UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

SOLIDÃO, EU NÃO ME PERTENÇO: FLUTUAÇÕES LITERÁRIAS E CRISE IDENTITÁRIA NAS VERSÕES DE ROTEIRO E FILME EM MISTER LONELY, DE

GUILHERME MATEUS MANIÇOBA FORMIGA

Natal/RN 2021

GUILHERME MATEUS MANIÇOBA FORMIGA

SOLIDÃO, EU NÃO ME PERTENÇO: FLUTUAÇÕES LITERÁRIAS E CRISE IDENTITÁRIA NAS VERSÕES DE ROTEIRO E FILME EM MISTER LONELY, DE HARMONY KORINE1

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem.

Área de concentração: Estudos em Literatura Comparada

Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós-modernidade

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa

Natal/RN 2021

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Formiga, Guilherme Mateus Maniçoba. Solidão, eu não me pertenço: flutuações literárias e crise identitária nas versões de roteiro e filme em Mister Lonely, de Harmony Korine / Guilherme Mateus Maniçoba Formiga. - Natal, 2021. 90f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2021. Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa.

1. Literatura - Dissertação. 2. Cinema - Dissertação. 3. Roteiro - Dissertação. 4. Mister Lonely - Dissertação. 5. Harmony Korine - Dissertação. I. Barbosa, Márcio Venício. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

RESUMO

Este trabalho intenciona provocar discussões acerca do roteiro cinematográfico enquanto gênero possível dentro do campo da Literatura, considerando suas múltiplas faces de escritura e concebimento imagético que confrontram paradigmas tradicionais em torno de sua própria natureza escrita. Verificaremos, no percurso, elementos de estrutura e conteúdo que permitem o aguçamento argumentativo para determinado estudo, alçando possibilidades interpretativas sobre a fluidez do gênero, usualmente considerado técnico e, portanto, não literário, em detrimento das aproximações que apresenta com a linguagem e a forma essencialmente poéticas. Também pretendemos apresentar uma leitura analítica da obra Mister Lonely, do cineasta Harmony Korine, em suas duas versões: o roteiro e o filme, a fim de proporcionar apreciações que se debrucem sobre ambas as configurações, por intento de valorizar tanto a peça fílmica quanto a escrita. Além disso, intencionamos verificar como acontece a crise de identidade na narrativa, tomada pelas personagens, especialmente o protagonista. A obra em questão apresenta, em ambas as formas de manifestação, configurações cabíveis dentro da noção de arte literária, especialmente quando se trata do roteiro, o gênero escrito, que dispõe de elementos estéticos sintáticos e semânticos de apreciação. Para suporte, teremos como itinerário teórico autores que versam a respeito de temas relativos à literatura, como Eagleton (2006- 2012), Lajolo (1995), Roland Barthes (2004-2005) e Tzvetan Todorov (2017); assuntos concernentes ao roteiro cinematográfico, como Syd Field (2001), Jean Claude-Carrière e Pascal Bonitzer (1996); autores que discutem sobre conteúdos da linguagem do cinema e da adaptação, como Hutcheon (2011), Stam (2006), Henri Mitterand (2014), Ingmar Bergman (1960) e Jennifer Van Sijll (2017); e também estudiosos do sujeito social contemporâneo, como Zygmunt Bauman (1998-2004) e Stuart Hall (1992), entre outros.

Palavras-chave: Literatura. Cinema. Roteiro. Mister Lonely. Harmony Korine.

ABSTRACT

This work intends to provoke discussions about the cinematographic screenplay as a possible genre within the domain of Literature, considering its multiple faces of writing and imagery conception that confront traditional paradigms around its own written nature. We will verify, in the course, elements of structure and content that allow the argumentative sharpening for such a study, raising interpretive possibilities about the fluidity of a genre usually considered technical and, therefore, non-literary, to the detriment of the approximations it presents with the essentially poetic language and the form. We also intend to present an analytical reading of the work Mister Lonely, by the filmmaker Harmony Korine, in its two versions: the script and the film, in order to provide appraisals that focus on both configurations, with the intention of valuing both the film and the written work. In addition, we intend to verify how the identity crisis occurs in the narrative, taken by the characters, especially the protagonist. The work in question presents, in both forms of manifestation, configurations applicable within the notion of literary art, especially when it comes to the screenplay, the written genre, which has syntactic and semantic aesthetic elements of appreciation. As background, we will have as a theoretical itinerary authors who deal with themes related to literature, such as Eagleton (2006-2012), Lajolo (1995), Roland Barthes (2004-2005) and Tzvetan Todorov (2017); others concerning the screenplay, such as Syd Field (2001), Jean Claude-Carrière and Pascal Bonitzer (1996); authors who discuss the contents of the language of cinema and adaptation, such as Hutcheon (2011), Stam (2006), Henri Mitterand (2014), Ingmar Bergman (1960) and Jennifer Van Sijll (2017); and also theorists who study the contemporary social subject, such as Zygmunt Bauman (1998-2004) and Stuart Hall (1992), among others.

Keywords: Literature. Cinema. Screenplay. Mister Lonely. Harmony Korine.

AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Neta, por existir em mim e sempre me dar a mão e o abraço quando há incerteza em meus caminhos. À memória permanente e afetiva do meu avô. À minha família. Aos meus amigos, por simplesmente serem e estarem comigo. À CAPES e à UFRN/PPgEL, por auxiliarem e possibilitarem a realização desta pesquisa. À banca examinadora, pela disponibilidade e contribuição. A Charles Ponte, Vilian Mangueira e outros nomes, que, como magos, seguem aguçando meu encanto pelas artes. Finalmente, a Márcio Venício, por segurar meus passos e por apresentar a luz de sua palavra quando tudo, na sombra, quis silenciar. À misteriosa energia que me move e me mantém. Muito grato!

Pois EU é um outro. Carta de Rimbaud a Paul Démeny, 15 de maio de 1871.

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...... 7 2 NO LIMBO LITERÁRIO, O ROTEIRO FLUTUANTE ...... 11 2.1. O DEBATE ATUALIZADO À LUZ DA TEORIA CONTEMPORÂNEA ...... 24 2.2. O CUSTO DE UMA PRETENDIDA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA ...... 28

3 ENTRE MUITOS, NINGUÉM: ANALISANDO O FILME MISTER LONELY ...... 32

3.1. “MAN IN THE MIRROR”: , EIS-ME AQUI? ...... ….. 34 3.2. “BEAT IT”: A EXPULSÃO, OU A FUGA DO PANDEMÔNIO SOCIAL ...... 38 3.3. “”: DA LUZ À SOMBRA ...... 50 3.4. “”: O RETORNO ...... 53 3.5. O CORPO ESTRANHO: OUTRO NÚCLEO ...... 56 4 ENTRE TANTOS, ALGUÉM?: ANALISANDO O ROTEIRO DE MISTER LONELY ...... 61 4.1. INVERNO: A ESTAÇÃO MAIS FRIA DA SOLIDÃO ...... 64 4.2. PRIMAVERA: A ESTAÇÃO MAIS CALOROSA DA SOLIDÃO ...... 67 4.3. VERÃO: A ESTAÇÃO MAIS EXAUSTIVA DA SOLIDÃO ...... 72 4.4. OUTONO: A ESTAÇÃO MAIS TRANSFORMADORA DA SOLIDÃO ...... 77 4.5. A FÉ: A SUBSTÂNCIA MAIS PARALELA À SOLIDÃO ...... 80 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 84 6 REFERÊNCIAS ...... 88

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante muito tempo a Literatura se valeu do status de arte superior e imponente, designada estritamente à contemplação de obras escritas, calcadas no interior da palavra manifesta em livros, sob a classificação hermética e muitas vezes discriminatória de gêneros fortificados e há muito considerados canônicos, como o romance e a poesia, que resistem até os dias atuais com a mesma alcunha valorativa, mas revisitada aos moldes da flexibilidade contemporânea. Como qualquer outro campo de produção artística, o das artes literárias está sempre em conjunção com outras áreas, como a música e a pintura, a se tratar de domínios antigos de avizinhamento. Na música, versos de composição na estrutura de poema; na pintura, retratos de figuras dramáticas tomadas em pinceladas pictóricas. Assim, conforme a evolução temporal e, consequentemente, reagindo ao aparecimento de outros meios de criação e manifestação da arte, as relações de vínculo tomam outros contornos de engajamento, como é o caso do Cinema. Com o advento da arte cinematográfica, conhecida pela distinção genérica de natureza visual pelos filmes, meramente para fins de comparação “assimétrica” com a natureza escrita dos livros, tomados como os produtos literários, o campo das belas palavras indica necessitar uma atualização em seu conceito. Mas o que seria, portanto, Literatura? Na década de 1980, Terry Eagleton, em seu estudo Teoria da Literatura: uma introdução, apontava para questões problemáticas acerca de um conceito que abarcasse tão precisamente a arte literária. Pode-se partir de sentidos mais amplos e razoáveis, como a escrita dedicada ao enlevo criativo e, portanto, imagético, a que conhecemos por ficção, até noções que se atribulam no interior da linguagem, em verificações complexas mais pragmáticas e menos redutivas. O autor, por exemplo, assinala a introdução dos formalistas russos no debate como um caso de caráter linguístico, em que se pretendia a apuração com afinco do uso formal da língua no campo literário (EAGLETON, 2006). Essa seria uma concepção particular de essência, e já que se tratava da aproximação de uma ciência a outra vizinha,

Os formalistas, portanto, consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma “especial” de linguagem, em contraste com a linguagem “comum”, que usamos habitualmente. (EAGLETON, 2006, p. 6-7)

De acordo com essa noção, nos deparamos com a comparação entre uma linguagem

7 poética, de uso exclusivamente estético, canalizado nos gêneros de escrita literária, em detrimento do uso vulgar e cotidiano da língua que não exige aberturas de requinte elevado, sob o risco de estranhamento natural, já que a prática se baseia em uma objetividade funcional. Logo, nesse confronto, acontece a violência ou, em outro termo, a “castração” substancial de uma natureza por outra, uma concreta, outra abstrata, já que “Pensar na literatura como os formalistas o fazem, é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia” (EAGLETON, 2006, p. 9, grifo do autor). Reconhecidamente, o autor também considera a dificuldade de atribuir à literatura uma definição precisa pela instabilidade temporal e, consequentemente, movimentação de esferas sociais e artísticas. Assim, uma ideia sobre qualquer assunto ou objeto pode variar com o tempo e, além disso, com as diferentes culturas. Uma obra pode pretender, em sua condição, o título de literatura, ao passo que quem a lê pode não considerá-la como tal; por outro lado, um texto que se aproxima da filosofia ou da teoria pode tomar contornos diferentes e, nisso, ser etiquetado como peça literária. Chegamos, por conseguinte, a um caráter performático de disposição interna: “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12, grifo do autor). Passados anos, o filósofo continua a discorrer sobre a dificuldade e instabilidade do conceito. Em 2012, no livro The Event of Literature, as problematizações são novamente postas à prova com dilemas de essência e moralidade. O autor retoma, por exemplo, a oposição alçada entre a literatura e o real, sob a resolução comparativa entre a escrita ficcional e a factual. No caso, uma noção de peça literária consideraria aquilo que é tomado apenas como criação imaginativa, ao passo que ignoraria outros textos de cunho biográfico e documental, como diários ou cartas, gêneros, aliás, já vencidos pela inclusão no campo da literatura. Temas e características que podem ser considerados de domínio, como “Projeto, complexidade formal, temas unificadores, profundidade moral e criatividade imaginativa, no entanto, felizmente não são monopólio da literatura”2 (EAGLETON, 2012, p. 54). Aliás, um texto elaborado esteticamente e carregado de propriedades poéticas, formais e de conteúdo, pode ser interpretado à sombra do tratamento artístico, e à luz da praticidade técnica. O caminho oposto, portanto, também pode ser feito (EAGLETON, 2012). Fluido, o que o faz parecer menos preciso, o conceito de Literatura apresenta traços fundamentais, mas não essencialmente fixos, já que sua natureza admite – e mais que isso, exige

2 “Design, formal complexity, unifying themes, moral depth and imaginative creativity, however, are fortunately not the monopoly of literature”. 8

– acompanhar o progresso dos desdobramentos humanos e sociais. Não se estabiliza, mas também não se esgota. Pelo contrário, conforme surgem novos ingressos ideais, a flexibilização consome outros setores e, consequentemente, outros processos elementares, visto que “O mundo da literatura, como o da linguagem, é o mundo do possível” (LAJOLO, 1995, p. 45). Aparentemente, chegamos a um patamar de instabilidade em que não se define o que é, mas talvez como é, dada a flutuante situação. No entanto, não definir, em certo grau de consciência, já aponta para uma definição, mesmo que esta seja oscilante: é justamente ao caracterizá-la como tal que se esboça, automaticamente, uma resolução. Talvez seja mais cabível, assim sendo, nos aproximarmos de noções substanciais, reflexos de culturas e recortes temporais, ainda que se ensaiem formulações sólidas e duradouras em busca de uma elucidação concreta. Um fato inerente e irrevogável, todavia, é a urgência de produção (r)evolucional contemporânea através das mais variadas manifestações midiáticas: o livro – físico e digital –, o cinema, o computador, o rádio, a TV, as ferramentas e canais online, os mais variados dispositivos de transmissão em celulares. Nisso, gêneros e subgêneros diversos são diariamente criados em plataformas para manifestações do fazer artístico: nos livros, na música, no filme (e, mais recentemente, nas séries), na encenação e na performance, acompanhamos classificações por estilo que se desmontam em “subestilos” alternativos para atenderem e se adaptarem a demandas versáteis do contexto hodierno. Se a literatura movimenta e faz parte da produção intelectual artística e mercadológica, naturalmente, o que se espera é o processo em paralelo na concordância com o fluxo. A respeito disso, dada a permissividade, talvez não seja tão extremo dizer que literatura é aquilo que refletimos enquanto literatura (LAJOLO, 1995). Ou, possivelmente, para ser mais razoável, elevá-la ao patamar de combinação com setores hipoteticamente diferentes de arte, já que “Como resistência a isso, [a literatura] adota a linguagem do bit, é registrada a spray, parece ter a durabilidade de uma folha volante mimeografada, a perenidade do eco do grito” (LAJOLO, 1995, p. 95, grifo do autor). Em uma realidade nada distante,

[...] a literatura desse nosso momento renuncia às vezes ao significado verbal. No predomínio do visual sobre o verbal, no uso das cores e de todo o requinte da indústria gráfica, a literatura objetaliza-se às vezes, talvez como única forma possível de consciência crítica da objetalização. (LAJOLO, 1995, p. 95)

Em se tratando da citação com referência a contornos visuais, entre outras aproximações

9 de apresentação imagética, recordamos e associamos a arte cinematográfica como principal vínculo que se tem encarregado de afinidades essenciais com a literatura, desde obras/produtos artísticos a pesquisas teóricas e analíticas sobre a díade combinatória. Outro ponto notável e igualmente importante é perceber a crise de identidade que se instala na discussão dos gêneros dentro do campo literário, além de questões de forma e conteúdo internas às narrativas, como a que pretendemos discutir aqui com mais especificidade, a fim de possibilitar reflexões acerca da temática filosófica e literária, em consonância com o intento de proporcionar uma análise aprofundada da obra em suas duas manifestações artísticas: o roteiro e o filme. Dessa forma, esta pesquisa tem por objetivo produzir um estudo acerca do debate e possíveis questionamentos entre o cinema, a literatura e conteúdos internos a ambos. Trata-se, pois, de uma investigação temporal e conceitual sobre as multifaces literárias, mais especificamente sobre a inclusão do gênero roteirístico enquanto categoria cinematográfica no campo estimado da literatura, uma vez que o tipo narrativo apresenta, à primeira vista, nuances sugestivas para a eleição compatível de objeto literário, claro, sob o cuidado de não cairmos na genérica concepção de contemplação coletiva, uma vez que nem os gêneros canônicos resistem à seleção valorativa de unidades/obras tomadas especificamente, em suas particularidades. Nas palavras de Lajolo (1995, p. 15, grifo do autor), “Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o que é literatura”. Assim, para apontamentos objetivos sobre a estrutura do trabalho, dividimos as partes em capítulos de (1) considerações iniciais, em que se mapeia os contornos de apresentação; (2) teoria, ao que se discutem estudos acerca dos campos conceituais, sendo subdivido em seções respectivas; (3-4) práticos, com análises efetivas sobre os objetos de pesquisa, sendo o terceiro capítulo especificamente sobre o filme Mister Lonely (2007), enquanto o quarto dedicado exclusivamente ao roteiro de Mister Lonely (2008), obedecendo, assim, a ordem de lançamento das obras nas duas formas de concebimento artístico. Ambos os capítulos de análise também se subdividem em partes respectivas. Por último, (5) as considerações finais, em que apresentamos um panorama geral do trabalho desenvolvido.

10

2 NO LIMBO LITERÁRIO, O ROTEIRO FLUTUANTE

Com a recorrente publicação de roteiros fílmicos, o mercado literário tem aberto cada vez mais o espaço para esse gênero. No entanto, críticos e estudiosos alçam discussões sobre a pertinência da inclusão dessa escrita cinematográfica no campo da Literatura, reposicionando- a em uma flutuante nuvem de incerteza. Não de hoje, a discussão do que é ou não digno de ser considerado peça literária, assume um papel ainda inegavelmente “elitista” e hermético, anexado aos cânones e gêneros clássicos. Também é inegável e sempre necessário lembrar que a produção artística aumentou absurdamente com o crescente avanço tecnológico, quando vemos ampliada, em qualquer nível, a expressão da capacidade criativa das pessoas, incluindo a chance de publicação, ainda que passiva, do julgamento maniqueísta que garante o espaço da criação à luz de spots no mercado, ou é diretamente posto à sombra dos renegados. É preciso dizer que o mercado agrega – talvez até muito mais do que segrega –, em se tratando do alimento que o move: o lucro a qualquer custo; logo, esferas de produção como o cinema e a literatura aparecem como seletores e criadores de gêneros e subgêneros na tentativa de organizar os mais variados estilos, comportando-os dentro do mercado. É sempre interessante colocar lado a lado o cinema e a literatura, tal como caminham desde cedo e cada vez mais próximos. A escrita para a peça fílmica, apesar de ter-se apropriado ou – sendo mais sutil – ter emprestado o argumento de obras literárias, sofre danações à crítica de alguns quando a julgam, cabendo ainda dizer, mesmo que redundantemente, inferior à sua pós-produção: o filme. Mesmo que anterior e, claro, muito importante, o roteiro parece precisar revogar o seu encargo e aparição nesse campo onde a discussão acontece. Muitos filmes são embasados em romances, ou vice-versa, como tem ocorrido recentemente. Ainda assim, um roteiro é criado em sua individualidade, mesmo que pensado em seu conjunto para a transposição imagética. Há ideias, diálogos e cenas que, ao serem transpostas à tela sofrem inúmeras alterações, até mesmo exclusão, assim sobrevivem no plano escrito, o roteiro. Agora é necessário aceitar que há nesse trâmite, ainda que correlacionadas, duas peças individuais por si, cada uma a seu modo de vazão e realização. O roteirista e diretor americano Harmony Korine, famoso na cena underground por suas obras e colaborações, carrega uma considerável bagagem de produções, entre a escrita e a direção. Começou a ganhar holofotes por escrever Kids (1995), filme dirigido por Larry Clark, para quem roteirizou novamente, mais tarde, o filme (2002). Em 1997, Korine dirigiu

11 o seu primeiro longa-metragem, , hoje cultuado por muitos como sua obra-prima. Depois seguiram-se outras produções, como julien donkey-boy (1999), Mister Lonely (2007), (2009), (2012), e o mais recente, (2019). A obra Mister Lonely (2007) existe publicamente em suas duas versões: o filme e o roteiro – este, coescrito com o seu irmão, Avi Korine, e publicado em 2008 pela editora Nieves. Ambas as versões apresentam particularidades, alterações, inclusões e exclusões, o que já pode tornar suficientemente possível considerá-las “independentes”, ainda que intimamente ligadas pela potência da criação. Além de Mister Lonely, Korine também publicou os roteiros de Gummo, julien donkey- boy e Jokes, cuja realização fílmica não foi concluída. Os três trabalhos estão compilados em um mesmo livro, Collected Screenplays, publicado em 2002 pela editora Faber and Faber. Na obra, temos acesso às variações estilísticas e experimentações de escrita do autor. Ainda que seja, talvez, impossível separar o filme do roteiro, não pretendemos nos restringir a um comparativismo superficial entre essas duas formas artísticas, como se faz em geral com as adaptações de romances, em que, por vezes, pode-se buscar a fidelidade na tradução intersemiótica entre as obras, sem perceber o vacilante exercício de exaustão por elevar a literatura ao lugar de sacralidade, dessa maneira, e por acabar em culpabilizar e, consequentemente, violentar a peça cinematográfica, encarando-a como responsável pelo zelo do cumprimento do conteúdo escrito, ainda que ela, por ter liberdade à sua vazão, não assegure compromisso fiel e total com a sua fonte. Assim, chegamos à importante noção de “roteiro adaptado”, outra expressão aparentemente custosa ao gênero roteirístico, mesmo quando ela é, por si, autoelucidativa na obviedade do adjetivo. É importante sempre lembrar a independência que têm os roteiros, buscando na fonte do romance, da poesia ou qualquer forma “patenteada” e canonicamente literária, – e dela necessitam – para, livremente, adaptá-la à sua maneira, desobrigados de repetir fielmente o que o texto original já expressava. Nas palavras de Syd Field, “Quando você adapta um livro ou romance em roteiro, tem que considerá-lo um roteiro original, baseado em outro material” (FIELD, 2001, p. 151, grifo do autor). Há, portanto, um esgotamento no embate inútil que se arma entre o filme e a obra que lhe serviu de embasamento livre, cabendo dizer, ainda, da cobrança desnecessária e desgastante quanto à fidelidade. A relação entre literatura e cinema é exaustivamente estudada do ponto de vista das “adaptações”, mas raramente ultrapassam esse ponto. Entretanto, podemos tentar ir além elaborando um quadro com definições que permeiam particularidades da escrita roteirística:

12

Roteiro “adaptado” Roteiro escrito a partir de uma obra literária, da qual se torna independente para favorecer o surgimento do filme. Roteiro “independente” Roteiro pensado livremente, sem outras obras que o antecedem para servir como “guia”, em termos de fonte expressa, mesmo considerando que toda obra implica diálogo com outras anteriores e posteriores. Se publicado, esse tipo de roteiro poderá muito bem oferecer ao leitor, ainda que associado ao filme, a fruição que oferece uma obra literária. Roteiro “literário” Roteiro geralmente escrito por escritores que se aproximam do cinema, e que passam a ser estudados de forma independente, como ocorre com Marguerite Duras, Jean Cocteau e, mais radicalmente, com Pier Paolo Pasolini, cujo roteiro de Teorema, ele mesmo transformou em romance.

