UNIVERSIDADE FEDERAL DE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

Monografia

Comida, Simbolismo e Identidade: um olhar sobre a constituição da italianidade nas colônias Maciel e São Manoel – Pelotas (RS)

CARMEN JANAINA BATISTA MACHADO

Pelotas, 2011.

CARMEN JANAINA BATISTA MACHADO

Comida e Simbolismo e Identidade: um olhar sobre a constituição da italianidade nas colônias Maciel e São Manoel

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Geografia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, como requisito para obtenção de título de Licenciada em Geografia.

Orientadora: Profª. Drª. Giancarla Salamoni Co-orientadora: Profª. Drª Renata Menasche

Pelotas, 2011

Banca Examinadora:

______Prof. Drª Giancarla Salamoni

______Prof. Drª Claudia Turra Magni

DEDICATÓRIA

Dedicado aos meus pais, meu companheiro e as famílias das colônias Maciel e São Manoel.

EPÍGRAFE

Ademais a vida é curta Curto é o nosso tempo aqui

Bom viver se somos juntos Pra somar sem dividir Dividir seja a comida Pra gente viver melhor Come bem quem come junto Com mais gente ao seu redor Ao redor seja a alegria Das que o coração descuidou Quando viu brotava a poesia Se atinou já vinha o amor Corre vem ver, tempo de ser Mais descalço simples pé no chão, sem questão De festar rodar cantar comer com a mão, sem questão De abraçar a tal humana condição, sem questão De agarrar a laço sério a paixão, sem questão De acuar rosnar morder o mundo cão, sem questão

Tribo, de Renato Braz

AGRADECIMENTOS

Assim como as festas e o trabalho no cotidiano das famílias rurais não acontece sozinho, este estudo é resultado da contribuição de pessoas que, com um abraço, um livro, uma aula ou uma história foram indispensáveis neste processo. Agradeço a todos, que de alguma forma, contribuíram para a construção deste trabalho:

Aos meus pais pela dedicação e carinho. A minha mãe Veni que acordava 05h30min da manhã para fazer fogo no fogão à lenha, preparar meu café e me acompanhar até o ônibus, no meu primeiro ano escolar. Ao meu pai João que sempre me motivou a seguir estudando. E aos meus irmãos: Jaqueline e Jackson.

Ao companheiro Samuel pelo incentivo, apoio e carinho nestes anos. Pelas acaloradas discussões sobre a contribuição da pesquisa na vida dos colonos e outras tantas reflexões...

À professora Giancarla Salamoni por ter me orientado desde “os meus primeiros passos” na iniciação científica. Pelas orientações, dedicação, paciência, carinho e amizade.

À professora Renata Menasche que me apresentou um universo totalmente novo e encantador da pesquisa a partir da Antropologia. Pelas orientações, as longas conversas, os cafés, o carinho e amizade.

Ao professor José Vital da Costa pelo incentivo à iniciação científica, no primeiro semestre, na sua disciplina de Antropologia Ecológica I.

Aos colegas e amigos do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais pelos momentos de reflexão, descontração e carinho: Veridiana, Tiaraju, Diego, Lucimara, Losane, Cabana, Carlos Vinícius, Juliana, Sibeli, Carmen “W”, Lânderson, Maurício, Patrícia e Evander.

A todos os professores e colegas do Curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Federal de Pelotas pelos momentos de aprendizado, pelas brincadeiras, discussões e carinho. Em especial aos professores Giancarla Salamoni, Adão José Vital da Costa, Ednei Koester, Sidney Gonçalves Vieira, Paulo Roberto Quintana, Êrica Colischonn e Liz Dias e aos colegas Inajara, Tiaraju, Mateus, Solange, Maria Arzelinda, Ilvonei, Carlos Vinicius, Sibeli, Andreia...

Aos professores e colegas do Curso de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas, em que cursei algumas disciplinas e que muito contribuiu na minha formação. Em especial aos professores Renata Menasche, Claudia Turra e Lúcio Menezes e aos colegas Juliane, Patrícia, Maurício, Roberta, Eliane, Heloísa, Priscila, Isabel...

Aos colegas e professores do Curso de Geografia e Planeamento da Universidade do Minho - Portugal pelo acolhimento e carinho, em especial a professora Virgínia Teles e João Sarmento, a secretária Isabel e aos colegas Jorge Leão, Rita, Sara Catarina, Ana Carolina, João, Ricardo, Mônica, Tiago... Ao professor e amigo Artur Cristóvão, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, pelo aprendizado e carinho. E aos colegas brasileiros Raony, Gabriel, Rafaela, Ivna, e Carolina.

Aos funcionários e amigos da Casa do estudante, em especial as meninas do quarto, 308 que nestes anos compartilharam momentos de frustração e alegrias: Carine, Beatriz, Raquel, Nitéri, Taciane, Miriam, Cristiane, Ana Paula e Caroline.

Aos amigos camaradas de Pelotas, e Portugal. Não cabe aqui relatar nomes porque cada um tem um significado especial na minha vida.

As famílias que preparam as festas da Comunidade Católica Sant‟Ana pelo acolhimento, carinho, amizade...As famílias da Colônia Maciel e São Manoel que me receberam em suas casas e em suas vidas. Este trabalho se conclui, mas as festas e visitas seguem, pois construímos para além da pesquisa uma amizade.

RESUMO

Em um contexto de ressignificação do rural, em que se pode notar a busca (urbana) por um rural idealizado, que remete a paisagens e tranquilidade, mas também a alimentos tradicionais e/ou naturais, festas rurais, sítios de lazer e turismo rural, este estudo pretende analisar como, em duas localidades rurais conformadas, em boa medida, por famílias rurais descendentes de imigrantes de italianos, esse processo de valorização do rural assume características particulares, associadas à constituição de uma italianidade. Para isso, as práticas alimentares dessas famílias rurais são tomadas como ponto de observação. As ocasiões festivas constituíram-se em importantes alvos da atenção, mas o olhar voltou-se também para o cotidiano das famílias, a seus saberes e práticas alimentares, incluindo a organização de seu trabalho em torno da produção para o autoconsumo. Procurou-se, também, apreender como a comida e o vinho, apresentados nas festas como símbolos da cultura italiana, estão presentes no cardápio do dia-a-dia dessas famílias. A construção deste trabalho deu-se a partir de pesquisa etnográfica desenvolvida junto às famílias que trabalham nas festas da Comunidade Católica Sant‟Ana, moradoras das colônias Maciel e São Manoel, pertencentes ao 8º Distrito Rincão da Cruz, município de Pelotas.

Palavras-Chave: Campesinato. Alimentação. Etnicidade. Festas. Cotidiano.

LISTA DE FIGURAS

Figura 01- Mapa ilustrativo do Estado do , retratando a divisão norte-sul...... 31

Figura 02- Mapa do município de Pelotas (1911) – grande extensão de terras, em que se instalaram os imigrantes, formando colônias...... 34

Figura 03- Mapa do Rio Grande do Sul com destaque para o município de Pelotas, seguindo, em destaque, o distrito de Rincão da Cruz, no qual se localizam as colônias Maciel e São Manoel...... 38

Figura 04- Igreja da Comunidade Católica Sant‟Ana e salão da comunidade...... 45

Figura 05- Saber-fazer: o preparo da bolacha colonial – da receita herdada à mesa do café colonial da festa...... 47

Figura 06 - folha de bananeira no chão, ao lado do forno ...... 49

Figura 07- Cardápio híbrido: cuca, receita mantidas por gerações, preparada com ingredientes da colônia e o bolo de caixinha, à base de produtos industrializados...... 50

Figura 08- Missa em homenagem à padroeira (os fiéis estão em fila, para receber a hóstia), seguida do almoço e jogos à tarde...... 51

Figura 09- O baile da tarde e a discoteca da noite...... 51

Figura 10- Mulheres “classificando” tempero verde e homens preparando a polenta no espaço da cozinha...... 54

Figura 11- Salão decorado para a festa e exposição de fotos e documentos contando a história dos primeiros imigrantes chegados à Colônia Maciel...... 56

Figura 12- Comida apresentada como típica: fortaia, polenta e o cardápio completo...... 57

Figura 13 - Mapa das propriedades visitadas em 2009...... 63 Figura 14- Produtos para autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel...... 64 Figura 15- Produtos para autoconsumo: hortaliças, ovos e queijo (secando em um tabuleiro)...... 64

Figura 16 - Animais para o autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel...... 65 Figura 17- Desenhos crianças ilustrando a produção na propriedade de sua família...... 66

Figura 18- Produtos para comercialização nas colônias Maciel e São Manoel...... 68 Figura 19- Produtos para comercialização: pêssego (2011), feijão e fumo (2009)...... 68 Figura 20- Comida no cotidiano das famílias: mesa posta para o almoço, vinho para acompanhar o almoço e sobremesa – sagu de vinho...... 75

SUMÁRIO

1 Introdução...... 12 1.2 Metodologia de Pesquisa: o campo...... 18

2 Formação Histórica: um olhar sobre a colonização...... 26 2.1 Rio Grande do Sul: breve contextualização...... 26

2.2 Município de Pelotas: aspectos histórico-espaciais...... 32 2.2.1 Colônia Maciel...... 38 2.2.2 Colônia São Manoel...... 40

3 Festa de SantʼAna e o Dia do Vinho na Colônia Maciel: a “Festa Antiga” e a “Festa à Antiga”...... 42 3.1 Festa de Sant‟Ana, a festa antiga ...... 45 3.2 O Dia do Vinho,a festa à antiga...... 52

4 O Cotidiano das Famílias: um olhar a partir da comida...... 60 4.1 A produção pra venda e pro gasto nas Colônias Maciel e São Manoel...... 60 4.2 Comida e Identidade: histórias, saberes e práticas alimentares ...... 69 4.3 Família: as histórias para além da comida...... 77

5 Considerações Finais ...... 81

Referências...... 83

Anexo - Livro Tombo da paróquia SantʼAna: registro da chegada dos primeiros imigrantes italianos à Colônia Maciel (1884 a 1886)...... 88

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1 INTRODUÇÃO

Eu quero uma casa no campo Onde eu possa ficar no tamanho da paz

E tenha somente a certeza Dos limites do corpo e nada mais Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim [...]

Elis Regina

A valorização do rural não é um movimento recente. Já no século XVII era apontado como “novas sensibilidades” (THOMAS, 1996) em que a natureza e a tranquilidade do campo já se constituíam em destino de lazer para os citadinos. Contudo, percebe-se que recentemente tem se acentuado a busca por um rural idealizado, remetendo a paisagens e tranquilidade, mas, também, por uma alimentação tradicional, festas rurais, sítios de lazer e turismo rural.

