caracterizam como sendo manifestações individuais ou coletivas que refletem um sentimento de devoção prestado a realidades profanas, realidades que, a despeito da ausência de conteúdos mais comumente reconhecidos como sagrados em suas essências, são sacralizadas por seus devotos através de um apego prestado de forma contínua, parecendo refletir um sentimento de natureza mais religiosa do que lúdica presente em tal prática. A partir do momento em que o indivíduo agrega um elemento sagrado à natureza de outras realidades para as quais ele presta devoção, a sua própria vida passa a ser organizada em torno desta admissão, seguindo, por exemplo, os ritos necessários a perpetuação da sacralidade profana por ele erigida.

Na modernidade contemporânea, parece ser possível afirmar que não é a própria realidade profana que reclama para si o reconhecimento de sua natureza divina ou de seus

269 Claude RIVIERE, Os ritos profanos, passim. 153

supostos direitos de divindade, mesmo que os seus sacerdotes, como os que dirigem atividades esportivas, traduzam estes reclamos em ações concretas, mas sim o próprio indivíduo em si parece exercer autonomia tal de modo a determinar o nível de sacralidade presente em um objeto ou em uma expressão social individual ou coletiva.

Neste universo de realidades e práticas profanas, o pós-dever pode ser mais bem localizado e reconhecido, pois não há em sua lógica de funcionamento um conteúdo religioso ou sagrado, trata-se apenas da exposição de uma ética cujo princípio de concepção se deu em tempos passados, alcançando na atualidade as suas possibilidades de manifestação, estando prontas as condições necessárias para isso. É um conjunto ético fundamentado no indivíduo, por ele e para ele organizado, que se adéqua às suas aspirações de modo a legitimar as suas pretensas. No exercício de sua autonomia, o indivíduo sacraliza comportamentos, aspirações, buscas e desejos, assumindo então práticas de caráter ritual para que a concretização de seus anseios seja possível. É o indivíduo em si que devota atenção exacerbada, além de comprometer as suas potencialidades, para a organização de um modo de vida que faça jus às suas aspirações individualistas. Neste contexto, o anseio pela exibição de um corpo perfeito, pela saúde perfeita, pela perpetuação da sensação de bem estar no tempo presente, além de conforto pessoal e psíquico, se traduzem em empreendimentos ideais de natureza mais ritual que descomprometida, mais com vistas a um encontro com um sentido existencial do que a dar existência a um sentido pré-existente.

O pós-dever não é revestido de menos sacralidade do que os esportes, tampouco este atributo lhe é pertinente por direito de natureza. Como naquele, esta categoria lhe foi conferida por adeptos que, de forma desorganizada, descomprometida e, sobretudo, livre, dão forma religiosa às suas condutas profanas de vida.

À luz das contribuições colocadas acima, contrapondo-as com aquilo que a análise de Lipovetsky revelou, obtêm-se resultados significativos a partir do cruzamento de pontos de vistas diferentes. Não se trata apenas de divagações, risco este que se cuidou para não o cometer, mas sim de considerações relevantes para os objetivos propostos nesta pesquisa. Vale ressaltar mais uma vez que Lipovetsky não apresenta em sua obra uma teoria bem elaborada de religião, pelo contrário, sua preocupação gira prioritariamente em torno de questões sociais. No entanto, como já demonstrado, sua análise traz implicações relevantes para uma melhor compreensão dos movimentos e rupturas que acontecem também na esfera da religião. 154

Parece ser coerente afirmar que há, de fato, a presença de um aspecto mais que natural gravitando nos tipos inusitados de relações, ações, motivações e ordenamentos que se dão nas esferas sociais da sociedade atual. As colocações de Lipovetsky exemplificam tal consideração, o que já foi exposto no capítulo terceiro desta pesquisa. Sendo assim, é possível se cogitar a respeito de uma religião hipermoderna do pós-dever ou da manifestação de uma religião secularizada. No entanto, tal afirmação é feita com reservas. Faz-se equivocada a afirmação de que esta religião secularizada corresponda a um novo tipo de religião equiparado ao modelo tradicional já reconhecido, pois, como demonstrado nos parágrafos anteriores, nenhuma das definições clássicas de religião dão base teórica plausível para sustentar tal hipótese. Ainda que algumas considerações tenham trazido aproximações consideráveis, como o ponto de vista de Stark e também de James, a limitação de conclusões implicada na aplicação de tais conceitos por si só fragiliza qualquer possível relação que se queira fazer. Sendo assim, reconhece-se a existência de uma mística se manifestando no presente cenário social dado, porém, trata-se apenas de uma espiritualidade circundante. Não há base teórica para afirmar a emergência de uma nova religião como instituição com estruturas sólidas, com um sistema de ritos, sacrifícios ou com um conjunto de dogmas ou escritos já pré-definidos, tampouco com a descrição de mitos. A postura hiperindividualista que caracteriza o indivíduo contemporâneo pode, portanto, refletir um culto ao ego, uma adoração às aspirações privadas e um devotamento ao “eu” como sendo este um deus interior, porém, não há uma religião do ego a instituir-se com um sistema formado.

Como colocado anteriormente, as considerações de Lipovetsky, confrontando-as com a posição de outros autores que tratam da temática da religião com mais afinco, abrem novas possibilidades para se pensar a questão ética e religiosa nos tempos atuais. Em reconhecendo a existência de uma religião secularizada apenas como um tipo de espiritualidade circundante ou de mística individualista devotada ao ego nos tempos do hiper, reconhece-se também o potencial deste fenômeno em determinar o comportamento e o comprometimento das massas em torno de seus postulados. Como já colocado, o tempo pertinente aos grandes ajuntamentos em torno de causas coletivas comuns já está ultrapassado, no entanto, o fenômeno da religião ou da espiritualidade individualista presente na relação dos indivíduos com os objetos, com o corpo, com o seu meio no qual constrói e faz valer a sua identidade de vida e com o seu próprio eu, traz à tona a pergunta a respeito daquilo que, de fato, une os indivíduos na contemporaneidade. 155

Não são as lutas de classe, as causas solidárias, a valoração do meio ambiente, as paixões nacionalistas ou a entrega passiva e devotada às realidades profanas, mas sim os chamamentos à satisfação plena de anseios subjetivos mediante a devoção contínua ao deus interior, que aproximam indivíduos de contextos sociais distintos. Sendo assim, se há de fato a necessidade do estabelecimento de um conjunto de valores mínimos, comuns a pessoas de cultura, credo e raças diferentes, necessário para que a vida humana em comunidade, neste caso, em comunidade global, seja possível de modo a assegurar a paz entre os grupos humanos, bem como a sustentabilidade dos recursos naturais, condições mínimas necessárias à perpetuação da vida, questiona-se se a lógica da variedade, da inovação e da troca, característica do consumo-moda e responsável por estruturar a sociedade hipermoderna em bases pós-moralistas, já não tem se manifestado e determinado, por sua própria natureza, os modos de vida que comporão este conjunto.

Não estão os indivíduos todos cativos dos ordenamentos do consumo, das corridas a saúde impecável, do culto ao ego e à satisfação de seus caprichos, independentemente dos contextos sociais nos quais se localizam? Não são estes os valores veiculados pela mídia que estão padronizando os comportamentos dos indivíduos com acesso à rede de comunicação global? Já não estão os indivíduos compartilhando valores globais comuns, tais como o devotamento às práticas de consumo, à hipersatisfação do eu, à busca pelo corpo perfeito com vistas à formação de uma identidade ideal, mesmo vivendo cada um em seu próprio conjunto social?

Questiona-se também se tal lógica, determinante de uma sociedade pós-moralista, permite, em virtude de sua própria natureza, a elaboração de um conjunto mínimo de postulados que se pretenda a frear o seu contínuo funcionamento, mesmo que seja em prol do bem estar coletivo. A hipermodernidade não é o reflexo de uma sociedade irresponsável, mas o centro referencial prioritário é o indivíduo. Ainda que haja razões plausíveis para a promulgação e a aplicação de tais valores, o indivíduo contemporâneo não parece confortável em permitir que obstáculos à satisfação de suas necessidades sejam erigidos. Por outro lado, deve-se considerar ainda que não se trata de uma não permissão, mas sim da aparente impossibilidade de criação de tal condição em virtude do atual nível de possibilidades alcançado e oferecido pela sociedade atual.

Como entender a relação entre os valores que o consumo-moda promulga com a necessidade de um consenso mínimo entre as massas a fim de garantir a sustentabilidade da vida? Existe a possibilidade de uma aproximação entre as duas realidades ou esperar um 156

capitalismo do tipo responsável seria utopia? As considerações a seguir poderão apresentar sugestões que contemplem as sub-hipóteses agora levantadas.

2. Um projeto de ética mundial num universo pós-moralista, é possível?

São muitos os teóricos que têm se dedicado à elaboração de propostas que contemplem a formação de um conjunto de valores mínimos, comuns a pessoas distintas e de contextos distintos ao longo do globo, e que possa garantir a perpetuidade da vida e um futuro sustentável para as próximas gerações. Lipovetsky ao longo de sua obra não se pretende a tal elaboração, seu método não implica em identificar problemas, justificar as suas emergências, demonizá-los e, por fim, apresentar soluções. Aquém disto, sua proposta de trabalho se caracteriza por uma descrição o mais precisa possível dos eventos a que se propõe a estudar a partir daquilo que os próprios fenômenos revelam. No entanto, algumas das propostas de um conjunto de ética mundial são colocadas a seguir a fim de que as considerações a respeito dos valores que o pós-dever veicula e que unificam as massas, padronizando e determinando comportamentos, possam ser mais bem localizados dentro de um contexto de discussão sociológica mais amplo.