Hiroshima, meu amor, de Marguerite Duras, inaugura como grande nome o fenômeno de publicação da peça escrita posterior à sua realização fílmica. A obra, dirigida no cinema por Alain Resnais em 1959, ganhou a versão de livro com notas de esclarecimento da autora, sob a justificativa de acréscimo evolucional que permitiria uma leitura mais completa do trabalho. A própria Duras entende que o roteiro, inclusive lido em sua plenitude poética, de arranjo literário, possui o seu valor individual, caracterizado pela natureza escrita. Entendemos nessa valorização a apreciação necessária do texto escrito, a considerar sua serventia enquanto arte de deleite, em detrimento do status castrador de mera passagem técnica, caráter comumente adotado sobre os roteiros. O caso particular de Pasolini, com Teorema, esboça outra abertura nessa discussão burocrática. A obra, pensada e concebida em primeira instância para o cinema, foi transformada pelo próprio autor em romance, cuja escrita é narrada em terceira pessoa e fragmentada em diversas passagens curtas com títulos sugestivos. A perspectiva escolhida para a narração é a primeira aproximação com o outro, quando indicações de personagens e ambientação, por exemplo, são apresentadas tal como instruções para a fabulação imagética. No entanto, não há, como poderíamos encontrar facilmente em roteiros tradicionais, diálogos explícitos, o princípio fundamental da natureza do roteiro. Também não encontramos cabeçalho ou rubricas que indiquem tempo, espaço ou ação. Pelo contrário, a escrita do romance se distancia – ao passo

13 que se aproxima nas sutilezas – da tradicionalidade da escrita do gênero cinematográfico. Em alguns momentos somos apresentados ao que se assemelha a versos, aproximimando-se da estrutura clássica do poema. A relação triádica estabelecida por Pasolini configura, no mínimo, uma quimera: a escrita em forma de romance que abraça a poesia e pretende o cinematográfico. Mesmo que o autor não execute as passagens técnicas, podemos perceber sutilezas em algumas passagens, verificando nelas indicações sonoras, ou até de tempo e espaço, como “Soam os sinos do meio dia” (PASOLINI, 1984, p. 15), em que encontramos o horário em que se passa a ação, e o som incluso na cena. Ou ainda quando podemos localizar indicações de espaço, tempo, iluminação/fotografia, sonoridade e até figura de linguagem – a se tratar do tom poético e literário – na passagem:

O interior da casa da nossa família está todo iluminado, embora seja hora do chá e o longo crepúsculo mande ainda um resto de luz carregada do silêncio dos choupos e dos prados, planos e verdes, encharcados de água. Sendo provavelmente domingo, dá- se uma pequena festa, cujos convidados são quase todos jovens, ou seja, companheiros de escola de Pedro e de Odete. (PASOLINI, 1984, p. 21)

Quanto aos filmes adaptados de obras literárias, a listagem é vastíssima, uma vez que a correlação entre o cinema e a literatura se estabelece no empréstimo fluido e contínuo, ainda mais se tratando de uma época de aceleração produtiva, em que o fluxo de peças geradas por uma (a imagem) a partir da outra (a escrita) e vice-versa acontece com cada vez mais frequência. Henri Mitterand, em seu livro 100 Filmes: da Literatura para o Cinema, faz o mapeamento de alguns títulos cinematográficos derivados de obras escritas. Entre eles, O homem invisível (1933), ... E o vento levou (1939), As vinhas da ira (1940), O retrato de Dorian Gray (1944), Fahrenheit 451 (1966), Planeta dos Macacos (1968), Satyricon de Fellini (1969), Apocalypse Now (1979) e A fantástica fábrica de chocolate (2005). Podemos ainda atualizar essa lista com outro título, que ganhou recentemente o gosto do público das grandes telas, que se sentiram atraídos – para o deleite do mercado editorial – a conhecer o seu texto fonte, no caso, o romance Me chame pelo seu nome, do escritor André Aciman, que foi publicado em 2007 e adaptado com grande sucesso para o cinema dez anos depois, sob a direção de Luca Guadagnino. A obra Mister Lonely (2007) existe na independência de um texto fonte, não cabendo dizer que se trata de uma adaptação. Avi e Korine escolheram personalidades reais para embasar seus personagens, justificando, nisso, a liberdade enquanto autores de ficção, e isentando-se de qualquer cobrança sobre questões de verossimilhança, de onde se poderiam, enfim, surgir 14 problematizações. Tanto na obra escrita, quanto na imagética, a potência imaginária é, inegavelmente, o motor principal de sustentação, a começar pela própria linguagem poética com que Korine descreve e credita a inspiração da obra:

Eu não tinha certeza se faria cinema outra vez. Passei muitos anos sonhando com porcos que podiam subir muros. Eu estava vivendo completamente degradado, como um vagabundo ou criminoso. Eu me tornei um bastardo sem lar ou amigos. Um dia comecei a sonhar com freiras. Comecei a imaginar freiras dançando no céu e pedalando bicicletas nas nuvens. Eu sabia que as freiras estavam testando a sua fé. Em uma ocasião, três dos meus dentes caíram em um sanduíche que eu estava comendo. Parecia que era a hora certa para me importar novamente. Pedi ao meu irmão para me ajudar. Ele me apresentou a um famoso boxeador que era bom com medicina, ele colocou meus dentes de volta em minha boca. As freiras também estavam me testando, disso eu tinha a certeza. Eu fiz esse filme das cinzas de uma nação destruída, e foi lá que eu descobri que um pouco de fé pode ir muito longe.3 (KORINE, 2008, tradução nossa)

A ideia firmou-se no papel e na tela, configurando o segundo núcleo “estranho” – nesse paralelo – à narrativa ironicamente mais tradicional dos sósias. As freiras, materialização do símbolo religioso, portanto, representações da fé, seriam, para ele, as responsáveis pelo retorno à produção e regresso às grandes telas. O tom fantástico da citação também respinga no enredo cheio de desvios da realidade, acontecendo, enfim, em uma ondulante desconfiança que salta ao expoente fantasioso. Para Todorov, “A fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida’. (TODOROV, 2017, p. 36) Cabe salientar aqui a provocação de um valor literário, presente não apenas em conteúdo, mas, também, no formato de escrita do gênero, outra pendência passível de questionamentos. Assim como existem manuais e oficinas nas mais diversas manifestações para a escrita literária, há também manuais para a escrita de roteiros fílmicos. O intento pela realização criativa parece ter adentrado fortemente a busca no mercado, tanto que hoje é possível encontrar formas e fórmulas para a feitura de produtos ditos – ou não – literários. Sobre isso, nos deparamos com o formato particular da escrita para o filme, que pode diferir, cabendo abertamente a ressalva na flexibilização, de outros modelos, como, por exemplo, o roteiro tradicionalmente romanesco de Ingmar Bergman para Morangos Silvestres

3 “I was not sure I would make film ever again. I spent many years dreaming of pings that could walk up walls. I was living completely debased, like a tramp and a criminal. I had turned into a bastard with no home or friends. One day I started to dream of nuns. I began to imagine nuns dancing in the sky and riding bicycles in the clouds. I knew the nuns were testing their faith. On one occasion three of my teeth fell into a sandwich that I was eating. It felt like the right time to care again. I asked my brother to help me. He introduced me to a famous boxer who was good with medicine, he put my teeth back in my mouth. The nuns were testing me as well, this much I was sure of. I made this film out of the ashes of a broken nation, and It was there that I discovered that a little faith can go a long, long way”. 15

(1957), publicado juntamente com outras obras no livro Four Screenplays of Ingmar Bergman (1960). Lá não há indicações de cena, tempo ou espaço, fluindo em uma narrativa íntima em primeira pessoa, com abertura de pensamentos, característica essencial do romance, convencionalmente transposta para a versão fílmica através do mecanismo da voz em off. Como afirma Field, “Num romance, a ação acontece na mente do personagem, dentro do universo mental da ação dramática (FIELD, 2001, p. 1, grifo do autor). Vale salientar que a afirmação do autor se refere a um tipo específico de romance, ignorando outros que fogem dessa correspondência. O mais próximo que conseguimos chegar de indicações técnicas explícitas é por marcações de falas das personagens, sinalizadas por seus nomes; e, raramente, rubricas. No prefácio desse mesmo livro, Carl Anders Dymling (1960), produtor e diretor sueco, justifica que Bergman, antes de escrever o roteiro – sugestivamente aos moldes tradicionais –, escrevia em forma de romance. No entanto, ainda que haja uma clara relação de valor literário, o próprio Bergman nega qualquer engajamento, dizendo que o

O cinema não tem a ver com a literatura; o personagem e essência das duas formas de arte estão geralmente em conflito. A palavra escrita é lida e assimilada por um ato consciente da vontade em aliança com o intelecto; pouco a pouco isso afeta a imaginação e as emoções. O processo é diferente com uma imagem em movimento. Quando experienciamos um filme, conscientemente nos preparamos para a ilusão. Colocando de lado a vontade e o intelecto, nós abrimos caminho em nossa imaginação. A sequência de imagens afeta diretamente os nossos sentimentos4. (BERGMAN, 1960, p. 17, tradução nossa)

Essa fala é consideravelmente importante em nível teórico, ainda mais por partir de um cineasta, assim possibilitando o contato experimental direto na discussão. Se há recepções particulares por cada forma, seja na escrita ou na visual, isso se deve, inegavelmente, à essência e configuração delas, como dito. No entanto, nos parece apressado negar a relação, por vezes até estreita, entre ambas, e nisso, tentar formular estratégias de esquiva de uma à outra. Na literatura, ou ainda mais abertamente, no conteúdo escrito, não há, também, o preparo para a ilusão? A resposta talvez esteja na consideração do tom ligeiramente narcisista da entrega visual cinematográfica, como referido e, bem verdade, indo diretamente nos nossos sentidos. Por outro lado, no texto escrito, o esforço se faz no intelecto pela busca imagética, assim, no abeiramento consequente da ilusão.

4 “Film has nothing to do with literature; the character and substance of the two art forms are usually in conflict. This probably has something to do with the receptive process of the mind. The written word is read and assimilated by a conscious act of the will in alliance with the intellect; little by little it affects the imagination and the emotions. The process is different with a motion picture. When we experience a film, we consciously prime ourselves for illusion. Putting aside will and intellect, we make way for it in our imagination. The sequence of pictures plays directly on our feelings.” 16

Nesse caminho para a literatura, o roteiro tem ainda o formato posto em questão. Para Field (2001), há um paradigma específico a ser seguido, em sua descrição, como uma fórmula. Para ele, “O roteiro é como um substantivo – é sobre uma pessoa, ou pessoas, num lugar, ou lugares, vivendo sua ‘coisa’. Todos os roteiros cumprem essa premissa básica. A pessoa é o personagem, e viver sua coisa é a ação” (FIELD, 2001, p. 2, grifo do autor). O modelo se constitui em um início, meio e fim, também chamados de atos I, II e III. O início é a apresentação, à qual se seguem a confrontação e resolução. Antes e depois da confrontação, deve haver pontos de virada (plot points), ligando, assim, os três atos (FIELD, 2001). Também não caberia, no modelo ideal, muito espaço para a subjetividade, incluindo nisso as divagações de personagens e enredo, o que acaba por respingar em diálogos extremamente breves e incisivos. Já que se trata, pelo próprio gênero, de uma feitura para o crescimento e realização visual, o caráter dele, mesmo que escrito, precisaria contemplar a capacidade imagética. O filme, peça derivada, por outro lado, detém todos os direitos e encargos para os cumprimentos subjetivos e emocionais, vide, entre todos os elementos visuais, também a música, nisso considerando o som natural ou manipulado e a trilha sonora. Em Mister Lonely (2008), a peça escrita, o formato supre, pelo menos à primeira vista, as necessidades do paradigma, com cabeçalhos, indicações técnicas de cena, de tempo e espaço, recursos de auxílio para a gravação do filme. É engraçado perceber, nisso, a pressuposição constante de espera do produto visual, o que recupera e não faz esquecer, novamente, a cobrança de um para o outro, no caso, o roteiro para gerar o filme. O mais irônico e ligeiramente bizarro é encarar o primeiro como inferior, mesmo que na tentativa de assegurar-lhe um cargo de extrema importância, já que se trata da etapa criativa e organizacional no plano escrito, colocando o filme na dependência, mas não tornando-o, por isso, em momento algum, menor que o roteiro, que nasce para morrer no esquecimento, ou, nas palavras de Jean-Claude Carrière:

[...] o roteiro representa um estado transitório, uma forma passageira destinada a se metamorfosear e a desaparecer, como a larva ao se transformar em borboleta. Quando o filme existe, da larva resta apenas uma pele seca, de agora em diante inútil, estritamente condenada à poeira. Se for publicado – o que ocorre às vezes –, não se tratará realmente de um roteiro, mas sim de uma narrativa recomposta depois do filme. (CARRIÈRE; BONITZER, 1996, p. 11, grifo nosso)

Contrariando a fala ou não, os roteiros de Harmony Korine, bem como de outros autores/roteiristas, sobrevivem à tentativa de apagamento aparentemente natural – ou naturalizado. Ao admitir a publicação posterior do roteiro como “uma narrativa recomposta”, o

17 próprio Carrière a aproxima, de certa forma, do campo literário, tanto pelo “recomposição” que pressupõe um tratamento artístico da linguagem, quanto pela ficção que forçosamente permanecerá nessa narrativa. Resistir, no entanto, a essa violência, não os assegura da noção crítica de Carrière (1996) quanto ao avizinhamento literário, até quando ele emprega desconfiança no termo “escrita”, fazendo saltar um insinuante problema, ou ainda quando diz que

O roteirista rapidamente deve aceitar – sem nenhuma pena, ao contrário – que não é um romancista, mas um cineasta. Assim livra-se do complexo literário sem sofrimento, pois está adquirindo um saber que mil escritores irão invejar (CARRIÈRE; BONITZER, 1996, p. 13)

Não que seja forçosa qualquer possibilidade evidente de engajamento por dizer que o roteiro é sim cabível de ser lido enquanto literatura, mas, com efeito, é, no mínimo valiosa a provocação com os objetos, reposicionados, ainda mais, na liberdade multifacetada da escrita e das manifestações artísticas contemporâneas, em que os gêneros amalgamam-se entre si, no empréstimo e/ou apropriação livres. É de se considerar, portanto, uma leitura atualizada sobre a mecanicidade estrutural dos gêneros, uma vez que estes rompem, por si, camadas conservadoras e imbricadas ao se misturarem, criando novas possibilidades de performance. Retomando a premissa do tom poético como recurso literário, mesmo nas imagens, percebemos que Mister Lonely (2008), em alguns momentos, levanta sutilmente chances de interpretações, por exemplo, através da metáfora, utilizando as freiras como símbolo e representação da fé. Desde a sua primeira aparição na arte cinematográfica, Harmony Korine estabeleceu a relação com a subjetividade, inscrevendo suas obras vindouras na estante do que se considera, atualmente, o cult. Seja no cinema, nas experimentações literárias e, mais recentemente, na pintura, o multiartista abraça as esferas artísticas com sua criatividade. julien donkey-boy (2002) foi concebida, na publicação de sua forma escrita, de quatro maneiras diferentes: a primeira trata-se do que o autor intitula como “ESTRUTURA ESCRITA”5, um amontoado de citações de autores como Tolstoy e Eugène Ionesco, enumeradas e referenciadas na oscilação entre a escrita a punho e a digital/maquinada, seguida do que aparentam ser declarações enumeradas do personagem homônimo; a segunda, chamada de “SEM TÍTULO”6, é uma espécie de justificativa introdutória da terceira forma como sendo,

5 No original, “SCRIPT STRUCTURE” (KORINE, 2002, p. 169) 6 No original, “UNTITLED” (KORINE, 2002, p. 173) 18 nas palavras do autor, “um modelo não tradicional de roteiro7” (KORINE, 2002, p. 173, tradução nossa); a terceira, “Cenas8”, é um esqueleto de planos elencados enumeradamente, segundo o próprio Korine, sem ordem específica; e por último, o próprio roteiro escrito aos moldes tradicionais como já conhecemos. Se há um paradigma ansiado por manuais de escrita roteirística, como bem defende Syd Field, a violação pela ultrapassagem das regras acontece em uma via de mão dupla: há, de um lado, a consciente aceitação de um modelo a ser seguido; do outro, a tensão pelo desapego convencional da (des)construção robótica de um esqueleto orgânico e, por isso, pressupostamente aberto a experimentações. No caso dos roteiros escritos de forma não tradicional, como os exemplos que vimos até agora, a ascenção de um espírito de rebeldia parece adquirir muito mais uma etiqueta de “acesso refratário” do que de legitimidade no ato, caindo em um limbo de avaliação imprecisa, mesmo que a própria tomada pelos ensaios de soltura do arquétipo enclausurador já desempenhe, por si, a necessidade de atualização no interior do gênero do roteiro, como já foi levantado por Carrière:

[...] Pois o mundo se transforma, queiramos ou não, alguns até dizem que muda cada vez mais depressa, e aqueles que permanecem de maneira mecânica, secos e fechados em torno das receitas bem decoradas perceberão com tristeza que se tornaram incapazes de se adaptar, de mudar a canção, de respirar o ar do amanhã. (CARRIÈRE; BONITZER, 1996, p. 31)

Talvez agora com esse aval já datado possamos ensaiar a autenticação nos atos de rebeldia dos roteiros escritos fora das convenções. Seria, no mínimo, irônico se o exercício de autoavaliação e revisão do caráter roteirístico recusasse a progressão ou até reciclagem de sua forma sob óticas mais renovadas, de libertação contemporânea, permanecendo da obstinação infrutífera de uma atitude conversadora. A necessidade de atualização acontece, portanto, consequentemente após o progresso da essência à pragmática, até chegar na revisita do valor literário: um ciclo de retorno ao status quo ou ao progresso. A essa altura da discussão, o obstáculo no meio do caminho, para parafrasear Carlos Drummond de Andrade, para os teóricos segue sendo a rejeição recalcada contra qualquer relação de parentesco – por mais que seja impossível negar a genética da forma escrita – com a literatura. Vale lembrar que até o momento estamos nos valendo de debates e citações passadas, datadas em um período em que ainda se alçava a problemática por razões óbvias de atualização

7 No original, “[...] a nontraditional script design”. 8 No original, “Scenes” (KORINE, 2002, p. 175) 19 temporal e, logicamente, produtiva. Ao passo que subimos um degrau para a paz, ou pelo menos para a declaração de vínculo efetivo com as palavras de Carrière, descemos, também com sua advertência eufemística disfarçada de conselho, o mesmo degrau, quando ele pontua que “Devem dizer a si mesmo a todo momento que a literatura é o inimigo número um, que todo efeito literário na escrita envenenará o diretor de cinema, que não saberá como transcrevê-lo. Saber então fazer o sacrifício das belas frases, das belas ideias” (CARRIÈRE; BONITZER, 1996, p. 39). Nesse roteiro não tradicional, com traços de romance e requintes de dramaturgia, a Literatura agora assume o engraçado papel de vilã, sob a forma de veneno para o diretor. Mas o que acontece nas adaptações de obras literárias? Já ficou claro que por questões de alongamento inviável, a leitura da peça escrita para a da imagem em movimento sofre danações no encurtamento dos recortes, o que não cabe, jamais, descartar que são justamente os traços poéticos, por exemplo, os específicos para a supressão. Se assim fosse, o encantamento do cinema quanto à literatura deixaria de ser semântico para ser estritamente sintático, a negação da alma para o corpo. Não é o que Bergman, por exemplo, faz, escrevendo como um romance e transpondo à tela obras imensamente subjetivas, envenenando suas peças da morte ao êxtase com passagens como:

Tive a estranha sensação de solenidade, como se esse fosse um dia de decisão. (Não foi a única vez naquele dia que eu me senti dessa forma.) A quietude da manhã de verão. A baía calma. O brilhante concerto dos pássaros nas folhagens. A velha casa adormecida. A aromática macieira que se inclinava levemente, apoiando minhas costas. Os morangos silvestres.9 (BERGMAN, 1960, p. 228, tradução nossa)

O narrador em primeira pessoa, o tom poético e as figuras de linguagem seriam comportamentos marginais à luz do enrijecimento característico do conservadorismo pretendido na noção tradicional da escrita para o cinema convencional, formatado para as grandes telas de aprazimento no sucesso técnico, mecanicista. Há, nessa passagem do romance- roteiro, inclinações que confrontam as colocações de nomes levados em discussão até aqui, como Field, Carrière e Bonitzer e o próprio Bergman, quando negam assimilações literárias, contrariando a si próprio no alto de sua feitura. Caminhando novamente para “a luz no fim do túnel”, o escape para a glória, talvez não

9 “I had a strange feeling of solemnity, as if this were a day of decision. (It was not the only time that day that I was to feel that way.) The quietness of the summer morning. The calm bay. The birds’ brilliant concert in the foliage. The old sleeping house. The aromatic apple tree which leaned slightly, supporting my back. The wild strawberries.” 20 haja ressentimentos no cumprimento de desafios contestados pelo trajeto, mas há, involuntariamente, a necessidade de reparação nos descartes discriminatórios de obras escritas e utilizadas apenas como via de amadurecimento. É inimaginável a quantidade de trabalhos postos à sombra, rasgados para abastecer lixeiras. Deixa de ser uma questão hierárquica, porventura pretensiosa, para ser uma matéria de valor individual, de resistência por autonomia. Subjugar o roteiro à soberba castradora do filme é como apagar o caminho de casa, tornando inviável o seu retorno até antes da ida, pois nem sempre a peça fílmica acaba sendo realizada. O irônico é perceber o disfarce violento no exercício mesquinho de honraria, a dizer que é somente através e pelo roteiro que a película existe. A verdade pode ser reconhecidamente essa, e justamente por reconhecê-la, já se torna descartável a necessidade de mensurar o seu valor quando esse já deveria ser, em si, autônomo. Dessa forma, a bandeira da advertência ergue-se novamente para lembrar a importância de considerar obras individuais, íntegras e igualmente respeitáveis. Não sendo assim, o dano cairá, mais do que somente em uma perspectiva alçada do interior da arte, mas também no esforço daqueles que a criam. Como diz Field (2001, p. 143), “Muita gente contribui para a feitura do filme, mas o roteirista é a única pesoa que se senta e encara a folha de papel em branco.” Outra problemática discutida considera o roteiro em relação com a peça de teatro. Não inegavelmente ambas atuam em suas formas de maneira similar, carregando na estrutura basicamente as mesmas características, não fosse pelas diferenciações que respingam na transposição para a linguagem fílmica, de ordem estritamente categóricas, como as indicações de cabeçalho e personalizações de estilo que movimentam o fazer cinematográfico. No entanto, os diálogos calcam a base dos dois gêneros, bem como as rubricas que guiam as emoções de personagens quanto às ações e sentimentos no interior da narrativa. Mas por que estudamos peças teatrais como obras literárias? Apenas para levantar um apontamento mais ilustrado, consideramos destacar o curioso caso de Quem tem medo de Virgínia Woolf?, obra de 1962, escrita por Edward Albee para o teatro, e metamorfoseada para o cinema quatro anos depois, com adaptação de roteiro por Ernest Lehman e direção de Mike Nichols. A narrativa gira em torno das discussões calorosas do casal Martha e George; no teatro, com o espaço, tempo e carga dramática específicos para o palco; no filme, com adaptações para os cortes de planos, ambientações/espaços e enquadramentos também precisos para a elaboração dramática respectiva. A composição da obra garante elementos cabíveis de ser caracterizados literários, como a margem analítica para os diálogos, o tempo e ritmo da diegese e psicologia das personagens. O que se coloca em questão, todavia, é a forma – e com efeito, também o

21 conteúdo – similar à do roteiro, diferenciando-se, apesar disso, na recepção quanto ao valor estético de arranjo literário. Field expõe as diferenças entre ambos os gêneros da seguinte maneira:

Uma peça de teatro [...] é narrada em palavras, e os pensamentos, sentimentos e eventos são descritos em diálogos num palco contido nos limites do arco do proscênio. Uma peça de teatro lida com a linguagem da ação dramática. Um roteiro lida com exterioridades, com detalhes – o tique-taque de um relógio, uma criança brincando numa rua vazia, um carro virando a esquina. Um roteiro é uma história contada em imagens, colocada no contexto da estrutura dramática. (FIELD, 2001, p. 175, grifos do autor)

Como já pontuamos, os gêneros se elevam em suas diferenças e concepções para a realização de determinada obra, a considerar as ferramentas disponíveis para tal feitura, basicamente o que levantamos sobre as disposições variadas para o teatro e para o cinema na obra Quem tem medo de Virgínia Woolf?, coexitistindo, cada uma à sua maneira, a depender do gênero de efetuação. O que não podemos determinar, mesmo assim, é até onde o teatro lida apenas com assuntos interiores, e o cinema com assuntos exteriores, sob o risco de cair em uma generalização inibidora. Pensemos, assim, que a ação dramática do teatro também pode tratar de matérias externas, na evidência de objetos; enquanto o cinema também pode inferir na interioridade, por exemplo, na psicologia das personagens, como bem o faz. Não podemos desconsiderar a tradição teatral, mas também não podemos desprezar suas constantes atualizações. As próprias peças de Shakespeare recebem leituras múltiplas, tanto para o palco quanto para outros espaços, como a tela do cinema. Não há quem negue que as obras shakespearianas são literatura, porém não faltará tentativas refratárias de distorção de noções retificadas sobre a autoridade canônica que resiste no alto de seu poder inflexível. Parece que tudo leva a um caminho específico, fraco no argumento de tentar desmerecê-lo: o problema aparenta estar, então, na estrutura do roteiro, em sua própria natureza castradora, se considerar, nisto, a acepção mais conservadora de um estilo de escrita limitado, feito para o amadurecimento específico de outro corpo e, por isso, infrutífero em outros solos, especialmente o mais caro: o literário. Ainda assim, tudo leva a crer em uma noção discriminatória que foge das razões internas aos gêneros, e se ampara em valores de arbritrariedade extratextuais. Há diversos estudos que se debruçam sobre o valor de determinadas obras, mas que consideram muito mais em seu caráter o gênero dos objetos a que se destinam suas leituras, do que propriamente a subjetividade de seu interior, elencando, sempre, a tradicional posição e 22 reposição dos cânones autoritários. Em seu livro Narrativa Cinematográfica, Jennifer Van Sijll discorre brevemente sobre problemas concernentes ao roteiro, especialmente para aquele que o escreve. Ela diz que:

Exige-se de um bom roteiro que tenha uma grande história e que esta tenha valor cinematográfico. Existe uma infinidade de livros excelentes que tratam da primeira exigência. Eles geralmente abordam o enredo, a estrutura e o personagem, questões essenciais de qualquer obra de ficção. Na verdade, como a maioria desses livros também pode ser utilizada para analisar romances e peças de teatro, talvez seja mais correto descrevê-los como obras sobre dramaturgia, não sobre roteirização. (SIJLL, 2019, p. 15)

O primeiro argumento já conduzimos à exaustão, mas todo teórico precisa enfatizá-lo. Sobre os estudos de obras, percebemos a segregação do roteiro como um gênero que não dispõe, aparentemente, dos recursos possíveis para uma leitura analítica, cabendo-lhe escorar no esquecimento, até que outra categoria o incorpore em algum valor apreciativo de análise. Segundo a citação, o romance e a peça de teatro têm a carga dramática, mas o roteiro não, é mirrado e, por isso, desqualificado, o que serve para justificar sua eleição ao esquecimento. Não é suficiente aceitar a redutora afirmação de que “Um roteiro é sempre o sonho de um filme” (CARRIÈRE, 1995, p. 149-150). Pode ser a visualização prévia e, portanto, o intento da pós-produção, mas podemos reposicionar os objetos na frase de Carrière, colocando o filme como o sonho do roteiro. Ao fazermos isso, imediatamente invertemos a ordem de valores, estando a forma escrita no patamar daquilo que é concreto, logo, mais palpável. Somos conduzidos a um jogo forçoso de pesos e medidas entre as afirmações categóricas de imposição pelo caminho. A arte da escrita, assim como qualquer outra, tem em seus portfólios espaços privilegiados com modelos benfeitores. São indiscutivelmente importantes para o reflexo histórico e revisita de obras outras, sejam passadas ou futuras. Estamos falando da literatura, mas como caminhamos para o exercício de reconfiguração de padrões desta, abrimos espaço para o que está margeado. É importante que isto aconteça, não para desorganizar valias e desmontar projeções de seriedade, mas para promover discussões que ecoem no interior dela. É, mais do que uma atitude moralista, uma atividade de renovação de dentro para fora, que pode respingar em categorias que merecem apreço mais acurado. No caso da escrita roteirística, discriminada na atitude de encará-la apenas como um meio para realização do outro, o cinema, já falamos sobre a possibilidade de fazer a sua leitura

23 individualizada, bem como considerá-la peça íntegra e autônoma, pelo risco de não cair no desmerecimento do ofício criativo. Todavia, entendemos que a sua feitura é uma ordem natural de primeira via do filme, este que tem, quando posto à sua forma, suas próprias maneiras de comunicar e acontecer, o que chamamos de “linguagem cinematográfica”, e em que nos deteremos, mais específica e rapidamente, em outra seção.