Neste contexto de acentuada valorização do rural temos as questões referentes à “vida moderna” que Thomas (1996) identifica na constituição de novas sensibilidades, no período da urbanização e industrialização na Inglaterra do século XVII, que abrangem a relação campo e cidade. Em meados do século XVII, “a cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação” (THOMAS, 1996, p.259), sinônimo de civilidade, enquanto que o campo representava o rústico. Contudo, no início do século XVIII torna-se comum sustentar que o campo era mais belo que a cidade. Na medida em que se expandiam as cidades e as indústrias, a deterioração do ambiente urbano, a poluição do ar, superpopulação e doenças fizeram com que a população abastada optasse pelo campo como refúgio para descansar e curar as doenças não somente físicas, mas espirituais. Assim, passavam a construir suas cabanas no campo, nas quais permaneciam uma temporada ou somente nos finais de semana. Para os citadinos “os moradores do campo eram não apenas mais saudáveis, porém moralmente mais admiráveis que os habitantes da cidade” (THOMAS, 1996, p. 261). 13

Já no século XX e início do século XXI percebe-se uma demanda cada vez mais intensa por um rural autêntico, sendo assim nele reconhecidas funções para além da produção de alimentos, como aponta Cristóvão (2002):

Face às experiências de vida na cidade e ao mundo globalizado e tendencialmente homogéneo, as ideias construídas sobre o quotidiano no campo, o contacto com a natureza e as culturas tradicionais, traduzem-se numa revalorização social do rural e do local e induzem uma busca do singular, do específico, do autêntico. O espaço rural ganha, por este meio, um crescente valor simbólico e assume uma legitimidade diferente da legitimidade alimentar do passado [...]. É, na essência, uma legitimidade fundada na representação dos campos como locais de liberdade, beleza, segurança e saúde, de pertença e enraizamento. Ao espaço rural passam a ser reconhecidas funções mais diversificadas do que a simples produção de alimentos. (CRISTÓVÃO, 2002, p.04).

Neste processo de valorização do rural, particular e local frente ao processo de globalização, associado à industrialização e homogeneização, emergem discussões em torno dos saberes e práticas associados ao ato alimentar, enquanto manifestações de patrimônio cultural. Assim tem-se, de um lado, a individualização do consumo alimentar e, do outro, a ressignificação da cozinha, marcada pela afirmação do local, que além de ser o espaço onde se preparam as refeições é onde se acolhem a família e os amigos. Neste contexto “podemos atribuir às transformações do comer, decorrentes da globalização marcadas por um movimento de homogeneização da alimentação -, o surgimento de uma ʽnostalgiaʼ referente às práticas alimentares” (MENASCHE, n. p.).

Com referência ainda às ressignificações do rural, cabe considerar a demanda urbana pelo tradicional, artesanal e local, que aponta para um movimento em direção a elementos emblemáticos do rural, como por exemplo, a polenta. Este prato, preparado a partir do cozimento da farinha de milho em água, com a substituição de cereais como centeio e trigo pelo milho, constituiu-se como base da alimentação no norte da Itália e difundiu-se a partir do século XVI na Europa. No Brasil, com a imigração a partir de 1875, a polenta passou a ser a comida diária dos imigrantes italianos. Atualmente, este prato compõe o cardápio das famílias rurais, particularmente de famílias descendentes de italianos, muito embora não mais com a mesma frequência que teve outrora. À polenta atribuem-se diversos usos e significados, pois para uma parcela de descentes italianos esta remete aos tempos 14

de escassez, enquanto que para outros é emblema das festas, situação em que muitas vezes a polenta é apreciada pelos citadinos e convertida em símbolo do rural valorado, como apontado por Menasche (2010) ao analisar as percepções de agricultores e citadinos, a partir de suas práticas alimentares:

E observamos, também, outro movimento, esse mais recente, que se manifesta particularmente em ocasiões festivas, quando os alimentos que remetem a uma identidade rural são positivamente valorados. Aí – e tal qual no estudo realizado por Champagne (1987) –, a afirmação dessa identidade parece constituir-se a partir do vínculo com um tempo e temporalidade passados, recriados, a partir de uma busca, urbana, por paisagens, costumes, festas, história, turismo, alimentos etc., inclusive polenta. (MENASCHE, 2010, p.214).

Neste contexto em que o rural “transforma-se em objecto de consumo para os citadinos” (LOURENÇO, 2001, p.10), de certa forma, criam-se reconfigurações por parte da população rural sobre o seu lugar de viver.

No que se refere às mudanças sobre as percepções do rural, agora crescentemente positivado, uma interessante referência é o estudo de Champagne (1977). Este autor, se referindo ao contexto de uma comunidade rural francesa, aponta um movimento em que, em meados de 1950, camponeses jogaram fora antigos móveis de família, de madeira, considerados arcaicos, substituindo-os por móveis de fórmica, símbolo da modernidade. Mas, no final da década de 1970, o mesmo autor mostra que ocorre um movimento inverso, em que os móveis rústicos, símbolo do tradicional, são revalorizados. Este processo estaria relacionado à valorização do rural pelos habitantes da cidade, o que influenciaria em mudança de valores na aldeia.

Este processo de revalorização do rural é especialmente analisado pelo autor a partir do estudo das festas na aldeia, onde analisa a “festa antiga” e a “festa à antiga”. Para Champagne (1977) o processo modernizador, o trabalho mútuo substituído pela máquina, seriam alguns dos fatores que contribuíram para o fim da festa comunitária do tipo antiga. Neste processo de desagregação do grupo é organizada uma festa local pela vontade de reunir as famílias da aldeia. Contudo, esta festa cria-se como a “festa à antiga”, ancorada sobre base de ordem econômica. Assim, a festa que antes ocorria na primavera é mudada para o verão, nas férias do calendário urbano, e torna-se um espetáculo cujo objetivo principal era 15

atrair o público externo, constituindo-se, portanto, em uma festa na aldeia e não em uma festa da aldeia, preparada por e para os camponeses. É neste contexto, a partir do olhar do urbano sobre o rural, que os camponeses ora valoram o móvel de fórmica, por representar o moderno, ora valoram o móvel de madeira, por representar o tradicional. Ou seja, as reconfigurações e ressignificações dos moradores rurais sofrem influência da valoração do urbano sobre o rural, que influência também na mudança de valores da população local rural.

É no contexto antes descrito que, neste trabalho, pretende-se analisar como nas colônias Maciel e São Manoel o processo de valorização do rural assume características particulares, associadas à constituição de uma italianidade. Tendo em vista que nos últimos anos se percebe uma acentuada demanda por citadinos das amenidades do rural, em que famílias de descendentes de imigrantes italianos e produtoras de vinho estão inseridas em uma rota de turismo rural e, recentemente, criam a Festa do Dia do Vinho. Para tanto, o olhar desta pesquisa será conduzido às práticas alimentares das famílias rurais descendentes de imigrantes italianos, mais especificamente, às famílias que trabalham nas festas da Comunidade Católica Sat‟Ana, moradoras das respectivas colônias, pertencentes ao 8º Distrito Rincão da Cruz, do município de Pelotas.

Diante disso, é imprescindível entender a percepção destes camponeses em relação aos saberes e práticas herdados de seus antepassados e mantidos no quotidiano dessas famílias. Assim, o principal objetivo deste trabalho consiste em compreender o processo de valorização do rural, associado à constituição de uma italianidade nas colônias Maciel e São Manoel, tomando a alimentação como abordagem privilegiada. Bem como, identificar a comida valorada e os saberes que conformam as festas da comunidade e o cotidiano destas famílias.

Cabe ainda mencionar que o campesinato é aqui entendido à luz do estudo de Klaas Woortmann (1990), que propõe entendê-lo como ordem moral e a partir de uma qualidade, a campesinidade, que pode estar presente, em maior ou menor grau, em diferentes grupos específicos, em uma articulação ambígua com a modernidade. Para esse autor (WOORTMANN, 1990, p.23) a campesinidade está centrada na interdependência entre terra, família e trabalho, pois “nas culturas camponesas não se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a terra e a família”. É neste sentido que, no 16

decorrer deste trabalho, faremos referência ora a camponeses, ora a colonos, ora a agricultores, ora a descendentes de imigrantes italianos, sendo essas expressões utilizadas para referirmo-nos a um grupo social que entendemos como camponês.

Este trabalho foi construído a partir de trabalho etnográfico, que consistiu na observação participante (e registro em diário de campo) de festas da Comunidade Católica Sant‟Ana e do cotidiano de famílias que trabalham na preparação e organização das festas da comunidade. Nesse processo foram realizadas entrevistas em profundidade junto a membros dessas famílias. Ainda complementarmente, foram utilizados dados resultantes da inserção junto à Escola de Ensino Fundamental Garibaldi, como membro da equipe que realizou junto às crianças da 3ª e 7ª séries oficinas para resgate e registro de hábitos alimentares.

Antes de discorrer sobre o campo de estudo, faço um breve relato em torno das motivações que me conduziram a esta investigação, pois avalio que seja importante para a compreensão da proposta deste trabalho.

Primeiramente, cabe mencionar que sou filha de camponeses e vivenciei “os dois mundos”, o campo e a cidade. Na década de 1990 migramos para a cidade, por meu pai não ter mais condições de sustentar a família com o fruto do trabalho realizado em apenas quatro hectares de terra, herdada de seus pais. Com a tristeza de deixar o nosso lugar, acompanhei, por anos, a insatisfação de meu pai por ter que morar na cidade e, principalmente, o sentimento de perda da terra que fora de seus avós. Passados alguns anos retornei à zona rural, agora na colônia de Pelotas, juntamente com meu companheiro, Samuel. Moramos com os seus pais, em uma comunidade em que predominam descendentes de imigrantes alemães.