2.1. A proposta de um conjunto de valores globais estruturado sobre um referencial ambiental

Boff, por exemplo, propõe a elaboração de um conjunto de valores mínimos, comum a todos os povos, sustentando os seus argumentos em torno da questão ecológica global.270 Em sua perspectiva, a questão ambiental pode ser o eixo central em torno do qual as questões éticas globais devem ser discutidas de modo a buscar um maior consenso entre as consciências. Alertando para a extrema necessidade de ações concretas que sejam promovidas pelas políticas globais e que possam contemplar o cuidado devido para com a natureza, o autor coloca que

270 Não apenas Boff, mas outros autores também reconhecem a necessidade de um uso mais responsável dos recursos naturais. Comblin, por exemplo, atesta para esta verdade e coloca que “as convicções religiosas podem ajudar, sobretudo porque rebaixam o orgulho dominador de quem destrói tudo o que estiver no seu caminho para conquistar tudo e ser único dono”. José COMBLIN, Quais os desafios dos temas teológicos atuais?, p. 83. 157

Analistas, vindos da biologia, das ciências da Terra e da nova cosmologia, nos advertem que o tempo atual se assemelha muito às épocas de ruptura no processo de evolução, épocas de extinções em massa. Não porque sobre nós pesa alguma ameaça cósmica, mas por causa da atividade humana altamente depredadora de todos os ecossistemas. Chegamos a um ponto em que a biosfera está à mercê de nossa decisão. Se queremos continuar a viver, temos que querê-lo e garantir as condições adequadas.271

Fazendo uso da declaração prescrita na Carta da Terra, Boff continua o seu argumento dizendo que

Estimativas otimistas estabelecem como data limite para esta decisão o ano 2030. A partir daí a sustentabilidade do sistema Terra não estaria mais garantida. E aí iríamos ao encontro de uma crise cujo desfecho é imponderável. A Carta da Terra, aquele documento produzido pela nova consciência mundial, e já assumido pela Unesco, adverte em sua introdução: “As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis. A escolha é nossa: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida”.272

O autor aponta para a necessidade de uma mudança de paradigma nas motivações que determinam as ações humanas em prol do desenvolvimento das condições de vida globais. Em sua perspectiva, “é urgente e urgentíssimo que cuidemos do que restou e regeneremos o vulnerado. Desta vez, ou cuidamos ou morremos. Daí a urgência de passarmos do paradigma- conquista para o paradigma-cuidado”.273

A fim de embasar melhor as suas considerações, Boff recorre aos gregos para expor uma compreensão mais precisa acerca do significado de ética partindo da etimologia do termo. Segundo o autor, é no resgate de seus fundamentos que ações responsáveis para com a vida podem ser dirigidas por políticas responsáveis dos governos. Ele coloca

Partamos dos sentidos da palavra ethos, donde se deriva ética. Antes de mais nada, constatamos que escreviam a palavra de duas formas diferentes. Uma vez ethos com épsilon (o e longo), significando a morada humana e também caráter, jeito, modo de ser, perfil de uma pessoa. E outra vez com o eta (o e curto), querendo dizer costumes, usos, hábitos e tradições.274

271 Leonardo BOFF, Ética e moral, a busca dos fundamentos, p. 13. 272 Ibid, p. 13-14. 273 Ibid, p. 21. 274 Ibid, p. 38. 158

À luz da citação acima, verifica-se que para o autor, o termo “ética” pode fazer referência a duas realidades distintas, porém, que se complementam mutuamente. A morada humana, sendo o ethos com o épsilon (o e longo) corresponde à primeira dimensão proposta por Boff e não deve ser compreendida fisicamente, mas existencialmente, por isso a referência ao jeito, modo de ser e perfil de uma pessoa. Na perspectiva de Boff, é o “conjunto ordenado dos princípios, valores e das motivações últimas das práticas humanas, pessoais e sociais”.275 A segunda realidade, no entanto, abrange todo o escopo de relações que se dão no universo da morada. Conforme colocado acima, diz respeito aos hábitos, os encontros e enfrentamentos que ali aconteciam e eram testemunhados, os costumes e tradições assimilados e transmitidos, sendo todo este universo encerrado no emprego de ethos com o “e curto”. Posteriormente, ethos com o e curto foi assimilado pelo latim como mores, a moral.276

Boff aplica a sua análise do termo ética à questão ambiental dizendo da necessidade de cuidado para com aquilo que seria a morada humana universal, a saber, o planeta e seus recursos, lugar onde indivíduos de universos díspares compartilham os bens naturais e comuns desta grande morada. O uso contínuo, mas responsável, garantirá as possibilidades de vida futura.

A fim de apresentar proposições ou possíveis saídas à problemática por ele levantada, o autor apresenta aquilo que, em sua perspectiva, seriam as “virtudes cardeais de uma ética planetária”, a saber, “o bem comum para toda a comunidade de vida”, a “autolimitação”, que “significa um sacrifício necessário que salvaguarda o Planeta, tutela interesses coletivos e funda uma cultura da simplicidade voluntária”, e por fim, a virtude da “justa medida: fórmula secreta do universo e da felicidade”, que Boff exemplifica dizendo que “a justa medida é o ótimo relativo, o equilíbrio entre o mais e o menos”.277

Lipovetsky, ainda que não se proponha à elaboração de um conjunto de valores globais mínimos que possa garantir a sobrevivência humana em comunidade, reconhece a importância deste encontro entre as consciências políticas globais em favor de um socorro mais assistido à questão ambiental. Em sua análise, Lipovetsky reconhece as trágicas conseqüências que os hábitos de consumo trouxeram à sustentabilidade do ecossistema

275 Ibid, p. 39. 276 Boff parece concordar com Morin, para quem a ética apresenta-se como exigência moral, cujo imperativo origina-se de três fontes, a saber, uma fonte interior ao indivíduo, algo como um senso de dever; uma fonte externa, que diz respeito a cultura, hábitos e crenças advindos do meio externo; e por fim, uma fonte anterior, para Morin, “originária da organização viva, transmitida geneticamente”. Edgar MORIN, O método 6, ética, p. 19. 277 Leonardo BOFF, Ética e moral, a busca dos fundamentos, p. 63-73. 159

Civilizar: essa é sem dúvida a palavra-chave a ser associada com a parte inédita de caos que um sistema desenfreado de consumo introduziu no mundo e que atinge as relações do homem com a própria Terra, como se ali onde ele passa, esse novo Átila, nada devesse voltar a crescer. O esgotamento dos recursos naturais, a emissão de gases tóxicos, o aquecimento climático, o desflorestamento intempestivo, a extinção das espécies, a poluição do planeta, o acúmulo de detritos, os riscos químicos e nucleares – o futuro da humanidade não será escrito senão com uma solução coletiva, internacional e mesmo supranacional dada a esses problemas. O desafio, como se sabe, é mundial: ele é lançado à tecnociência bem como à política. E o caminho está determinado: trata-se de investir de forma maciça nas tecnologias limpas, economizar energia, taxar cada vez mais pesadamente as indústrias poluentes, modificar os hábitos de consumo, criar um ecodesenvolvimento.278

Em sua análise estrita da questão do consumo, o mesmo quadro degradante e pessimista relacionado à questão ambiental atual como legado de um consumo irresponsável é também reconhecido pelo autor

Voltada para os gozos e os interesses imediatos, indiferente às conseqüências a longo prazo, a frenética perseguição da produção e das satisfações materiais é denunciada, cada dia um pouco mais, como uma empresa insensata que provoca a poluição do meio ambiente, a erosão da biodiversidade, o aquecimento do clima. “A casa está pegando fogo”: se nada for feito, logo não conseguiremos garantir aos nossos filhos um futuro em que se possa viver. Sob as aparências do Homo felix, afinal não é nada além do poder pelo poder que se desencadeia, fazendo-nos correr diretamente para o abismo. É assim que, cada vez mais, os anátemas lançados contra a modernidade produtivista e consumista passam do vermelho ao verde: vícios privados, desastres ecológicos; felicidade presente, inferno das gerações futuras; paraíso prometido da abundância, potencial de apocalipse.279

Porém, ainda que a questão ambiental clame por uma solução emergente, Lipovetsky reconhece a dificuldade de conciliação existente entre os modos de consumo disponíveis e a necessidade de uma postura mais responsável em relação ao uso dos recursos naturais. O autor levanta questionamentos que pedem uma reflexão mais precisa em torno de ações concretas e eficientes

A questão se levanta: as ameaças que pesam sobre a ecoesfera e sobre nossos recursos fósseis trazem em germe uma ruptura próxima com a sociedade de hiperconsumo? Os

278 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 185. 279 Gilles LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 340. 160

limites da natureza levam ao desaparecimento dos “fins imoderados” do hiperconsumo e de sua “festa humana frívola alegre”? O pós-fase III já começou?280

Em resposta às questões levantadas acima, Lipovetsky considera que “tendo em vista a dinâmica da economia mundial, é forçoso notar que esse não é o enredo que se prepara, ao menos para as próximas décadas”.281 No entanto, sua análise é perspicaz porque também reconhece haver na hipermodernidade uma maior preocupação com o desenvolvimento de um tipo de consumo responsável que possa garantir, ao mesmo tempo, a sustentabilidade dos recursos e a contínua entrega à atividade consumista. Em sua perspectiva, a fase atual da sociedade e do consumo “é aquela em que se afirma a exigência do consumidor responsável e cidadão”.282 Daí a singularidade da lógica consumista do momento atual, ou seja, o consumo detém a capacidade de adequar à sua lógica um tipo de consumo sustentável, garantindo assim a sua perpetuação. Nas palavras do autor

A ecologia industrial, as tecnologias limpas, mas também a terceirização da economia e a desmaterialização do consumo são fenômenos importantes, que preparam não tanto a ruptura com a fase III quanto uma configuração desta compatível com a durabilidade ambiental.283

Lipovetsky faz menção, inclusive, de uma classe de consumidores considerada como “anticonsumidores”, para justificar sua constatação acerca da emergência de novos picos de cuidado ambiental quando da prática do consumo. Tal classe é característica de pessoas que consideram os impactos ambientais que os seus atos de compra podem gerar. Assim, observam um tratamento correto do lixo, usufruem das possibilidades de energia com responsabilidade, optam por marcas que asseguram cuidado ambiental na elaboração de seus produtos, enfim, para o autor, se a fase consumista atual “favorece a ‘loucura compradora’, vê desenvolver-se, ao mesmo tempo, um consumidor engajado, ‘responsável’, para o qual o ato de compra não deve ser separado de uma interrogação ética ou cidadã”.284

Verifica-se, portanto, que a preocupação ambiental ocupa um espaço considerável nas consciências dos consumidores contemporâneos. Lipovetsky evidencia esta constatação em sua análise. Todavia, a conclusão a que chega após observar dois universos que, em sua perspectiva não são distintos, a saber, de um lado um consumidor frenético, ávido por

280 Ibid, p. 341. 281 Ibid, p. 341. 282 Ibid, p. 341. 283 Ibid, p. 343. 284 Ibid, p. 344. 161

realizações pessoais mediante os atos de compra, e de outro um consumidor responsável e moderado, preocupado com a sustentabilidade da vida, reflete um pessimismo pessoal