2.1.O DEBATE ATUALIZADO À LUZ DA TEORIA CONTEMPORÂNEA

Para fins de atualização, reposicionaremos agora, rapidamente, a discussão à luz de uma teoria mais recente, a que podemos chamar de contemporânea. Começamos por perceber a mudança no tratamento do gênero roteirístico dentro do campo da Literatura. A problemática, aparentemente já ultrapassada e vencida, toma contornos de resolução, e passa a ingressar mais abertamente artigos e pesquisas sobre as narrativas literária e cinematográfica. Como estamos tratando de um gênero naturalmente escrito, associado a outro imagético, inerentemente caímos no debate da adaptação, em que implicam grandes nomes da teoria, como Linda Hutcheon e Robert Stam. Novamente, realocamos o roteiro como categoria passível de transposição midiática, assim como o são outras classes de ordem literária. Nas palavras de Hutcheon,

Em primeiro lugar, vista como uma entidade ou produto formal, a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular. Essa “transcodificação” pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de um épico para um romance), ou uma mudança de foco, e, portanto, de contexto: recontar a mesma história de um ponto de vista diferente, por exemplo, pode criar uma interpretação visivelmente distinta. (HUTCHEON, 2011, p. 29, grifo do autor)

O processo de transposição de um lugar a outro pode compreender também o produto em seu rendimento, sendo ambas as concepções encaradas, muitas vezes, como a própria adaptação: o caminho e a chegada. Nessa disposição, a exemplo de um gênero escrito e literário, o roteiro entra duplamente no processo. Primeiramente como escrita específica e pré- estabelecida para a metamorfose audiovisual; segundamente no próprio percurso automático de transcodificação de um gênero a outro, o que compreende todas as configurações de recursos audiovisuais para a feitura cinematográfica. Acerca disso, em seu estudo sobre as falácias na teoria da adaptação, um dos enganos desmistificados por Thomas Leitch é que

24

No mínimo eles [os filmes] não têm sido puramente visuais por pelo menos setenta e cinco anos – a maior parte da história do cinema. Os filmes, desde a chegada do som sincronizado, e talvez até mesmo antes, têm sido audiovisuais, não visuais, embora dependam das trilhas sonoras tanto como das imagens para seus efeitos.10 (LEITCH, 2003, p. 153)

Com a afirmação, atribuímos ao cinema a figura de hibridismo, uma vez que ele carrega em si elementos múltiplos de linguagem e assume um papel mais amplo diante da conservadora ideia de enrijecimento estritamente visual. É nesse momento que ele também passa a absorver para si o conceito de literatura, integrando-se a ela. Com o tempo, abandona-se a noção restrita de imagem e agrega-se o recurso verbal como parte essencial para a narração. Ainda que não através da palavra, a inserção da sonoplastia já implica a flexibilidade na revisão da ideia. Assim, o concebimento artístico se alonga por outros espaços, e a relação anteriormente distante e apartada entre o cinema e a literatura, estimada ao longo dos anos como uma relação tímida de empréstimo, se resolve em um acordo conciliador de conceitos. Mesmo antes, o vínculo entre ambos já ensaiava fagulhas de superação no debate, resistindo a críticas da mesma época:

A Semiótica estruturalista das décadas de 1960 e 1970 tratava todas as práticas de significação como sistemas compartilhados de sinais que produzem textos dignos do mesmo escrutínio cuidadoso dos textos literários, abolindo, desta forma, a hierarquia entre o romance e o filme. (STAM, 2006, p. 21, grifo nosso)

Se há 60 anos a discussão caminhava para a atualização do cinema perante a “superioridade” da literatura (STAM, 2006), compreendida como aquela reservada aos textos escritos, especialmente categorias clássicas como o a poesia e o romance, decorridos o tempo e a aceleração multifacetada das mídias, o caminho hodierno imbrica as artes sob o mesmo montante de categoria artística, característica inclusória, aliás, essencialmente contemporânea. Charles Deemer (2002) lembra que, na mesma época, não havia leitores de roteiro, o que justificava em parte a dificuldade no acerto de contas com a literatura. Hoje, diferentemente, o gênero cresceu absurdamente nas praleteiras de livrarias e editoras em virtude de outro fenômeno consequente: a expansão no público de leitores que procuram essa leitura específica. O autor também recorda que na década de 1990, um movimento de apoio à publicação dos roteiros alavancou com o propósito de considerá-los, finalmente, tão

10 “At least they have not been purely visual for at least seventy-five-years – most of filme history. Films since the coming of synchronized sound, and perhaps even before, have been audio-visual, not visual, depending as they do on soundtracks as well as image tracks for their effects.” 25 valorativamente literários quanto as peças para o teatro, que àquela altura já haviam conquistado um lugar ao sol, até no encargo titular de seus autores chamados de dramaturgos, categoria influente dentro do campo de escritores, em detrimento do apagamento na alcunha “duvidosa” do roteirista, “[...] cidadãos de segunda classe”11 (DEEMER, 2002, online, tradução nossa). Sobre esse fenômeno mercadológico, Caú justifica que

Se no passado uma certa cultura literária com frequência rejeitava o cinema, ao tachá- lo como diversão frívola e negando-lhe o título de arte, por sua vez, o mercado editorial da atualidade se utiliza justamente desta, outrora rejeitada, popularidade, na busca por alavancar vendas”. (CAÚ, 2017, p. 5)

Já que o conceito de literatura cobra de setores de envolvimento, entre outros, filosóficos e culturais, por exemplo, como a arte em geral o faz, há sempre de se revisitar os gêneros de produção inclusos nessas esferas, mesmo que não seja via de regra se considerar uma peça escrita ou fílmica obra literária. Nesse momento, “O argumento em favor do roteiro ser literatura deve começar com um lembrete: nem todos os romances, poemas ou peças de teatro são consideradas ‘literatura’”12 (DEEMER, 2002, online, tradução nossa). A respeito da citação, caímos novamente no limbo de categorização – muitas vezes elitista – do valor artístico, espeficicamente o literário. Dentro de uma obra, elementos específicos de interesse material e abstrato são apreciados para a expectaviva qualificatória, como já apresentamos e discutimos. Entre as regras, há a contribuição de valor sensível à intelectualidade e condição humana. Assim, a peça, para ser classificada, demanda minúcias estimativas de relevância estética e filosófica. Se assim o é, “[...] um roteiro pode ser escrito de tal forma que demande sua inclusão sob o guarda-chuva da literatura”13, já que ele “[...] pode ser escrito para ser lido esteticamente, mesmo ao contar um história com entretenimento”14 (DEEMER, 2002, tradução nossa, online). Ainda que não seja realizado o filme, o roteiro em sua vida independente precisa de um leitor que contemple a sua escrita performativa para a efetivação criativa. Nisso, dispositivos subjetivos de imaginação são acionados conforme a leitura. Tal como no romance, no conto ou na poesia, um universo é criado em vias de fantasia, o cumprimento legítimo de consumação ficcional e artística. Elementos sensoriais são descritos para o auxílio da elaboração imagética.

11 No original, “[...] second class citizens”. 12 “The artgument in favor of screenplays being literature must begin with a reminder: not all novels or poems or stage plays are considered to be literature”. 13 “[...] a screenplay in such a way that it demands inclusion under the umbrella of literature”. 14 “[...] can be written to be read aesthetically, even when delivering an entertaining story”. 26

Assim, anterior à concretização fílmica e emancipada dela, a peça escrita já fornece material suficiente para a satisfação literária. Se cabe aqui relacionar, nesse momento, um exemplo de aproximação é o conto Loucura, chiclete & som, de Caio Fernando Abreu, publicado primeiramente em 1995, no livro Ovelhas Negras, e mais recentemente na coletânea de contos completos, em que o próprio autor o descreve como um “[...] simulacro de roteiro cinematográfico” (ABREU, 2018, p. 574, grifo do autor), já que o texto é escrito sob o molde estrutural do gênero. Nas palavras de Ronald Geerts, “Mesmo quando um filme não é feito, como no caso de vários roteiros de Michiels, o texto ainda aponta para um filme virtual, porque essa é a natureza do roteiro”15 (GEERTS, 2014, p. 134, grifo do autor, tradução nossa). Por esse motivo – também –, é preciso reivindicar a identidade emancipada do gênero, à parte da responsabilidade funcional dependente da rodagem posterior, o filme, para que se reconheçam valores individuais e específicos de cumprimento sui generis. Em resposta à metáfora feita por Carrière em outro momento, “a lagarta é tão bonita quanto a borboleta e necessita sua própria legitimidade e direito de existir”16 (GEERTS, 2014, p. 134, tradução nossa). O que parece intimamente caracterizar um texto literário surge, além da primeira relação interior de estética, na inferência da obra, fruto da relação do sujeito com o mundo direto. Vínculo de espelhamento entre aquilo que é real e objetivo e aquilo que é ideal, não implicando, necessariamente, em um conceito de irrealidade, já que a literatura viabiliza o real dentro de si. Com efeito, as relações cinematográficas (de roteiro e filme enquanto produtos concretos) possibilitam e revelam igualmente essa conexão do sujeito com aquilo que o cerca, o que já implica, nisso, uma recepção autêntica e insuspeita dentro do estimado campo das artes literárias. Outro obstáculo vencido foi o conceito de efemeridade atribuído ao roteiro por razões de não realização do filme, enquadrando-o em uma visão antiga de infertilidade provinda através de questões mercadológicas, já que não havia reconhecimento para a autonomia do texto. Passados anos e pesquisas debruçadas no aprofundamento de estudos específicos sobre a natureza literária do gênero, o estigma de passagem transitória e inútil conferido voluntariamente – para relembrar a metáfora feita por Carrière – se esvazia no percurso de atualização temporal. Dessa forma, argumentos que expõem como justificativas ortodoxas capacidades

15 “Even when a film is never made, as in the case with several of Michiels’ screenplays, the text still points to a virtual film, because such is the nature of the screenplay”. 16 “The caterpillar is as beautiful as the butterfly and it demands its own legitimacy and right to exist”. 27 evolutivas enraizadas apenas em gêneros canônicos da escrita, em detrimento de uma “inépcia” datada e vencida pela competência cinematográfica, parecem se escorar na indiferença, à sombra de pressupostos obsoletos. No entanto, a recuperação histórica toma o lugar necessário de assistência na revisão e atualização, como processo genuíno no acompanhamento temporal. É através da retomada do passado que conseguimos assimilar os novos contornos teóricos. Reconhecida a capacidade efetiva do roteiro como gênero literário e, consequentemente, o cinema também em seu lugar de envolvimento, reavemos os dispositivos internos do fazer cinematográfico enquanto configurações de linguagem narrativa e, portanto, comunicativa, capazes de conferir sentido com mecanismos simbólicos visuais, verbais e sonoros, assunto em que nos deteremos com atenção mais detalhada logo em seguida.

2.2.O CUSTO DE UMA PRETENDIDA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

Começaremos este subtópico pelo esclarecimento de tomada do termo “linguagem” sob a intenção de caracterizar aquilo que comunica e que dispõe de ferramentas próprias para tal, assim como é o romance, a poesia, o roteiro e outros gêneros genuinamente escritos. Porém, com esta colocação, não queremos inferir que apenas a forma escrita desfruta deste poder, pois conseguimos alcançar propósitos comunicativos em artes essencialmente audiovisuais, como é o caso do cinema. Esta discussão acontece similarmente à do valor do roteiro no campo literário, sendo desta vez postos à prova os mecanismos cinematográficos que, supostamente, configuram uma linguagem, tal qual outros meios que possuem suas ferramentas próprias e dispõem do título autônomo. Estaria o cinema, carregando suas minúcias e particularidades, apto a se pronunciar enquanto portador de uma linguagem que adjetivamos como “cinematográfica”? Roland Barthes inicia um esclarecimento dizendo que

Parece-me, até o presente momento [1970-1980], que o modelo de todas as linguagens é a fala, a linguagem articulada. Ora, essa linguagem articulada é um código, utiliza um sistema de signos não analógicos (e que, por conseguinte, podem ser, e são, descontínuos), ao contrário, o cinema se dá à primeira vista como uma expressão analógica da realidade (e, além disso, contínua); e uma expressão analógica e contínua, não se sabe por que lado pegá-la para nela introduzir, iniciar uma análise do tipo linguístico, por exemplo, como recortar (semanticamente), como fazer variar o sentido de um filme, de um fragmento de filme? (BARTHES, 2004, p. 20-21, grifo nosso)

O ensaio de resposta para a pergunta levantada por ele está logo no parágrafo 28 introdutório deste subtópico: tratamos aqui de uma “linguagem” que não quer dizer “língua”, ou seja, que não combina os elementos linguísticos da palavra e dos signos; aliás, estamos mais próximos de significantes que se organizam em sintagmas que não correspondem àqueles da língua, pois no filme os sintagmas se formam de significantes advindos de sistemas diversos: a linguagem visual (formas, cores, luz, gestos); a linguagem dos sons (ruídos, músicas, voz); e a própria língua, falada ou mesmo escrita. O cinema utiliza-se da palavra, mesmo que não seja dada através dela sua ordem natural, uma vez que trata-se de uma arte primariamente imagética. Este já é um ponto a ser considerado. Outra acepção argumentativa está na apropriação – por direito ou não – do termo para caracterizar o mecanismo produtor de sentidos, “aquilo que narra” e comunica. O cinema, estruturando-se de elementos visuais estrategicamente utilizados para definições/interpretações específicas, valida a proposição de um conjunto autêntico, ousando até dizer, no confronto com a palavra escrita/falada, como proprietário de uma quase gramática visual17. Esses elementos carregam nomenclaturas, significados e finalidades particulares na cadeia de produção de sentido do filme. Destacamos alguns: (a) o plano, como sendo a visão enquadrada do objeto pela câmera, podendo variar do mais aberto (o geral) ao mais fechado (o primeiríssimo ou close-up), com nomes específicos; (b) a montagem, como sendo a organização das cenas em cortes, o que caracteriza o ritmo sintático da narrativa; (c) os eixos X (horizontal), Y (vertical), Z (profundidade de campo) e YZ (diagonal), que marcam a posição e direção do objeto/personagem no fotograma (SIJLL, 2019, p. 20); (d) a fotografia, como sendo a elabração concernente às cores e à iluminação; entre outros. Todos os componentes elencados possuem a sua noção e sentido distintivos dentro da composição do quadro fílmico, e cada um tem a importância similar à das classes gramaticais linguísticas. O que conta, por exemplo, a importância das personagens ou determinados objetos dentro da narrativa é, entre outros dispositivos, a configuração escolhida para o enfoque dos planos, aproximando ou distanciando o sujeito do quadro. A trilha sonora, outra ferramenta de auxílio, corrobora na construção de sentidos como guia emocional do espectador, bem como os eixos destacados acima podem sugerir a ambivalência psicológica das personagens enquadrados. Já a iluminação, muito associada às narrativas fílmicas de horror, é de suma importância na concepção de uma atmosfera sombria, desbotada, ou resplandescente, a

17 É importante mencionar aqui os trabalhos de Christian Metz, que explorou, nos anos 1960 e 1970, na linha das pesquisas de Barthes sobre os diversos sistemas semiológicos, inspiradas na linguística saussuriana. Metz procurou estabelecer os elementos de uma linguagem cinematográfica, sobretudo nos livros A significação no cinema, de 1968 (METZ, 1972) e Linguagem e cinema, de 1971 (METZ, 1980). 29 depender da proposta diegética, assim, “certos elementos da imagem são verdadeiras mensagens” (BARTHES, 2005, p. 34, grifo do autor). Barthes diz ainda que

[...] o próprio exempo do filme leva a reinvestir numa teoria geral da significação toda a densidade afetiva da percepção, a procurar, sob o sistema sígnico, os elementos cognitivos ou emotivos do signo fílmico, quer estes o constituam, quer o contestem, em suma a definir uma unidade significante completa, que mobilize simultaneamente todas as camadas de atividade do complexo cerebral. (BARTHES, 2005, p. 49-50, grifo do autor)

Assim, o que se pretende como unidade de sentido geral, (des)monta-se em uma organização de dispositivos acionados – por vezes em significantes – para significados especiais, que, tomados genericamente, culminam em um sentido universal dentro da obra, o que atribuímos ao valor narrativo do enredo diegético. Percebemos, logo, que existe um todo estrutural por trás do maquinário cinematográfico, e que não é em vão ou por mera atribuição mecânica que eles interagem dentro do fazer fílmico. Pelo contrário, estabelecem múltiplas relações colaborativas para a formação alegórica, metafórica ou mesmo em nível elementar de sentido constitutivo. Qualquer que seja o viés analítico de uma peça fílmica, há de se considerar as peças mencionadas como elementos anteriormente, além de outros métodos que compõem as contruções de estrutura e conteúdo. Não fazemos diferente ao pegarmos, por exemplo, um conto ou um romance para uma leitura de deleite, à primeira instância na superfície, e para uma leitura analítica, que acontece na profundidade do reconhecimento dos dispositivos acionados na elaboração da obra. No que tange ao escrito, pegamos o todo para dissecarmos em passagens, diálogos, utilização e escolha de léxicos, identificação de tempo, espaço, projeção imagética intelectual. No caso do filme, a recepção é, basicamente, a mesma, com exceção do contato efetivo na materialidade do signo escrito para o esmiuçamento no interior dele. De resto, todas as possibilidades identificatórias são possíveis em maior ou menor grau. Assim é feita a interpretação de obras cinematográficas em comparação – ou não – com outras, sejam elas escritas, musicalizadas, visuais ou em qualquer outra manifestação que possibilite o avizinhamento. Não parece justo desmerecer a capacidade cognitiva do arranjo de objetos fílmicos em detrimento dos espaços alcançados pela palavra no campo da língua. Pensemos que há uma esfera cerebral responsável pelos acionamentos de comandos linguísticos despertados em corroboração com outros ligamentos. Agora consideremos, também, a aparelhagem – no

30 domínio consciente – de mecanismos escolhidos, tal como na elaboração de uma frase, para a produção de sentido em termos visuais, mais especificamente fílmicos. A comparação não é tão distante, aliás, comporta de um lado uma naturalidade empírica, e do outro a mecanicidade programada. Podemos equiparar esta colocação mais assertivamente no engajamento interno da narrativa cinematográfica:

Ao lado da montagem, dos movimentos de câmera e dos diálogos, existe um grande número de outros processos, quer dizer, de jogos de cena e de efeitos visuais e sonoros cuja finalidade é a de fazer avançar a acção, ao mesmo tempo que acrescentam um elemento dramático, sublinhando uma atitude ou um conteúdo mental das personagens. (MARTIN, 2005, p. 227)

Não há como negar que há, no cinema, um projeto estruturado para a produção de sentido, seja a esmo de uma rasa inferência para o entretenimento rápido, ou para cumprimentos sofisticados na cadeia de significados, cobrando maior atenção do espectador às cenas e, consequentemente, aos mecanismos movimentados na execução delas, quando a distração passa a ser decorrência, não efeito pontual. Tais ferramentas projetadas para a narração, são, na peça fílmica, os mecanismos que se predispõem à leitura analítica por entremeios imagéticos. Assim como se verifica, em obras escritas, técnicas, estilos e performances particulares na e com a língua, que se espalha, no todo, como uma linguagem.