Com o propósito de dar continuidade aos estudos, no ano de 2007 optei pelo curso de Licenciatura em Geografia, planejando vir a dar aula em escola rural. No início do 2º semestre do curso, participando de uma seleção para bolsista de iniciação cientifica, passei a integrar o Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais - LEAA, coordenado pela professora Giancarla Salamoni. Passei, então, a pesquisar o tema de recursos hídricos, tendo como área de estudo as colônias Maciel e São Manoel – 8º distrito do município de Pelotas. No decorrer da graduação cursei uma disciplina de Antropologia Cultural com a professora Renata Menasche, cujas pesquisas tratam das percepções do rural com um olhar a partir da comida. O tema 17

e a antropologia me conquistaram e, firmada a parceria entre as duas áreas (Geografia e Antropologia), quando a professora Renata passou a integrar o LEAA, - a partir de 2009/02 - como bolsista de iniciação científica dei continuidade à pesquisa nas colônias Maciel e São Manoel. Com o olhar voltado para os descendentes de imigrantes italianos, partindo dos estudos da antropologia da alimentação, compondo a agenda de pesquisa, primeiramente, do projeto “Saberes e Sabores da Colônia: patrimônio alimentar e campesinato no Rio Grande do Sul” e, atualmente, dos projetos “Cultura, patrimônio e segurança alimentar entre famílias rurais: etnografias de casos significativos” e "Construção participativa de sistemas agroflorestais sucessionais no território Sul, RS (Encosta da Serra do Sudeste) / aspectos culturais”, coordenado pelo pesquisador Joel Cardoso - EMBRAPA/Pelotas -, no qual minha participação é no subprojeto "aspectos culturais", coordenado pela professora Renata Menasche.

O trabalho esta dividido em cinco capítulos. Após este capítulo introdutório, que apresenta a proposta de pesquisa, a estrutura do texto e a metodologia empregada, dá-se inicio ao capítulo 2, referente à contextualização histórica de ocupação do Estado do Rio Grande do Sul, do município de Pelotas e das colônias Maciel e São Manoel por imigrantes, buscando entender o processo histórico que levou os imigrantes italianos a se estabelecerem na região colonial do município de Pelotas. O capítulo 3 aborda os saberes e práticas alimentares que conformam as festas e a comunidade rural, buscando analisar por quem e para quem são produzidas, atentando para a Festa de Sant‟Ana e a Festa do Dia do Vinho. O capítulo 4 leva o olhar ao cotidiano das famílias, especialmente a seus saberes e práticas alimentares, aí incluída a organização do trabalho da família em torno da produção para o autoconsumo. As considerações finais compõem o capítulo 5, no qual buscamos apresentar uma síntese do que foi apresentado e discutido no decorrer da pesquisa.

Cabe, ainda, observar que ao longo do trabalho os nomes dos interlocutores foram substituídos por nomes fictícios, visando preservar suas identidades. Ainda, para remeter a conceitos trazidos da bibliografia consultada ou para destacar termos, foram empregadas aspas. Em itálico são grafadas expressões de interlocutores da pesquisa. Por último, cabe mencionar que no decorrer deste trabalho não se adotou, no que se refere à adoção da pessoa que narra, um único 18

padrão na redação do texto. Em alguns momentos é empregada a primeira pessoa do singular e, em outros, a primeira pessoa do plural. Tal fato decorre do processo de construção deste trabalho, resultado de experiências da autora e das professoras orientadoras, sendo que muitas das reflexões aqui desenvolvidas foram realizadas em conjunto com as professoras Renata Menasche e Giancarla Salamoni.

1.2 METODOLOGIA DE PESQUISA: O CAMPO

“Há uma enorme diferença entre ler sobre e falar com pessoas „estranhas‟, vivenciar a alteridade, entre lidar com descobertas feitas por outros e descobrir por si mesmo”. (WOORTMANN, 1995, p.18)

Ancorada no ensinamento de Ellen Woortmann é que penso o campo, no sentido de “descobrir por mim mesma”. O primeiro contato com o grupo pesquisado se deu entre janeiro e fevereiro de 2009, quando fazia parte da equipe do projeto “A Sustentabilidade dos Recursos Hídricos Hídricos na Colônia Maciel e São Manoel – Distrito de Rincão da Cruz – Pelotas – RS: turismo rural, educação e gestão ambiental”, coordenado pela professora Giancarla Salamoni, do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais da UFPel. Naquela ocasião, o grupo integrante do projeto visitou 43 propriedades na Colônia São Manoel e outras 48 na Colônia Maciel. Quando chegávamos à propriedade de uma família e realizávamos as entrevistas, com base em roteiro semi-estruturado, sentia a necessidade de saber mais sobre aquelas pessoas. Tentava, pelo sobrenome, compor as relações de parentesco, ouvia suas histórias, tomava café em algumas das casas, em outras acompanhava o trabalho na estufa de fumo, no fabrico de vinho ou a capina na lavoura. Pude notar que nesses momentos de conversa, antes ou depois de realizar as entrevistas, era quando as pessoas realmente se dispunham a falar. Em outros momentos, percebi contradições entre o que diziam e o que faziam, não por ato intencional, mas porque elaboravam as respostas a partir do que acreditavam que esperávamos ouvir. Lembro de uma mulher que, ao perguntarmos se ela e o esposo utilizavam botas e calças Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para aplicar herbicidas ou fungicidas, afirmou que sim e justificou a importância da utilização desse equipamento. No entanto, passados alguns minutos seu esposo chegou da 19

lavoura levando nas costas uma máquina de aplicar esses produtos químicos, trajando somente bermuda e chinelo. Entendo que o ocorrido se deu pela própria natureza da situação de entrevista, pois a “verdade é produzida a partir de uma relação” (CALDEIRA, 1981), uma relação de poder, em que o entrevistador representa a ciência e uma instituição, enquanto que o entrevistado sente-se na obrigação de “dizer a verdade”. Para Caldeira (1981), na aplicação de um questionário, a rigidez das perguntas, a ordem pré-estabelecida e o leque de alternativas não permitem ao entrevistado praticamente qualquer participação ativa na relação entre entrevistador e entrevistado. Penso ser o questionário uma ferramenta importante para o primeiro contato e como levantamento de informações mais gerais, mas, para tentarmos entender as relações que conformam determinado grupo ou comunidade, temos de utilizar outros métodos, buscando uma maior aproximação com a realidade vivida pelo grupo estudado.

É neste contexto, buscando a possibilidade de conhecer, conversar, conviver, trabalhar e festar com as famílias, que se fez uso do método etnográfico na realização desta pesquisa. Este método parte da voz e das atitudes do sujeito de maneira a tornar possível descrever e analisar seus modos de vida e as relações que permeiam e conformam a comunidade em estudo. Neste sentido, Geertz (1978) destaca que

O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar... Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 1978, p.20).

Como destacado pelo autor, o papel do etnógrafo, nesta trama de significados, é interpretar e descrever, buscando construir uma descrição densa.

Cabe destacar que a proposta de estudar na comunidade (e não a comunidade) refere-se ao que Geertz (1967 apud Comerford, 2005) destaca ser necessário para seguir o diversificado circuito das relações sociais, complexificando, 20

criticando e desnaturalizando a imagem da comunidade unitária, com seus limites dados a partir de critérios espaciais e administrativos. Como defende o autor, estudar “na aldeia” (e não “a aldeia”) permite identificar e conhecer as relações e a forma como interagem os grupos que ali vivem.

Com o intuito, então, de estudar “na aldeia” e tentar apreender as relações que a conformam, utilizei-me da observação participante, para a qual Schwartz e Schwartz (1995) propõem a seguinte definição:

[...] definimos observação participante como um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está em relação face-a-face com os observados e, ao participar da vida deles no seu cenário natural, colhe dados. Assim o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto. (SCHWARTZ; SCHWARTZ, 1995 apud CICOUREL, 1980, p. 99).

Minha primeira inserção a campo para esta pesquisa deu-se durante a preparação e realização da Festa de Sant‟Ana, em fevereiro de 2010, e estendeu-se até novembro de 2011, quando dei por encerradas as incursões a campo que contemplaram, além da preparação e realização das festas observadas, visitas às famílias que preparam as festas, pertencentes às duas colônias (Maciel e São Manoel), bem como as atividades realizadas pela equipe de pesquisa – oficinas para resgate de hábitos alimentares – junto à Escola de Ensino Fundamental Garibaldi, na Colônia Maciel.

Ao pensar as “entradas” a campo, busquei ter presentes as questões levantadas por Cicourel (1980), que pondera que

Parte importante do trabalho de campo tem a ver com os problemas de identificar, obter e sustentar os contatos que o pesquisador de campo precisa fazer. Por exemplo, dada a escolha do papel ou dos diferentes papéis que pode assumir perante os outros ou lhes atribuir, que tipo de intimidade deveria ele cultivar? Que tipo de pessoas procurar? Como fazer os contatos? Como mantê-los? De que maneira estes afetam os dados obtidos? De que maneira contatos específicos conduzem a certos dados? Estas questões são apenas uma fração das questões sobre as quais o pesquisador de campo precisa pensar. (CICOUREL, 1980, p. 112).

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Na primeira inserção em campo, por ocasião da Festa de Sant‟Ana, após entrar em contato com uma das festeiras, desloquei-me até a Colônia Maciel. Era uma manhã de sábado. Chegando ao salão da comunidade, procurei pela senhora com quem havia mantido contato, mas por ela estar tão envolvida com os preparativos da festa, havia esquecido de falar ao grupo a respeito da minha proposta de acompanhar a festa. Assim, com um frio na barriga, tive de entrar na cozinha e apresentar-me, contar a respeito de minha proposta de pesquisa e consultar o grupo de mulheres, que trabalhava na preparação da festa, sobre a possibilidade de permanecer junto a elas, auxiliando nas tarefas e conversando sobre as histórias das festas anteriores, as receitas, o preparo das comidas. A partir da resposta positiva do grupo, acompanhada de olhares de curiosidade e de desconfiança, fui tentando interagir com as mulheres. Foi então que me lembrei de um texto que havia lido, de Tania Salem (1978), em que ela conta o primeiro contato com seus entrevistados. Reproduzo a seguir um trecho de sua reflexão:

Assim de certo modo, esse primeiro encontro permitia uma inversão de papéis, eu passava a ser a entrevistada e eles, os entrevistadores. Percebi que, através das perguntas que giravam em torno da minha vida particular, os informantes estavam buscando ponto de afinidade entre a minha pessoa e a deles. Ou seja, tentavam situar-me em seu mundo e, ao que parece, através desse procedimento, procuravam amenizar minha posição de “invasora”. (SALEM, 1978, p.54).

Naquela tarde, fui à entrevistada. As perguntas giravam em torno da família a que eu pertencia, onde morava, o que estudava, onde estudava etc. Senti que o “ponto de afinidade” entre mim e as mulheres estava no fato de eu morar na colônia. Apesar de não conhecerem minha família e de eu pertencer a outro distrito, acredito que esse foi o fator que amenizou minha posição de “invasora” e possibilitou que fosse estabelecido o diálogo com o grupo.