É preciso render-se à evidência, a sociedade de hiperconsumo se impõe como nosso único horizonte, nada deterá a expansão do consumo pago a todas as nossas atividades, a onimercantilização do mundo. Se existem diferentes políticas econômicas ou sociais, não existe, por ora, solução alternativa à sociedade de hiperconsumo.285

É possível alcançar algumas considerações mais precisas a partir das colocações acima. A principal delas diz respeito ao futuro da sociedade atual. Lipovetsky demonstra que, ainda que haja tentativas de rupturas com uma prática consumista desenfreada e irresponsável por conta da questão ambiental, tais lances de conscientização, que se concretizam, sobretudo, no desenvolvimento de uma política de consumo sustentável, acabam sendo absorvidos pela lógica de funcionamento dos mercados. Produtos eticamente e ecologicamente elaborados constituem, então, uma nova classe de mercadorias oferecidas a um nicho de consumidores específicos, os consumidores responsáveis ou os “anticonsumidores”.286 Porém, seu desenvolvimento acaba por sustentar o ciclo das coisas, ao invés de provocarem rupturas significativas. A mesma lógica consumo-moda que determina a oferta dos produtos das mais variadas naturezas se encarrega de enquadrar também em seus princípios o comércio dos produtos ecológicos. Assim o fazem lançando ao mercado produtos éticos que rapidamente são trocados, inovados, oferecidos em padrões, cores e formas diferentes, enfim, práticas de mercado que garantem o funcionamento do ciclo inovação, variação e troca das mercadorias, sustentando assim o contínuo movimento de entrada e saída das prateleiras.

Em se tratando mais especificamente da esfera religiosa, a espiritualidade circundante nas relações dos indivíduos com os objetos reflete uma devoção descomedida para com o ego em busca da satisfação plena de suas aspirações privadas. A preocupação ambiental e o consumo de produtos ecológicos, bem como a tomada de uma postura de responsabilidade para com o meio ambiente contribui também para que os anseios privados sejam correspondidos quando localizados neste espectro singular. Enquanto alguns indivíduos buscam significação existencial no trabalho voluntário, nas ações altruístas e nas práticas sociais, como já constatado nesta pesquisa, outros buscam o seu extremo oposto alcançando respostas às suas aspirações subjetivas a partir de engajamentos em causas ambientais. No

285 Ibid, p. 343. 286 Bauman faz referência a uma classe de “consumidores falhos”. Em suas palavras, são como “ervas daninhas do jardim do consumo”, ou seja, uma alusão a pessoas que tentam se deslocar das ofertas do consumo. Zygmunt BAUMAN, Vida para consumo, p. 11. 162

entanto, ainda que os engajamentos sejam de natureza diferente, o propósito para o qual tais alistamentos se destinam continua sendo o mesmo, ou seja, a sensação de bem estar pessoal, de conforto psíquico, de respostas as exigentes demandas privadas reclamando sentido para a vida, enfim, faltas que são resolvidas a partir de tais envolvimentos. Propósitos assim superam a real preocupação que a causa em si demanda. Portanto, se há a necessidade de elaboração de um conjunto de valores globais mínimos, cujo centro referencial seja a problemática ambiental, fato este atestado por Boff e reconhecido por Lipovetsky, então a hipermodernidade já se encarregou de prover o seu real conteúdo com a elaboração e a oferta de produtos sustentáveis, tratando de garantir também a felicidade privada de seus consumidores.

A hipermodernidade não se configura como a sociedade da conduta irresponsável, porém, sua responsabilidade é prioritariamente com a manutenção de sua própria ordem, ou seja, em criar de forma cada vez mais criativa meios de garantir a sua própria subsistência, principalmente quando questões que fogem às suas amarras, como a questão ecológica, se colocam frente ao seu desenvolvimento. Às exigências proclamadas pelos que defendem as causas ambientais, apresentam-se soluções práticas, rápidas e eficientes que conciliam a prorrogação das capacidades das fontes de recursos ambientais, a manutenção dos mercados de consumo e a satisfação subjetiva requerida pelos indivíduos.

À pergunta acerca da possibilidade de construção de um projeto de ética mundial numa sociedade pós-moralista, conforme colocada no início deste tópico, verifica-se que o projeto de ética mundial, partindo da questão ambiental como centro referencial de discussão, tem sido construído, porém, hoje sustenta-se em bases pós-moralistas.

2.2. Uma ética global a partir de um diálogo entre as religiões

Não é apenas Boff quem entende ser de extrema importância a elaboração de um conjunto mínimo de valores que sejam compartilhados por todos os povos a fim de garantir a sobrevivência da humanidade, a sustentabilidade do ecossistema e a possibilidade de vida às próximas gerações, Hans Kung, em sua obra Projeto de ética mundial, também aponta para a mesma necessidade ao dizer que

Todos os Estados do mundo têm, com certeza, uma ordem econômica e jurídica. Mas em nenhum Estado do mundo ela funcionará sem um consenso ético, sem uma ética dos 163

cidadãos, do qual vive o Estado de direito democrático. Também a comunidade internacional das nações já criou, entrementes, estruturas jurídicas transnacionais, transculturais e transreligiosas (sem o que os tratados internacionais seriam um auto- engano). O que, porém, é uma ordem mundial sem uma ética para toda a humanidade, que interliga e a todos torna responsáveis? Sim, o que seria dela sem uma ética mundial? Não por último, o mercado mundial exige uma ética mundial. Hoje em dia, a comunidade mundial não pode mais se dar ao luxo de uma ética divergente e até contraditória em pontos centrais. O que adianta ter proibições eticamente fundamentadas em um determinado país se num outro país elas podem ser burladas? Pensemos somente em determinadas manipulações financeiras ou da bolsa de valores ou em arrojados projetos de pesquisa genética. Se a ética deve funcionar para o bem de todos, ela deve ser indivisível. O mundo não dividido necessita mais e mais de uma ética não-dividida! A humanidade pós-moderna necessita de valores, objetivos, ideais e visões comuns.287

Hans Kung considera a elaboração de uma ética global de fundamental importância para a garantia da sobrevivência humana, pois em sua perspectiva, “sem um mínimo de consenso fundamental com respeito a valores, normas e posturas não é possível a existência de uma comunhão maior nem uma convivência humana digna”.288 Sua convicção a esse respeito transparece em todo o seu texto e, de fato, a sua obra se inicia com a declaração: “não haverá sobrevivência sem uma ética mundial”.289 Entretanto, para Kung, quais seriam as justificativas principais para que tal empreendimento seja, de fato, perseguido? Quais são os fatos que legitimariam o discurso defensor desta ética comum? Como conciliar as dificuldades implicadas em tal projeto? Como definir valores a partir da pluralidade de modos de vida e de conseqüentes interpretações éticas possíveis a partir de contextos sociais distintos? A quais grupos ou instituições seriam outorgados os direitos para o estabelecimento de tais valores? Sobre quais bases seriam eles estruturados e com quais critérios definidos? Deveria tal projeto ser construído sobre postulados religiosos, ainda que o fenômeno religioso seja de natureza plural na sociedade contemporânea? Ou este empreendimento poderia ser alicerçado meramente sobre a razão humana, ainda que tal reconhecimento tenha gerado como fruto duas guerras mundiais e outros conflitos armados que ainda hoje se apresentam insolúveis?

Kung reconhece a problemática envolta a esta proposição, bem como as suas próprias limitações para o exercício de tal empreendimento, e não pretende, portanto, ter respostas

287 Hans KUNG, Projeto de ética mundial, p. 69. 288 Ibid, p. 59. 289 Ibid, p. 7. 164

plausíveis para todos os questionamentos implicados neste projeto. Sendo assim, o autor apresenta a sua obra apenas como sendo um “projeto” de ética mundial e não um documento com pretensas de ordem absoluta. Em suas palavras

Neste pequeno livro estou plenamente consciente dos meus próprios limites. Trata-se de uma tentativa multifacial, abrangente, que extrapola os limites de uma disciplina e que pode, portanto, ser atacada facilmente por todos os lados. Por isso, conscientemente, dei a este livro o título “projeto” de ética mundial. Pois seria absurdo querer que um teólogo sozinho crie algo como uma “ética mundial” ou mesmo crie a paz religiosa.290

Em se tratando dos fatos que justificam os seus argumentos e, portanto, a necessidade de uma ética mundial, Kung apresenta números globais que apontam para a eminência de uma catástrofe global já nas próximas décadas, e neste aspecto sua argumentação converge com as colocações de Boff. Para o autor, também um dos fatos primordiais em questão diz respeito ao meio ambiente. “Em termos concretos, o discurso-lema para este Terceiro Milênio deve ser o seguinte: responsabilidade da sociedade mundial em vista de seu próprio futuro! Responsabilidade para com o meio ambiente, tanto hoje quanto no futuro”.291 No entanto, para Kung não é apenas em torno da questão ambiental que se faz necessário a discussão quanto à elaboração de um projeto de ética global, mas também em virtude dos constantes conflitos armados entre as nações motivados por razões, em sua maioria, religiosas, mas também econômicas e étnicas, lutas armadas cujos reflexos se vêem no aumento do número de refugiados, no alargamento das diferenças sociais gerando pobreza e miséria, e na precariedade de vida de indivíduos sem acessos as necessidades mínimas de manutenção da vida.292

Um aspecto peculiar da análise de Kung, à luz de suas constatações, apresenta como pressuposto prioritário para a elaboração desta ética o diálogo e a paz entre as religiões. Nas palavras do autor, “não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões. E sem paz entre as religiões não haverá diálogo entre as religiões”.293

290 Ibid, p. 11. 291 Ibid, p. 63. 292 Kung apresenta alguns números com base em pesquisas realizadas para os propósitos de seu estudo: “a cada minuto, os países do mundo gastam 1,8 milhão de dólares com armamento militar; a cada hora morrem 1.500 crianças por causa da fome ou por causa de doenças provocadas pela fome; a cada dia deixa de existir uma espécie de animal ou vegetal; com exceção do tempo da Segunda Guerra Mundial, na década de 1980, a cada semana foram presas, torturadas e assassinadas ou tiveram de fugir ou foram oprimidas de alguma outra maneira por governos repressivos mais pessoas do que em qualquer outra época na história; a cada mês são acrescentados pelo sistema econômico mundial mais 7,5 bilhões de dólares de dívida ao 1,5 trilhão de dólares de dívidas já existentes. Essa dívida já é hoje uma carga insuportável para o Terceiro Mundo; a cada ano é devastada para sempre uma parte da floresta tropical correspondente a 3 ou 4 vezes a área territorial da Coréia”. Ibid, p. 16. 293 Ibid, p. 7. 165