31

3 ENTRE MUITOS, NINGUÉM: ANALISANDO O FILME MISTER LONELY (2007)

Escrita e dirigida por Harmony Korine, Mister Lonely (2007) é uma obra americana lançada em duas versões, o roteiro e o filme. Nela, o autor parece ter tido outro acesso niilista e nostálgico: a proposta para o cinema surge com um acabamento hollywoodiano, bem tratada e esteticamente “digerível” se comparada com Gummo (1997), em que o diretor ousa nas experimentações de estética e conteúdo. A temática é relativamente a mesma de Vidas Sem Destino (título que Gummo recebeu na versão brasileira), mas com uma roupagem comercialmente vendável. O diretor lança à tela – e também ao papel – elementos metafóricos relativos ao desconforto social que o indivíduo contemporâneo experimenta diariamente. A narrativa é um aglomerado de desalinhos, uma confusão ironicamente harmônica e condizente com a contemporaneidade. Após se encontrarem em Paris, um sósia de e outra de Marilyn Monroe viajam para a Escócia para se juntarem a um grupo de imitadores de personalidades como , Charles Chaplin, James Dean e Abraham Lincoln. Uma mistura incompatível de épocas. Eles vivem todos juntos em um castelo, em uma ilha remota. Lá abdicam de suas identidades e vivem a vida como a persona escolhida. Paralelo a isso, outro núcleo é desenvolvido sem nenhuma aparente justificativa: um grupo de freiras é liderado por um padre que sugere que elas pulem de um avião, sem paraquedas, como prova de fé. O diretor sempre teve em seu histórico cinematográfico uma postura fora do convencional. Em 1995 ele escreveu o roteiro do polêmico filme Kids, dirigido por Larry Clark, sobre um grupo de jovens experimentando os perigos das drogas e sexo na adolescência. Anos mais tarde, voltaram a trabalhar juntos sob as mesmas funções, dessa vez no filme Ken Park (2002), com sinopse não tão distante da produção anterior. Em 1997 lança Gummo, dessa vez como diretor, talvez a produção mais cultuada pelo seu público. Não seguindo o padrão de narrativa tradicional (fora da ordem lógica e crescente de início, meio e fim, padrão hollywoodiano) e chegando a beirar o documentário, o filme exibe a vida de jovens em uma cidade logo após ser devastada por um tornado que destruiu casas, dizimou várias pessoas e animais. Em se tratando de simbologias, Korine carrega suas obras de metáforas como crítica e/ou representação de situações cotidianas, vide Gummo (1997), que acaba funcionando como uma crônica audiovisual (des)pretensiosa sobre o caos dinâmico em que vivemos no contexto das urgências tecnológicas e atualizações constantes. Nas palavras de Mendes

32

Etimologicamente, o termo metáfora deriva da palavra grega metaphorá através da junção de dois elementos que a compõem – meta que significa “sobre” e pherein com a significação de “transporte”. Neste sentido, metáfora surge enquanto sinónima de “transporte”, “mudança”, “transferência” e em sentido mais específico, “transporte de sentido próprio em sentido figurado”. Figura de estilo que possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos. De facto, e tendo como base o significado etimológico do termo, o processo levado a cabo para a formação da metáfora implica necessariamente um desvio do sentido literal da palavra para o seu sentido livre; uma transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, cujo sentido originariamente não lhe pertencia. (MENDES, 2010, grifo do autor, online)

Esta afirmação também é cabível dentro da esfera visual, se considerarmos que a “linguagem” se manifesta para além do verbal. Sendo assim, a metáfora funciona como uma transposição do seu sentido pontual para uma significação outra, podendo, dessa forma, conceber imaginações que fogem de especificidades objetivas, mas cabíveis dentro de uma ideia pré-elaborada anteriormente. Em Mister Lonely (2007), o diretor retoma a temática niilista, o mal-estar e combustão temporal. Alguns dos indícios dessa proposta semântica estão entregues como pistas no enredo do filme: (a) as personagens não têm nome, são encarados e apresentados socialmente enquanto personalidades, como, por exemplo, Michael e Marilyn; (b) há uma mixagem de épocas que não permite uma unificação temporal do elenco de personalidades – o que denuncia uma característica contemporânea; (c) a existência de outro núcleo/narrativa acontecendo em paralelo, sem diálogo ou conexão clara entre um e outro. Por vezes, somos apresentados a cenas enquanto Michael diz um monólogo como se tentasse obter alguma resposta do espectador e ouvinte, ao mesmo tempo que parece uma narração ou aviso do que está acontecendo, como uma espécie de quebra da quarta parede, quando o personagem tenta alcançar e falar diretamente para o espectador. A tentativa de reação chega a soar mais como um apelo por aproximação do personagem com o outro real, como, por exemplo a fala que abre o filme: “Não sei se você sabe como é ser outra pessoa. Não parecer como você se parece. Odiar sua face e passar completamente desapercebido. Eu sempre quis ser outra pessoa.” (KORINE, 2007). Além de propor a aproximação com o espectador, a fala sugere imediatamente a aflição do protagonista. Essa crise e desconforto permeia durante toda a narrativa, tomando como “relator” maior o sósia de Michael, interpretado pelo ator Diego Luna. A semelhança com a vida do cantor está, inclusive, longe de ser mera coincidência. Michael Jackson teve sua carreira envolta em boatos acerca da incomodidade dele consigo mesmo. O maior sintoma

33 disso, para o público, foram os tratamentos e plásticas que modificaram o cabelo e partes do seu rosto. Esse vínculo entre o fictício e o real pode não estar claro à primeira vista, mas logo torna-se consciente a escolha do diretor pela conveniência e também, obviamente, pelo fato de Michael Jackson ser uma das personalidades que conta com maior número de imitadores. Voltando para a fala, o personagem assume estar em crise com a sua identidade. Essa seria a “desculpa” para a necessidade de personificar outra persona que não a sua. Sobre isso, Stuart Hall (2015, p. 11) argumenta que “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas contraditórias ou não resolvidas”. Assim, a tentativa de unificar uma figura se reparte em pedaços que se agrupam como referentes de uma pretensiosa representação, fato custoso para o sujeito anteriormente pensado com o reflexo ideal de plenitude incólume.

3.1.“MAN IN THE MIRROR”: MICHAEL, EIS-ME AQUI?

A narrativa é dividida em capítulos que carregam títulos de algumas músicas de Michael Jackson, sendo o primeiro chamado de “Man In The Mirror”18. Nele, Michael é apresentado em sua tarefa social, enquanto sósia, que é entreter o público – novamente abre- se margem para a relação das artes – especificamente a cinematográfica – com a realidade. Ele se apresenta nas ruas e em asilos. O que é observável, no entanto, é a inversão e/ou insucesso desse intento. Michael demonstra não ter retorno emocional satisfatório, o que caracteriza o mal-estar. É o dar e não receber. Na letra da música, os primeiros versos, “Eu vou fazer uma mudança / Pela primeira vez na minha vida / Que vai ser realmente boa / Vou fazer a diferença / Vou fazer isso direito”19, sugerem o intento de mudança por insatisfação social, mas a priori, em nível individual, metonímia do sujeito no mundo, para em seguida, conduzir à investida no melhoramento de uma gama maior. Nessa passagem do filme o personagem interage na grande cidade, nas ruas e em seu ofício, levantando reflexões sobre o entretenimento indiferente oferecido pela contemporaneidade perante o desprazimento coletivo. A atividade de Michael reflete, também, na tentativa de disfarce da insatisfação através da fuga a curto prazo. É interessante observar que

18 O homem no espelho. (Tradução livre) 19 “I’m gonna make a change / For once in my life / It’s gonna feel real good / Gonna make a difference / Gonna make it right”. Música Man In The Mirror, do disco , de Michael Jackson. 34 o diretor optou por não incluir as músicas do cantor referido na trilha sonora, tomando como empréstimo apenas os títulos e fazendo, com efeito, acontecer uma camada de hipertexto à luz da omissão na subjetividade. A alternativa alça problematizações externas e burocráticas, em que se inserem questões de direitos autorais dos artistas, dificultando muito o acesso à obra. Conhecido na cena underground, o cinesta francês Leo Carax, diretor e roteirista de alguns filmes como Boy Meets Girl (1984), Pola X (1999) e Holy Motors (2012), aparece no filme como Renard, o empresário de Michael, direcionando-o às tarefas de imitação em eventos pela cidade. A participação do multiartista no filme recobra a memória de obras pouco conhecidas, com propostas narrativas desviantes da moralidade. Em Mister Lonely (2007), o papel “ditatorial” de um gestor se assemelha, entre outros encargos de condução, à própria atividade do diretor de cinema. No diálogo das personagens, Michael confessa não se agradar de Paris porque a cidade é muito quente. Ele também diz que não fala francês, o que justifica a sua falta de amigos, quando indagado por Renard, e ainda confessa se sentir esquecido por ele. O que se sugere é um caso negociação entre os Estados Unidos e a França, tomados a priori na narrativa, também como um sinal de desalinho. É interessante pontuar que essa é a primeira visita a que somos apresentados de Michael a seu empresário; uma introdução do humor do protagonista que diz estar bem, apesar dos percalços enfrentados, e de sua sugerida solidão logo nos primeiros minutos do longa. Cabe assimilar o espírito da cena às cores empalidecidas e frias, em tons escuros e nada saturados.

Figuras 1 e 2: Renard e Michael conversando

35

Fonte: Mister Lonely (2007)

Após ser apresentado enquanto sujeito social no mundo, outra personagem é introduzida, no caso, Marilyn Monroe, interpretada por . Eles se encontram em uma festa para idosos e saem pelas ruas de Paris para tomar café. O plano aberto utilizado para mostrar os sósias juntos inclui, também, outras pessoas comuns no enquadramento, mas margeando os dois, que pontuam o centro da tela, sugerindo uma leitura focalizada na atividade de imitação entre aquilo que se pressupõe real, podendo até abrir ainda mais o círculo interpretativo por pontuar em oposição – ao passo que também em coextistência – entre a arte (o cinema) e a vida.

Figura 3: Michael e Marilyn juntos

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

No diálogo das personagens, em determinado momento Marilyn questiona há quanto

36 tempo ele vive como Michael, tendo como resposta a assertiva “eu acho que nasci assim”, ocultando o seu percurso histórico enquanto indivíduo autônomo, portador de traços independentes, para ceder lugar a uma personalidade alheia, apropriando-a como uma máscara. Logo em seguida, os dois são interrompidos por crianças que lhes pedem autógrafos. O curioso é perceber o cruzamento de idiomas que transita do francês, por uma das meninas, até o inglês, sugerido por Marilyn. Uma possível leitura disso é a participação múltipla e até incompatível, por vezes, de características, marcas e naturezas, na aptidão libertária contemporânea. Algumas cenas, talvez as mais simbólicas na película, apresentam o personagem protagonista sozinho em plano aberto20. É fácil caracterizá-lo, aliado às falas e à proposta do enredo, como solitário. O próprio título do filme sugere isso, em português, Senhor Solitário. Torna-se interessante observar que no inglês o pronome de tratamento Mr. é comumente utilizado em sua abreviação. No título, a palavra Mister é usada por extenso, servindo quase como um nome próprio aliado ao adjetivo Lonely que parece funcionar como sobrenome. Para exemplificar os momentos de solidão do personagem, destacarei duas cenas: (a) o plano que abre a película apresenta Michael em uma pequena motocicleta, incompatível com o seu tamanho. Ao fundo toca a música que carrega o mesmo título do filme, narrando a solidão do indivíduo; (b) Michael se apresentando na cidade, em meio aos transeuntes.

Figuras 4 e 5: Michael sozinho em plano aberto

20 Esse tipo de plano é convencionalmente utilizado para apresentação, seja de espaço, ou, por vezes, de personagem. Dentro do filme em análise, serve como um aliado à narração.

37

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Embora iguais em sua simbologia maior, optei por destacar esses dois planos em particular porque há entre eles uma sutil diferença. No primeiro, a personagem está literalmente sozinha. A única companhia é o macaco de pelúcia com asas que ele carrega amarrado à sua pequena motocicleta. A companhia do personagem é a da fantasia, do irreal e incompatível. Além disso ele está coberto com capacete, óculos e o que aparenta ser uma máscara cirúrgica, o que impossibilita a sua identificação, ou seja, está dada a sua falta de identidade. No segundo plano, Michael está rodeado de pessoas que caminham pela cidade. Alguns observam a sua apresentação, fotografam, mas não contribuem com doação em dinheiro. Aqui estão presentes o egoísmo e a individualidade do sujeito contemporâneo, que não tem tempo para o outro, mas considera a exposição pretensiosa do universo virtual. Assim, caminhamos para uma sinalizada fuga que o indivíduo encontra para desviar dos infortúnios sociais, ofertados através dos mecanismos ilusórios de excesso pelo entretenimento, em troca do desprezo pela empáfia.

3.2.“BEAT IT”: A EXPULSÃO, OU A FUGA DO PANDEMÔNIO SOCIAL

A questão da incompatibilidade é um forte demonstrativo de desalinho, sintoma que colabora com o mal-estar das personagens. Outro exemplo é o fato de que Michael e Marilyn são americanos, no entanto se encontram nas ruas de Paris. Enquanto dialogam, revezam entre o idioma francês e o inglês. Não bastasse isso, a passagem para a segunda parte do filme,

38 chamada de “Beat It”21, outra música de Michael Jackson, mostra a chegada dos sósias em uma ilha remota na Escócia, onde se juntam a outros imitadores. Lá, vivem misteriosamente bem em um castelo. Eles trabalham por si e para si. O plano, convenientemente escolhido para ser capa e pôster da obra, exibe as personagens em uma canoa, centralizados em um grande espaço que preenche a tela com água e ilhas. É o momento em que atravessam da zona urbana, do centro da cidade e do caos social para o “isolamento” conjunto. Traduzindo a letra da música que abre o capítulo – se assim podemos dividir uma obra fílmica – diz “Eles o disseram / Nunca mais volte aqui / Não querem ver o seu rosto / É melhor você desaparecer”22. O que se sugere com a canção é a expulsão de Michael das ruas de Paris, logo, do contexto em que a personagem estava imersa, com as tarefas de imitação por retorno financeiro e todas as outras obrigações sociais que se alinham em conjunto. Também podemos ler a passagem – a partir de uma perspectiva menos hostil – como a fuga de Michael, a oportunidade de sair do conflito para o conforto, convite apresentado por Marilyn quase como uma intimação, a chance de se agrupar a pessoas semelhantes a ele. A passagem marca, portanto, uma mudança no rumo do protagonista que, antes declaradamente solitário, começa a se encontrar rodeado de pessoas. Claramente, é o momento em que ele demonstra acessos de bem-estar, fazendo-nos reconhecer uma tentativa de crescimento do personagem que é recebido pelo grupo com fogos de artitício e uma festa em comemoração ao seu ingresso na comunidade. Sobre esse projeto para a felicidade, Freud diz que

O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abondonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. (FREUD, 2011, p. 28)

Figura 6: Michael e Marilyn chegando ao castelo

21 “Caia fora” (tradução livre). 22 “They told him / Don’t you ever come around here / Don’t wanna see your face / You better disappear”. Música Beat It, do álbum Thriller, de Michael Jackson. 39

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Não dá para saber até onde a fuga de Michael é pretensiosa, fruto da consciência do mal-estar tomado em sua vida. A personagem parece ser conduzida por forças terceiras, vide a própria potência da presença de Marilyn e o poder que ela passa a exercer em sua vida. É a partir dela que o desvio da “realidade” amargurante surge, como um acaso que se remonta em oportunidade, beirando mais a coincidência de união por adequação, do que uma conveniência. Assim, sem soar pedante, Michael não recusa os esforços por estímulos de satisfação. Por vezes o filme toma um tom infantil e inocente, fazendo parecer que estamos assistindo a um leve conto de fadas. Sobre isso, há entre os sósias de personalidades reais, uma garota que dá vida a Chapeuzinho Vermelho (Rachel Korine), famosa personagem presente no imaginário infantil. Pode parecer engraçado, mas nesse sentido é perfeitamente cabível o ditado popular “a vida imita a arte”, ou se apropria dela e vice-versa. Apesar de já se tratar de uma obra de ficção, essa ficção é saturada em outro nível, tornando-se uma espécie de metalinguagem. Vendo por outro lado, a Chapeuzinho Vermelho se permite dar vida a uma pessoa real, porque esta não tinha identidade, ou porque a sua foi anulada. Ela, inclusive, executa tarefas cotidianas, como, por exemplo, lavar a roupa. É nesse momento que o filme flerta com traços de desenho/animação infantil: em um plano aberto, vislumbramos, através da saída do narrador-câmera Michael para o pátio do castelo, um grande terreno com árvores, em um dia de sol e muita luz. O personagem cumprimenta Abraham Lincoln que acena de um trator com a saudação “Ei, Michael! Belo dia!23” (KORINE, 2007, tradução nossa). Enquanto isso, Os Três Patetas trabalham na construção de um espaço para a apresentação dos sósias. Seguimos acompanhando Michael, que anda da esquerda para a direita como se simulasse um

23 “Hey, Michael! Beautiful day!” 40 caminhar entusiasmado, com pequenos pulos na ponta dos pés. No pasto, James Dean cuida dos animais, ao passo que Lincoln continua a bravejar palavrões para os seus colegas, marcando a perda do pudor do momento. A trilha que conduz toda a cena é um som intrumental que lembra introdução de peça para crianças. Chamada de Eixo X, uma das configurações do filme se inscreve na composição horizontal da direção do objeto no quadro. Sijll (2017) observa que é uma percepção de imitação da leitura ocidental, que parte da esquerda para a direita como o exercício tradicional e regular, logo, o “normal”. Assim, a índole dos mocinhos pode ser caracterizada pelo senso de movimentação expresso em tela: se para a direita, é o bom moço; se para a esquerda, é o vilão (SIJLL, 2017, p. 22). Pode não ser via de regra, uma vez que não é cabível generalizar o cinema em sua vasta gama de produções em um todo de cumprimento convencional. No entanto, em alguns filmes é possível fazer essa leitura, como funciona, por exemplo, na cena descrita acima, em que Michael caminha da esquerda para a direita, caracterizando a sua personalidade inocente e insuspeita. Outra cena muito interessante remonta à clássica caminhada da personagem infantil Chapeuzinho pelo bosque, um lugar colorido, cheio de vida, porém, em Mister Lonely (2007), sobre trilhos, em meio a escombros de cor pálida. É comum vermos em filmes ou desenhos personagens amarrados a trilhos de trem como a representação de um perigo iminente. Essa leitura não é impossível nesse momento, uma vez que a proposta semântica da narrativa permite essa consideração. Mas não apenas, a própria cena é carregada de elementos que possibilitam essa interpretação, como as cores dessaturadas e o cenário de ruínas, como se fossem as ruínas do próprio bosque, que “forçam” um sentimento de angústia. Além disso, ela leva um guarda-chuva transparente, enquanto percebemos, ao fundo, o sol iluminando as pedras, ou seja, tornando o adereço inútil, esgotado por si. Nesse caso, seguindo as observações de Sijll (2017), o eixo de composição do quadro é o Y, eixo vertical que direciona o objeto no comprimento de altura do plano, mais especificamente de norte a sul. A conduta e destino da personagem é delimitada pelo seu espaço sobre os trilhos, as linhas que demarcam a “zona de segurança”, ironicamente contrastante com o perigo de um trem em seu caminho. As possibilidades interpretativas apontam para dois lados: (1) a personagem pode crescer e ter um futuro esperançoso, uma vez que segue em linha centralizada e segura no quadro; ou (2) pode ser exatamente a sua entrega à ameaça vigente. Podemos ler a cena da Chapeuzinho pelas duas vias. Ao passo que a moça caminha nos trilhos, primeiramente de cima para baixo, quando enquadrada de frente e, posteriormente, de baixo para cima, quando enquadrada de

41 costas, ela se mantém “segura” entre as linhas do “destino”, mas vacila também na abertura interpretativa de uma situação de perigo constante.

Figuras 6 e 7: Chapeuzinho Vermelho caminhando entre ruínas

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Pistas como essas permitem ao espectador atento reconhecer e compreender a comunicação por metáforas visuais, para além da “restrição” da linguagem verbal. Nessa leitura da imagem, por exemplo, podemos fazer uma drástica comparação entre a Chapeuzinho Vermelho mundialmente conhecida pelo seu apelo infantil, e a do filme Mister Lonely (2007). Ambas carregam uma série de elementos que se opõem, não apenas na própria personagem, mas em todo o conjunto que se alia a ela. Distante de encerrar por aí o avizinhamento com o espaço infantil, Korine insere na película duas crianças que interpretam Shirley Temple (Esme Creed-Miles), atriz e cantora mirim hollywoodiana de muito sucesso; e Buckwheat (Michael-Joel David Stuart), uma das 42 personagens que compõe o elenco da série estadunidense Os Batutinhas, do produtor e diretor Hal Roach, em 1922, e transformada em filme – quando alcançou maior notoriedade – por Penelope Spheeris em 1994. Na obra, crianças vivem aventuras simulando o comportamento de adultos. No filme de Korine, a personagem tomada de empréstimo é apresentada com um discurso que põe em crise a pureza infantil. Buckwheat diz ser apaixonado por galinhas, logo em seguida comparando-as com mulheres:

Eu amo mulheres. Elas são quentes! Me fazem suar. Eu amo galinhas. Eu amo as suas asas, como seios. Se você combinar galinha com os seios de uma mulher, você terá seio de galinha. Eu gosto de seio de galinha. Seio de galinha é legal... e quente! Se dependesse de mim, eu faria o mundo de mulheres e galinhas nuas. É excitante! Eu amo mulheres. Elas são tão... elas me fazem suar. Eu amo galinhas. Seus seios são tão macios24. (KORINE, 2007, tradução nossa)

A imersão de uma persona em outra, quase como uma metalinguagem, a partir do pensamento de que a simples inserção de um ator em seu ofício de “cópia” ou interpretação alheia, como exercício de duplicação, faz emergir a condição do apelo contemporâneo de saturação, tão latente que duplica um personagem sobre um indivíduo real, como foi demonstrado anteriormente. É o momento em que as realidades se confundem, enquadrando, aqui, a diegese como o real dentro de si. Sendo assim, o indivíduo da ficção parece ser o mesmo da não-ficção, da realidade impassível e inconsequente encontrada do outro lado da tela. Bauman (1998, p. 155, grifo do autor) diz que:

[...] a evidente natureza “inventada” das personagens, sua condicionalidade e status convencional, sua contingência inerente, são características definidoras da obra de arte em geral e da ficção artística em particular. Pode-se, por conseguinte, dizer que, sob a condição pós-moderna, o “mundo lá fora”, o “mundo real”, adquire em grau cada vez maior os traços tradicionalmente reservados ao mundo ficcional da arte.

Ainda no espirito de prazer da narrativa, Michael e outros sósias se reúnem em um banho coletivo regado a lama, vinho e charuto. O grupo se diverte enquanto bebe, fuma, conversa e estende as boas vindas ao protagonista. Um elemento interessante de ser destacado é o uso da cor amarela como tom predominante, tanto na touca de banho que todos usam, quanto nas flores que os cercam.

24 “I love women. They’re hot! They make me sweat. I love chickens. I love their wings, like breasts. If you combine chicken with a woman’s breasts, you get chicken breasts. I like chicken breast. Chicken breast is nice… and hot! If it was up to me I’d make the world naked woman and naked chickens. That’s hot, yeah. I love women. They’re so... they make me sweat. I love chickens. Their breasts are so smooth, yeah.” 43

A cor é uma ferramenta de composição do quadro essencial na transmissão de mensagem no cinema, assim como em qualquer outra arte visual. Em Cores & Filmes, um estudo de Costa sobre a inserção e função da cor no cinema, a autora aponta os caminhos de efeitos que a ferramenta pode ter. Nas palavras dela:

O uso da cor no cinema envolve associações em diferentes níveis: (1) físico no modo como a cor pode afetar o espectador dando-lhe a sensação de prazer; (2) psicológico, pois a cor pode estimular respostas psicológicas; e (3) estético, pois as cores podem ser escolhidas de forma seletiva conforme o efeito que é capaz de produzir, considerando o balanceamento, a proporção e a composição no filme. (COSTA, 2011, p. 31)

Em se tratando de efeitos particularmente psicológicos e/ou sensoriais despertados a partir de escolhas seletivas de composição, Patti Bellantoni, em seu livro If It’s Purple, Someone’s Gonna Die25, discorre sobre as possíveis representações para as cores nos filmes. Por exemplo, a considerar o amarelo, uma das cores primárias, ela destaca alguns termos cabíveis para a leitura da cena que discutimos, como inocência, exuberância e advertência (BELLANTONI, 2005). Mas ainda podemos alcançar outras interpretações a par do uso e atribuição universais, como a cor de fundo de luz nas pinturas, do sol, representação do dia, da jovialidade e da animação. O próprio comportamento das personagens aliado ao espírito da ocasião justifica a escolha para a predominância do pigmento no quadro. Os planos variam entre os fechados, em que se aproxima das expressões dos sósias e de um abraço entre Michael e Marilyn, reforçando o afeto de ambos, para os mais abertos, em que somos apresentados a todo o grupo, conseguindo identificá-los inclusive em quantidade – sete –, e ainda ao espaço.