No decorrer da pesquisa, tanto nas festas como nas casas das famílias e também na escola, com as crianças e professoras, houve sempre o momento em que os papeis se invertiam e eu passava a ser entrevistada. Como notado por Caldeira (1981), a relação de pesquisa acaba por estabelecer uma relação de troca, pois o entrevistado quer saber a opinião do pesquisador sobre determinado assunto, sobre sua vida, sua família, seu trabalho. Em uma das famílias que visitei, quando 22

perguntava a uma senhora o que ela costumava preparar no almoço e no jantar, ela respondeu comentando as preferências do esposo e dos filhos, para depois me perguntar: e vocês, o que comem? O que plantam na horta? E na medida em que eu comentava sobre o modo de preparar a comida em minha casa e a respeito dos alimentos que dispunha na horta, ela traçava um paralelo do que tínhamos em comum em relação a essas atividades, assim como a respeito das preferências alimentares das duas famílias. Considero esses momentos ricos, pois observei que à medida que meus interlocutores conheciam mais de meu cotidiano e família, iam contando sobre suas vidas, buscando na memória práticas alimentares já esquecidas.

Entre os desafios em utilizar-me da observação participante, além da timidez em fazer uma foto ou anotar algo no caderninho de bolso, com receio de causar algum desconforto junto aos interlocutores, tinha de manter sempre em mente o alerta de Velho (1978): ainda que se possua familiaridade com o cotidiano do grupo, isso não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo destes. Nas palavras do autor:

[...] O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978, p.39).

O fato de ter nascido e passado minha infância no meio rural e de, mais tarde, ter voltado a morar na colônia, foi o fator facilitador de minha aproximação com o grupo. No entanto, a dificuldade estava em voltar um olhar de estranhamento para o ambiente da cozinha, do cotidiano, do trabalho dessas famílias, pois para mim era tudo familiar: as falas ou o modo de preparar determinada receita remetiam à colônia, onde moro. À medida que desenvolvia o exercício de questionar, mesmo quando supunha saber a resposta, iniciava o processo de estranhamento. Assim, “o processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações” (VELHO, 1978, p.45). 23

No processo de estranhar o que me era familiar ou “transformar o familiar em exótico” (Da Matta,1987), estava eu, certo dia, sentada no ônibus que segue para a colônia quando percebi uma senhora que, enquanto o ônibus estava estacionado ao lado do Restaurante Buchweitz – ponto de chegada e partida dos ônibus da colônia de Pelotas, no centro da cidade de Pelotas –,entrava no ônibus com uma caixa de papelão na mão, oferecendo balas de goma, rapaduras de amendoim e leite, merenguinhos, salgadinhos e chicletes. Um número significativo de passageiros costuma comprar algo dessa senhora, seja para comer na viagem, seja para levar a alguém da família que ficou em casa. O fato é que, desde 2006, transito regularmente entre a colônia e a cidade e, desde então, essa senhora me oferece “3 balas de goma [pacotinho] por R$ 1,00”. Mas o que quero comentar é que apenas neste ano, ao iniciar a pesquisa de campo, é que atentei para a senhora e as relações que se estabelecem entre ela e os passageiros do ônibus, colonos. Assim, cabe destacar, como dito por Roberto da Matta (1987, p.157-8), a importância em “tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir [...] o exótico no que está petrificado dentro de nós pela reificação e pelos mecanismos de legitimação”.

No decorrer da pesquisa, acompanhei a preparação e realização da festa religiosa em homenagem à padroeira da comunidade católica de Sant‟Ana, a festa do Dia do Vinho (4ª e 5ª edições), o Café Colonial Dançante, bem como outras atividades organizadas no salão da comunidade, como o bingo realizado pela Escola de Ensino Médio da Colônia Maciel. Nas festas, passei a fazer parte do grupo de trabalho, assumindo novas tarefas a cada festa, o que me possibilitou, como uma das mulheres que trabalha na cozinha, transitar tanto pela cozinha como pelo salão, deixando de atrair tanta atenção como nas primeiras incursões a campo. Trabalhar nas festas proporcionou-me entender os significados de cada ação realizada naquele espaço, sentir o corpo doer pelo cansaço físico, ao final da jornada, já na madrugada do dia seguinte, quando permanecem na cozinha apenas poucos casais, acertando as contas. Trabalhar nas festas proporcionou-me também sentir-se e ser reconhecida como parte do sucesso da festa: o olhar e sorriso dessas pessoas permitiram-me apreender o significado de um mutirão, conformado no trabalho e nas relações de reciprocidade. 24

Partindo da cozinha do salão, segui para a cozinha de algumas das mulheres que trabalham nas festas comunitárias e residem nas colônias Maciel e São Manoel, para tentar apreender os significados da comida em seu cotidiano. Na maioria das casas que visitei, permaneci durante um dia de trabalho da família, participando da preparação das refeições, sempre elaboradas pelas mulheres (esposas, mães). Nessas ocasiões, enquanto aguardavam a comida ficar pronta, o pai e/ou filhos que costumar tomar chimarrão1 antes da refeição, serviam o chimarrão, conversando sobre os diversos assuntos do dia-a-dia da colônia. As visitas foram agendadas anteriormente, nas festas ou por telefone, com a preocupação em saber o melhor dia da semana para que os anfitriões me recebessem. Em algumas casas, optei por ficar apenas meio dia, por perceber que havia muito trabalho e notar que, mesmo propondo-me a acompanhá-los em sua rotina, eles se preparavam para receber-me como visita. Foi assim que tentei aproximar o olhar do cotidiano das famílias estudadas: em conversas e, em algumas ocasiões, na ordenha das vacas, na transferência das vacas de um pasto para outro, na visita ao pomar de pêssegos, no engarrafamento do vinho, lavando a roupa, alimentando os frangos no aviário ou, ainda e principalmente, na cozinha.

Na Escola de Ensino Fundamental Garibaldi2 o contato se deu através das atividades das oficinas de resgate de hábitos alimentares, inseridas no projeto de pesquisa “Cultura, patrimônio e segurança alimentar entre famílias rurais: etnografias de casos significativos”. Nessa escola estudam crianças vindas de várias localidades, como as Colônias Maciel e São Manoel, sendo que entre os alunos estão filhos e netos das famílias que trabalham nas festas da comunidade. As atividades foram desenvolvidas junto a uma turma da 7ª série e outra da 3ª série. O trabalho mesclou práticas de cozinha com atividades de desenho, descrição, registro de receitas de família e conversas sobre hábitos alimentares. A equipe que desenvolveu essas atividades era composta por alunos e professores dos cursos de

1 O chimarrão (ou mate) é uma bebida característica da cultura do Estado do Rio Grande do Sul, um hábito legado pelas culturas indígenas. A bebida é consumida diariamente pelas famílias, principalmente antes do café da manhã, almoço, jantar e quando recebem visitas.

2 Cabe destacar que os dados apresentados referente à Oficina de Resgate de Hábitos Alimentares, na Escola Garibaldi, não serão aqui aprofundados em função de que as atividades acompanhadas, até o momento de elaboração deste trabalho, foram preliminares. Sendo aprofundado em um segundo momento com a inserção da equipe nas famílias das crianças para identificar e compreender como os hábitos e práticas alimentares fazem parte do modo de vida destas famílias. 25

antropologia, geografia, nutrição e gastronomia. O primeiro contato com a direção e coordenação da escola ocorreu no final de maio de 2011, ao qual seguiu-se, no mês de junho, uma reunião entre a equipe e a direção da escola. Já em junho participei da festa junina da escola, primeira aproximação com as crianças, quando procurei analisar as comidas que compunham o “cardápio” dessa festa. Os encontros da oficina ocorreram de agosto a novembro de 2011, com periodicidade quinzenal (com algumas lacunas, decorrentes de feriados e outras atividades da escola).

No intuito de apreender os saberes e práticas alimentares mantidos pelas famílias, assim como os presentes nos momentos festivos, utilizei-me também do registro fotográfico, no intuito de tentar “aprender [para] depois apresentar” (GEERTZ, 1978, p. 20) os resultados das interpretações. Como atenta Oliver Sardan (1995) apud Guran (1997), a fotografia faz parte do momento de impregnação, em que vivenciamos o cotidiano da comunidade e começamos a “perceber alguma coisa” sem, entretanto, saber exatamente do que se trata.

Ao longo do trabalho de pesquisa, recorreu-se, assim, a diversos instrumentos: diário de campo, registro fotográfico, desenhos e cadernetas com registros elaborados pelas crianças que participaram das oficinas da Escola, análise de documentos históricos e pesquisa bibliográfica.

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2. FORMAÇÃO HISTÓRICA: UM OLHAR SOBRE A COLONIZAÇÃO

Para tentar apreender as relações sociais, culturais e econômicas que atualmente apontam para a constituição de uma italianidade nas colônias Maciel e São Manoel, torna-se necessário entender o processo histórico que levou os imigrantes italianos a se estabelecerem na região colonial do município de Pelotas. Para tanto, parte-se do processo de ocupação do Rio Grande do Sul, seguido do município de Pelotas, com destaque para as colônias Maciel e São Manoel.

2.1 RIO GRANDE DO SUL: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

O processo de ocupação e apropriação do território do Rio Grande do Sul teve início no século XVII, por volta de 1626, pelos jesuítas a serviço da Coroa Espanhola. Cabe destacar que, anteriormente à chegada dos jesuítas, este território era ocupado por população indígena, que seria catequizada e orientada para o trabalho agrícola por jesuítas espanhóis.

No início do século XVIII, ocorreu a ocupação portuguesa. Visando garantir a posse e defesa das terras, localizadas ao sul de sua colônia, a Coroa Portuguesa instalou acampamentos militares, construiu fortes e organizou a distribuição das terras - sesmarias (com áreas de até 13 mil hectares) cedidas a pessoas de prestígio, militares e tropeiros. As sesmarias eram destinadas à criação de gado, dando origem às grandes estâncias. Neste contexto, Heidrich (2000) enfatiza que

As regiões formadas nesse período constituem territórios de domínio oligárquico, embora estivessem sujeitos à administração centralizada da Coroa. Ocorre que, em grande parte, esse domínio realizou-se com o consentimento dela própria, pois assim estabelecia meios de fixar não apenas populações, mas, principalmente, formas de exploração territorial que lhe retornavam em ganhos econômicos naquele sistema colonial. O mecanismo de concessão de sesmarias era uma das formas de se cumprir essa função. (HEIDRICH, 2000, p.55).