Segundo o autor, “uma análise de conjuntura que exclua a dimensão religiosa é deficiente! Pois, vista dia-crônica e sincronicamente, a religião é um fenômeno universal, assim como a arte e o direito”.294 Ele segue dizendo que “não se pode por negligência, ignorância ou ressentimento excluir da análise este fenômeno geral da humanidade”.295

A necessidade de um diálogo entre as religiões com vistas à paz se dá em virtude dos constantes conflitos estimulados e fundamentados por convicções religiosas ocorridos nas últimas décadas, a despeito do desenvolvimento social e intelectual alcançado pela sociedade contemporânea

Tantos massacres e guerras não somente no Oriente Médio, mas também em outros lugares são indiscritivelmente fanáticos, sangrentos e impiedosos, porque foram religiosamente fundamentados. Assim podemos enumerar uma série de tais conflitos: entre cristãos maronitas e muçulmanos, sunitas e xiitas, entre palestinenses, drusos e israelenses, entre o Irã e o Iraque, entre indianos e paquistaneses, entre hinduístas e siks, entre budistas sengaleses e hinduístas do Ceilão, entre monges budistas e o regimento católico no Vietnã, entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte.296

O autor questiona sobre qual seria a lógica ou o que justificaria o sentimento de hostilidade que tem se colocado entre indivíduos de crenças diversas ao longo da história e apresenta a sua conclusão

Qual é a lógica? Se Deus está “conosco”, com nossa religião, confissão, nação, partido, então parece ser lícito fazer qualquer coisa contra o partido adversário, o qual necessariamente tem de ser do diabo. Então parece até ser permitido ferir, queimar, destruir e matar em nome de Deus.297

Em virtude das divisões entre os povos provocadas pelas religiões e da incapacidade que elas detêm de se organizarem promovendo uma vivência pacífica, respeitosa e que aceita o semelhante, ainda que este não compactue de um mesmo credo, questiona-se a respeito da necessidade desta dimensão para fins de uma ética global, ou seja, não seria preferível uma moral sem religião? Poderia a religião trazer alguma contribuição neste projeto uma vez que muitos conflitos modernos baseiam suas ações em postulados religiosos? Em se tratando desta problemática que, há de se considerar, é legítima, Kung apresenta as potencialidades das religiões para uma contribuição positiva neste projeto

294 Ibid, p. 83. 295 Ibid, p. 83-84. 296 Ibid, p. 124. 297 Ibid, p. 124. 166

As religiões também podem evidenciar-se de forma libertadora, orientadas para o futuro e fraternas no relacionamento com as pessoas. Assim aconteceu muitas vezes. Elas podem espalhar confiança de vida, calor humano, tolerância, solidariedade, criatividade e engajamento social, bem como promover uma renovação espiritual, reformas sociais e até a paz mundial.298

Para o autor, “a religião não pode possibilitar tudo, mas ela pode abrir e proporcionar um ‘mais’ em termos de vida humana”.299 Sendo uma dimensão presente de forma sólida na estrutura social contemporânea, o autor apresenta então aquelas que seriam as funções elementares da religião

A religião consegue transmitir uma dimensão mais profunda, um horizonte interpretativo mais abrangente diante da dor, da injustiça, da culpa e da falta de sentido. Ela consegue também transmitir um sentido de vida último ante a morte: o sentido de onde vem e para onde vai a existência humana; A religião consegue garantir os valores mais elevados, as normas mais incondicionais, as motivações mais profundas e os ideais mais elevados: o sentido (por que) e o objetivo (para que) de nossa responsabilidade; [...]. A religião pode fundamentar protesto e resistência contra situações de injustiça: isso já é o desejo insaciável e atuante pelo “Totalmente Outro”.300

Portanto, para o autor, a participação das religiões mundiais neste grande projeto é de fundamental importância, pois não se trata do estabelecimento de uma moral única estruturada sobre pressupostos religiosos oriundos das principais tradições, mas sim de um conjunto de valores comuns que faz uso também da dimensão religiosa, não lhe ignorando a sua importância, para a sua elaboração.

Kung aponta para a realidade de um futuro diferente daquele que atualmente tem se projetado se os líderes das religiões mundiais desempenhassem um papel mais efetivo na promoção de uma convivência pacífica e respeitosa entre indivíduos que não compartilham da mesma fé

O que aconteceria para o mundo de amanhã se os líderes religiosos de todas as grandes e também das pequenas religiões hoje se pronunciassem decididamente em favor da responsabilidade pela paz, pelo amor ao próximo, pela não violência, pela reconciliação e pelo perdão? Se em vez de ajudar a provocar conflitos, elas se engajassem na sua solução? E isso de Washington a Moscou, de Jerusalém a Meca, de Belfast a Teerã, de Amitsar a

298 Ibid, p. 86. 299 Ibid, p. 98. 300 Ibid, p. 98. 167

Kuala Lumpur! Todas as religiões do mundo devem hoje reconhecer a sua co- responsabilidade pela paz mundial. Por isso, deve-se repetir sempre de novo a tese, para a qual eu tenho encontrado em todo o mundo apoio cada vez maior: não haverá paz entre as nações sem uma paz entre as religiões. Repetindo: sem paz entre as religiões não haverá paz no mundo!301

As colocações de Kung e a sua sugestão de uma ética global em virtude da contínua manifestação de conflitos armados, projeto este cuja construção será possível apenas mediante uma aproximação entre as tradições religiosas a fim de que um acordo para uma vivência pacífica em espaços compartilhados seja possível, são relevantes e provoca todo leitor à reflexão contínua de suas propostas. De fato, a problemática por ele levantada é bastante legítima.

Não apenas a questão ambiental, mas também o estabelecimento da paz entre as religiões traduz-se como um empreendimento ou uma causa digna de persistência por parte de governos ao redor do mundo. Como citado, muitos conflitos políticos e civis ainda hoje são justificados com pretensas de ordem religiosa mais que econômica e mercadológica.

Lipovetsky, como já colocado, não se ocupa em discutir a problemática ética relacionada à questão ambiental, ainda que ele reconheça a questão bem como a necessidade de uma mudança nos hábitos de consumo a fim de não comprometer definitivamente a sustentabilidade do ecossistema. Também não é a questão central de sua obra os conflitos armados promovidos com motivações religiosas, no entanto, algumas de suas considerações são relevantes para que possíveis perspectivas possam ser vistas em torno da questão ética.

Para Lipovetsky, o momento atual da sociedade testemunha de um apego às novas espiritualidades e possibilidades de se fazer religião

...a época contemporânea é marcada pela reativação multiforme das espiritualidades; à medida que o mercado se desenvolve, crescem novos movimentos religiosos, novas expectativas, mobilizações e interrogações espirituais. Evidentemente, a dimensão espiritual não foi reduzida pela cultura-mundo do consumo e do mercado. Se ela está centrada na dimensão do presente e do curto prazo, nem por isso é menos concomitante com uma dinâmica espiritual que incita a memória religiosa, que mobiliza relatos fundadores e origens sacrais.302

301 Ibid, p. 126-127. 302 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 133. 168

Evidentemente, quando Kung propõe um diálogo entre as religiões, ele se refere às grandes religiões mundiais e não a movimentos localizados em contextos específicos, com pouca estrutura de religião, limitados em sua capacidade de conquista de novos adeptos e, algumas vezes, sem representantes legais. Para Kung, “uma religião verdadeira, que se refere àquele uno absoluto (Deus), diferencia-se fundamentalmente de qualquer semi-religião ou pseudo-religião, que absolutiza ou diviniza algo relativo”.303 São àqueles movimentos ou novas espiritualidades que Lipovetsky se refere quando faz a sua colocação, ou seja, à multiplicação de ofertas religiosas ou mágicas colocadas à disposição de um indivíduo desejoso por consumir experiências de caráter sobrenatural que possam satisfazê-lo em suas aspirações privadas. Tais movimentos, ainda que pequenos, se multiplicam e, por seu caráter descomprometido e em virtude dos objetivos a que se pretendem, satisfazem os indivíduos em tempos hipermodernos. São estes pequenos focos de espiritualidades ou de práticas mágicas que se adéquam às novas e constantes exigências de indivíduos que buscam nestes envolvimentos, respostas às suas demandas subjetivas. Adequando-se à lógica da variedade, de inovação e de troca a fim de satisfazer os anseios subjetivos dos indivíduos, esses pequenos grupos de pretensa religiosa aos poucos conquistam seu público e são aceitos com mais facilidade do que os grupos religiosos de tradição, pois conciliam suas ofertas com as necessidades dos indivíduos.

Considerando a colocação de Lipovetsky, questiona-se se na elaboração de um projeto de ética mundial não cabe uma reflexão a respeito do pluralismo religioso presente na sociedade atual e permitido em virtude do enfraquecimento dos absolutos. Estariam os grupos religiosos de tradição comprometidos em sua subsistência na medida em que tentam resgatar a posse de verdades absolutas? Seguramente, a convicção da posse de verdades absolutas tem afetado a liberdade de semelhantes com quem se divide o mesmo espaço, no entanto, um projeto de ética global não corre o risco de reclamar para si a posse de novos absolutos pré- determinado por grupos específicos? As implicações em torno desta questão podem suscitar novas problemáticas.

É fato já reconhecido a queda no número de adeptos das grandes religiões mundiais, exceto talvez naqueles grupos onde a pertença religiosa se dá desde o nascimento, sendo assim, como caracterizar de fato o público pertencente às principais tradições religiosas? São adeptos comprometidos com os valores da religião que professam ou indivíduos plenamente

303 Hans KUNG, Projeto de ética mundial, p. 98. 169

engajados na dinâmica do consumo, da comunicação global e do mundo virtual e, portanto, que expressam uma fé religiosa sincrética e de convicção plural?