Figura 8: O banho do grupo de sósias

25 Se é roxo, alguém irá morrer (BELLANTONI, 2005, tradução nossa). 44

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

A busca pela satisfação, ainda que a curto prazo, é uma tendência frente aos desagrados sociais. Nisso, as drogas, lícitas ou ilícitas, incluindo as etiquetadas como “remédios”, as promessas de cura da dor, surgem como oportunidade de fuga da realidade dura que possa ser sentida mais atenuadamente. São distrações hipnóticas, conduzidas pelo acordo de um sentimento a uma vontade de escape, ou ainda tentativa de saturar qualquer fagulha de euforia como chance de prolongar o prazer. Qualquer noção psicanalítica sobre o uso de substâncias químicas torna-se potencial para a atribuição à narrativa, especialmente à cena descrita acima. Nas palavras de Freud (2005, p. 22), “[...] Sabe-se que com a ajuda do “afasta-tristeza” podemos nos subtrair à pressão da realidade a qualquer momento e encontrar refúgio num mundo próprio que tenha melhores condições de sensibilidade”. Como escopo da narrativa, o tema do mal-estar perpassa toda a obra, mas com mais evidência em momentos específicos. Michael, escolhido para ser a personagem porta-voz, carrega consigo uma ferramenta essencialmente integrada à incumbência de espelhamento, de retorno, ou ainda – expandindo para uma persperctiva abrangente – de eco: um gravador, em que ele grava monólogos. Um desses pensamentos é representado visualmente, além do auxilio verbal da voz off, com planos que fragmentam a personagem em quadros fechados, que não permitem a total identificação de seu corpo, ou de seu rosto. Aliada a isso, a própria fotografia que acompanha a cena é econômica na iluminação completa, utilizando-se apenas de um abajur que clareia pontos estratégicos, como uma pequena parte do quarto, para permitir o reconhecimento espacial e a silhueta da personagem carregada de sombra que reflete suavemente em um dos vidros da sacada; a sua boca, como se acompanhasse a própria fala; um dos seus olhos; o ovo que ele pinta rascunhos de um rosto. Logo em seguida, somos “arremessados” para fora do quarto, com imagens da paisagem ao redor, em tons azuis frios que acompanham o sentimento da cena. Como fundo sonoro,

45 um piano sutil toca para guiar a emoção. Nesse momento específico, a fala de Michael é simbólica até no próprio registro de gravação em fita: ela é um documento que situa determinada pessoa em seu contexto e época; é um objeto que permite a revisita e repetição – daí a função de retorno –; a depender, pode reverberar – daí o ecoamento –; é um registro memorial e afetivo, de desabafo; dentro da própria diegese, é uma estratégia de simular a fala que se esquiva em um artifício terceiro, o que pode influenciar o narrador da ficção e, a partir disso, os caminhos pelos quais o espectador será conduzido. Com essas considerações, focalizamos a composição cênica do relato/registro em tom de carta que Michael faz, reafirmando a sua insatisfação e o desassossego para com o mundo, associado à elaboração visual:

Querido mundo. Querido mundo e todos que nele estão. Eu percebi que ao longo dos anos vocês tentaram me ignorar. Eu percebi que vocês acham que sou muito estranho e a maneira como penso vocês podem considerar errada. Querido mundo e todos que nele estão. Desde que nasci, lembro de me sentir diferente. Eu me lembro de pensar que eu tinha um tipo especial de visão que me permitia ver coisas que vocês não podiam. Eu acho que nunca senti o mesmo que vocês sentiram e... eu não estou exatamente chateado com isso. Parece que é assim que as coisas são. Eu tenho que admitir que passei a maior parte da minha vida me sentindo confuso, me sentindo estranho e desconectado. Nunca compreendendo como as outras pessoas ou entendendo exatamente as coisas. Querido mundo. Querido mundo e todos que nele estão... É sempre difícil rir quando você não sabe o que as pessoas acham tão engraçado.26 (KORINE, 2007, tradução nossa)

Figuras 9, 10, 11 e 12: Michael fragmentado

26 “Dear world. Dear world and everyone in it. I have noticed that over the years you have tried to pass me by. I have noticed that you think I’m very strange, and the way I think you might consider it to be wrong. Dear world and everyone in it. From the moment I was born, I remember feeling different. I remember thinking I had a special kind of vision that allowed me to see things that you couldn’t see. I don’t think I ever felt the same as you felt and... I’m not exactly angry about it. It just seems that’s the way things are. I have to admit that I have spent the majority of my life feeling confused, feeling alien and disconnected. Never quite getting things the way it seems everyone else gets them or understanding things exactly. Dear world. Dear world and everyone in it... It’s hard to always laugh when you don’t know that people find so funny.” 46

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Também vítima do mal-estar, a personagem de Marilyn demonstra uma profunda insatisfação em diversos momentos, principalmente naqueles em que está com Charles Chaplin, o seu marido, interpretado por Denis Lavant. Ele é um abusador, fazendo-a sofrer física e psicologicamente. Os instantes em que Marilyn aparenta bem-estar são aqueles em que ela está longe dele e, mais especificamente, próxima de Michael. Ambos parecem entender a dor e a solidão um do outro. Todo o jogo de satisfação faz transparecer um fingimento, como o próprio encargo de sósia das personagens; uma “maquiagem” como tentativa de disfarce diante do real desprazimento. Mas há, nesse disfarce, o esgotamento. A relação de Marilyn com os dois pólos maniqueístas de Michael e Chaplin, respectivamente o bem (inocência) e o mal (sadismo), confronta a própria personagem dentro de seu núcleo narrativo: ela não consegue se desvencilhar do apego impedoso com o seu marido, para fazer fluir a possibilidade de crescimento benéfico na amizade com o outro. O “trio” é o único escopo romântico da narrativa, não se firmando, no entanto, em uma objetividade explícita entre os sósias de Monroe e de Jackson; pelo contrário, a flutuação impassível da relação de ambos sugere aberturas sutis de afeto, como no momento em que os dois estão sozinhos no quarto e partilham do mesmo morango que mordem, uma maneira bastante simbólica de insinuar um beijo. Embora seja difícil definir quando exatamente a fruta adquiriu nas artes uma simbologia, no cinema, com mais popularidade, o morango tomou retoques de sexualidade após filmes como Tess (1979), de Roman Polanski, e 9 e ½ Semanas de Amor (1986), de Adrian Lyne, em que há cenas sensuais com o uso da fruta. Nas artes, “[...] A delicada fruta em formato de coração sempre denotou pureza, paixão e cura. Ela tem sido usada em histórias, na literatura e nas pinturas ao longo do tempo”27 (BANKS; WOLFORD, online, tradução nossa)

27 “The delicate heart-shaped berry has always connoted purity, passion and healing. It has been used in stories, literature and paintings through the ages”. Citação extraída do site < https://web.extension.illinois.edu/strawberries/history.cfm>, da Universidade de Illinois. 47

Figura 13: Michael e Marilyn juntos no quarto

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

O sentimento de angústia parece tomar proporções mais significantes na narrativa quando uma das ovelhas do rebanho que o grupo cria morre após ser infectada misteriosamente. Após isso, a atenção dos sósias sobre os bichos recai na aflição de ter que sacrificá-los. Nisso, a decadência de uma fagulha esperançosa sugerida no início da transição/capítulo começa a desmoronar aos poucos. Não seria apelativo relacionar as ovelhas à parábola bíblica ou qualquer alusão ao campo religioso cristão, uma vez que Mister Lonely (2007) sugere no próprio título e tema a solidão de um ser – que poderia ser a ovelha perdida – e insere outro núcleo de tese religiosa, com um padre e freiras. Mais à frente nos debruçaremos especificamente sobre esse outro eixo narrativo que se desloca do conjunto principal do filme. Korine enquadra em planos estratégicos o espectador em uma perspectiva de personagem dentro do filme, como na cena em que o grupo se reúne em uma cerimônia de jantar liderada pelo Papa. A câmera, posicionada em paralelo à altura dos sósias que estão sentados à mesa, se situa no ponto extremo oposto do Papa, que ocupa lugar de destaque. Assim, a impressão que dá é que também ocupamos um lugar na mesma e participamos do jantar. Em zoom, nos aproximamos discretamente do líder da cena que conduz o seu discurso sintomático a dois motivos que fogem à realidade palpável: um brinde às ovelhas, sob a justificativa de que “Essas ovelhas não tiveram a escolha de serem humanos como nós somos”28 (KORINE, 2007, tradução nossa). A própria natureza do ser animal irracional nega

28 “These sheep did not have the choice to be human as we are”. 48 o vazio de uma suposição alternativa incabível entre ser ovelha ou ser humano. Também esgota a metáfora da fé – tomada por aqueles que seguem – como guia para a vida eterna. O brinde ainda celebra o segundo sintoma de esgotamento. Nas palavras da personagem: “Aos sonhos que sonhamos, meus amigos. Aos sonhos que nos fazem ser quem somos. Aos sonhos que nos permitem encontrar uns aos outros, buscar refúgio e pausar para o conforto”29 (KORINE, 2007, tradução nossa). Nesse sentido, o sonho, abstração da mente, toma o lugar da fantasia e sustentação da materialidade humana na escolha pela atividade da imitação: ela permite que eles, os sósias, tenham a liberdade de ser quem supostamente “são”, que se encontrem e busquem alternativas de escape, como o é o próprio exercício de imitar outra pessoa/personalidade. É interessante observar o uso do pronome relativo do inglês who, comumente utilizado para referenciar pessoas. Dessa forma, o brinde também serve como agradecimento aos sonhos – pessoas, sejam elas reais ou fictícias – que permitiram e permitem o espelhamento em outras, no desempenho de sósias. A celebração continua com uma sugestão desviante da moral social atribuída a um Papa – assim como em outra cena que o exibe sugestivamente na cama com a Rainha Elizabeth. A personagem sugere que fiquem bêbados, em suas palavras, “Aos sonhos que nos impulsionam. Aos sonhos que nos mantêm bem. E finalmente aos sonhos que nos unem aqui, esta noite, uns com os outros”30 (KORINE, 2007, tradução nossa).

Figura 14: Jantar dos sósias

Fonte: Mister Lonely (2007, KORINE)

29 “To the dreams we dream, my friends. To the dreams who make us who we are. To the dreams that allow us to find one another, to seek refuge and to pause for comfort”. 30 “To the dreams that propel us. To the dreams that keep us well. And finally to the dreams that unite us here, tonight, with each other”. 49

3.3.“THRILLER”: DA LUZ À SOMBRA

A outra música de Michael Jackson que abre um capítulo/transição do filme, dá nome a um dos maiores sucessos do cantor. Na letra, os versos abrem com o prenúncio de que “É quase meia-noite / Algo maligno está espreitando no escuro”31. A própria tela que apresenta o título da transição é completamente escurecida, para reforçar a sugestiva mensagem. Nessa passagem, o grupo se prepara para um grande show de perfomances, cujo próprio produto de consumo são eles em suas atividades de imitação. Bauman, em seu livro Vida para consumo discursa sobre o fenômemo de conversão das pessoas em produto. Ele diz que

Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade. Tornar-se e continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupação do consumidor, mesmo em que geral latente e quase nunca consciente (BAUMAN, 2008, p. 76)

Como suspeita de levantamento financeiro da comunidade, podemos interpretar o espetáculo como atividade para movimentações lucrativas do grupo, já que em nenhum outro momento somos apresentados a qualquer outra fonte que justifique o bem-estar – pelo menos financeiro – do castelo em que vivem. Nas ruas de algum lugar não apresentado, por onde circulam pessoas em tarefas cotidianas, podemos ver Michael, Abraham e Os Três Patetas anunciando o show em um alto falante e panfletos. Sabemos que até o momento, o grupo mantinha a expectativa do espetáculo na construção de um teatro para a apresentação. Uma cena bastante curiosa e simbólica nessa passagem é a comoção dos imitadores com o mau cheiro do Papa. Enquanto Madonna tenta ensinar a Abraham Lincoln estratégias que diminuam sua ansiedade sobre o show, a câmera em plano americano se movimenta em travelling32 lateral, até chegar ao sofá onde está deitado o líder religioso e o pequeno Buckwheat, que alarma sobre o seu odor. Logo o conjunto se reúne em volta e reproduz em uníssono a frase “O papa fede”33 (KORINE, 2007, tradução nossa). O corte a seguir exibe em plano aberto a criança esfregando as costas do Papa que chora em uma banheira. Outro corte

31 “It’s almost midnight / Something evil’s lurking in the dark”. Música Thriller, do álbum Thriller, de Michael Jackson. 32 “Tecnicamente, o travelling acontece quando a câmera é montada sobre um carrinho e desliza sobre trilhos. Isso permite que ela se mova suavemente ao longo de um trecho prefixado”. (SIJLL, 2017, p. 218, grifo do autor) 33 “The Pope stinks”. 50 e percebemos uma espécie de ritual dos sósias com roupas de proteção. O conjunto dos planos é metafórico e abre margem para múltiplas associações, uma delas é interpretar o Papa como a metonímia da Igreja, instituição que aplica dogmas muitas vezes discriminatórios sob a justificativa de uma religião, e que, por isso, necessita de reparação histórica. Outra leitura possível é interpretar o banho como tentativa de limpeza dos males sociais, tomadas em matéria pela figura religiosa de compaixão e misericórdia.

Figura 15: O banho do Papa

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Sob a direção de iluminação dos Três Patetas, podemos assistir ao espetáculo dos sósias no palco, que exibe a pintura de ovelhas com asas e o letreiro de homenagem “Em memória”34. É paradoxal perceber que o encargo dos três irmãos “idiotas” se dirige a atividades que exigem habilidade e atenção, e são eficientemente executadas por eles. Assim, Korine atribui uma nova roupagem às personalidades de inspiração. Acompanhamos a cena em um jogo de luz e sombra que faz juz à transição de capítulo no filme: a apresentação acontece sob os artifícios, ao passo que esconde na escuridão o desagrado e o mal-estar. Logo sabemos o motivos mais objetivamente: o show fracassa na bilheteria com o público contável de sete pessoas que aplaudem antipaticamente. O que mais interessa, no entanto, é a fala da Rainha Elizabeth que encerra o espetáculo, dita diretamente para a câmera, causando o efeito de quebra da quarta parede – quando a personagem fala diretamente com o espectador/leitor. Nas palavras dela:

34 No original, “In Memorium”. 51

Obrigada a todos por virem esta noite ver a nossa performance, o nosso grande espetáculo. Nós somos apenas humildes imitadores, pessoas normais como vocês, e sem vocês, não seriamos nada. Nosso objetivo, como sempre na performance, é tentar entretê-los e buscar a beleza que é a vida, o esplendor e poesia de tudo isso. E como diz a música ‘Há um paraíso, um paraíso quando dançamos juntos, você e eu, de rosto colado. Obrigada. E lembre-se, não há almas mais verdadeiras do que aquelas almas que personificam. Pois vivemos entre os outros a fim de manter vivo o espirito da admiração. Obrigada, obrigada. Deus esteja convosco.35 (KORINE, 2007, grifo nosso)

Podemos ler a citação como sugestão do próprio fazer cinematográfico enquanto exercício performático de mímese, reforçado pela letra da música de O Picolino (1935) . O filme, inclusive o próprio Mister Lonely (2007) seria mais do que uma obra de comunicação por terceiros. Ele em si se abre e se encerra como objeto de performance: aquele que, através de suas ferramentas, se utiliza de outros para compor a sua exibição e ação narrativa. É interessante perceber que isso aflui autenticamente dentro da diegese, a partir de motores de significação: o filme como ferramenta de reprodução/imitação; a narrativa ficcional que se espelha em uma fonte real; as personagens que simulam trejeitos e caricaturas outras; e, por fim, a estratégica maneira de comunicar a mensagem através da quebra da quarta parede, assim confluindo diretamente na possibilidade entre o real e o ficcional. Os indícios de desagrado se agravam quando percebemos o uso exacerbado de sombras no filme, o que leva a acreditar em um apagamento metafórico da euforia antes representada pelas luzes e cores mais vibrantes. Mas o sentimento de angústia também se acentua em palavras, quando a personagem de Monroe confessa a Michael estar fraca e, sugestivamente, relembrar o sacrifício das ovelhas, fazendo uma comparação entre a morte e a vida: “Não demora muito para morrer, eu acho. Não tanto quanto demora para viver”36. (KORINE, 2007, tradução nossa) Convenientemente, Marilyn é encontrada morta após o show fracassado do grupo de imitadores para a pequena plateia que, sequer, preencheu o pequeno espaço. A causa da morte é suicídio. Temos sugerido, portanto, simbolicamente, uma combinação significativa de aparente consequência: a apresentação fracassada, acrescida de um relacionamento abusivo, que levam à exaustão e esgotamento da vida. Cabe enfatizar, em vista disso, a indisposição e mal-estar das

35 “Thank you all for coming out tonight to see our performance, our grand show spectacular. We are but humble impersonators, regular people like you, and without you, we would be nothing. Our goal, as always in performance, is to try entertain you and search out the beauty that is life, the splendor and poetry of it all. And, like the song says, ‘There’s heaven, heaven, when we dance together, you and I, cheek to cheek’. Thank you all. And remember, there’s no truer souls than those souls who impersonate. For we live through others in order to keep the spirit of wonder alive. Thank you, thank you. God be with you all.” 36 “It doesn’t take long to die, I think. Not as long as it takes to live”. 52 personagens. A iluminação da cena é conduzida apenas por lanternas que os sósias carregam, iluminando parcialmente o rosto, o que faz lembrar imediatamente o estereótipo apelativo utilizado nos filmes de horror e suspense.

Figura 16: Marilyn morta

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

3.4.“YOU ARE NOT ALONE”: O RETORNO

Após o fatídico episódio, Michael tem um acesso de lucidez ou acepção da realidade. Ora, se Marilyn era o escape romântico e afetivo para a personagem, sem ela, não haveria qualquer sentido de continuar no castelo. Novamente, outro esgotamento: ele decide, com a morte de sua amiga, buscar por si e cobrar sua própria identidade. O plano de passagem no filme exibe Michael centralizado sozinho no banco de uma praça, rodeado por pombos. As cores dessaturadas das árvores permitem a focalização do amarelo do figurino do sósia que contraria a euforia sugestiva da cor primária. No entanto, o acesso pelo retorno a si não permite o esquecimento de uma fagulha de esperança no intento pelo bem-estar ou, pelo menos, o mínimo de conforto.

53

Figura 17: O retorno de Michael

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

Como cada música escolhida para intitular as transições carrega algum significado na narrativa, essa parece ser uma homenagem à personagem de Marilyn. Na letra, o eu-lírico assume a solidão e “dependência” de uma outra pessoa nos versos “Você não está aqui comigo / Você nunca se despediu / Alguém me diga por quê / Você teve que partir / E deixar meu mundo tão frio?”37. Rapidamente conseguimos associar o sentido à partida da amiga de Michael, e rompimento do único fio condutor afetivo no núcleo. O regresso ao ponto inicial da narrativa se sustenta em um nível espacial, já que o protagonista retorna a Paris. Alguns elementos inseridos visual, sonora e verbalmente legitimam significados aqui discutidos, como o momento em que Michael está em um ônibus, em uma posição à frente de dois bêbados vestidos com chapéus com a palavra Idiota/Burro38. A associação à morte de Marilyn ressurge quando um deles diz “Uma estrela morre no céu todas as noites, e todas as manhãs uma nova estrela nasce [...]”39 (KORINE, 2007, tradução nossa). Podemos, com a sugestiva citação, levantar a hipóstese de uma morte simbólica de

37 “You’re not here with me / You never said goobye / Someone tell me why / Did you have to go / And leave my world so cold”. Música You are not alone, do álbum HIStory: Past, Present & Future, de Michael Jackson. 38 No original, “DUNCE”. 39 A frase é dita em francês, mas legendada em inglês: “A star dies in the sky every night, and every morning a new star is born […]”. 54

Michael. A música escolhida para guiar sonoramente a cena que se forma em cortes para planos na casa da personagem, também é bastente significativa. Podemos destacar, por exemplo, um dos versos em que o eu-lírico diz “A minha vida é a metade do caminho andado / e eu ainda não encontrei minha saída dessa noite”40. Enquanto a canção segue tocando, Michael encara os rostos dos outros sósias pintados em ovos por ele mesmo, até ser aconselhado pela ilusão/delírio de conversar com o espírito de Monroe, a seguir o seu próprio destino. É interessante destacar o movimento técnico escolhido para o momento: a câmera passa em travelling lateral da esquerda para a direita, tal qual a direção natural de leitura, e depois volta da direita para a esquerda com um efeito de computação gráfica que sobrepõe nas pinturas os rostos reais das personagens, ainda que essa colocação soe paradoxal, já que estamos falando de um artifício virtual que simula a realidade. Esse é o único instante em que o diretor usa – pelo menos às vistas mais evidentes – o artifício gráfico no filme. O protagonista decide, por conseguinte, reencontrar o seu empresário, Renard, que reaparece como um “personificador” do espírito contemporâneo, aquele que cobra a atividade produtiva no seu contexto e ambiente de oferta, no caso, a imitação da personagem nas ruas e em eventos. Nesse momento, o sósia do cantor já assume outro visual: o seu cabelo está cortado e sua camiseta não é a usada enquanto figurava o cantor. Em uma última conversa com Renard, a personagem – que aliás continua não identificada por nome – diz estar “acabada”, exausta; ele diz que quer viver como alguém normal, viver a sua própria identidade, ainda que assumidamente não saiba qual é e precise descobrir. O seu empresário, no entanto, confronta com essa ideia julgando ser impossível, sob a desculpa de já ter visto diversas outras pessoas tentarem, sem sucesso. A última cena do protagonista, agora decidido a buscar pela própria identidade, o coloca perdido e confuso entre pessoas e carros no que aparenta ser uma manifestação ou comemoração de algo nas ruas de Paris. Aliado à narrativa visual facilmente compreensível, temos o auxílio da fala do personagem, como a continuação e encerramento do seu monólogo – e início de sua jornada, dependendo da perspectiva. O que ele diz é a verbalização e representação do mal-estar, da solidão e da confusão não apenas de si, mas genericamente, das outras personagens. Claro, a metáfora acontece em diálogo com o contexto real de combustão e bagunça contemporânea. Nas palavras do protagonista:

40 “My life, it’s half the way travelled, / and I still have not found my way out of this night”. Música My Life, do álbum My Life, de Iris DeMent. 55

Há pragas em todo lugar. Há doenças e moléstias que estão em todo lugar. Todo mundo tenta se esconder dessas coisas: da escuridão e das sombras. É só uma questão de tempo até que encontrem você. Eu sei disso. Eu não posso fugir disso. Não posso me esconder disso. Não há lugar para ir. É meu desejo abraçar isso... ser sozinho no meio da multidão. Sei que isso é uma ilusão, um sonho. Tem de vir um fim. Nada tão bom dura tanto tempo. Posso ver a esperança nos rostos de todo mundo. Sei que todos eles estão buscando por algo. Todos eles estão perseguindo um grande sonho. Cada um deles quer o melhor para si mesmo. Todos eles estão procurando por respostas. O que eles não percebem é que já encontraram. Eles encontraram-na um no outro. E, como sempre, o mundo exterior está esperando por nós. Esperando pacientemente para nos levar para longe.41 (KORINE, 2007, tradução nossa)

Figura 18: O protagonista perdido entre os carros e as pessoas

Fonte: Mister Lonely (2007)

3.5.O CORPO ESTRANHO: OUTRO NÚCLEO

Não esquecendo, o outro núcleo, embora não aparente ter relação com o núcleo mais tradicional que conseguimos identificar como principal, posiciona a narrativa em uma linha similar de significação. O grupo de freiras liderado por um Padre42, busca, também, um objetivo: a provação da fé como um propósito maior e de obtenção de bonificação por esforço moralista, o que chega ao limite do fanatismo e à beira da fantasia.

41 “There are plagues everywhere. There is sickness and disease that is everywhere. Everyone tries to hide from these things: the darkness and the shadows. It is just a matter of time till it finds you. I know that. I cannot outrun it. I can’t hide from it. There is nowhere to go. It is my wish to embrace it… to be alone in the middle of the crowd. I know this is all an illusion, a dream. It must come to an end. Nothing to good lasts too long. I can see the hope in everyone’s faces. I know they’re all searching for something. They’re all chasing a great dream. Each of them wants to better themselves. They’re all looking for answers. What they don’t realize is that they have found it already. They have found it in one another. And, as always, the world outside is waiting for us. Waiting patiently to take us away”. 42 Interpretado por Werner Herzog, cineasta alemão e encorajador da produção cinematográfica de Harmony Korine. 56

As cenas do “corpo estranho”, como podemos chamar esse anexo paralelo, se mistura em momentos episódicos durante o filme, preenchendo toda a linha de duração. Primeiramente somos apresentados ao grupo de freiras, que são caracterizadas, a priori, no próprio figurino em tons claros, nas cores azul e branca. Podemos vê-las em atividades cotidianas, como brincadeira com crianças e animais, caminhadas pela comunidade e o banho em um bebê em um rio, como sugestão de ritual de batismo. Logo nos primeiros minutos, chegamos a um desvio da moral em um plano que exibe duas das freiras fumando cigarro escondidas. A escolha do diretor – ou, em uma perspectiva mais ampla, a que podemos chamar de “autor”, e assim englobar outros gêneros de produção artística – por colocar uma cena como essa pode levantar questões dentro da narrativa, como a atenção à expectativa quanto ao caráter das pesonagens. Assim, é interessante perceber e lembrar que detalhes podem ser levados em consideração dentro do conjunto da obra. A missão do grupo religioso se desloca da realidade na prática: arremessar alimentos de um avião para comunidades carentes já configura uma incompatibilidade com o exequível. O espectador é posicionado pela câmera no interior da aeronave, de maneira que pode acompanhar os comandos do Padre e a total negligência na segurança, o que acaba por ocasionar a queda de uma das freiras, que, inclusive, sobrevive, somando mais um ponto desviante da realidade. Para a cena da queda – que se transforma em sequências outras – Korine utiliza ângulos diferentes, planos movimentados e abertos que posicionam a personagem no centro da tela no grande espaço azul preenchido pelo céu., fazendo uma clara referência à série estadunidense A Noviça Voadora (1967). Novamente o recurso da voz off aparece, com a prece da freira a Deus: “Oh, Senhor, não me deixe morrer. Eu acredito, oh, Senhor. Deixe-me cair segura. Eu acredito em você. Nada temo. Pois você está sempre comigo, e é sua vontade que eu possa voar”43 (KORINE, 2007, tradução nossa).