Neste processo de ocupação do território, bandeirantes paulistas se instalaram e iniciaram o povoamento das áreas de campo, dando origem ao ciclo 27

pastoril, em que se efetivou a formação das sesmarias, quando foi criado o primeiro núcleo de povoamento português. Na segunda metade do século XVIII, teve início a colonização açoriana nos campos sulinos, a partir da distribuição de cartas de data. As cartas de data se diferenciavam das sesmarias, pois se restringiam a áreas de 372 hectares, destinadas, principalmente, à produção de alimentos e cultivos agrícolas (PESAVENTO, 1985). Neste período, destaca-se o surgimento das garantindo a produção de charque3, tendo grande importância no desenvolvimento das estâncias e do ciclo pastoril. Ainda no século XVIII, depois dos colonizadores lusitanos praticamente dizimarem a população indígena4, baseada numa economia de pecuária, o governo imperial vislumbrava outra forma de ocupação do Rio Grande do Sul, como destacam Magnoli et al. (2001),

[…] o governo imperial queria ocupar as terras do sul do país de uma forma diferente da que vinha sendo usada pelos colonos portugueses até então: colonização centrada na criação de gado em grandes latifúndios e com o uso de mão-de-obra escrava. O interesse era pelo cultivo da terra em lugar da pecuária do trabalho escravo. (MAGNOLI et al., 2001, p. 40)

No século XIX, em 1824, ocorre a chegada da primeira leva de imigrantes alemães, primeira colonização européia não-portuguesa introduzida no Rio Grande do Sul. O governo imperial estimulou o assentamento de colonos europeus visando a “vinda de famílias, capazes de produzir alimentos, além das razões político- militares tradicionais do reino” (WOORTMANN, 1995, p.104), assim preenchendo os vazios demográficos e econômicos deste Estado. Como aponta Woortmann (1995):

O processo de ocupação pelos colonos interessava ao capital num duplo sentido: a valorização das terras e a comercialização da produção. Realizando o objetivo da Lei de Terras, datada de 1850, a colonização transforma terras devolutas em mercadoria, cria um campesinato parcelar, ao mesmo tempo em que expropria o posseiro. (WOORTMANN, 1995, p. 98). [grifos da autora]

3 O charque consiste em carne de gado salgada e seca ao sol, produto que deu nome às estâncias – Charqueadas –, que tinham como atividade econômica a produção e comercialização de charque, couro e sebo. 4 Cabe destacar que no discurso de ocupação e apropriação do Rio Grande do Sul, os índios não são considerados povoadores do território, sendo associados à natureza, à “qual se opõe a civilização que os imigrantes trazem. Assim: índios→mato→natureza X imigrantes →colonização→civilização” (SANTOS, 2004, p. 39). 28

Os primeiros imigrantes foram assentados em glebas de terra situadas nas proximidades de , “em cujas proximidades havia abundância de terras devolutas, era uma cidade a reclamar abastecimento de alimentos, o que foi assegurado com a criação da Colônia São Leopoldo” (WOORTMANN, 1995, p. 103), praticando uma agricultura em pequenas propriedades voltada à produção de alimentos.

Após a criação da Colônia São Leopoldo, outras colônias alemãs foram fundadas no Rio Grande do Sul, estabelecendo-se em áreas de floresta, pois os imigrantes acreditavam que estas áreas eram as propícias para agricultura, com função de produzir alimentos, sendo que:

A atividade de todas as colônias e de todos os seus habitantes, pelo menos no começo, era a cultura de subsistência, sobretudo de milho, do feijão- preto e da batata. Nessa época, firma-se entre os colonos a idéia de que as únicas terras propícias para a agricultura são de florestas. (ROCHE, 1969, p.13).

As colônias tinham como caráter marcante a atividade econômica desenvolvida a partir da agricultura policultora de base familiar, como destacado por Salamoni (2001),

O tipo de economia colonial implantada pelos imigrantes alemães teve como característica marcante o estabelecimento da policultura a qual, segundo a tradição alemã, deveria solidificar o caráter independente dos colonos. Ao lado disso, o trabalho familiar serviria para reforçar essa idéia de independência, uma vez que não se utilizava mão-de-obra externa entre os colonos. Todos os membros da família envolviam-se nas tarefas domésticas e na produção agrícola a fim de alcançar a autonomia econômica. (SALAMONI, 2001, p.32).

Com a regulamentação da lei provincial de 1848 ocorreu uma série de modificações estruturais, como a redução dos lotes cedidos aos colonos5, assim:

5 Estes imigrantes alemães e, mais tarde, os italianos, pomeranos, franceses, etc, serão denominados de colonos, pois “para o Estado, eram colonos todos aqueles que recebiam um lote de terras em áreas destinadas à colonização” (SEYFERTH, 1992, p.80). Para esta autora (1992, p.80), “colono é a categoria designativa do camponês (...) e sua marca registrada é a posse de uma colônia (...) a pequena propriedade familiar”. Assim, no sul do Brasil, reconhecem-se e são conhecidos como colonos os agricultores descendentes de imigrantes europeus em que a identidade de colonos converte-se em um símbolo de diferenciação étnica. 29

A Lei de Terras e o capital imobiliário privado fizeram da terra um “bem limitado”, uma mercadoria, mediado pelo dinheiro dependente do capital comercial. A partir desse período acentua-se a migração de filhos de colonos para novas áreas. [...] Após a república, a área vendida se reduz a 25 hectares por família, forçando as gerações seguintes a se deslocarem para outras regiões do país. (WOORTMANN, 1995, p.100).

Assim, além da redução do lote e o prazo máximo de cinco anos para o pagamento deste, ocorre o deslocamento dos filhos dos colonos pioneiros, em que “o „espírito de parentesco‟ faz com que a migração se faça através de grupos de parentes (irmãos, primos, etc., assim como afins) que irão replicar o modelo em outro lugar – para, em seguida, recomeçar tudo de novo”. (WOORTMANN, 1995, p.116).

A partir de 1870, o Brasil encontrava-se no auge do ciclo do café, principal produto de exportação, recolocando ao governo a necessidade em reativar as campanhas de imigração6. Neste período, a Itália passava por transformações sociais, o norte estava se industrializando rapidamente, seguindo a trajetória do capitalismo industrial que caracterizava a Europa do período. Em 1875, o governo imperial incentivou a vinda de colonos italianos para o Rio Grande do Sul, com interesse voltado à produção de alimentos para o abastecimento interno. Essa colonização compunha-se, também, uma estratégia de “branqueamento” da população brasileira.

Os imigrantes italianos chegam em condições mais adversas que os imigrantes alemães. Os imigrantes que chegaram após 1854 tiveram que pagar pelas terras, dada a Lei Provincial de Terras. Como esclarece Pesavento (1985);

No que diz respeito aos italianos que ingressaram a partir de 1875, chegaram à província em uma situação de desvantagem se comparada com à dos alemães, 50 anos antes. As melhores terras já se achavam ocupadas e coube aos italianos receber lotes ainda menores (25 ha) na encosta da

6 Cabe destacar que a chegada de imigrantes italianos na região sudeste e, particularmente, no estado de São Paulo, se diferencia da formação das colônias no sul do Brasil. Ocorreu, por parte do governo, um estímulo para que os fazendeiros de São Paulo promovessem a vinda de imigrantes estrangeiros para trabalhar nas lavouras de café. Como destaca Szmrecsányi (1900), além da nova origem dos colonos, em sua maioria originários do norte da Itália, ocorreram alterações na relação imigrante-fazendeiro: “tratava-se da participação dos primeiros (imigrantes) na lavoura cafeeira desde o seu início – isto é, a partir da formação do cafezal - com a permissão de usarem os espaços intercalares para o cultivo de gêneros de subsistência” (SZMRECSÁNYI, 1900, p. 46), dando origem ao chamado colonato paulista, que se manteve inalterado até meados do século XX. 30

serra. O lote era vendido a crédito e o prometido subsídio para alimentação que seria concedido por um ano foi cancelado. A única ajuda com que o imigrante italiano contou foi aquela advinda do trabalho remunerado de 15 dias por mês na abertura de estradas. (PESAVENTO, 1985, p. 50).

A instalação das primeiras colônias de imigrantes italianos ocorreu “na zona da mata, entre a região dos Campos de Cima da Serra, (onde predominava a pecuária dos descendentes de portugueses), a Depressão Central (onde estavam os alemães) e a Campanha”. (ANJOS, 2000, p.65). Como ressalta Santos (2004),

As primeiras colônias na encosta superior do nordeste do Rio Grande do Sul foram as de Conde d‟Eu e Dona Isabel, na região onde atualmente estão localizados respectivamente, os municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves. Estas colônias foram criadas pela presidência da província em 1870, antes que se iniciasse o processo de imigração italiana no estado. Para ocupá-las, o governo provincial firmou contrato com duas empresas privadas, que deveriam introduzir quarenta mil colonos em um prazo de dez anos. (SANTOS, 2004, p. 41).

Inicialmente, a ocupação deu-se por um pequeno número de imigrantes7, somente a partir de 1875 é que se efetivou a formação destas colônias, sob a administração da União. As primeiras levas de italianos vieram das regiões do Piemonte e Lombardia e, mais tarde, do Vêneto. Instalaram-se na região fisiográfica da Encosta Superior e Inferior da Serra, tendo como atividades econômicas o cultivo da uva e a produção de vinho, como relatado por Fausto (2000), a seguir.

Pequenos cultivadores procedentes em sua maioria do Tirol, do Vêneto e da Lombardia estabeleceram uma série de colônias, das quais a de Caxias foi a mais importante. A atividade econômica dos italianos, além de seguir alguns caminhos semelhantes a dos alemães, especializou-se no cultivo da uva e na produção do vinho. Entre 1882 e 1889, em um total de 41.616 imigrantes que ingressaram no Rio Grande do Sul, 34.418 eram italianos. (FAUSTO, 2000 apud SANTOS, 2004, p.38).

Dentre as colônias criadas, a primeira foi Caxias, em 1875. Posteriormente, “Alfredo Chaves em 1884, , , Barão de Triunfo e

7 De acordo com Woortmann (1995), neste período “a quantidade relativamente pequena de emigrados para o Brasil explica-se, pelo menos em parte, pelo impacto negativo causado pelas notícias de semi-escravização de suíços, alemães e italianos nos cafezais paulistas (...). Além disso, a Europa, apesar da Revolução Liberal de 1848 que provocou a fuga de várias pessoas e de outras que se seguiram até 1870, procurava reter sua população. (WOORTMANN, 1995, p.105).

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Vila Nova em 1887, Antônio Prado em 1888 e Guarani em 1889” (ANJOS, 2000, p.65).