A falta de engajamento comprometido por parte de indivíduos que se declaram seguidores de uma religião de tradição pode ser conseqüência das influências da sociedade atual e dos valores que ela veicula, com suas variadas possibilidades de satisfação e de realização pessoal, e pode também revelar o enfraquecimento e a impotência dos líderes destas religiões de tradição em suas tentativas de orientarem e de serem ouvidos por seus adeptos. Sendo assim, o que garante o sucesso de uma ética global, ainda que se estabeleça um diálogo promissor entre as religiões, se o poder que estas religiões detêm de orientação de seus adeptos é questionável?

Por fim, a ética global a partir de um diálogo entre as religiões deve considerar o fenômeno do pluralismo religioso e da multiplicação das ofertas mágicas e de pequenas religiosidades, bem como a competência reclamada pelo consumo em satisfazer necessidades privadas de caráter religioso. Sua elaboração deve reconhecer a presença plenamente estabelecida de uma lógica do consumo determinante nos comportamentos dos indivíduos a fim de se precaver da promulgação de valores e objetivos que não considerem as influências desta realidade. Uma ética mundial não poderá ser interpretada de forma relativa, caso contrário ela não poderá ser adequada a contextos sociais e culturais distintos, portanto, seus valores estarão imbuídos de uma autoridade de caráter absoluto, cujas implicações podem suscitar novas problemáticas que precisam previamente de discussão e reflexão.

Para Lipovetsky, não há freios ou realidades alternativas à sociedade do consumo. As ofertas e possibilidades de realização pessoal que ele oferece sobrepuja as pretensas religiosas de tradição. Sendo assim, ainda que haja muita especulação em torno da necessidade de um diálogo entre as religiões mundiais por conta dos constantes conflitos presenciados nas últimas décadas, a análise de Lipovetsky revela que tais conflitos não refletem a emergência de um neofundamentalismo se projetando no cenário social, e também a capacidade que estes grupos detêm de agregar as massas em torno de seus postulados é ainda marginal.304

A constatação de Lipovetsky é bastante pertinente para uma discussão em torno da possibilidade de um futuro exílio de práticas fundamentalistas na medida em que a sociedade de consumo avança. Faz-se relevante apresentar mais uma vez a sua colocação acerca de movimentos de natureza fundamentalista

304 A constatação a respeito da fragilidade da hipótese relacionada à emergência de um neofundamentalismo foi apresentada no capítulo 3 desta pesquisa. Ver: p. 131-133. 170

Não laboremos em erro; esse neofundamentalismo de modo algum nos reconduz ao antigo universo da tradição, pois também corresponde a uma faceta da liberdade individual, isto é, a uma procura da própria identidade, a uma livre opção que se caracteriza por casar a autoridade dos dogmas e a submissão à comunidade. [...] O mais significativo, porém, é o caráter fortemente estanque existente entre os dois pólos, quer dizer, a impenetrabilidade das maiorias silenciosas às investidas dos radicais. Doravante, os movimentos radicais se mostram incapazes de abarcar o coletivo, de trazer atrás de si as massas, ligadas aos valores de autonomia e de prudência. As porções periféricas extremadas desfraldam vistosas suas bandeiras, mas em profundidade isso pouco repercute.305

Deste modo, se os movimentos radicais também refletem o desejo de seus adeptos por contemplação de anseios subjetivos, de sentido para a vida, de reconhecimento existencial e dar vida a uma identidade interior pretendida, pode se cogitar se tais movimentos não tendem ao seu fim por conta dos avanços da sociedade de consumo, trazendo com ela novas possibilidades de satisfação de desejos privados através de suas mais variadas ofertas. Em suma, há alternativas para o alcance dos fins a que almejam os radicais fundamentalistas. Não é preciso a militância ao preço da própria vida se outros meios estiverem disponíveis, tendo em vista que os fins a que se destinam são os mesmos. Portanto, ainda que haja a discussão em torno da necessidade de uma ética mundial, ao que parece, a sociedade de consumo tem formado e promovido um “ethos do individualismo tranqüilo” nas consciências que alcança. Nas palavras de Lipovetsky: “por todos os lados, os extremistas conseguem semear a perturbação no seio do público, mas fracassam na tentativa de subverter o ethos do individualismo tranqüilo, amplamente tolerado pela grande maioria”.306

Seria o consumo a salvação para os conflitos entre as religiões e o único meio para a garantia da paz entre os grupos coletivos existentes na medida em que encanta os indivíduos e os satisfaz? Seguramente, o consumo satisfaz os indivíduos em seus anseios e os contempla com sensações de conforto e bem estar, no entanto, a sua própria lógica cobra um preço alto por tais retornos, a saber, como já colocado, o esgotamento dos recursos disponíveis. Porém, Lipovetsky atesta para o fato de que “não há mais corrente mística de nenhuma natureza em condições de desviar o curso da sociedade civil de sua orientação global”.307 Coloca também que “... a sociedade de hiperconsumo se impõe como nosso único horizonte [...]. Se existem diferentes políticas econômicas ou sociais, não existe, por ora, solução alternativa à sociedade

305 Gilles LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 132-133. 306 Ibid, p. 133. 307 Ibid, p. 133. 171

e hiperconsumo”.308 Em sua perspectiva, “... a menos que se enfrente um cataclismo ecológico ou econômico, a sociedade de hiperconsumo prosseguirá irresistivelmente em sua trajetória”.309 Sendo assim, qual seria o papel mais eficiente a que as religiões mundiais poderiam desempenhar em favor da sobrevivência humana? Não apenas um diálogo inter- religioso com vistas à paz, embora não se negue a sua necessidade e o seu valor, mas seria pertinente também um plano comum que seja capaz de suscitar nas consciências o valor que cada indivíduo detém por sua própria natureza.

O estabelecimento de valores comuns a compor uma ética global precisa ter como propósito o alcance da essência dos problemas relacionados a práticas fundamentalistas. Não são as paixões nacionalistas que promovem fundamentalismos, mas sim o anseio por sentido para a vida. Erroneamente seria oferecer o consumo como alternativa, pois sua lógica escraviza o indivíduo e lhe convence de que o seu valor está atrelado e dependente da aquisição de bens disponíveis nos mercados. Tal proposta comprometeria também o futuro das gerações. No entanto, um plano de conscientização acerca do valor que cada indivíduo possui por sua própria natureza pode apresentar alternativas aos engajamentos militantes, e em relação ao consumo, faz-se necessário um esforço mútuo, e neste aspecto as religiões mais bem estruturadas podem contribuir para que haja mudanças significativas nos hábitos de consumo e para que haja um norteamento mais responsável de seu desenvolvimento. Lipovetsky apresenta alternativas dizendo

... se novas maneiras de avaliar os gozos materiais e os prazeres imediatos vierem à luz, se uma outra maneira de pensar a educação se impuser, a sociedade de hiperconsumo dará lugar a outro tipo de cultura. A mutação decorrente será produzida pela invenção de novos objetivos e sentidos, de novas perspectivas e prioridades na existência. Quando a felicidade for menos identificada à satisfação do maior número de necessidades e a renovação sem limites dos objetos e dos lazeres, o ciclo do hiperconsumo estará encerrado. Essa mudança socioistórica não implica na renúncia ao bem-estar material, nem no desaparecimento da organização mercantil dos modos de vida; ela supõe um novo pluralismo dos valores, uma nova apreciação da vida devorada pela ordem do consumo volúvel.310

O diálogo inter-religioso em busca da paz mútua e do estabelecimento de um conjunto de valores comuns pode contribuir de forma relevante para que a sociedade se desenvolva de

308 Idem, A felicidade paradoxal, p. 343. 309 Ibid, p. 367. 310 Ibid, p. 367-368. 172

maneira mais responsável, sem frear as suas possibilidades, mas garantindo, no entanto, a sobrevivência humana.

2.3. Para além do individualismo: uma ética global a partir do sujeito

Touraine trabalha especificamente com a idéia de sujeito como alternativa à modernidade e, mais precisamente, às ameaças que a sociedade de consumo impõe hoje aos indivíduos. Em sua perspectiva, o autor reconhece a manifestação de um individualismo cada vez mais assíduo e praticado, de fato, sua negação seria uma pontuação contraditória aos eventos expressados pela sociedade contemporânea, porém, a reconstrução e a conscientização da importância da figura do sujeito social podem ser uma ação alternativa em direção a um modo de vivência social responsável, fraterno, pacífico e que garanta a continuidade da sociedade.311 Touraine compreende o sujeito dizendo que

O sujeito é, assim, tanto pós-religioso como anti-religioso; tanto racionalista como anti- racionalizador. Rejeita a religião porque pertence à modernidade, ao universo da ação; mas também rejeita, com a mesma energia, toda forma de positivismo, quer seja no pensamento social ou no direito, em nome da instransponível distância que vai da utilidade ao valor. Não se situa a meio-caminho entre o pensamento religioso e o progressismo utilitarista ou positivista; não é tampouco ambivalente, amando e repelindo ao mesmo tempo o progresso e a visão religiosa. Está centrado em si mesmo, o que exige uma certa combinação dos dois universos entre os quais se acha colocado, mas também e sobretudo uma luta ativa contra um e outro. O sujeito não é nem o ser eterno nem a humanidade que o progresso libertou. Não é nem deus nem homem.312

À luz da constatação acima, compreende-se que o sujeito detém em si a competência necessária para a produção de uma reflexão crítica a respeito da sociedade e de seus movimentos e tendências. Em diversos momentos de sua reflexão, o autor atesta para esse fato

De modo mais concreto ainda, todo apelo a uma figura do sujeito implica uma crítica da ordem, a afirmação que esta tende a degradar-se sob o efeito daquilo que constitui a face

311 Ver também a obra Ética sem moral, onde Cortina trabalha com a temática do “individualismo possessivo à autonomia individual” e também do “coletivismo ao individualismo solidário?”. p. 281-295. 312 Alain TOURAINE, Poderemos viver juntos?, p. 111. 173

sombria do individualismo e que é o desejo (que gera a paixão) e sobretudo a submissão ao dinheiro e ao poder.313

Em sua perspectiva, “a idéia de sujeito nos arrasta para uma direção diferente. Ela procura em todas as sociedades um princípio de recurso contra a ordem”.314