Figura 19: Freira caindo do avião

43 “Oh, Lord, do not let me die. I believe, oh, Lord. Let me fall safe. I believe in you. I fear nothing. For you are always with me, and it is your will that I shall fly”. 57

Fonte: Mister Lonely (2007, KORINE)

Após o fato, grupo encara o “milagre” como uma missão divina, decidindo, assim, todas pularem da aeronave como teste irracional e devoto de credulidade. Podemos agora comparar o rebanho de ovelhas do núcleo dos sósias com o grupo de freiras que se “contanima” com a fantasia da vida eterna. Aqui, o resultado é um suicídio coletivo, também cabível na interpretação de um sacrifício, já que colocam suas vidas à justificativa de redenção a Deus. Novamente, a fantasia encara o real: em um primeiro momento, a impossível e utópica sobrevivência, logo depois, a cruel realidade. Também, a exaustão é dada por um viés religioso de escapismo da dor por apego ao credo que se esgota por si. Uma passagem que chama bastante atenção é a cena em que o Padre é destacado em primeiro plano frontal, na altura da câmera, como se simulasse uma fala direta para o espectador. Logo conseguimos lembrar e comparar comos monólogos ditos por Michael no outro núcleo, quando percebemos finalmente as aproximações nas divergências. A personagem diz:

Nós aqui na nação destruída estamos cansados e machucados. Nós fomos deixados aqui sozinhos sem nada. Fomos abandonados. Somos como vômito na rua em frente a um bar decadente. Fomos relegados ao fundo do barril e todos os nossos sentidos de amor e compreensão parecem ter sido perdidos para sempre. Para sobreviver aqui, temos que nos tornar como animais e seguir todo o senso de civilidade e compreensão. Como é possível que uma freira possa voar? Como é possível que ela caia de um avião e aterrise ilesa? Mas quem somos nós... quem somos nós para zombar dessas coisas? Quem somos nós para duvidar de tais milagres? Infelizmente, somos apenas vagabundos na sarjeta, aqui na nação destruída. Mas um pouco de fé pode nos levar muito, muito longe”.44 (KORINE, 2007, tradução nossa, grifo nosso)

44 “We here in the broken nation are tired and bruised. We have been left here alone with nothing. We have been abandoned. We are like vomit in the street outside of a seedy bar. We have been relegated to the bottom of the barrel and all our senses of understanding and love seem gone forever. In order to survive here, we have to become 58

Na citação, imediatamente conseguimos relembrar a justificativa do próprio Korine para a criação do argumento da obra, já destacado no início desta pesquisa. A fé/fantasia seria como um fio condutor para a vida. Todo o conjunto de outras cenas desse núcleo que se segue no filme exibe as freiras em seus testes de fé, pulando do avião e fazendo acrobacias com bicicletas, apenas acompanhando o núcleo dos sósias. A resolução da narrativa se dá em conjunto com a outra parte, a dos imitadores, e em paralelo à cena que abre o filme, e novamente podemos perceber a incompatibilidade e o desajuste de símbolos em cena: na abertura, Michael aparece com um macaco de pelúcia com asas, amarrado à pequena motocicleta que a personagem pilota; no fim, o plano exibe um homem correndo em uma pista de aviação ao passo que conduz com uma vareta o que parece ser um avião de balão, menor do que o seu próprio corpo, que não se sustenta no ar, sugerindo a queda do avião que conduzia o grupo de religiosos e, assim, antecipando a resolução do núcleo. Na transição para as cenas que encerram o filme, concretizamos o simbólico presságio com os destroços da areonave e os corpos espalhados em uma praia.

Figura 20: Cena de resolução

Fonte: Mister Lonely (KORINE, 2007)

O pandemônio pós-moderno, sem dúvidas, causou uma profunda mudança no cotidiano do sujeito, em se tratando de unidade, e da civilização, enquanto comunidade. Produção

like animals and we have to fore go all sense of civility and understanding. How is it possible that a nun can fly? How is it possible that she falls out of a plane and lands unscathed? But who are we... who are we to scoff at such things? Who are we to doubt such miracles? Alas, we are but tramps in the gutter, here in the broken nation. But a little faith can take us a long, long way”. 59 material em massa, informações saturadas a todo momento, crescimento tecnológico e outras características cobraram e continuam cobrando um preço no estado/situação do indivíduo que sente-se atraído pelas constantes ofertas atrativas. Esse boom de variedades concebidas diariamente e descartadas na mesma velocidade em que são lançadas promove um desarranjo nocivo ao sentimento do sujeito experimentado em graus maiores pelo que Freud (2011) chama de civilização. O excesso torna-se, ironicamente, a escassez; é quando pode-se ter tudo, mas ainda assim vivenciar um profundo mal-estar na desordem. Assim, resta a esse sujeito disfarçar o dissabor cotidiano com paliativos que ilusionam a curto-prazo essa condição, sendo a arte uma destas. Como Freud diz: “[...] As gratificações substitutivas, tal como a arte as oferece, são ilusões face à realidade, nem por isso menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que tem a fantasia na vida mental” (2011, p. 19). Dessa forma, a arte ganha o desempenho funcional de amenizar, através do poder ilusório na imaginação, os danos diante dos desagrados surgidos cotidianamente na experiência com o real.

60

4 ENTRE TANTOS, ALGUÉM?: ANALISANDO O ROTEIRO DE MISTER LONELY

Como discutimos no início desta pesquisa, o gênero roteirístico já foi (e em alguns casos, pode ainda ser) uma questão para o campo literário, mesmo que se vençam as miudezas dos obstáculos. Os problemas surgem no interior da forma até à superfície do conteúdo, postas à prova do valioso caráter da antiga arte da escrita. Como haveria de ser, o julgamento acontece frente às comparações com os gêneros tradicionais e obras canônicas, mas não resiste à libertária evolução cronológica que acompanha o mercado e atualiza conceitos críticos. As obras de Harmony Korine também vencem os caminhos singulares para se manifestarem na pluralidade das mídias: escrita, cinematográfica, pitoresca e musical. Como nos bastamos em discutir uma de suas peças escritas, consequentemente acabamos por passear pelas outras que se avizinham na forma. Dessa maneira, conseguimos perceber a valiosa apreciação do conjunto de um artista, e o quão isso pode contribuir para pesquisas e/ou levantamento bibliográfico, na ânsia de reforçar o Roteiro como gênero autônomo. Também percebemos nas leituras que se aventuram pelas obras do autor o ânimo pela experimentação, tanto de conteúdo quanto de forma, o que respinga em uma caracterização de sua produção artística como aquela que ousa. Provas disso são, por exemplo, as peças Gummo (2002) e julien donkey-boy (2002). Sobre elas, inclusive, podemos realçar outras pequenas amostras do que estamos discutindo, para que possamos, enfim, chegar à leitura de Mister Lonely (2008). Em Gummo (2002), a cena posterior à abertura descreve duas personagens que se encontram em um hospital, nomeadas genericamente de Papai e Cara negro45. Trata-se do pai de Solomon, o “protagonista”, e outro que, aparentemente, não demonstra clara influência na obra. O diálogo entre ambas dá pistas significativas de caracterização, já que são indicadas a paternidade de um e o trabalho do outro. Além disso, o cabeçalho e a rubrica do gênero permitem a identificação espacial e de ação das personagens, pela motivação organizacional para a transposição fílmica. Relativamente ao tema, podemos perceber a tendência de Korine em comicizar o trágico, como não seria diferente em uma coletânea que reúne outro trabalho intitulado de Piadas. Para exemplificar, destacamos o trecho:

INT. CAFETERIA DO HOSPITAL – DIA

[...]

45 No original, respectivamente, Dad e Black guy. 61

PAPAI

Há quanto tempo você tem sido um palhaço?

CARA NEGRO

Eu sou um ventríloquo.

PAPAI

Oh, legal!

CARA NEGRO

Quando eu adoeci algumas pessoas disseram que estavam felizes que eu ia morrer porque eu não era mais engraçado. Eu disse a elas que lamentava, mas minha mãe costumava idolatrar Al Jolson e eu também o amava bastante.46 (KORINE, 2002, p. 75

A passagem curta com as personagens cobre três páginas do roteiro que foram removidas na versão fílmica. No entanto, é possível encontrar em sites de vídeos pela internet recortes de planos que exibem o ventríloquo, indicando que as cenas foram gravadas e dispensadas na versão oficial. Talvez por extensão ou por questões semânticas, a opção do diretor reduziu a cena apenas à realização escrita. Outras passagens também sofrem alteração no roteiro, ou são apagadas quando postas em imagem em movimento, por exemplo o diálogo entre a personagem que o próprio Korine interpreta com o Anão47. Em julien donkey-boy, cujo enredo é sobre uma família com problemas de saúde mental, protagonizada pelo rapaz que dá seu nome ao título da obra, também conseguimos alcançar elementos interessantes da narrativa, como o espaço reduzido quase que integralmente à casa da família, o que agrava ainda mais qualquer sintoma perturbador. Quanto à forma, já levantamos a quebra do autor quanto à apresentação do roteiro: é escrito e descrito em três maneiras totalmente diferentes, até chegar à estrutura tradicional da escrita para o

46 “INT. HOSPITAL CAFETERIA – DAY [...] DAD How long have you been a clown? BLACK GUY I’m a ventriloquist. DAD Oh, that’s nice. BLACK GUY When I got a disease some people said that they were happy that I was gonna die because I wasn’t funny anu more. I told them that I was sorry but my mother used to idolize Al Jolson and I loved him very dearly myself”. 47 Outro apelido genérico para personagem. 62 gênero. Podemos interpretar as primeiras formas como performances dentro da própria narrativa da obra: são ensaios que flertam com o tema da esquizofrenia, uma vez que experimentam múltiplas configurações de concepção. Para exemplificar uma delas, destacamos os primeiros fragmentos enumerados organizadamente em Cenas, terceira forma de escrita do roteiro:

1. Texto escrito em caligrafia formal na tela preta. ‘... é que às vezes eu me sinto desorientado.’ O pico dramático agudo mais perfeito de uma cantora de ópera no refrão deve ser tocado sobre o texto, por um breve momento, e então cessa tão rápido quanto começou.

2. Sem créditos de abertura.

3. Um menino de dez anos de idade está sozinho no meio de um lago lamacento. Ele está vestindo apenas shorts. Ele está coberto de lama da cabeça aos pés. Ele está resmungando algo para si mesmo. Ele está segurando uma tartaruga grande de cabeça para baixo pela carapaça.48 (KORINE, 2002, p. 175, tradução nossa)

Os fragmentos acima esboçam muito do fazer roteirístico e cinematográfico: são indicações que saltam da palavra enquanto agente da escrita, para a imagem, segunda etapa de idealização e/ou realização estética. No terceiro, conseguimos ainda, por meio das indicações – a estrutura – de espaço, caracterização/modo, objeto de composição e ação, tatear o que é interior ao enredo – o conteúdo. Já no roteiro tradicional, é possível perceber uma variante comparativa: diferente de Gummo, Korine insere outro recurso formal bastante cinematográfico. Em diversos momentos a indicação CORTA PARA49 é colocada, sugerindo a mudança brusca de uma cena para outra, o que também é condizente com o tema narrado. No filme, inclusive, a ideia estética permanece com cortes rápidos, aliados a planos e ângulos e uma câmera que emula o VHS. Ainda se tratando da obra filmada e a título de curiosidade, ela faz parte do movimento Dogma 9550, idealizado pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Vintenberg, e cujo princípio se valeu da criação de um cinema mais realista e menos comercial.

48 “1. Text written out in formal hanwritting on black screen. ‘… it’s just that sometimes i feel disoriented.’ The most perfect high-pitched dramatic peak of a female opera singer in mid-chorus should be played over the text, for a short moment, then it ceases as quickly as it began. 2. No opening credits at all. 3. A ten-year-old boy is standing all by himself in the middle of a muddy pond. He is wearing only shorts. He is covered from head to toe in mud. He is mumbling something to himself. He is holding a large kicking turtle upside down by its shell.” 49 No original, “CUT TO”. 50 63

Os exemplos destacados nos dois roteiros servem para basilar as experimentações do multiartista. É interessante recortar fragmentos práticos das obras, e observá-los em detalhes, assim como o fizemos, para que possamos introduzir uma leitura mais aguçada da peça completa, assim conseguimos “tatear”, ainda que na superfície da rasa impressão, aproximações com o estilo e propostas do roteirista. Claro, é preciso o cuidado de não cair na falha da generalização, sob o risco de agrupar as produções do artista em um conjunto ideal, mas incompatível, desrespeitando as minúcias e particularidades de cada peça. Por isso, a pretensão de apresentar excertos serve para comparar presenças e ausências de elementos que formulam e refinam, possivelmente, um registro estilístico do autor. Dito isso, partiremos para a leitura do roteiro de Mister Lonely (2008), a fim de observar as nuances da escrita, a estrutura do gênero, as simbologias/metáforas para a construção narrativa e, indissociavelmente, relacioná-lo com a produção fílmica. Assim, consideramos o próprio roteiro uma obra individual em seu caráter e conteúdo, mas não descartamos a aliança convencional com a pós-realização, o que alguns julgam hierarquicamente, como já discutimos, prevalecente.

4.1.INVERNO51: A ESTAÇÃO MAIS FRIA DA SOLIDÃO

Como discutimos, o caráter essencial do gênero roteirístico permite naturalmente mudanças na transposição de mídias, da escrita para a audiovisual, ou vice-versa, como tem ocorrido com frequência recentemente. Primeiro por uma predisposição criativa do autor e/ou dos artistas envolvidos na concepção do trabalho; segundo em uma reflexão de formato, que também realça mutações isoladas, particulares e unicamente possíveis dentro de suas formas e, consequentemente, de suas configurações. Por exemplo, a caracterização das personagens no livro pode destacar com mais atenção detalhes que escapam à vista da imagem em movimento. Ou, em uma via contrária, o filme pode evidenciar e entregar com mais vaidade – por dispor de recursos visuais e sonoros – assuntos que a palavra escrita deixa subentendidos. Eis, portanto, uma abertura comparativa. No roteiro de Mister Lonely (2008), a primeira diferença que podemos destacar é na opção pela mudança de caracterização do protagonista. A cena inicial relembra Michael na pista, na pequena motocicleta, porém, vestido com um casaco azul de marinheiro, cabelos que balançam ao vento, e sem o macaco de brinquedo. No filme, a personagem traja uma camisa

51 No original, “WINTER”. 64 longa vermelha, usa capacete amarelo e óculos escuro, o que infere mais na temática de crise identitária, já que todo o rosto de Michael é coberto, impossibilitando qualquer margem de identificação. No que se refere à ambientação, o roteiro descreve a pista cheia de gelo ou neve, o que não se fixou no filme. Em termos de estética, se elaborarmos a imagem descrita à luz da subjetividade da palavra, com os elementos escolhidos para adjetivar a personagem, como o casaco no tom de cor frio, e de marinheiro, montamos a apresentação característica da solidão. O marinheiro é aquele encarregado por longas viagens marítimas, figura dramática de isolamento, já que está distante da terra; as cores referentes são frias, em tons azulados, como o próprio mar. Além disso, o gelo e a neve postos na ambientação reforçam a ideia de frieza da cena, sugerida como reflexo do interior da personagem. O roteiro é dividido em quatro partes – convenientemente as quatro estações do ano – não em nível estrutural de separação, mas acontece na continuidade, assinalados apenas pelos títulos em caixa alta. A primeira parte ou capítulo, intitulada INVERNO, se debruça na apresentação do protagonista, assim permitindo que o leitor se aproxime de qualquer identificação/afinidade. Michael é anunciado nas ruas de Paris, embora ele seja americano, o que faz saltar a pista de deslocamento da personagem, sugerida logo no primeiro diálogo:

HOMEM FRANCÊS (em francês) Posso ver o jornal? Michael olha para ele, como se surpreso por ter sido notado. MICHAEL Eu não falo francês. HOMEM FRANCÊS (em inglês) Posso ver o seu jornal?52 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 18, tradução nossa)

Como temática sazonal optada pelos autores, os elementos da primeira estação demonstram, conforme expomos acima, sinônimos de decadência e distanciamento, características que se colam à minúcia da narrativa, já que o tema geral trata, por vias de crise identitária, da solidão social. Michael, em um primeiro momento, estaria perdido, para além de uma questão interior, do âmago da personagem, também em uma representação de deslocamento territorial simbólico. Isso é reafirmado em outro diálogo que destacamos, ainda mais sintomático, em que Michael conversa desajustadamente com um árabe no dentro de um bar:

52 “FRENCH MAN (in French) May I see the paper? Michael looks at him, as though startled to be spoken to. MICHAEL Je ne parle pas français. FRENCH MAN (in English) May I see your paper?” 65

HABIB (em inglês, com sotaque francês) Olá, menino Michael. MICHAEL Olá. HABIB Você me compra cachorro-quente? MICHAEL Sim, eu sei. HABIB Sim? MICHAEL Sim. [...]53 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 20, tradução nossa)

Ambos os diálogos não apareceram na filmagem, assim como várias outras passagens que não caberia colocar aqui, pela quantidade. Assim, destacamos apenas fragmentos relevantes para a discussão da obra, como tem sido feito, porém, elucidadas as diversas mudanças do roteiro para o filme, interessantes de serem apreciadas em conjunto para fins de estudo sobre adaptação, que não é exatamente este caso. No decorrer do primeiro capítulo, encontramos outros acessos temáticos relativos ao inverno, a palavra que define o primeiro estágio da solidão de Michael, que recebe de seu empresário, Renard, o aviso de que “É apenas inverno. Nada demais acontece.”54 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 24, tradução nossa). A notificação sobre a estação fria recai sobre a introspecção do protagonista, até então sem amigos e deslocado na cidade de Paris. O recolhimento da personagem, aliás, perpassa locações. Diversas cenas apresentam no cabeçalho o interior de algum espaço, na maioria das vezes o seu apartamento, descrito, a priori, como lugar de caracterização. Michael encontra a sósia de Marilyn Monroe em “[...] uma rua de Paris, no ar frio da tarde.”55 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 28, grifo do autor, tradução nossa). O primeiro contato se alinha na aproximação de nacionalidade, quando Marilyn revela a ele também ser americana. Logo em seguida, Michael diz que mora “onde os imigrantes moram”56 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 29, tradução nossa), declarando, na fala, o seu deslocamento espacial. O registro pátrio das personagens configura traços identitários, pois reflete o conjunto imaginado de uma cultura, de uma nação, elaborados em face de um símbolo, assim, “[...] as

53 “HABIB (in English with a French accent) Hello Michael boy. MICHAEL Hello. HABIB You buy me hotdog? MICHAEL Yes, I know. HABIB Yes? MICHAEL Yes. […]” 54 “It’s just winter. Not so much happens.” 55 “[...] a Paris street, in the cold afternoon air.” 56 “I live where the imigrants live.” 66 identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (HALL, 2015, p. 30, grifo do autor). No entanto, o que parece fugir da exibição são atributos particulares, dados em nome de uma individualidade “anulada”, com a devida atenção ao risco no uso do termo, já que a simples opção pela imitação é de caráter arbitrário e, portanto, confronta em partes com a ideia de supressão, ao passo que também autentica a nulificação de uma personalidade “própria”. Ainda sobre o frio sazonal, a convite de Marylin, o roteiro indica que Michael se muda para a Islândia, em inglês, Iceland (junção das palavras gelo e terra) país conhecido pelas imensas geleiras. Outra mudança pertinente é a opção por outro país para o filme, no caso, a Escócia. Lá, o casal de amigos se junta aos outros sósias que vivem em conjunto. A última rubrica do capítulo encerra a estação invernal com a passagem para outra, com elementos efusivos: “Fogos de artifício estão explodindo no céu. Eles são muito espetaculares em cor e som”57 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 43, grifo do autor, tradução nossa). Anteriormente, a imagem pictórica criada para o capítulo era sempre fria, em tons azulados. Também não há muito registro sonoro, uma vez que a maioria das cenas eram interiores, na reclusão de Michael. A transição com a palavra fogos e com recursos de cor e som, acrescidos do advérbio de intensidade muito indica simbolicamente uma transformação de espírito para a narrativa, na entrada de uma nova estação.

4.2.PRIMAVERA: A ESTAÇÃO MAIS CALOROSA DA SOLIDÃO

O segundo capítulo inicia com a chegada das personagens no castelo, de carro, diferentemente do filme, em que atravessam o mar em um barco. A influência dos fogos – componente de luzes coloridas e temperatura quente – como metáfora para a mudança interior de Michael é tão sintomática que é sugerido na rubrica: “Podemos ver o reflexo dos fogos de artifício no rosto de Michael enquanto ele olha pela janela”58 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 43, grifo do autor, tradução nossa). Essa ideia é reforçada pelo foco no rosto da personagem, não nos fogos propriamente ditos. Conforme a primavera, estação que sucede o inverno, esse é o momento em que as personagens se reconhecem e se acomodam em conjunto, é o período em que florescem sentimentos de benesse, sob uma disfarçada aura de bem-estar mútuo. Como o grupo vive em

57 “Fireworks are going off in the sky. They are spectacular in color and sound”. 58 “We can see the reflection of the fireworks on Michael’s face as he stares out the window”. 67 uma grande casa – outra significativa mudança, já que no filme trata-se de um castelo –, a maioria das cenas acontece no interior da morada, sinalizadas no cabeçalho com a indicação do tempo, se é dia, tarde ou noite, para referências de iluminação, quando relativas à configuração técnica; ou para propósitos de desenvolvimento narrativo. As cenas externas acontecem em espaços anexados à casa, por se tratar de uma fazenda. Assim, a ambientação geral se resume, basicamente, em um único espaço: a residência dos sósias, que se desmonta em outros pequenos locais, como o teatro, o celeiro e o campo. Em termos de crescimento narrativo, a evolução acontece nos diálogos, quando podemos perceber traços de personalidade e comparações entre as personagens, como é o caso de Charles Chaplin e Michael, as duas representações de masculinidade em uma evidente luta de forças. Para exemplificar, destacamos um diálogo em que podemos perceber essa concepção:

EXTERNA. TEATRO – CEDO DA NOITE

Chaplin e Michael estão em uma plataforma no teatro parcialmente construído. Cada um segura um martelo em sua mão e há um pequeno recipiente cheio de pregos entre eles.

CHAPLIN Você sabe martelar, não? MICHAEL Eu não sei. CHAPLIN É muito simples, entende? Assim. Chaplin pega um prego e o martela rapidamente. CHAPLIN (continua) Agora você. Michael tenta martelar o prego, mas ele cai de sua mão e ele tem que pegar outro. Michael começa a martelar o prego, mas demora muito, já que ele segura o martelo próximo à cabeça.59 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 55, grifo do autor, tradução nossa)

Na passagem, o jogo de forças acontece em dois polos extremos, um de atividade (Chaplin) e outro de passividade (Michael). Enquanto um domina a habilidade, o outro se esquiva na inépcia. O duelo se potencializa no escopo sentimentalista da narrativa, uma vez que ambos representam o maniqueísmo afetivo na vida de Marylin, esposa de Chaplin, e figura romântica e sensual da feminilidade. Em outros momentos podemos perceber o crescimento na

59 “EXTERIOR. THEATER – EARLY EVENING Chaplin and Michael stand on a platform in the partially built theater. Each of them holds a hammer in his hand and there is a small container full of nails between them. CHAPLIN You can hammer, no? MICHAEL I don’t know. CHAPLIN It’s very simple, you see? Like this. Chaplin takes a nail and quickly hammers it in. CHAPLIN (continued) Now you. Michael tries to hammer the nail, but it falls from his hand and he has to grab another. Michael proceeds to hammer the nail, but it takes him a long time as he holds the hammer close to the head. 68 aproximação de Michael, em detrimento do afastamento moral do outro sósia, que, inclusive, chega a confessar ter problemas com o seu próprio caráter. Equivalente à primavera, o estereótipo tropical de representação beira a infantilidade, com vida e cores vibrantes. Conforme já discutimos no capítulo de análise do filme, por vezes o tom da obra alcança esse imaginário singelo e pueril, como na cena em que “Britney está empurrando Marilyn e Shirley em um balanço de árvore”60, ou quando “Podemos ver a casa à noite. Ouve-se a melodia dos insetos. Todas as luzes estão apagadas, exceto uma. Os vagalumes matizam a escuridão com luz”61 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 58, grifo do autor, tradução nossa). Há que se reparar na linguagem poética com que é descrita a formulação imagética na rubrica, com atenção especial à palavra sprinkle (matizar), do inglês, que pode ser traduzida, também, como regar ou borrifar, no caso, com luz a escuridão, no que se emprega, como efeito, uma antítese. Outra observação interessante é a utilização em alguns momentos do termo Hora Mágica62, frequentemente usado no jargão fotográfico/fílmico para se referir ao crepúsculo, horário em que a luz do sol é mais suave, menos agressiva, e tem uma colocaração dourada, ideal para tipos específicos de fotos e de cenas. Semelhante à cena do banho de lama no filme, no roteiro a cena é descrita com leves alterações simbólicas. A fonte/lagoa é “[...] rodeada de gelo e cheia de lama quente”63 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 60, grifo do autor, tradução nossa). Novamente, elementos de oposição reaparecem como recuperação de um sentimento anterior, o de frieza, que ainda resiste em conflito com o novo, o caloroso. Em termos mais práticos, pode representar, também, a transição de capítulos. Há ainda a possibilidade sugestiva de espelhar a relação entre o trio romântico Michael – Marylin – Chaplin. No jogo de forças, o gelo derrete contra a quentura da lama, cedendo espaço para a calidez. No diálogo entre os amigos, podemos perceber essa aproximação com mais evidência:

[...] MICHAEL (ainda encarando Marilyn.) Eu gosto da lama. Marilyn caminha até Michael. Ambos se encaram nos olhos. Os seios de Marilyn estão a centímetros de Michael. MARILYN Você gosta daqui? MICHAEL Sim.