As motivações que levaram à travessia destes imigrantes estavam relacionadas tanto à pressão demográfica como a guerras e doenças, mas também ao padrão de herança – aos não-herdeiros, cabe o mundo, segundo Woortmann (1995). A colonização ítalo-alemã concentrou-se na metade norte do Estado do Rio Grande do Sul (Fig. 01), que foi ocupada principalmente por agricultores familiares e artesãos, seguidos por seus descendentes que, mais tarde, ocupariam o sul do Estado, caracterizando uma estrutura agrária baseada na agricultura familiar em pequenos lotes de terra. Assim,

O norte define-se pela economia de base agrícola. É a região que sofreu transformação substancial na estrutura agrária, a qual, de uma oposição marcante entre grandes estabelecimentos em zona de campo e minifúndios em zona de mata, evoluiu para a formação de granjas e o predomínio de pequenos e médios estabelecimentos agrícolas. (HEIDRICH, 2000, p. 105).

Figura 01: Mapa ilustrativo do Estado do Rio Grande do Sul, retratando a divisão norte-sul Fonte: FEE, 2011.

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2.2 MUNICÍPIO DE PELOTAS: ASPECTOS HISTÓRICO-ESPACIAIS

O contexto histórico-espacial do município de Pelotas, até a segunda metade do século XIX, compreendia uma extensa faixa territorial representada pelo compartimento geomorfológico denominado Serra dos Tapes em referência ao grupo indígena que ocupava anteriormente essa área, abrangendo o que atualmente são os municípios de Pelotas, , Capão do Leão, , Turuçu e São Lourenço do Sul. Essa delimitação geográfica e histórica passou a ser utilizada para identificar a zona colonial situada nos municípios mencionados anteriormente. Neste contexto, Coaracy (1957) descreve as áreas destinadas à formação das colônias como um relevo escarpado e por desbravar:

Por trás de duas estâncias, subindo os suaves declives da chamada Serra dos Tapes, uma sucessão de mansas, desdobrava-se a mata virgem sobre um solo rico de húmus. Pelas fímbrias da mata, aqui e ali, esparsas, algumas poucas taperas, vestígios abandonados de roças frustras. (COARACY, 1957, p. 37)

Sendo, então, na Serra dos Tapes que se instalaram as colônias de imigrantes europeus não portugueses, compondo um “mosaico cultural” de tradições étnicas e paisagens naturais de matas e serras. (VERGARA, 2010).

Por volta de 1736, foram concedidas as primeiras sesmarias a ex-tropeiros e militares que haviam participado da luta pela fixação das fronteiras ao sul do Brasil. Foram ocupadas zonas do litoral, centro e fronteiras sul e oeste, conhecidas como “terras de campo”, onde foi desenvolvida a pecuária extensiva. Cada propriedade desse gênero tinha de 11 a 13 mil hectares de extensão. Neste contexto, o município de Pelotas teve na criação da primeira charqueada a origem do povoamento e da atividade econômica do charque. Entretanto, como aponta Grando (1990), a produção diversificada de caráter familiar introduziu novas formas de organização socioespacial no município:

O desenvolvimento do campesinato em Pelotas representa o início da diversificação econômica da região. Ali a primeira charqueada fundada no Rio Grande do Sul, em 1780, deu origem ao povoamento. Durante quase um século, a pecuária extensiva permaneceu como ocupação dominante 33

daquele povo, até serem introduzidas a policultura e a pecuária de pequeno porte pelos colonos europeus. (GRANDO, 1990, p.44).

Assim, ao lado das charqueadas, o povoamento de Pelotas guarda em sua história a presença da pequena propriedade, resultado da ocupação por imigrantes procedentes das ilhas dos Açores, Madeira e Ilhéus que, posteriormente, foi seguida por imigrantes europeus de origem não-portuguesa. Este tipo de colonização foi estabelecida com base em uma estrutura fundiária formada por lotes com extensão que não ultrapassava 50 hectares.

Com a instalação da primeira charqueada, em 1780, outorgada a Tomaz Luiz Osório, Pelotas cresceu rapidamente, obtendo o título de Freguesia de São Francisco de Paula (1812), passando a Vila de Pelotas8 (1832) e a cidade de Pelotas (1835). Em 1853, Pelotas possuía 38 charqueadas e 37 olarias, constituindo o período em que se dá o apogeu de sua aristocracia, com a comercialização de charque como principal atividade econômica, que serviu à alimentação das tropas nas guerras dos Farrapos (1835 – 1845) e do Paraguai (1864 – 1870) e, mais tarde abasteceu a mão-de-obra escrava alocada na exploração do ouro, em Minas Gerais.

No século XIX configurou-se uma enorme crise nas atividades das charqueadas, ocorrendo uma nova etapa de diversificação econômica no município de Pelotas. Tendo como alternativa a mudança de atividade da pecuária para os cultivos agrícolas, conforme esclarece Grando (1990),

Os empresários do setor procuraram então transferir os recursos produtivos para outras atividades mais lucrativas. Encontraram boa alternativa na formação de lavouras capitalistas de arroz. Foi quando, pioneiramente, pecuaristas transformaram suas terras de pastagens em extensas lavouras, quer como exploradores diretos,quer como arrendadores. (GRANDO, 1990, p.44).

Ainda no século XIX, os charqueadores, estancieiros e comerciantes voltaram seus interesses às terras de mato do então município de Pelotas (Fig. 02), tomando posse delas com o “objetivo inicial de extrair a madeira e, esporadicamente, formar pequenas lavouras, ainda ambas as atividades baseadas na mão-de-obra escrava” (ANJOS, 2000, p.68). Mais tarde, ali desenvolveriam

8 O nome Pelotas é originário das rústicas embarcações utilizadas pelos nativos na travessia dos rios, confeccionadas, em formato redondo, com couro bovino e quatro varas. 34

atividade mais lucrativa: a formação de colônias de imigrantes europeus não- portugueses (ANJOS, 2000). O “crescimento populacional do município de Pelotas ocorreu, sem dúvida, em função da colonização sobre as áreas de serras ao norte, uma vez que a faixa litorânea, ocupada pelas estâncias e pelos campos de criação, mantinha-se com uma população escassa” (SALAMONI, 2001, p.38).

Figura 02: Mapa do município de Pelotas (1911) - grande extensão de terras de mato, em que se instalaram os imigrantes, formando as colônias. Fonte: GRANDO, 1990, p. 75.

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No bojo deste processo, a produção familiar foi introduzida em Pelotas, gerando a formação, lado a lado, de duas sociedades rurais, que se caracterizam por desenvolver atividades econômicas diferenciadas e que ocupam áreas topograficamente distintas: a planície, ao sudeste, e a serrana, a noroeste. Assim,

Na primeira, localizaram-se as grandes propriedades dos estancieiros e charqueadores, sustentadas economicamente pelo braço escravo, na segunda, multiplicaram-se as pequenas propriedades, destinadas ao assentamento de imigrantes europeus, que iriam praticar, num primeiro momento, a policultura e a pecuária de subsistência. (ANJOS, 2000, p.67).

No que se refere à ocupação de áreas do município pelos imigrantes europeus, segundo relata Grando (1990), no Rio Grande do Sul a colonização foi levada a cabo pela iniciativa privada antes mesmo da Lei Imperial de 1850. A autora explica o processo:

A iniciativa partiu da administração municipal de Pelotas, interessada em introduzir a agricultura na economia do Município, a qual se encontrava centrada na pecuária e na indústria do charque. Tais atividades se localizam nas campinas, as quais, ocupando a maior parte do Município, se estendiam no sentido do leste para o sul de seu território. Para isso, o Governo Provincial autorizou, em 1848, a criação de uma colônia agrícola – denominada Colônia São Francisco de Paula –, que, todavia, nunca foi criada por ter o Presidente da Província, um ano após julgado-a inoportuna. (GRANDO, 1990, p.68-9).

Assim, a tentativa de criar uma colônia neste período foi fracassada, sendo que dados do ano de 1867 constam que da tentativa de criação das Colônias Monte Bonito e Colônia D. Pedro II “restavam poucas famílias irlandesas, ocupadas com a lavoura e o fabrico de manteiga. O desaparecimento dessas duas colônias foi atribuído ao fato de os imigrantes serem mais artífices do que agricultores” (GRANDO, 1990, p.70).

O processo colonizador do município é reativado no início da década de 80 do século XIX, sob iniciativa do Governo Geral, que cria três núcleos: Accioli, Afonso Pena e Maciel. Neste mesmo período, “a Câmara Municipal de Pelotas realizando uma antiga aspiração, criou uma colônia, denominada Municipal, comprando 2.497 ha de terras de particulares e repassando-as em lotes de 30 hectares, em média, a agricultores brasileiros” (GRANDO, 1990, p.71). Teve, assim, início a distribuição 36

das terras de mato da Serra dos Tapes. No entanto, essas três colônias encontravam-se afastadas da cidade de Pelotas e sem vias de comunicação, o que dificultou e retardou o processo de sua consolidação.

No decorrer dos anos, intensificou-se a ocupação das primeiras áreas coloniais, configurando o atual cenário da colônia de Pelotas,

Toda a Serra foi dividida em pequenas propriedades, as picadas multiplicavam-se e nelas o movimento crescia. Estabeleceu-se ali uma corrente de imigrantes, que geralmente não chegavam diretamente da Europa. Eram originários das colônias situadas mais ao norte do Rio Grande do Sul, sendo, na sua maioria, alemães. Mas afluíram para lá também espanhóis, austríacos, franceses e italianos, muitas vezes vindos mesmo de outras províncias. (GRANDO, 1990, p.73).

Neste contexto, entende-se que

[...] a colonização da região da Serra dos Tapes se deu através de dois processos distintos: a imigração espontânea que transcorreu ao longo de algumas décadas e a imigração organizada (por particulares ou pelo governo). Nos dois casos temos a participação de agentes que recrutavam imigrantes a serviço das sociedades promotoras da imigração, e também do governo. (PEIXOTO, 2003, p.8).

Com a ocupação da Serra dos Tapes, entre as atividades agrícolas desenvolvidas destaca-se a fruticultura, sendo praticada por sucessivas gerações, baseada em “um sistema de culturas sobre queimadas, após a derrubada do mato virgem, ateavam fogo e em seguida, preparavam a terra só com o uso da enxada”. (GRANDO, 1989, p.66).

Dentre as espécies produzidas, destacou-se a produção de pêssego. Como esclarece Salamoni (2001), o cultivo de pêssego teve grande importância na economia do município.

Convém salientar que o pêssego permaneceu por muito tempo como uma das culturas de maior importância econômica dessa região. Em decorrência da instalação de indústrias conserveiras, por volta da década de 50, os agricultores foram incentivados a modificar seus sistemas de cultivo, passando a produzir, ao lado das culturas tradicionais de subsistência, matérias-primas como o pêssego, aspargo, milho-doce, morango e ervilha. (SALAMONI, 2001, p. 33). 37

A região em que predominou a imigração italiana caracterizou-se pelo cultivo da uva e produção do vinho, porém “as mudas trazidas pelos imigrantes italianos não sobreviveram, por este motivo passaram a produzir o vinho com uma uva americana do tipo Isabel, trazida da Califórnia”. (PANIS, 2009, p. 80).