As experiências e infortúnios que a sociedade moderna têm legado ao sujeito podem capacitá-lo a um auto-reconhecimento em seu meio social. Touraine comenta a respeito da ilusão criada pelo projeto moderno quanto à possibilidade da construção de um futuro desprovido de reveses. No entanto, esse quadro futuro almejado mostrou-se cada vez mais distante das consciências a partir das catástrofes que a inovação tecnológica ininterrupta legou a sociedade. Questiona-se a plausibilidade de sua lógica e a sua capacidade de permanência e de garantia da vida.315 O autor, então, considerando a necessidade de uma crítica mais efetiva à modernidade em suas pretensões, bem como a possibilidade de se contrapor à sua lógica de maneira eficaz, aponta para a figura do sujeito como sendo “um princípio de limitação do poder social e mesmo a um fundamento não social da ordem social”.316 Nas palavras do autor

É precisamente a este princípio que dou o nome de sujeito, cujas formas projetadas no além-mundo, na transcendência, se acham nas religiões, e que a modernidade torna sempre mais presente a si mesmo, reflexivo e capaz de intervir no conjunto das práticas sociais.317

Touraine acrescenta ainda que

Assim, além da passagem da sociedade tradicional à sociedade moderna, que se resume pelo triunfo de uma ordem artificial sobre uma ordem natural, podem-se encontrar em todas as sociedades os mesmos elementos fundamentais: a referência a uma ordem, o apelo a um sujeito cujo ser se acha além da ordem social, a crítica da ordem que não resiste à desordem do interesse e do desejo, o que invoca a intervenção duma figura do sujeito, único princípio de construção duma ordem que não seja nem natural nem artificial, mas simplesmente moral.318

313 Ibid, p. 106. 314 Ibid, p. 106. 315 Bauman, em sua análise da sociedade, concorda com Touraine ao considerar que a “sociedade não garante mais, nem mesmo promete, um remédio coletivo para os infortúnios individuais”. Ele pontua ainda que, a despeito de uma “liberdade de proporções sem precedentes” oferecida aos indivíduos, segue-se também “uma insegurança similarmente sem precedentes”. Em sua perspectiva, “a vida fragmentada tende a ser vivida em episódios, numa série de eventos desconectados. A insegurança é o ponto em que o existir se desmorona em fragmentos, e a vida em episódios”. A sociedade individualizada, p. 202. 316 Alain TOURAINE, Poderemos viver juntos?, p. 108. 317 Ibid, p. 108. 318 Ibid, p. 107. 174

Sua consideração rompe também com as posições que identificam a liberdade do sujeito com a sua entrega desenfreada às praticas do consumo e à vivência irresponsável no meio social

No limite, aqueles que identificaram a liberdade do sujeito com a liberdade de comércio ou com a abundância dos bens e consumo disponíveis não diferem muito daqueles que, no passado ou em nossos dias, dão o nome de liberdade à diluição do sujeito em comunidade homogênea. Tanto num caso como no outro, sob o pretexto de defender a liberdade e a felicidade individuais, submetem-se os membros de uma sociedade à lógica dum sistema e, através dela, aos interesses materiais e ideológicos daqueles que o dominam e dirigem. Todos os apelos à natureza, quer seja sob a forma estóica ou religiosa de aceitação da ordem natural do universo ou da vida, ou sob a forma, aparentemente oposta, de uma confiança integral nas conquistas da ciência e da técnica, entram em conflito direto com a idéia de sujeito. [...] A idéia de sujeito está mais próxima de uma das vertentes do pensamento religioso do que do utilitarismo, pois repousa sobre a recusa de estabelecer uma correspondência entre o sistema e o ator e reduzir este último a seus papéis sociais.319

Em sua perspectiva, “o sujeito se acha tão ameaçado no mundo de hoje, pela sociedade de consumo que nos manipula ou pela busca de um prazer que nos aprisiona em nossas paixões, como o era no passado pela submissão à lei de Deus ou da sociedade”.320 De fato, na perspectiva do autor, a ameaça que se apresenta ao sujeito diz respeito ao seu engajamento na sociedade das massas

O que hoje ameaça mais diretamente o sujeito é esta sociedade das massas onde o indivíduo foge de toda referência a si mesmo, onde é um ser-de-desejo em ruptura com todo princípio de realidade, à procura de uma libertação pulsional ou, em outras palavras, impessoal.321

O autor segue dizendo que há como que uma “tentação de deixar que se elimine o sujeito e o seu apelo ao universalismo, deixar o campo livre ao mesmo tempo às diferenças culturais e à impessoalidade do desejo e da violência [...].”322

Touraine considera também a possibilidade de um “duplo afastamento” necessário para que o sujeito seja capaz de uma autoconstrução e de uma reflexão crítica de seu meio. Ele explica dizendo que

319 Ibid, p. 108-109. 320 Ibid, p. 70. 321 Ibid, p. 70. 322 Ibid, p. 71. 175

A reconstrução da experiência não pode efetuar-se a não ser por um duplo afastamento, por uma dupla reação contra a degradação das duas metades dissociadas da experiência. O afastamento da comunidade é o mais fácil de definir. Trata-se de distanciar-se da cultura da comunidade, e portanto do conjunto social e político onde ela estava encerrada. [...]. O sujeito pessoal não pode formar-se a não ser afastando-se das comunidades demasiadamente concretas, por demais holísticas, que impõem uma identidade fundada em deveres mais do que em direitos, insistindo mais na inserção do que na liberdade.323

Na perspectiva do autor, a cultura da comunidade acaba por inibir as potencialidades do sujeito, sua emancipação, sua capacidade de reflexão crítica, entre outras virtudes, na medida em que o condiciona aos seus preceitos. Para Touraine, “o sujeito não é uma ‘alma’ presente no corpo ou o espírito dos indivíduos. Ele é a procura, pelo próprio indivíduo, das condições que lhe permitam ser o ator da sua própria história”. O autor coloca ainda que “não se trata, para o indivíduo, de engajar-se no serviço de uma grande causa, mas antes de tudo de reivindicar o seu direito à existência individual”.324 Touraine conclui seu argumento afirmando que

Esse duplo afastamento do sujeito, que se liberta da força dos mercados ou dos impérios de um lado, e do enclausuramento das comunidades, do outro, é a condição necessária para que se estabeleça a comunicação de sujeito a sujeito [...]. Mas ela é também a condição para que os princípios de justiça, de solidariedade e corresponsabilidade, que permitem a comunicação e a argumentação, se transformem em atos, isto é, em abertura das hierarquias comunitárias ou em limitação da força.325

Relacionando as considerações de Touraine com as abordagens que Lipovetsky faz a respeito do indivíduo, há a possibilidade de se traçar algumas aproximações. As duas propostas anteriormente colocadas, a saber, a proposta de uma ética global em torno da questão ambiental, bem como a proposta de um conjunto de valores mínimos oriundo de um diálogo entre as religiões em busca da paz mútua entre os indivíduos religiosos, permitiram reflexões relevantes quando contrapostas com as constatações que Lipovetsky faz acerca da sociedade de consumo e de sua lógica de funcionamento.

Em se tratando das colocações de Touraine, o sujeito pode ser mais bem compreendido e valorizado não como sendo alguém passivamente cativo dos interesses e ditames da ordem social atual, mas sim a partir de um afastamento necessário para que uma

323 Ibid, p. 72 e 73. 324 Ibid, p. 73. 325 Ibid, p. 74. 176

observação crítica da comunidade na qual ele se encontra inserido seja possível. A comunidade seria um ajuntamento de sujeitos coletivos, ou seja, de sujeitos capazes de se auto-reconhecerem individualmente no cenário social atual. Para o autor, este seria o ponto de partida fundamental para que mudanças profundas e significativas possam ser realizadas nas sociedades globais.

Lipovetsky, no entanto, em suas análises a respeito do indivíduo e do individualismo atual aponta para a emergência de um individualismo acabado, um hiperindividualismo como produto da sociedade atual. Ele coloca que “na escala da história, é uma segunda revolução individualista que está em marcha, instituindo desta vez um individualismo acabado, extremo: um hiperindividualismo”.326 Trata-se de um tipo de individualismo centrado na busca por satisfações pessoais mais que na observância de uma conduta de vida reconhecida e aceita pelo meio social externo em que se vive.

O autor é perspicaz também por constatar que, embora os alistamentos e a submissão a regras e postulados promulgados por instituições antes responsáveis por prover significação existencial e orientação social aos indivíduos tenha perdido a validade na contemporaneidade, o indivíduo tem se enquadrado em pequenos grupos comunitários que possam lhe prover um sentimento mínimo que seja de “ancoragem comunitária”

Ao atomizar o social, a dinâmica de individualização engendrou uma nova forma de insegurança identitária baseada na perda das ancoragens comunitárias. Daí a necessidade de identificar-se com comunidades particulares, étnicas, religiosas ou infranacionais capazes de recriar um sentimento de inclusão coletiva. Enquanto recuam os pólos de identificação de caráter universal comparados a abstrações distantes, os indivíduos reinvestem em suas comunidades particulares imediatas.327

Este reinvestimento a que Lipovetsky se refere diz respeito à busca por contemplação de necessidades privadas, por isso o engajamento livre em grupos específicos, conforme as preferências dos indivíduos. Não se trata de um retorno ao engajamento comunitário onde se possam compartilhar recursos e necessidades em benefício mútuo, mas sim de encontrar no sentimento proporcionado pela participação em um determinado grupo, bem estar, prazer e segurança interior. Seguramente, a tentativa de imposição de valores por uma instituição já conhecida, como o Estado ou mesmo a Igreja resultaria em resistência por parte de indivíduos que buscam grupos nos quais eles possam encontrar conforto psíquico sem custo. Conforme

326 Gilles LIPOVETSKY & Jean SERROY, A cultura mundo, resposta a uma sociedade desorientada, p. 48. 327 Ibid, p. 52. 177

coloca o autor, “a dinâmica de individualização rompeu a ordem tradicional que fazia prevalecer as tradições e os interesses de grupo sobre os desejos pessoais”.328 Portanto, ainda que Touraine persista na proposta de um afastamento da comunidade, ou seja, de um distanciamento por parte do indivíduo da “cultura da comunidade”, Lipovetsky parece constatar que o indivíduo contemporâneo encontra nesta mesma cultura todas as ofertas disponíveis para que a sua plena realização existencial seja possível. Sendo assim, como conciliar ambas as necessidades? Como desafiar o indivíduo a tal distanciamento se todo o universo de suas realizações se encontra estritamente arraigado na presente cultura de consumo atual? Essas e outras questões carecem ainda de uma reflexão mais precisa e revelam quão complexas são as questões em torno de uma saída para a modernidade atual, para as iniciativas às práticas contínuas de consumo, ainda que o ecossistema esteja nos limites de sua sustentação, e para o individualismo tão determinante no modo como se dão as relações de gênero.