60 “Britney is pushing Marilyn and Shirley on a tree swing”. 61 “We see the house at night. The chime of insects is heard. All the lights are off except one. The fire flies sprinkle the darkness with light”. 62 No original, “MAGIC HOUR”. 63 “[...] sorrounded by ice and filled with hot mud”. 69

MARILYN A lama é boa pra você. Ela pega um punhado de lama e joga em seu rosto. Ela esfrega em sua testa, depois em suas bochechas e finalmente em seus lábios. MARILYN (continua) Você é lindo.64 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 61, grifo do autor, tradução nossa)

Como se arrematasse o pensamento, logo em seguida, no quarto de Shirley Temple, a filha do casal, a personagem de Chaplin castra o tom pueril e inocente apenas sinalizado na narrativa com a sugestão intuitiva de separação de Marilyn, ao contar para Shirley, como se fosse uma história infantil para dormir, as suas divagações pessoais:

CHAPLIN (abafado, falando para a sua filha) Eu acho que foi o mais triste que eu já estive. Vendo-a se afastar de mim... rua abaixo. Eu a observei se afastar de mim sabendo que ela estava feliz... e em meu coração sabendo que ela estava caminhando para a vida de outro homem. [...]65 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 62, grifo do autor, tradução nossa)

Após essa “violência” contra a moralidade, outra violência acontece: o sacrifício das ovelhas, aliado à indignação do grupo. A cena se movimenta por diferentes locais onde estão distribuídos os sósias em tarefas domésticas, no interior da casa, ou na construção do teatro para a apresentação, na área externa. Cada um reage à sua forma, mas todos espantados, à primeira instância, com a invasão de homens que não fazem parte da comunidade – o corpo estranho entre eles –, e depois pelo ofício de matarem os animais inofensivos, sem aparente justificativa. Como já discutimos na análise do filme, há momentos na obra em que se beira a fantasia, a começar pelo núcleo das freiras, digno de destaque. Mas há também outros tratados estéticos que avançam para a concepção de uma ilustração delirante, como é o caso dessa cena descrita acima. Enquanto os gritos (símbolo da violência) acontecem, “[...] o tema de Vale do Arco-íris

64 “[...] MICHAEL (still staring at Marilyn.) I like the mud. Marilyn walks up to Michael. The two of them stare into one another’s eyes. Marilyn’s breasts are inches from Michael. MARILYN Do you like it here? MICHAEL Yes. MARILYN The mud is good for you. She scoops a clump of mud and pushes it onto his face. She rubs it over his forehead, then down his cheeks and then finally onto his lips. MARILYN (continued) You are beautiful.” 65 “CHAPLIN (hushed, speaking to his daughter) I think that was the saddest I ever was. Watching her walk away from me… down the street. I watched her walk away from me and knowing that she was happy… and in my heart knowing that she was walking to another man’s life. […]” 70 começa. Ainda conseguimos ouvir ocasionalmente gritos acima do som do toca disco”66 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 65, grifo do autor, tradução nossa). Para realçar a imaginação, um fragmento da música entra como fala: “Olha, olha, olha para o arco-íris. Siga o cara que segue seus sonhos”67 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 65, tradução nossa). Convenientemente, o filme referenciado, no título original, Finian’s Rainbow (1968), dirigido por Francis Ford Coppola e estrelado por Fred Astaire e Petula Clark, se enquadra nos gêneros Musical e Fantasia, por possuir uma trilha sonora cantada e carregar no enredo componentes de temática fantasiosa, como um duende. Posteriormente, novamente os versos são tocados, enquanto Marilyn foge dos braços de Chaplin, sugestivamente, em busca de seus sonhos. Em Mister Lonely (2008), essa fantasia percorre outros setores que não especificamente a inserção de componentes da ficção essencialmente infantil, como bichos irreais, bruxas, duendes e poderes mágicos. Ela acontece na improvável mistura – por vezes harmônica – de elementos inverossímeis, que hipoteticamente existem dentro da relação externa (do leitor) com a interna (da obra), ou, como afirma Todorov (2017, p. 37), “O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados”. Assim, não implica dizer que a busca no exterior seria necessariamente em suas fontes de criação, já que a literatura reage por si e para si, mas no aprazimento da troca com aquele que a contempla. Dessa forma,

A literatura não é representativa, no sentido em que certas frases do discurso cotidiano podem sê-lo, pois ela não se refere (no sentido preciso da palavra) a nada que lhe seja exterior. Os acontecimentos narrados por um texto literário são “acontecimentos” literários, e do mesmo modo que as personagens, interiores ao texto. (TODOROV, 2017, p. 66)

É muito importante perceber, também, que a opção por colocar a música dentro da própria narrativa, inclusive colocando seus versos como fala, ao invés de um recurso de trilha inserida/editada na pós-produção, além de implicar em questões monetárias de direitos autorais na externalidade burocrática da obra, abastece a própria significação interna da diegese, uma vez que parte dela para ela, em sua interioridade. Esse procedimento inverte o sentido da relação entre música e diálogo. Nos filmes musicais, as canções ocupam o lugar do diálogo ou até mesmo substituem um trecho narrativo, servindo como opção à utilização de uma voz em off

66 “[...] the theme song to Finian’s Rainbow, beings. We can still occasionally hear shouting above the sound of the record”. 67 “Look, look, look to the rainbow. Follow the fella who follows his dreams”. 71 que atualizaria o espectador. Aqui, ao contrário, a letra da canção é trazida para o diálogo. Adiante, em um encontro a sós com Marilyn, Michael revela o que podemos interpretar como um disfarce da angústia causada pela sua solidão/crise, ao mesmo tempo que, mais claramente, conseguimos perceber nisso a existência dela. O protagonista carrega consigo um gravador de voz, recurso tecnológico de memória e espelhamento. Nas palavras da personagem,

Eu sempre senti como se a vida passase muito rápido... pelo menos para mim... e essa é minha tentativa de desacelerá-la... sabe... Eu consigo manter os dias comigo... Consigo manter as pessoas comigo... Caos contrário, todas elas me abandonam. Eu não consigo lembrá-las da forma que quero lembrá-las.68 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 70, tradução nossa)

Além das cenas de monólogo que já apresentamos anteriormente, mantidas no roteiro e no filme, essa fala serve como a abertura da personagem de uma lacuna para a sua amada acessar o seu pensamento, já que, quando exposto em outros instantes, sob a forma de monólogo, apenas o leitor/espectador poderia ter conhecimento. Nisso, a relação das personagens se estreita, e a primavera metafórica do capítulo caminha para a consumação do vínculo passional entre Michael e Marilyn: o florescimento da paixão de ambos. Na cena, Marilyn lhe oferece uma cesta de morangos, tendo um discreto “não” – a moralidade contra a traição – sinalizado como gesto. Logo depois, o próprio Michael cede e pega uma fruta – a aceitação –, sendo prontamente beijado nos lábios e na testa. O encerramento do capítulo acontece em uma cena mantida em texto e rubrica para ambos os formatos, o roteirístico e o fílmico, com o grupo reunido na mesa de jantar, em celebração à vida das ovelhas sacrificadas, e aos sonhos que sustentam a vida. Liderados pelo Papa bêbado, todos bebem vinho, comem e se divertem. O álcool serve como paliativo para a dor da perda, assim como disfarce para o prenúncio de qualquer sintoma de esgotamento.

4.3.VERÃO69: A ESTAÇÃO MAIS EXAUSTIVA DA SOLIDÃO

Após o acesso rápido de bem-estar instaurado, a narrativa caminha para o que parece ser o capítulo dos acontecimentos, no sentido de que, em termos práticos e funcionais, as ações se desmontam em resultados, consequência de esforços. Não à toa, a estação escolhida para dar

68 “I always felt like life moves too quickly... at least for me… and this is my attempt at slowing it… you know… I get to keep the days with me… I get to keep the people with me… otherwise they all leave me… I can’t remember them the way I want to remember them. 69 No original, “SUMMER”. 72 título à passagem é a mais iluminada e quente, culturalmente estimada pela natureza proveitosa, e celebrada à exaustão, já que é o oposto do inverno, sinônimo de tristeza em países frios. Também é a estação que proporciona atividades e eventos ao ar livre, pelo comportamento orgânico do ar e da temperatura. Na narrativa, um evento em especial é preparado desde o início: a construção de um teatro para a apresentação do grupo de sósias. A introdução da passagem com o anúncio do show para o público já sinaliza a importância do episódio. No entanto, um efeito já aparentemente comum sugere encará-lo como fato: o jogo de forças opostas entre o frutífero e o infértil, a produção e o esgotamento. Novamente, uma sutil ligação na transição de capítulos é feita, uma vez que o anterior apontava para o progresso, e este, para a exaustão. Para exemplificar a concepção, destacamos o diálogo entre Sammy Davis Jr. e Lincoln, em que divulgam o espetáculo:

[...] LINCOLN Vamos. Vá em frente! SAMMY Ok... Ok... estamos convidando vocês para a nossa primeira performance. nós vamos fazer um espetáculo para vocês... um show incrível com apresentações incríveis... nós acabamos de construir um lindo palco, e eu e meus amigos... LINCOLN Vamos lá. Diga a eles quando e onde, pelo amor de Deus. Sammy tira o seu dedo do receiver, e o som de silêncio e estática é tudo que se ouve. LINCOLN (continua) Não há sequer ninguém ouvindo isso.70 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 82, grifo do autor, tradução nossa)

A citação aponta para o fracasso, mas não para a desistência. O receiver – traduzido como receptor, mas incorporado ao uso na língua inglesa – é um aparelho responsável por filtrar comandos, como o de voz, e propagá-los, assim, exercendo a função de rádio. No caso específico que destacamos, contudo, o aparelho não funciona, o que justifica disfarçadamente o insucesso da ação. No entanto, os sósias recorrem a uma alternativa “analógica”, assim como no filme, ao fazerem o anúncio pelas ruas de um subúrbio com um megafone. Outra sinalização de esgotamento é a exaustiva relação entre Chaplin e Marilyn, que toma agora uma nuance de misoginia. Já tratamos anteriormente do caráter rude e duvidoso de

70 “[...] LINCOLN Come on. Get to it! SAMMY OK… OK… we’re inviting you to our first performance. we are going to put on a show for you… an amazing show with amazing acts… we have just built a beautiful stage and me and my friends… LINCOLN Come on. Just tell them when and there for Christ’s sake. Sammy takes his finger off the receiver and the sound of dead air and static is all that’s heard. LINCOLN (continued) There’s no one even listening on this thing”. 73 um, em detrimento da passividade inocente da outra. Para ilustrar a cruel imagem de relacionamento abusivo, há uma cena em que o casal está em uma lagoa, tomando sol, e Marilyn pede que o seu marido não a deixe dormir, sob o risco de insolação. Um grande guarda-chuva é descrito como proteção de Chaplin, ao passo que “Vemos gotas de suor e umidade se formarem no corpo de Marilyn”71. Passado algum tempo, a personagem aparece em casa “[...] completamente vermelha e queimada [...]”72 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 84-85, grifo do autor, tradução nossa), indicando que foi esquecida sob o sol. Os outros sósias se comovem com a situação e, quando Shirley questiona o que houve, Chaplin responde que “Ela adormeceu no sol. Esqueceu de acordar”73 caracterizando o seu sadismo efetivado com as palavras de Madonna: “Aquele desgraçado. Ele a deixou queimar. Tenho certeza. Ele é um maldito sádico”74 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 85, tradução nossa). Posteriormente, na cama, Chaplin segue com o abuso físico e psicológico, ao pressioná-la a aceitar suas carícias, mesmo dada a situação de seu corpo. A descrição da rubrica – que acaba funcionando como narrador – aponta que “É aparente que a dor dela tanto o motiva quanto o excita”75 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 86, grifo do autor, tradução nossa). Em termos de construção técnica para a passagem fílmica, algumas observações da cena são importantes. A primeira são as indicações “VOZ DE MARILYN”76 e “VOZ DE CHAPLIN”77 ao invés de, simplesmente, seus nomes seguidos das falas. A variação é necessária porque sugere que no filme o recurso usado é a voz em off, ou seja, enquanto outro plano (imagem) acontece, o texto (voz/fala) também acontece em paralelo, mas não necessariamente interligados. O artifício pode ser usado como recurso estilístico para transição de cena, como é o caso. Outro elemento, desta vez essencialmente visual, é o uso do termo DISSOLVE78 para indicar que a cena passará por uma transição, constituída pela sobreposição de um plano a outro, no caso, para demonstrar passagem de tempo. Continuamente, a exaustão da personagem de Marilyn, a essa altura já apreciada como a outra protagonista, pela relevância e espelhamento de Michael, se agrava. No quarto com o amigo, ela confessa, chorando, o seu cansaço, e faz uma analogia com a morte das ovelhas, sintoma preocupante para o crescimento da narrativa. As personagens se assemelham para além

71 “We see beads of sweat and moisture begin to accumulate on Marilyn’s body”. 72 “[...] completely red and burnt [...]”. 73 “She fell asleep in the sun. She forgot to wake up”. 74 “That bastard. He let her burn. I’m sure. He’s a fucking sadist”. 75 “It’s apparent that her pain both motivates and excites him”. 76 No original, “MARILYN’S VOICE”. 77 No original, “CHAPLIN’S VOICE”. 78 No original, “DISSOLVE”. 74 da superfície das iniciais em seus nomes, aliás, fato pertinente. Parecem carregar dores equivalentes, o que os faz semelhantes e dependentes um do outro, quando Michael assume: “[...] Você é o motivo de eu estar aqui... de eu ter vindo”79 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 88, tradução nossa). Ou, seguidamente, quando concordam intuitivamente sobre o mal-estar, ao relembrarem a morte das ovelhas, como podemos verificar no diálogo seguinte:

[...] MARILYN (pausa) Eu ainda penso sobre aquelas ovelhas. MICHAEL Sim. MARILYN Penso nelas levando tiro, morrendo, sabe? MICHAEL Sim. RAINHA Bem, não demorou muito. Elas não sofreram. Tenho certeza. MARILYN Não demora muito para morrer, acho que não, não como para viver.80 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 88-89, grifo do autor, tradução nossa)

Adiante, uma mudança muito expressiva do roteiro para o filme, é na cena do banho do Papa, discutida detalhadamente no segundo capítulo deste trabalho. No livro, a personagem é carregada para a chuva após o alarde incentivador e rítmico de Buckwheat, como se fosse uma brincadeira ou jogo de palavras: “Pega o Papa! Pega o Papa! [...] Pega o sabão! Pega o sabão!”81 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 91, tradução nossa). Após o convite, outros sósias se juntam para um banho em grupo, a priori, em função da higienização do líder religioso, mas convenientemente encerrada em uma limpeza coletiva, descrita como um momento em que “Todos estão extremamente felizes”82 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 92, grifo do autor, tradução nossa). A chuva, por se tratar do elemento água, carrega em si a simbologia natural de representar purificação – vide os rituais de batismo, por exemplo –. Também pode servir como metáfora para a fertilidade, tanto material quanto espiritual (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 237), e nisso, talvez caiba ainda a interpretação de renascimento, de uma nova vida que se pressagia. Como haveria de ser, o acesso de bem-estar alçado é rapidamente posto em alerta em

79 “[...] You’re the reason I’m here… that I came here”. 80 “[...] MARILYN (beat) I still think about those sheep. MICHAEL Yeah. MARILYN I think about them getting shot, dying, you know? MICHAEL Yes. QUEEN Well, it didn’t take too long. They didn’t suffer. I’m sure of it. MARILYN It doesn’t take long to die, I don’t think, not like it does to live”. 81 “Get the Pope! Get the pope! […] Get the soap! Get the soap!”. 82 “Everyone is extremely happy”. 75 uma gravação/monólogo de Michael, ouvida por Marilyn. Em termos de linguagem literária, destacamos o excerto com atenção para a poética empregada pelos autores, que, aliás, já foi sublinhada em outras passagens, provando o tratamento artístico e estético da obra, como na citação a seguir:

VOZ DE MICHAEL (do gravador) Enquanto ouvia os gritos de alegria subindo da cidade, ele se lembrou de que essa alegria está sempre em perigo. Que a praga nunca morre ou desaparece para sempre, que pode permanecer adormecida por anos e anos na mobília e em baús de linho; e que talvez chegasse o dia em que, para a ruína e a iluminação dos homens, ela despertaria seus ratos novamente e os enviaria para morrer em uma cidade feliz.83 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 95, grifo do autor, tradução nossa)

Na concordância temática do capítulo, a resolução se dá com um combo de esgotamento: o fracasso do show dos sósias, e o suicídio de Marilyn Monroe, ambos sutilmente prenunciados e conservados no roteiro e no filme. Assim como especificamos com mais detalhes os dois momentos no segundo capítulo, assim o faremos, também, na leitura da forma escrita. O primeiro fracasso, referente à apresentação do grupo, é descrito na forma de rubrica: “Finalmente, as luzes acendem sobre a plateia e revelamos um pequeno grupo de pessoas sentadas em seus assentos. Todos eles aplaudem, mas faz muito pouco barulho”84 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 99, grifo do autor, tradução nossa). A pequena mudança para a forma fílmica foi a remoção de um pequeno plano em que se exibiam do lado externo do teatro alguns poucos carros indo embora. O segundo esgotamento, a morte de Marilyn, a outra reconhecida protagonista da obra, é descrito em uma cena que se sucede:

Então, de repente, conforme eles se aproximam da grande árvore próxima à casa, o grupo para. Todos focam suas lanternas em um ponto. Nós recuamos para revelar: Marilyn pendurada pelo pescoço em uma corda. Vemos o corpo de Marilyn balançar suavemente no ar noturno, iluminado apenas pelas lanternas. Os membros do grupo encaram seu corpo em absoluto silêncio.85 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 101, grifo do autor, tradução nossa)

83 MICHAEL’S VOICE (from the recorder) As he listened to the cries of joy rising from the town, he remembered that such joy is always imperilled. That the plague never dies or disappears for good; that it can lie dormant for years in furniture and linen chests; and that perhaps the day would come when, for the bane and the enlightenment of men, it would rouse up its’ rats again and send them forth to die in a happy city”. 84 “Finally, the lights come up on the audience and we reveal a tiny smattering of people sitting in their seats. They all clap but it makes very little sound”. 85 “Then, all at once, as they approach the big tree near the house, the group stops. They all focus their flashlights on one spot. We pull back to reveal: Marilyn, hanging by her neck from a long rope. We watch Marilyn’s body sway gently in the night air, lit only by the flashlights. The members of the commune stare at her body in absolute silence”. 76

Conforme já dissemos e viemos exemplificando, a narrativa, dividida em partes sazonais, acompanha o ritmo de uma passagem à outra com saídas e entradas dramáticas, com rastros sugestivos de assunto. Assim, o VERÃO, capítulo cuja matéria apresenta pequenos acessos de bem-estar, em detrimento de uma significação maior, a do esgotamento, consequência da exaustão, cede lugar à última estação, a de morte e ressignificação.

4.4.OUTONO: A ESTAÇÃO MAIS TRANSFORMADORA DA SOLIDÃO

Símbolo de morte e vida, o outono derruba as folhas antigas das árvores para o surgimento de outras. Pode representar mudança de velhos hábitos para que sejam ressignificados. Assim o faz Mister Lonely (2008) no capítulo final da saga de Michael. O plano do protagonista andando na pequena motocicleta retorna na abertura da passagem, como uma recuperação da memória da personagem, tanto afetiva quanto espacial, com o retorno ao “lar”, ou pelo menos à referência inicial a que fomos apresentados: a cidade de Paris e, mais especificamente, o seu apartamento. Com o falecimento de Marilyn, a representação de espelho e a caracterização romântica de afeto para Michael, é marcado o retorno para uma tentativa de renascimento, em outras palavras, de reconhecimento de identidade. Na cena de regresso, a rubrica indica que “A canção ‘It’s too late’, de Carole King, começa a tocar”86 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 107, grifo do autor, tradução nossa). A música, que pode ter o título livremente traduzido como É tarde demais, é alterada para a versão fílmica, conforme já expusemos anteriormente. Versos da referida canção são inclusos como recurso de fala:

CANÇÃO ... que não pode ser negado, um de nós está mudando, ou talvez tenhamos apenas parado de tentar. E é tarde demais, baby, agora é tarde demais, embora nós realmente tenhamos tentado... Conforme Michael olha pela janela, podemos ver imagens noturnas de Paris. CANÇÃO (continua) ... Algo dentro de mim morreu, e eu não posso esconder, não posso fingir... 87 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 107-108, grifo do autor, tradução nossa)

À medida que a cena acontece com os versos da música, acompanhamos em recortes de cabeçalho e indicação de espaço Michael em planos diferentes: (1) a viagem no ônibus, (2)

86 “The song ‘It’s too late’ by Caroline King begins to play”. 87 “SONG … there can be no denying one of us is changing or maybe we’ve just stopped trying. And it’s too late baby, now it’s too late, though we really did try to make it… As Michael look out the window we see images from Paris at night. SONG (continued) … Something inside has died and I can’t hide and I just can’t fake it…” 77 subindo as escadas do prédio, (3) dentro do apartamento. Novamente, a fantasia ressurge quando a personagem encara ovos que pintou à mão com os rostos dos outros sósias e lhes dá vida com a imaginação. Marilyn também reaparece na cena para um diálogo elucidativo – ainda que na imaginação – para o futuro da personagem:

[...] MARILYN Oh, não. É lindo aqui onde eu estou. A vida foi muito difícil para mim. Eu não fui feita para isso. MICHAEL Eu vou te ver novamente? MARILYN Claro que irá, Michael... Mas o seu caminho é diferente do meu... você deve continuar, Michael... continue procurando... não desista. MICHAEL Mas você desistiu. MARILYN Oh, não, Michael. Eu apenas segui o meu próprio destino... assim como você deve seguir o seu. MICHAEL Mas o que é? O que devo fazer agora?88 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 109, tradução nossa)

Os questionamentos retomam a crise identitária e existencial da personagem, agora relocada no status zero da narrativa, no início, novamente sem a presença ou interferência paliativa de outros, além do seu empresário, referência laboral e burocrática, em que se sustentava a justificativa profissional da imitação – e, portanto, duplicação – de uma persona em outra, no caso, Michael Jackson. Por este motivo, o protagonista reinicia o ciclo da saga reencontrando Renard no escritório, completamente descaracterizado: “Pela primeira vez vemos Michael sem sua fantasia. Ele está com roupas normais, seu cabelo está cortado e arrumado. É uma visão estranha. Agora ele se parece com todo mundo”89 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 109, grifo do autor, tradução nossa). Contrário à passividade acompanhada durante os outros capítulos, Michael reage a si e à pressão social tomada em corpo pelo seu empresário. A violência contra a identidade anulada da personagem em função de outra simulada chega à advertência de desgaste quando todos os outros referentes de imitação são apagados. Com isso, parece não mais haver sustentação em

88 “[…] MARILYN Oh no. It’s beautiful here, where I am. Life was just too difficult for me. I wasn’t cut out for it. MICHAEL Will I ever see you again? MARILYN Sure you will Michael… But your path is different than mine… you must keep going Michael… keep searching… don’t give up. MICHAEL But you gave up. MARILYN Oh no, Michael. I just followed my own destiny… like you must follow yours. MICHAEL But what is it? What am I supposed to do now?” 89 “For the first time we see Michael out of his costume. He is in normal clothes and his hair is cut and neat. It’s a strange sight. He now looks like everyone else”. 78 qualquer reagente conflitante, o que encaminha a narrativa para uma resolução aparentemente moral: a inútil fuga humana de si e, nisso, a sua própria caracterização de identidade naturalmente fragmentada e inacabada. No diálogo entre Renard e o protagonista, podemos validar essa concepção:

[...] MICHAEL Cansei. [...] Eu sou como todo mundo, agora. Sou apenas um cara normal. RENARD Sr. Normal... bobagem... por que você quer ser como todo mundo? Você não sabe que todo mundo é miserável. MICHAEL Tenho que tentar, é isso. RENARD Sim... bem, você é quem você é. Todos nascemos de uma certa maneira, e não podemos escolher. Então desculpe, eu nunca irei te apoiar nessa decisão. MICHAEL Tudo bem, você não precisa. RENARD Ah, quem é esse cara falando comigo agora? MICHAEL (pausa) Não sei. Ainda não tenho certeza.90 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 110-111, grifo do autor, tradução nossa)

Podemos, nesse momento, mencionar a proximidade existente entre as personagens e as celebridades que elas imitam. Marilyn termina morta, como a atriz, sobre cuja morte paira a dúvida do suicídio, após uma vida de inseguranças e relacionamentos tóxicos; Chaplin não esconde bem o homem angustiado por detrás da máscara do palhaço e nem as dificuldades no relacionamento amoro, como o ator real, que se casou quatro vezes com atrizes e passou por divórcios ruidosos antes de terminar seus dias ao lado de Oona O’Neill. O Papa e a Rainha permanecem relegados ao caráter vetusto e quase atemporal dos postos que ocupam. Mas Michael consegue quebrar esse encaminhamento fatal, no qual o representado parece exigir dos sósias que repitam suas vidas. Ainda que os problemas identitários da personagem se assemelhem àqueles aparentemente vividos pelo pop-star, ainda vivo à época, a barreira é quebrada. Decerto, a crise identitária da personagem protagonista é remontada, agora, em outra via mais pessoal, dado o abandono da interpretação fictícia. Oportunamente, ficamos sabendo

90 “[...] MICHAEL I’m finished. [...] I’m like everyone else now. I’m just a normal guy. RENARD Mr. Normal… bullshit… why do you want to be like everyone else? Don’t you know everyone else is miserable. MICHAEL I have to try, that’s all. RENARD Yes… well you are who you are… we are all born a certain way and we don’t get to choose. So I’m sorry I will never support you in this decision. MICHAEL It’s OK, you don’t have to. RENARD Ah, who is this guy talking to me now? MICHAEL (beat) I don’t know. I’m not sure yet. 79 de forma sugestiva em outro momento que o nome Michael, no entanto, resiste como informação autêntica de pertencimento, quando o próprio reivindica-o para além do paralelo de casualidade. Diferentemente do filme em forma, mas não em conteúdo, a última cena de Mister Lonely (2008) exibe Michael passeando à tarde sem rumo pelas ruas de Paris. Após observar uma mulher chinesa usar máscara cirúrgica, ele entra em uma farmácia, depois caminha até uma lixeira, joga o pacote e “Nas mãos de Michael, vemos uma máscara cirúrgica branca”91 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 113, grifo do autor, tradução nossa). Novamente a música Mr. Lonely começa a tocar, assim como no início de tudo, enquanto o protagonista está rodeado de pombos, sentado em um banco de praça, e “Não conseguimos ver a boca de Michael por baixo da máscara, mas parece que ele está sorrindo”92 KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 116, grifo do autor, tradução nossa). A rubrica encerra a narrativa e aponta para a dubiedade simbólica: a peça de uso para cobertura do rosto como representação da supressão de identidade, o regresso à imitação através da memória afetiva, ou, ainda, a proteção de uma identidade recém-descoberta contra os males do mundo.