As principais estradas de acesso à área colonial eram as estradas de Santo Amor (Retiro) e Monte Bonito, sendo que a primeira comunicava a colônia com o município de Canguçu, atravessando a Serra dos Tapes, fazendo ligação, também, com o município de São Lourenço do Sul. A estrada do Monte Bonito dividia-se, depois do Arroio Pelotas, em duas ramificações, “uma atravessava a Colônia Santo Antonio, chegando a Colônia Municipal, outro atravessava as colônias Santa Helena e Maciel, encontrando a estrada que segue para Canguçu” (ANJOS, 2000, p.75). Por essas estradas era escoada a produção das colônias, como registrado, em 1898, por Carl Ullrich9,

A pequena distância da cidade implica no fato de que, salvo poucas exceções, cada colono leve, com meios de transporte próprios, seus produtos diretamente para o mercado. Lá ele vende diretamente ao exportador, com freqüência aos próprios consumidores, fugindo assim completamente da exploração inescrupulosa dos intermediários. As carroças são de 4 rodas, fortemente construídas e produzidas aqui nas próprias colônias. (ULLRICH, 1999, p.143).

Cabe destacar que esse autor menciona a proximidade das colônias referindo-se às que se localizavam a poucos quilômetros da cidade de Pelotas. No entanto, instalaram-se colônias bem mais distantes da cidade. Com relação à configuração da vida familiar nas colônias, organizou-se, como relatado por Ullrich (1999):

Os filhos trabalham até o casamento como agregados na casa do pai, igualmente as filhas. O chefe da família se encarrega de todos os negócios. Dinheiro, as crianças recebem só raramente e pouco. Tudo o que entra vai para a caixa da família. Tão logo um filho deseja casar, será comprado um pedaço de terra, se for um dos rapazes, e será organizada a economia para

9 Carl Otto Ullrich era um imigrante alemão e fixou residência na colônia Santo Antônio, onde exerceu as funções de professor primário, agrimensor e pastor evangélico. Este texto foi publicado em Berlim no ano de 1898, com a finalidade de informar e estimular a vinda de imigrantes para o Brasil. O autor descreve a região da serra de Tapes (RS), enfocando principalmente a colônia Santo Antônio – Pelotas, sobre as condições de vida dos agricultores, a produção e as possibilidades de transporte e comércio, reforçando os lotes disponíveis à venda, suas localizações e preços e, ainda, sobre as terras não loteadas.

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o respectivo. Se for uma moça, será juntado uma soma como dote. (ULLRICH, 1999, p.145).

Atualmente, o município de Pelotas limita-se ao norte com o município de São Lourenço do Sul, Canguçu, Turuçu, ao sul com o município de Rio Grande, a leste com a Lagoa dos Patos, a oeste com o município de Capão do Leão, sendo que no interior município de Pelotas originou-se o município de Arroio do Padre (Fig. 03). O município está, atualmente, dividido em nove distritos, de acordo com a Lei N° 5.490, de 24 de julho de 2008.

Figura 03: Mapa do Rio Grande do Sul com destaque para o município de Pelotas, seguindo, em destaque, o distrito de Rincão da Cruz, no qual se localizam as colônias Maciel e São Manoel. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

2.2.1 COLÔNIA MACIEL

A colônia Maciel foi criada pelo governo provincial entre 1881 e 1882, mas o processo de ocupação teve seu início em 1883 e 1884, sendo a única colônia imperial na região (ver localização na figura 03). Por estes núcleos localizarem-se afastados da cidade de Pelotas, com dificuldade de comunicação, neste primeiro momento não ocorreu uma significativa ocupação por parte dos imigrantes na colônia Maciel, sendo que “em 1888, haviam desembarcado em Pelotas 72 imigrantes, chamados por parentes já estabelecidos em núcleos coloniais, e que 39

estes foram instalados em lotes de terras no núcleo Maciel, pois este era o único de que se podia dispor” (PEIXOTO, 2003, p.10).

A fundação desta colônia está relatada nas primeiras páginas do Livro Tombo da paróquia SantʼAna10, que registra o histórico de formação da Colônia Maciel, incluindo a lista dos primeiros imigrantes italianos ali chegados (anexo1).

No ano de 1883 (ou 1884 - início da colonização) mais ou menos, mandaram ele dividir esta data de matos em lotes coloniais, e um ano depois introduzia alguns colonos (imigrantes) italianos da região do Vêneto, em sua maioria da Província de Treviso. No centro destas colônias, o governo mandou construir um Barracão, onde os emigrantes moraram por algum tempo, até colocá-los nos lotes coloniais. Aos primeiros que aqui chegaram deu um lote urbano, perto de onde construíram o dito Barracão. Mais tarde servia de capela. Na mesma ocasião o governo designou 4 lotes urbanos para o Cemitério da Colônia e um lote para a Igreja, que era o lote em que se achava o Barracão. Esta Colônia fica quase toda no quinto distrito de Pelotas, pela nova divisão dos municípios, de Pelotas e Canguçu. Foi nos anos de 1884 a 1886 que vieram os primeiros colonos, para a Maciel. Aqui escrevemos os nomes das famílias que começaram a povoar estas colônias e derrubar os matos. No primeiro ano, tiveram auxílio do governo tanto dos víveres, como das ferramentas para os trabalhos. (Livro Tombo Paróquia SantʼAna).

A Colônia Maciel foi fundada pelo governo imperial, em 1885, e em 1900 possuía 65 lotes com 55 famílias e 343 pessoas (ANJOS, 2000). Passou a ser sede de paróquia em 1920, “dirigida por D. Giacobbe Lorenzet. Em 1925, habitavam na Colônia Maciel 125 famílias. Em 1928 foi inaugurada a Escola Municipal Garibaldi”. (PEIXOTO, 2003, p.14).

Carl Ullrich descreve a Colônia Maciel já em 1884, destacando a produção de alimentos e a fabricação de vinho,

À esquerda de Santa Helena situa-se paralelamente, Maciel, uma colônia do governo de 50 lotes de 360.000 m2, habitada por 56 famílias italianas num mesmo número de casas. Há 5 casas comerciais, dois moinhos, uma escola da comunidade, uma escola do governo e uma igreja católica. A produção é de milho, feijão, tremoço, vinho, cevada, trigo, etc. Quanto à qualidade do vinho, é muito inferior à do vinho de Santo Antônio, porque a maioria dos produtores não se esforça muito na sua preparação e também

10 O livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, consta registros dos acontecimentos da comunidade, desde a chegada dos primeiros imigrantes italianos. Registrados pelos padres que estiveram a frente desta paróquia em diferentes períodos. Agradeço a secretária da paróquia, dona Maria, e ao padre Luis pela atenção e acesso ao livro. 40

não tem os recursos e adegas necessários. A qualidade do solo é 1 e 2. Há muito pouco solo arável, sendo bastante acidentado, com muitas rochas e alguns lotes sem nenhuma terra arável. As estradas no interior da colônia são muito ruins. (ULLRICH, 1999, p.142). [Grifo do autor].

De acordo com Anjos (2000), os dados do recenseamento urbano de 1899 comprovam que, a partir de 1875, os italianos representavam o maior grupo de estrangeiros não-portugueses em Pelotas. Em 1899, a população urbana de Pelotas era de 26.312 habitantes, sendo que 654 imigrantes eram de origem italiana, 482 uruguaios, 457 espanhóis, 291 alemães.

2.2.2 COLÔNIA SÃO MANOEL

A Colônia São Manoel foi fundada em 1893, por Pedro Antonio Toledo, sendo esta de caráter particular, com uma área inicial de 400 hectares, compreendendo, em 1898, 104 lotes com 79 famílias alemãs e duas famílias italianas e brasileiras, com uma população de 349 habitantes. Os principais cultivos então realizados eram milho, feijão, batata inglesa:

À direita de Santa Helena situa-se a importante colônia São Manoel (Fazenda Três Barras), fundada em 1893 por Pedro Toledo. Foram medidos 104 lotes coloniais, dos quais 88 vendidos. Existem 50 ainda a serem medidos. São ótimos matos, muita madeira para construção, excelente terra para o cultivo. [...] A população consiste de 349 habitantes em 79 casas, todos alemães, com exceção de duas famílias brasileiras e italianas. Existe uma escola da comunidade alemã; em construção uma serraria (um alemão em sociedade com Pedro Toledo). Qualidade do solo 1; quase todo solo arável, levemente acidentado, pouco rochoso. Produtos: milho, feijão, batata-inglesa, tábuas, casca de árvore para curtume, etc. (ULLRICH, 1999, p.141). [Grifo do autor]

Das colônias instaladas no município de Pelotas, apenas algumas foram colonizadas por novos imigrantes: Santo Amor, Maciel e Colônia Municipal. Ao contrário, a maioria foi ocupada por colonos vindos de São Lourenço do Sul, Santa Clara, Santa Silvana e, mais tarde, de Blumenau, em Santa Catarina (ULLRICH, 1999). 41

Neste contexto, no processo de imigração para o Brasil, conformam-se o histórico de formação e consolidação das colônias Maciel e São Manoel, ambas situadas no Distrito de Rincão da Cruz11 – 8º distrito do município de Pelotas. E que, mais tarde, povoaram outras colônias com descendentes de imigrantes italianos, alemães, franceses, pomeranos, portugueses e descendentes de escravos e indígenas12, configurando-se, assim, os aspectos histórico-espaciais (econômicos, sociais e culturais) da região colonial de Pelotas.

11 O distrito de Rincão da Cruz - 8° distrito do município de Pelotas - é formado pelas seguintes colônias: São Manoel, Maciel, Santa Helena, Rincão da Caneleira, Rincão da Cruz, Santa Eulália, Santa Maria (parte) e Santa Áurea (parte), Arroio Bonito (parte), Colônia Municipal (parte) e Colônia Dias (parte). Cabe salientar que esse distrito é marcado pela produção familiar, tendo atualmente como principais produtos o pêssego e o fumo. Foi colonizado, principalmente, por italianos (destacando-se as colônias Maciel, Rincão da Caneleira, Santa Eulália, Santa Maria) e também por alemães e pomeranos (São Manoel, Santa Helena, Colônia Municipal, Rincão da Cruz). 12 Vale mencionar que na Colônia Maciel atualmente vive uma família de indígenas Mybiá-Guarani.