3. A sociedade pós-moralista e seu futuro

Verificou-se que a construção de uma ética global em uma sociedade estruturada sobre bases pós-moralistas constitui-se um grande desafio para a sociologia e as ciências da religião, em virtude da lógica do consumo tão determinante no funcionamento da sociedade atual. As propostas aqui apontadas são extremamente relevantes e refletem o esforço despendido por especialistas de diversas ciências na tentativa de encontrar meios que garantam as possibilidades de vida no futuro, com relacionamentos pacíficos entre os indivíduos onde as diferenças são toleradas e onde o espaço comum de vivência possa ser compartilhado e seus benefícios usufruídos com responsabilidade.

Em vista destes objetivos, como o colocado acima, questiona-se a respeito do futuro reservado a este tipo de sociedade. Para Lipovetsky, não se prevê a emergência de um “planeta homogeneizado” a se despontar no futuro. À problemática levantada pelo autor acerca de uma padronização planetária em virtude da contínua promulgação de hábitos de vida, gostos e marcas universais, ele considera que

... a idéia de erradicação das diferenças culturais pelo mercado não resiste ao exame dos fatos. As empresas compreenderam isso rapidamente ao desenvolver o princípio da

328 Ibid, p. 53. 178

“glocalização”, integrando as diferenças, os esquemas culturais específicos das nações no panorama de sua estratégia internacional. A empresa global é aquela que torna seu o famoso “pensar global, agir local”, com a atitude unificada no plano estratégico aliando-se a abordagens que consideram os contextos e os universos simbólicos singulares.329

Lipovetsky atesta que essa postura de valorização de particularidades locais não irá sucumbir ante as contínuas propagandas do consumo, pelo contrário, em sua perspectiva

Deve-se desmentir semelhante interpretação, que não apenas subestima o peso da história nas construções identitárias mas também lê o fenômeno com óculos modernos de outros tempos no momento em que se passou a uma nova modernidade, aquela em que a patrimonialização e as reafirmações particularistas funcionam como meios de personalização, como maneiras novas de o indivíduo ser ele mesmo e ter orgulho disso.330

Neste sentido, não se vê em tais posturas a reafirmação de um novo apego ao tradicionalismo local, mas sim mais uma manifestação de valorização daquilo que para o indivíduo em seus anseios privados faz-se importante.

A hipótese de um futuro que revele “um mundo sem alma”, onde indivíduos constroem suas vidas num universo cujos valores foram exilados mostrou-se também insustentável. Para o autor, “quaisquer que sejam as manifestações de um individualismo extremado, é forçoso observar que não atingimos o grau zero de valores”.331 Lipovetsky respalda o seu argumento apontando para a manifestação de um “núcleo estável de valores partilhados”, entre eles, os direitos humanos, a honestidade, o respeito pelas crianças, a rejeição da violência e da crueldade.332

Não é também em direção a um mundo plenamente infantilizado, ou seja, com escassez de reflexões críticas e de apontamentos de problemáticas sociais, que define o curso da sociedade atual. O autor constata que

Afirmar que o hipercapitalismo conseguiu transformar os seres em puros consumidores passivos e infantilizados é enganar-se gravemente. É mostrar-se cego, aí também, às forças antagonistas, às tensões entre os valores, às demandas e motivações contraditórias que inervam a sociedade do hiperconsumo.333

329 Ibid, p. 114-115. 330 Ibid, p. 118. 331 Ibid, p. 135. 332 O autor cita como exemplo o crescimento de adesões nos trabalhos de voluntariado. Olhando para a realidade na França, o autor coloca que o número de voluntários neste país já alcança os 12 milhões de pessoas. Ibid, p. 135. 333 Ibid, p. 145. 179

Verifica-se, portanto, que à despeito das iniciativas desmedidas da cultura de consumo na tentativa de manter os indivíduos comprando freneticamente e plenamente dependentes de sua lógica, é possível o estabelecimento de medidas mais responsáveis que apontem para uma reversão no curso atual das coisas. Segundo o autor

Não se trata, portanto, de refazer o mundo, mas, no próprio interior do sistema tal como ele se impõe, de alavancar as forças positivas que ele encerra, a fim de reduzir ou mesmo anular os males de que é portador. O que é propriamente uma política. É preciso repetir: a cultura-mundo, por mais globalizante que seja, não é Una; é ambivalente, paradoxal, contraditória. Jogando com suas forças e suas tensões diversas, é possível inflectir o curso das coisas e configurar um mundo melhor. Não se trata de cultivar um sonho grandioso, mas de simplesmente alimentar o debate, fixar prioridades, traçar linhas. Uma tal política, que visa afastar a hipermodernidade da selva que ela tende a ser, não constitui uma política de civilização, mas poderia fazer desta uma ordem simplesmente mais “civilizada”.334

À luz da colocação acima, questiona-se a respeito de quais seriam as prioridades a serem fixadas a fim de que ações mais concretas sejam possíveis e rapidamente colocadas em prática. Seria a questão ambiental, tendo em vista a urgência de medidas que ela pede? Seria uma aproximação para o diálogo das grandes religiões, uma vez que muitos conflitos armados são fundamentados em pressupostos religiosos? Seria um retorno do conceito de sujeito, de sua valorização, de sua capacidade crítica mais que o simples reconhecimento de um indivíduo passivo e facilmente manipulado pelo universo sedutor da cultura de consumo? Seria a responsabilidade para com a vida alheia, como prefere Hans Jonas.335 É possível que o levantamento desta problemática reconduza mais uma vez a questão para o debate em torno de uma possível ética global, e como foi colocado anteriormente, tal proposta, ainda que seja seguramente relevante, necessita ainda de mais elaboração para que seus frutos saiam do plano puramente teórico das coisas e sejam vistos claramente no plano prático. No entanto, Lipovetsky deseja mostrar que há saídas mesmo num universo social puramente consumista. Como coloca o autor na referência acima, “fazer desta uma ordem simplesmente mais ‘civilizada’”.

O desafio em questão depende também de uma melhor compreensão da questão religiosa atual. A contribuição de Lipovetsky é fundamental, pois proporciona a identificação de uma religião secularizada, ou de uma espiritualidade secularizada, gravitando no cenário

334 Ibid, p. 149. 335 Ver Hans JONAS, O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 180

social atual. Impera atualmente práticas que correspondem prioritariamente aos anseios subjetivos. Há como que uma devoção prestada ao ego, um culto ao ego. O consumo e sua lógica se encarregam de disponibilizar os meios para que os reclamos privados sejam correspondidos. É a cultura do consumo que influencia também os comportamentos de indivíduos cuja pertença religiosa seja afirmada com veemência, e é propício também desta cultura a manutenção de uma lógica aonde as necessidades subjetivas sejam ressaltadas, para depois serem satisfeitas temporariamente, e então, mais uma vez despertadas, a fim de que o indivíduo permaneça cativo às imposições do consumo e assíduo na sua prática devocional interior.

Uma possível mudança no curso atual das coisas deve considerar as mudanças culturais que constantemente se dão em virtude do avanço das tecnologias, da multiplicação das capacidades de comunicação e da constante variedade dos mercados de consumo, e as inferências destas mudanças também no universo das religiões. Ações práticas para um melhor cuidado e atenção à questão ambiental, bem como o incentivo para uma aproximação para o diálogo entre as grandes religiões com vistas à permanência pacífica entre as crenças mundiais, não podem desconsiderar a realidade de que há uma sociedade estruturada em bases pós-moralistas alcançando cada vez mais universos sociais distintos a fim de unificar estes universos em padrões comuns. Entender como esta sociedade funciona, o que a sustenta, quais são os valores que ela veicula e qual o futuro que ela está formando, compõe o objeto de estudo de Lipovetsky em sua obra prioritária para esta pesquisa, A sociedade pós-moralista. Ainda que a questão religiosa não seja a principal preocupação de Lipovetsky, suas considerações são pertinentes, pois permitem uma melhor compreensão da sociedade atual para, a partir disto, obter-se uma melhor verificação dos movimentos e das mudanças ocorridas também no universo religioso de uma sociedade pós-moralista.

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- Considerações finais -

O que torna o pensamento de Lipovetsky tão singular é a maneira com a qual ele descreve fenômenos sociais que, em sua maioria, são marginalizados pela filosofia tradicional. Embora pertencente a uma tradição filosófica cuja atenção se encontra voltada à produção de uma crítica consistente à modernidade, Lipovetsky sobrepõe as análises já existentes com constatações relevantes a respeito de realidades como o luxo, o consumo e a moda, cujas manifestações singulares apontam para mudanças significativas nos modos de vida dos indivíduos.

Reconhecendo a corrente discussão em torno de uma nomenclatura que melhor defina o momento social atual, Lipovetsky rompe com os paradigmas já estabelecidos sugerindo que os tempos atuais são os tempos do hiper. Desta forma, para o autor, que já se considerou pós- moderno, o momento atual é o da hipermodernidade. Em sua perspectiva, em nenhum momento histórico passado presenciou-se uma ordem social tão singular e individual e, paradoxalmente, tão comum e coletiva, como a que se manifesta atualmente. As manifestações de um hiperindividualismo e de um hiperconsumo como lógicas determinantes na hipermodernidade atestam para a singularidade da configuração social atual.