4.5. A FÉ: A SUBSTÂNCIA MAIS PARALELA À SOLIDÃO

Conforme apresentamos e discutimos no capítulo de análise fílmica, o segundo núcleo da narrativa acontece em paralelo ao primeiro, ao passo que acompanhamos ambos com desdobramentos próprios e conexões sutis. O argumento, no entanto, é tomado em outra esfera de representação: figuras religiosas em funções socialmente morais. Também citamos e discutimos a justificativa de Harmony Korine como um possível escopo para a criação da obra, em que se sugere muito da fagulha essencialmente pessoal. A começar, identificamos o núcleo religioso como o desvio substancialmente fantasioso, a começar pelo embasamento abstrato da credulidade, convicção interior e inquestionável ao ser e, por isso, passível do avizinhamento imaginário. Senão pelos elementos insinuantes que beiram a temática infantil no núcleo dos sósias, a segunda parte se encarrega da predominância fantástica na narrativa. Sobre isso, a primeira cena descrita no roteiro e amputada do filme exibe as freiras no meio de uma floresta aberta, como em um ritual, em volta de uma garota com anomalias genéticas, caracterizada com membros do corpo invertidos. O grupo religioso bate palmas, sorri e desenha o ser estranho em um bloco de folhas acima da

91 “In Michael’s hands we see a white surgical mask”. 92 “We cannot see Michael’s mouth beneath the mask, but it seems as if he’s smiling”. 80 frase “deus, nós viemos aqui, para a floresta das lágrimas não derramadas, para que possamos ajudar seus filhos”93 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 10, grifo do autor, tradução nossa). Na primeira rubrica conseguimos identificar os três elementos motores do núcleo semântico: (1) a garota deformada como metáfora para o corpo estranho da própria parte narrativa; (2) as figuras religiosas como representações física e material da fé (3) em função de um propósito moral. Todos os três calcados em uma essência abstrata, a que chamamos de “fantasia”. Dissemos semântico por considerá-los internos à narrativa, em comparação distintiva com outro traço de configuração estrutural: a sequência de planos enumerados e intercalados com a interferência do núcleo principal, em que se situa a voz de Michael:

1. Um nativo subindo em uma grande árvore. 2. Uma nativa usando um almofariz para transformar uma planta em pasta vermelha. 3. Várias crianças nativas nadando em um rio escuro. 4. Um nativo usando um facão para cortar um pedaço de madeira. Está chovendo muito forte. [...]94 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 11, grifo do autor, tradução nossa)

Essa introdução alinha a primeira aproximação entre os dois eixos narrativos de Mister Lonely (2008), já que acontecem em paralelo, um como espelho do outro, em nível de organização textual, à luz da superfície sintática. Outros cortes/imagens com aberturas de signos interpretativos seguem na sequência intercalada, em que podemos destacar alguns elementos importantes de serem analisados, como um comprimido dado por uma freira a uma criança; um peixe que se debate debaixo da chuva, mas fora do rio/mar; um grupo de nativos abrigados debaixo de uma cabana de palha, enquanto chove forte. Se observarmos, unidades de uma mesma cena se opõem ou demonstram incompatibilidade: remediar/distorcer a realidade; o deslocamento da ordem natural; o esvaziamento de forças a esmo. Outra observação importante é a falta de identificação por nome das personagens, caracterizadas pelos seus papéis eclesiásticos, como FREIRA 1, FREIRA 2 e MADRE SUPERIOR, com exceção do PADRE UMBRILLO95, o líder religioso e único identificado pelo próprio nome. Por ser a figura autoritária na hierarquia, é através dele que se dá o ímpeto

93 “god, we come here, to the forest of unshed tears, so that we may help your children”. 94 “1. A native man shimmying up a large tree. 2. A native woman using a mortar to ground a plant intro a red paste. 3. Several native children swimming in a murky river. 4. A native man using a machete to cut a piece of wood. It is raining very heavily”. 95 No original, “NUN 1”, “NUN 2”, “MOTHER SUPERIOR” e “FATHER UMBRILLO”. 81 diretivo do grupo. Em termos de espaço, a maioria das cenas do núcleo são externas, variando entre poucas passagens internas, e se organizam em espaços subdivididos: a selva/floresta (que varia entre espaço aberto, igreja e cabana), o avião, a pista de voo e o céu. Referente ao tempo, todas as cenas – com exceção de apenas uma – se passam durante o dia, na variante de manhã e tarde, em que acontecem os voos do grupo. Já que ambas as versões da obra apresentam o mesmo caráter da narrativa, senão por algumas simbólicas alterações ou exclusões, como a que apresentamos logo de início, para evitar o risco de cair na repetição, seguiremos valorizando, nesta seção, feições de natureza escrita, como os diálogos e signos interpretativos à altura da palavra. Assim, elucidamos uma semelhança geral, e nos deteremos em especificidades necessárias. A cena que conduz todo o escopo simbólico do núcleo começa por posicionar unidades opostas em conjunto: a freira cai acidentalmente do avião, enquanto o padre fuma e braveja palavrões. Durante a queda, em que temos acesso através da voz ao pensamento da freira, acompanhamos uma prece. De um lado o pudor e comedimento de pureza religiosa, do outro o vacilo no desvio de moral, essencialmente humano. Como se respingasse ou quebrasse alguma parede dentro da diegese, o episódio milagroso de sobrevivência da freira marca a transição conveniente para entrada de Michael como personagem, posterior ao recurso de narrador em voz off. Anterior ao ocorrido, a motivação manifesta do grupo que conduzia o fio narrativo a um propósito/objetivo de desenvolvimento, se baseava no princípio moral de distribuição de cestas básicas para comunidades carentes. Após a queda “acidental” da segunda freira que misteriosamente sobrevive sob a justificativa de dádiva divina, o exercício de voo torna-se, no entanto, atividade recreativa para provação de fé. Assim, identificamos a substituição no intento e, portanto, outro fio condutor para a evolução do núcleo. Para exemplificar, destacamos a rubrica:

INTERNA. AVIÃO – DIA

Padre Umbrillo está novamente sobrevoando com o pequeno avião pela selva, desta vez um palito de dente pende de sua boca. Após sorrir para as freiras na parte traseira, três delas saltam juntas do avião, de mãos dadas enquanto pulam. [...] Enquanto as observamos, elas fazem várias manobras, ao mesmo tem que se mantêm seguras uma na outra.96 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 79-80, grifo do autor,

96 “INTERIOR. PLANE – DAY Father Umbrillo is again flying the small plane above the jungle, this time a toothpick hangs from his mouth. After smiling at the nuns in the back three of them leap from the plane together, holding hands as they jump. 82

tradução nossa)

A partir desse ponto, à vista de outros que assistem, fotografam e gravam vídeos, a prática torna-se performance e a fé torna-se espetáculo. Para saturar ainda mais a metalinguagem de uma mídia na outra, “A qualidade do vídeo muda e podemos dizer, pela forma como a imagem se movimenta e pela aparência do vídeo, que estamos olhando para a filmagem feita por um turista”. A visão seletiva posicionada no leitor/espectador permite que nos identifiquemos como os transeuntes admiradores. Dessa forma, os turistas estão para as freiras, assim como o palco está para o espetáculo. O ápice do envaidecimento surge no ímpeto de uma viagem a Roma, para conhecimento da figura eclesiástica superior, o Papa. Reunidos, com exceção da primeira freira a cair do avião e provar do milagre, informação deveras insinuante, o grupo sobe na aeronave sob o risco evidente de irregularidade no peso da carga. Conforme o voo acontece, começamos a acompanhar o desmonte do avião e o prenúncio de acidente. O jogo de forças ressurge entre a fé, com as orações das freiras, e a realidade, com a quebra da aeronave e o acidente iminente. Se a crença sustenta a fantasia, em Mister Lonely (2008) ela dura até o esgotamento frente à realidade. Em finais paralelos, conforme vemos a morte simbólica da figura de Michael Jackson, “Na penumbra, iluminada pela lua e pelo fogo, vemos a imagem perturbadora de uma freira flutuando sob a superfície da água”97 (KORINE, H; KORINE, A. 2008, p. 115, grifo do autor, tradução nossa).

[…] As we watch them they do various tricks, all the while keeping hold of each other”. 97 “In the dim light, lit by the moon and fire, we see the disturbing image of a nun floating beneath the surface of the water”. 83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme pudemos acompanhar durante todo o percurso deste trabalho, a literatura se apoiou por muito tempo em um conceito primeiro de arte estritamente escrita, dedicada à valorização de gêneros tomados até hoje como canônicos, por serem “inventivos” em tempos passados e terem consolidado um longo caminho enrijecido, dos que nos valemos continuamente como modelos clássicos. Passados ciclos de atualização temporal e, consequentemente, cultural, a tencionada definição tornou-se flexível, com a inserção de novos gêneros e experimentações de escrita, mas não somente, em uma via mais aberta, de manifestação artística, como o teatro e o cinema. Recursos internos e externos de reconhecimento literário foram, aos poucos, tomando contornos de modernização, dado o caráter de aprazimento imagético e sonoro, que legitimam passagens naturais e genuínas de mídias diversas, como a audiovisual. Em se tratando disso, o cinema ocupa lugar de relação essencial de empréstimo mútuo entre o livro e o filme. Por consequência, o gênero de escrita cinematográfica se insere em um campo de fazer imaginativo que movimenta sensores sustentados pela arte literária: a capacidade criativa e contemplativa da imagem virtual, o projeto e tratamento estéticos e a evolução poética do texto são elementos possíveis dentro do gênero roteirístico, há tanto tempo desprezado em uma escura e flutuante nuvem de incerteza, mas finalmente retirado para a luz da valorização dentro do campo literário. Diferenças como as que pudemos perceber entre os dois gêneros fortificam a ideia de autonomia artística e reforçam a necessidade de reconhecimento individual das peças. Podemos fazer um resgate de algumas passagens já discutidas durante o nosso percurso a fim de condensar mudanças do roteiro para o filme, como, por exemplo, a opção por alterar a caracterização da personagem protagonista, descrita no livro com um casaco azul de marinheiro e cabelos soltos ao vento, ao passo que, na grande tela, com camisa longa vermelha e capacete amarelo. Na cena de chegada ao castelo, a diferença se cruza, especialmente, na escolha por colocar as personagens, no filme, em uma canoa (figura 6), e em um carro, no caso do roteiro. Uma consideração muito importante para a evolução semântica da narrativa é a presença de fogos de artifício que ganha contornos simbólicos na imagem em movimento, quando Michael tem seu rosto focalizado no vidro do carro, enquanto reflete as luzes no céu, sinalizando uma mudança no interior da personagem. Outra cena significativa para ambas as formas é a do banho do Papa, descrita no roteiro como um momento coletivo, na interação

84 com os sósias do castelo, ao passo que no plano fílmico, consideravelmente esvaziado, apenas com a presença da figura religiosa e Buckwheat (figura 15). A cena que encerra a obra também elabora configurações distintas nos dois gêneros: enquanto no filme Michael é exibido perambulando à noite pelas ruas de Paris, fora da caracterização de sósia do pop star, vestido com trajes comuns, na idealização roteirística, a personagem fizaliza a narrativa com uma máscara cirúrgica branca, sinalizando um possível o retorno à persona criada sobre a sua própria identidade. As mudanças entre as formas apontam para um conjunto estético de perdas e ganhos que semânticos e sintátios e, com isso, também revelam riscos de comentários qualitativos, já que as alterações se encerram no próprio arbítrio e liberdade artística dos autores. Dessa forma, o que se pode garantir é o reforço na qualidade valorativa da obra em manifestações díspares, já que as mudanças permitem leituras diferentes e grandemente significativas em suas particularidades. Como discussão, os assuntos de embate identitário se deslocam, neste trabalho, das alegadas imprecisões quanto ao potencial literário do gênero roteiro e se refletem como temática no que tange à própria narrativa da obra que analisamos, tanto no filme quanto em seu roteiro. Mister Lonely (2007-2008) apresenta questões inerentemente essenciais para a revisita artística e – como espelhamento de produto social – humana, da relação do sujeito com o mundo. No filme, dispositivos de linguagem caracteristicamente cinematográfica, como a câmera (narrador seletivo), os planos, enquadramentos e ângulos de enfoque, os recursos sonoros, a fotografia e o ritmo da montagem são artifícios de narração consicentemente utilizados dentro de um projeto estético criado para a obra. Assim, a ficção da tela toma retoques de tratamento para aquilo que se pretende contar no enredo fílmico, longe do esmo meramente distrativo que possam alegar o caráter do cinema como produto puramente mercadológico e recreativo. Contrastantes com a possível afirmação, pudemos verificar passagens em que saltam oportunidades analíticas no aprofundamento artístico e criativo, por exemplo, no esmiuçamento interpretativo de símbolos e significados em cenas, excertos da obra fílmica, com o auxlílio dos recursos mencionados anteriormente e no amparo de estudos teóricos que estabelecem a consistência material do fazer cinematográfico, dessa forma, fundamentando a relevância do intento da pesquisa. No que tange ao roteiro, componentes particulares da escrita foram destacados para fins de investigação substancial do gênero. Identificamos, na estrutura, elementos tradicionais,

85 como o cabeçalho para indicações de tempo e espaço, a rubrica com descrições e sinalizações técnicas de cena para a iluminação, o plano/câmera de enfoque narrativo; e de conteúdo, com a ação e caracterização das personagens, além dos diálogos expressivos, diversas vezes apontados com o tratamento de uma linguagem essencialmente poética. Ainda que seguindo o molde convencional de formatação, constatamos que a obra apresenta requintes que fogem da feição puramente mecânica de esterelidade defendida por Field (2001) e Carrière (1996) sob a ótica mercadológica do sucesso. Pelo contrário, é possível perceber um projeto artístico para além de um futuro destinado ao esquecimento frustrado do livro. Como obra literária, os compontentes tangem para a figuração elaborada da significação ao longe do tratamento vazio e superficial da palavra a esmo da representação. Se na linguagem há o tratamento estético do filtro criativo, há, portanto, camadas de estrutura e conteúdo eleitas para o aprofundamento analítico da obra. Assim, chega-se finalmente, à performance da língua enquanto via do fazer poético. As identidades contemporâneas – ou a falta delas – revogam tentativas de estabilidade, não apenas em nível de rotulação de peças de arte em categorias de reconhecimento, como é o caso do roteiro cinematográfico e da literatura, mas também em nível humano, individual e social. O argumento da narrativa parece servir como crítica à condição do sujeito redimensionado em um contexto de aceleração produtiva, em que a ordem está no desordenamento de fatores. As personagens, que anulam suas características pessoais em função da perfomance caricata de outras, denunciam um tempo e espaço de passibilidade fluida: não há identidade, há representações do que se ensaia como uma identificação simbólica. É mais sobre estar, do que sobre ser. A angústia e o mal-estar experienciados pelas personagens tomam a proporção de conjunto, quando todas são enquadradas em um mesmo espaço e reconhecidas por grupo/comunidade, outra alegoria para a gama conjuntiva que admitimos como sociedade. As passagens, ora tomadas em capítulos com títulos de músicas expressivamente significativos; ora em transições sazonais simbólicas para o espírito da narrativa, apontam para sintomas de um “humor” figurativo, estágios gradativos e metafóricos de um suposto estado de espírito. A realidade diegética em Mister Lonely (2007-2008) sobrevive com as próprias características, mesmo quando calca suas personagens em celebridades reais, também busca de empréstimo criações ficcionais do imaginário infantil, como a Chapeuzinho Vermelho e Buckwheat, fazendo cruzar fluidamente referências díspares. Do outro lado, também abre margens imaginativas com o ingrediente da fantasia, ao fruir de figuras religiosas com a

86 premissa abstrata da credulidade. No entanto, por se tratar de uma obra de ficção, anulam-se automaticamente os compromissos com a realidade, o que já isenta possíveis relações de imbricamento factual e autentica a própria natureza de criação artística. Ainda que se tratando de um veículo ficcional de produção de arte, é possível perceber a relação entre a ficção e o real. Harmony e Avi Korine carregam suas obras de estratégias e elementos para dar apoio ao argumento. Longe de existir apenas na superfície, Mister Lonely (2007-2008), rompendo com o padrão tradicional de narrativas, mas rendendo-se aos moldes estéticos convencionais, resiste a qualquer atribuição rasa sobre ela. Os irmãos Korine carregam o roteiro e o filme com elementos sintáticos e semânticos, com metáforas calcadas em significações pertinentes à contemporaneidade, vide as atribuições simbólicas para a solidão e a crise das personagens; ao mal-estar do sujeito, reconhecido pela falsa evidência de satisfação encarada pelos sósias, e suas tentativas de “amenizar” ou ilusionar o desprazer do sentimento, cobrando do espectador uma interpretação acima do rudimentar, e provando, dessa maneira, que o cinema, assim como o roteiro, existem, também, na subjetividade artística e plenamente literária. Com isso, fechamos um percurso iniciado em um caminho teórico sobre o estudo do roteiro enquanto gênero possível dentro do campo literário, para a fruição analítica das peças artísticas em comparação nas duas manifestações, a escrita e a imagética, no que tange aos recursos de tema e estrutura. Sinalizamos, assim, a importância de se considerar o roteiro obra individual, pelo intento de alçar a sua plena capacidade estética e literária. Desta forma, esperamos, com o trabalho, contribuir para estudos futuros e provocar o interesse na busca pela filmografia de Harmony Korine, assim como também colaborar em pesquisas que versam sobre os temas discutidos aqui.

87

6 REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Contos Completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

BARTHES, Roland. Sobre o cinema. In: ______. O grão da voz. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 17-35

______. O problema da significação no cinema. In: ______. Inéditos vol. 3 – Imagem e moda. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 34-47

______. As “unidades traumáticas” no cinema. In:______. Inéditos vol. 3 – Imagem e moda. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 48-64

BAUMAN, Z. O Mal-estar da Pós-Modernidade. Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BANKS, Drusilla; WOLFORD, Ron. Strawberries & More: History & Lore. In: University of Illinois Extension. Disponível em Acessado em 12 de Janeiro de 2021.

BELLANTONI, Patti. If It’s Purple, Someone’s Gonna Die: the power of color in visual storytelling. Oxford: Focal Press, 2005.

BERGMAN, Ingmar. Four Screenplays of Ingmar Bergman. Tradução de Lars Malmstrom e David Kushner. Nova Iorque: Touchstone, 1960.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

CARRIÈRE, Jean-Claude; BONITZER, Pascal. Prática do Roteiro Cinematográfico. Tradução de Teresa de Almeida. 3ª ed. São Paulo: JSN Editora, 1996.

CAÚ, Maria Castanho. O roteirista como escritor, o roteiro cinematográfico como literatura. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. [s.l.]: v. 6, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2017. Disponível em Acessado em 10 de Janeiro de 2021.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, número. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

COSTA, Maria Helena Braga e Vaz da. Cores & filmes: um estudo da cor no cimema. Curitiba: CRV, 2011.

DEEMER, Charles. Are Screenplays Literature?. Cyber Film School. [s.l.]: [s.n.]: 2002. Disponível em Acessado em 10 de Janeiro de 2021.

88

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6ª ed. São Paulo: Martin Fontes, 2006.

______. The Event of Literature. New Heaven/London: Yale University Press, 2012.

FIELD, Syd. Manual do Roteiro: Os Fundamentos do Texto Cinematográfico. Tradução de Alvaro Ramos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

GEERTS, Ronald. ‘It’s literature I want, Ivo, literature!’: Literature as screenplay as literature. Or, how to win a literary prize writing a screenplay. Journal of Screenwriting, [s.l.]: v. 5, n. 1, p. 125-139, 2014. Disponível em Acessado em 05 de Janeiro de 2021.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da Adaptação. Florianópolis: UFSC, 2011.

KORINE, Harmony; KORINE, Avi. Mister Lonely.1ª ed. [S. l.]: Nieves, 2008. 143 p.

KORINE, Harmony. Collected Screenplays. Londres: Faber and Faber, 2002.

LAJOLO, Marisa. O que é Literatura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.

LEITCH, Thomas. Twelve fallacies in contemporary adaptation theory. Criticism, Detroit, v. 45, n. 2, p. 149-171, 2003.

LONELY Mister. Direção de Harmony Korine. Roteiro: Harmony Korine e Avi Korine. Produção: Agnès B., Love Stream Productions, Dreamachine e outros. 2007. 1 DVD (112 min)

MARTIN, Marcel. Os processos narrativos secundários. In: ______. A Linguagem Cinematográfica. Tradução de Lauro António. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 227-240

MENDES, Paula. METÁFORA. In: CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em Acessado em 10 de Setembro de 2020.

METZ, Christian. A significação no cinema. Trad. Jean-Claude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 1972.

METZ, Christian. Linguagem e cinema. Trad. Marilda Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1980.

MITTERAND, Henri. 100 Filmes: da Literatura para o Cinema. Tradução de Clóvis Marques. 1ª ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2014.

89

PASOLINI, Pier Paolo. Teorema. Tradução de Fernando Travassos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

SIJLL, Jennifer Van. Narrativa Cinematográfica: contando histórias com imagens em movimento. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. In: Ilha do Desterro: A Journal of English Language, Literatures in English and Cultural Studies. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. Disponível em Acessado em 15 de Janeiro de 2021.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.

90