Não apenas em relação a fenômenos como a moda, o consumo e o luxo, entre outros, mas também na dimensão ética o autor constata haver rupturas significativas com paradigmas pertinentes a tempos passados. Em seu estudo consistente a respeito da questão ética, Lipovetsky verifica que três grandes momentos definem o pensar e o viver ético nas sociedades. O primeiro deles é pertinente de tempos pré-modernos, quando a dimensão ética estava subordinada às imposições da religião, sendo esta a instituição determinante de tudo aquilo que era ou não ético. O segundo momento, no entanto, desvaloriza a competência da 182

religião como instituição detentora dos valores éticos fundamentais para localizar nas instituições modernas emergentes, como o Estado e a família, a autoridade na determinação e fundamentação da ética social. Lipovetsky, no entanto, ressalta que a lógica do dever, da obrigatoriedade, enfim, da valoração e consideração para com a vida alheia em toda e qualquer atitude ética, que se fazia presente em tempos pré-modernos, continua ainda a fazer valer os seus pressupostos mesmo com o advento da modernidade. Há, portanto, apenas um deslocamento das funções de regulação ética que passava da esfera da religião tradicional para as instituições modernas, no entanto, a mesma lógica do dever prevalece. O terceiro momento, enfim, é marcado por uma ruptura significativa com esta lógica do dever e é característico da hipermodernidade, ainda que as condições necessárias à sua manifestação tenham começado a se formar desde tempos passados. Mudanças nos hábitos do consumo, alargamento nas capacidades de comunicação, avanço irrestrito das tecnologias modernas, entre outros, são aspectos que deram bases de sustentação à estrutura social atual. Para o autor, no momento contemporâneo não há o predomínio de uma lógica do dever nas relações entre os indivíduos, mas há sim a manifestação de uma lógica do pós-dever onde a não consideração para com o bem estar alheio não acarreta consigo reprimendas sociais.

É a lógica do pós-dever que institui um tipo de individualismo pleno, ou consumado, que o autor denomina de hiperindividualismo. A singularidade deste tipo de individualismo se verifica na legitimidade alcançada pelo viver só para si sem que isso acarrete sanções ou estigmas sociais. É também um tipo de individualismo paradoxal, pois não reflete um comportamento irresponsável para com o bem estar próprio e também para com o espaço social compartilhado com outros indivíduos, mas sim uma postura responsável para com a vida e para com o meio apenas porque disto depende a satisfação e a realização pessoal. São sobre as bases deste tipo inusitado de individualismo que se constroem as relações sociais na hipermodernidade, os frágeis engajamentos altruístas, os novos hábitos de consumo e as novas maneiras de lidar com o corpo e com a saúde.

Nas análises de Lipovetsky a respeito da hipermodernidade e da questão ética se verifica também a existência de elementos sobre religião. Nesta perspectiva, as constatações do autor permitem uma melhor compreensão também a respeito da questão religiosa em tempos hipermodernos. A sua compreensão do hiperindividualismo determinando as relações dos indivíduos com o próprio corpo, com o consumo, com as causas alheias e com outros indivíduos fornece elementos para que a constatação de uma religião secularizada e individual tomando forma no cenário social seja plausível. Não se trata de uma religião de caráter 183

institucional, qualquer tentativa de sustentar esta hipótese com as grandes definições de religião se mostra equivocada, mas sim de uma prática religiosa em torno de uma devoção constante para com o ego com vistas à plena satisfação de seus anseios. Neste sentido, é possível dizer de uma religião hipermoderna do pós-dever.

Considerar a singularidade da hipermodernidade é de fundamental importância para o tratamento de questões éticas divergentes, como as que dizem respeito à necessidade emergente da construção de um conjunto de valores comuns a todos os povos, ou simplesmente, a construção de uma ética global com vistas à preservação das espécies e da própria sobrevivência humana. Para que haja um consenso entre as consciências a respeito do estabelecimento de valores igualitários, faz-se imprescindível considerar os contextos sociais distintos nos quais os indivíduos manifestam suas vidas, bem como confrontar tais valores com os valores que a hipermodernidade veicula através das orientações do consumo e da manutenção de um indivíduo hiperindividualista. Além disto, há de se considerar também a dimensão religiosa implicada diretamente na questão ética em busca de uma solução prática e coerente para este dilema ético.

As considerações apontadas a partir de uma análise do pensamento de Lipovetsky, principalmente de sua obra em questão A sociedade pós-moralista, observando como as contribuições do autor são pertinentes também para uma reflexão crítica a respeito da questão religiosa, e também por proporcionar variadas possibilidades de confrontação de suas constatações com as teorias e propostas de outros autores, permitem alcances relevantes na discussão em torno de uma melhor compreensão dos movimentos e rupturas manifestados pela sociedade contemporânea. Sendo o debate em torno de uma nomenclatura para a sociedade contemporânea que seja coerente com aquilo que ela de fato manifesta, encerrando em seu significado valores, rupturas e paradigmas que ela propõe, ainda indefinido, a sugestão do autor do termo hipermoderno trouxe contribuições relevantes parecendo abarcar em sua sugestão, senão tudo, pelo menos, muito daquilo que a sociedade atual apresenta. Entre as diversas sugestões que aqui foram colocadas, a análise de Lipovetsky mostra-se perspicaz e convincente. Sua apreensão teórica do fenômeno social é refletida em seus textos de maneira muito clara apontando para exemplos práticos que justificam seus argumentos e validam suas hipóteses. Afirmar que Lipovetsky tenha, enfim, alcançado a proeza de encontrar um termo preciso que defina o momento social atual pode ser ainda precipitado e contundente, no entanto, é certo que a sua obra traz consigo uma contribuição singular de modo a proporcionar 184

novas possibilidades de avaliação e de compreensão do fenômeno social moderno a partir daquilo que ele próprio revela em todas as suas esferas.

Ainda que o autor não apresente uma teoria específica de religião, ou seja, ainda que a questão religiosa não seja a sua preocupação principal, as suas constatações permitem uma melhor reflexão a respeito das mudanças que na dimensão religiosa também são inferidas por pertencer também ao espectro social. As análises de Lipovetsky podem contribuir ainda para uma reflexão crítica a respeito de uma possível espiritualidade presente nos hábitos de consumo dos indivíduos. Podem ainda proporcionar um estudo sistemático do hiperindividualismo e da suposta religião do ego determinante na hipermodernidade, em virtude das constantes práticas de devoção a satisfação de anseios subjetivos que o autor ressalta. Podem também fornecer elementos para uma discussão a respeito da questão ética religiosa. Enfim, são alcances permitidos a partir dos levantamentos feitos neste estudo acerca do pensamento do autor.

No que se refere aos limites desta pesquisa, reconhece-se que, ainda que o pensamento de Lipovetsky seja instigante e forneça elementos para se pensar também na questão religiosa contemporânea, para que a questão ética propícia da religião seja mais bem apreendida faz-se necessário um diálogo da obra do autor com outros autores que tratam da questão religiosa. As problemáticas levantadas nesta pesquisa concentraram-se na questão de uma possível religião secularizada a se configurar no cenário social e também nas discussões em torno da construção de um projeto de ética mundial. Para estes fins, as análises do autor foram relevantes e satisfatórias, sobretudo quanto ao último aspecto concernente a uma ética global. Suas constatações a respeito da sociedade atual, dos modos de vida, das relações entre os indivíduos e destes para com os objetos e para com o próprio corpo, mostraram-se fundamentais na elaboração de uma ética mundial, pois caracteriza o indivíduo para quem esta ética será elaborada. Sendo assim, ignorar estas mudanças e os aspectos que caracterizam este indivíduo significaria construir uma ética para o vazio, em virtude da sua incapacidade de alcance das consciências. No entanto, ainda que algumas colocações do autor a respeito da suposta manifestação de um neofundamentalismo, leitura esta precipitada para ele, sejam satisfatórias e contribuam significativamente para a discussão da questão dos conflitos fundamentados em postulados religiosos, o estudo em questão mostra-se limitado como ferramenta oportuna para se pensar a questão religiosa de forma mais restrita. Suas contribuições dizem respeito a uma melhor compreensão do indivíduo para quem as religiões falam, os seus valores, anseios, modos de vida e, inclusive, necessidades de caráter religioso, 185

como um sentido para a vida e o anseio por significação existencial. Lipovetsky contribui para uma compreensão deste indivíduo que em suas faltas elabora a sua própria prática religiosa, constitui os seus próprios valores e cria os seus próprios ídolos. O que vem a partir disto pode ser mais bem elaborado a partir de outras pesquisas, e neste sentido, este estudo revela-se limitado.

Algumas prospectivas podem ser apontadas a partir deste estudo. A obra de Lipovetsky mostra-se relevante como ferramenta a proporcionar uma melhor compreensão do fenômeno social moderno. Compreendendo este fenômeno, bem como o indivíduo que nele circula, com maior clareza, aspectos estes permitidos pela obra do autor, novas reflexões podem ser elaboradas com vistas a explorar alguns de seus conceitos específicos. Os elementos de religião encontrados no pensamento do autor, como o culto ao ego, a espiritualidade presente no consumo e na relação deste com os indivíduos, a presença de um altruísmo indolor de massa nos engajamentos dos indivíduos em causas alheias, o pluralismo religioso e a busca plural pelo indivíduo religioso, entre outros aspectos, são constatações que podem ser desenvolvidas de forma mais específica a partir de outros estudos científicos.

Este estudo do pensamento de Lipovetsky, sobretudo do modo como o autor considera a questão ética e das possibilidades de se pensar também acerca da questão religiosa a partir de suas análises, mostrou-se sobremodo relevante para o crescimento pessoal no universo dos estudos das ciências da religião. As considerações trazidas por Lipovetsky ampliaram o universo pessoal de compreensão das mudanças constantemente ocorridas no cenário social atual, cujos reflexos se vêem também na dimensão religiosa, permitindo um olhar mais amplo acerca do indivíduo e de suas relações com a religião e com os seus próprios anseios de natureza também religiosa.

Verificou-se a partir deste estudo que a questão ética e também a questão religiosa apresentam grandes dilemas para os que se dedicam a estudar estas esferas da sociedade, revelando também que os estudos científicos existentes a respeito destes temas trouxeram contribuições relevantes, porém, faz-se necessário ainda um estudo contínuo de suas manifestações em virtude das constantes mudanças e inovações neles inferidas.

Compreender o indivíduo reconhecendo o contexto social pós-moralista no qual ele se encontra permite reconhecer também os dilemas e necessidades com os quais ele tem que lidar como membro deste universo dominado pelo pós-dever. Compreender que o comportamento deste indivíduo é também o reflexo de sua vivência sob as influências desta lógica permite o cuidado de se evitar uma postura característica por julgamentos 186

condenatórios acerca deste indivíduo, de seus gostos, preferências, comportamentos e de sua maneira de lidar com questões religiosas ou de fazer a sua própria religião.

Seguramente, a melhor contribuição pessoal e acadêmica para a construção de uma sociedade com menos disparidades e com possibilidades diversas de acesso aos bens sociais, como a educação, a saúde, o trabalho, entre outros, disponíveis a um maior grupo de indivíduos, começa com uma melhor compreensão da própria sociedade em si, para que então uma prática social e profissional efetiva seja possível e coerente.

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