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3 FESTA DE SANTʼANA E DIA DO VINHO NA COLÔNIA MACIEL: A “FESTA ANTIGA” E A “FESTA À ANTIGA”

Ao pensar a festa, nos remetemos a inúmeros significados. Para Chiamulera (2010, p.33), “a falta de definições precisas, a ambiguidade concernente ao termo e sua difícil apreensão, por seu caráter efêmero, são características já apontadas em estudos que têm as Festas como centro de seus questionamentos”. Neste sentido, tentamos delinear o conceito de festa à luz dos estudos de Garinello (2001) e Tedesco e Rosseto (2007). Para Tedesco e Rosseto (2007) a festa sempre ritualizada constitui-se em

[...] um momento de situações profanas e sagradas, relacionais e grupais; em última instância, comunitárias; é o passado, ou algo do passado cotidiano e tradicional que busca manter e atualizar significações, expressar relações simbólicas, formatos societais, hierarquias, posições sociais, performance de grupos étnicos nacionais que buscam fortalecer um sentimento próprio de si mesmos, porém em correlação.(TEDESCO; ROSSETO, 2007, p.19).

A festa também define identidades, conformadas na relação entre o tradicional e o moderno, ou seja, constitui-se como espaço de “produção de memória e, portanto, de identidade no tempo e no espaço sociais” (GARINELLO, 2001, p. 972). Assim, tem-se a festa como produto do cotidiano. Nas palavras do autor:

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá sempre num tempo e espaço definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluências das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. (GARINELLO, 2001, p.972).

Ainda, temos que “o sentido da festa e, portanto, da identidade que propõe e produz, depende sempre dos participantes, eventuais ou desejados, cuja presença e envolvimento determinam o sucesso e o significado último de qualquer festa”. (GARINELLO, 2001, p. 974). Atentando para os significados e símbolos da festa e tendo em vista estudos que as analisam em diferentes contextos (Santos, 2004; Ramos, 2007; Wedig, 2009; Wedig, Ramos e Menasche, 2010; Chiamulera, 2010), toma-se a observação de festas em comunidades rurais para tentar apreender as 43

diversas relações que conformam o rural contemporâneo. Neste sentido, voltamos nosso olhar para dois momentos festivos na Comunidade Católica Sant‟Ana: a Festa de Sant‟Ana e a Festa do Dia do Vinho13. Cabe destacar que foram observados outros momentos festivos nesta comunidade, mas não serão aqui especificamente analisados por entender que essas observações serão contempladas nas discussões das festas acima citadas.

Com o intuito de analisar as festas, por inúmeras vezes estive presente no salão da comunidade para ajudar as mulheres que trabalham no preparo e realização das mesmas. Foi no ambiente de reciprocidade, de trabalho e alegria, que acompanhei o preparo das comidas e observei as relações de parentesco, vizinhança e amizade que ali se renovam. Desde minha primeira inserção em campo, em fevereiro de 2010, entendi que a confiança do grupo seria conquistada através do trabalho desempenhado nas festas. Assim, a cada festa, o reconhecimento de meu trabalho fazia com que assumisse “novo posto”. Na preparação de minha primeira festa na localidade, a Festa de Sant‟Ana, as tarefas consistiram em auxiliar: descascar batatas e cebolas, descascar frutas para a salada de frutas, untar as formas para assar cucas e pães. Nas festas que se seguiriam – 4º e 5º Dia do Vinho e Café Colonial Dançante –, eu seria escalada tanto para a preparação como realização dos eventos, passando a portar avental e touca e a circular pelo salão como uma das mulheres da cozinha, com as funções de repor a comida no buffet, auxiliar o público e retirar a louça suja das mesas.

O trabalho nas festas proporcionou um olhar de dentro para fora, ou seja, partindo do grupo para as relações que conformam a comunidade. Neste ambiente pude circular pelos diversos grupos de homens e mulheres, conversar, ouvir, sentir os cheiros das comidas, comer, trocar receitas, abraçar. Enfim, todos esses momentos possibilitaram a posterior aproximação com o cotidiano das famílias.

Pensando na comida como perspectiva de análise e entendendo que esta possui significados simbólicos e que a cultura não é estanque, pois passa por

13 Esta festa ocorre sempre à noite, com um jantar. Mas como a proposta esta vinculada ao Dia Estadual do Vinho, comemorado anualmente no primeiro domingo do mês de junho, esta festa se intitula “Dia do Vinho”.

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contínuas atualizações e ressignificações, é que a festa de Sant‟Ana e a festa do Dia do Vinho, ambas realizadas na Colônia Maciel, são constituídas como espaço privilegiado de estudo para tentar apreender as motivações da constituição de italianidade nas colônias Maciel e São Manoel.

Inspiramo-nos na perspectiva metodológica proposta por Bourdieu (2006) 14, ao estudar o baile, no contexto de uma comunidade rural francesa nos anos 1960. Ali o evento é tomado como ponto de observação, tendo em vista que:

[...] os bailes que periodicamente se realizam no bourg ou nos vilarejos vizinhos se tornaram a única ocasião socialmente aprovada de encontro entre os sexos. Em conseqüência, esses bailes oferecem uma ocasião privilegiada para se compreender a raiz das tensões e dos conflitos. (BOURDIEU, 2006, p.84).

Para esse autor, o baile do interior é tomado como palco de um verdadeiro choque de civilizações, pois “nele é todo o mundo da cidade, com seus modelos culturais, sua música, suas danças, suas técnicas corporais, que irrompe na vida camponesa” (BOURDIEU, 2006, p. 85).

Assim, na localidade em estudo, coloca-se a atenção nos saberes e práticas alimentares que conformam as festas e a comunidade rural, buscando analisar por quem e para quem são produzidas. O olhar é, assim, conduzido para a Festa de Sant‟Ana e para a festa do Dia do Vinho, à luz também do estudo realizado por Champagne (1977) em uma aldeia francesa, em período posterior à modernização da agricultura. A Festa de Sant‟Ana é aqui interpretada como uma “festa antiga”, por constituir-se como uma festa “da comunidade”, em que laços de sociabilidade e reciprocidade agem na conformação da mesma, marcada pela autonomia da comunidade em sua organização: é uma festa pensada e realizada pela comunidade e para a comunidade. Já a festa do Dia do Vinho é interpretada como uma “festa à antiga”, por dirigir-se a um público externo, ancorando-se em motivações de ordem econômica: é uma oportunidade de fazer negócios e divulgar a produção local de vinhos.

14Baseado em um estudo da cidade em que passou a infância (no Béarn, no Sudoeste da França), realizado nos anos 1960, publicada primeiramente sob o título Célibat et condition paysanne [Celibato e condição camponesa] em 1962. 45

Nos contextos das festas observadas, a cozinha é assimtomada como campo de estudo, uma vez que, como já disse Lévi-Strauss (1968, p.169, apud WEDIG, 2009), a cozinha conforma-se em elemento cultural, dado que “tal como não existe sociedade sem linguagem, tão pouco existe nenhuma que, duma maneira ou doutra, não cozinhe pelo menos alguns dos seus alimentos”. Assim, partiu-se da cozinha da comunidade e das relações do transformar o alimento em comida para analisar as festas.

3.1 FESTA DE SANT’ANA, A FESTA ANTIGA

Esta festa acontece anualmente, no mês de fevereiro, em homenagem à padroeira – Sant‟Ana15 – da comunidade católica da Colônia Maciel (Fig. 04), sendo organizada pelas famílias das colônias Maciel, São Manoel, Santa Áurea, Municipal, dentre outras localidades. A festa ocorre sempre em um domingo, iniciando com a missa festiva, seguida de almoço, à tarde café colonial, baile e jogos e à noite baile com discoteca (música eletrônica e outros ritmos).

Figura 04 - Igreja da Comunidade Católica Sant‟Ana e salão da comunidade. Fonte: autora, 2010.

15 Em trabalho anterior – Machado e Menasche (2010) –, essa festa foi já descrita e analisada. Retoma-se aqui aquela reflexão, de modo a colocá-la em diálogo com a outra festa em estudo. 46

A Festa de Sant‟Ana tem sua experiência relacionada ao trabalho em mutirão, cuja frequência, no decorrer dos últimos anos, principalmente após a modernização da agricultura, vem se reduzindo. Neste sentido, vale lembrar o estudo de Cândido (1987), dedicado a caipiras do interior paulista de meados do século XX, no qual destaca o trabalho em mutirão e a religião como elementos de conformação do bairro rural, sendo o bairro compreendido como “o agrupamento mais ou menos denso da vizinhança, cujos limites se definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais” (CÂNDIDO, 1987, P. 71). Para esse autor compartilhar o trabalho e a religião é o que delimita o bairro, cujos contornos territoriais são traçados, em boa medida, pela participação dos moradores em trabalhos de ajuda mútua, como parte de uma relação de reciprocidade que se realiza, antes de tudo, com Deus (WEDIG, 2009): o auxílio prestado seria primeiramente a este, não ao vizinho. Cândido (1987), ao destacar o depoimento de um velho caipira, evidencia que para ele o mutirão não é percebido como uma obrigação para com as pessoas e sim para com Deus, pelo amor de quem serve ao próximo, sendo por isso que ninguém recusa um auxílio pedido. Assim é que, no caso aqui estudado, conforma-se o mutirão de uma das festas observadas, uma forma de sociabilidade pautada na reciprocidade: com os vizinhos, mas, sobretudo, com Deus, por intermédio da padroeira da comunidade, Sant‟Ana.

A preparação da festa tem início dias antes, quando as mulheres se reúnem durante a semana para limpar o salão e iniciar a preparação das bolachinhas e cucas que serão servidas no café colonial da tarde e vendidas separadamente (Fig. 05). Enquanto um grupo limpa o salão, outro prepara as bolachas e o grupo responsável pelas cucas prepara as primeiras fornadas.

No dia que antecede à festa trabalham em torno de 25 mulheres, divididas em equipes para melhor desenvolver as tarefas. Também os homens desenvolvem as tarefas em equipes, na parte externa da cozinha. No salão, um grupo passa a ferro as cortinas e as coloca nas janelas. Enquanto isso, na cozinha outro grupo segue preparando as cucas e pães e outro prepara as tortas doces, bolos recheados e pudins – que serão vendidos inteiros ou em fatias, no dia da festa. Por sua vez, outro grupo descasca batatas, cebolas e frutas para a salada de frutas. Na parte externa, os homens organizam os espetos e fazem espetinhos de bambu para o churrasquinho da tarde. Uma senhora, que trabalha há mais de trinta anos na 47

comunidade, é a responsável por preparar o almoço, café da tarde e janta para o grupo. Segundo ela, a comida tem que ser reforçada, porque é muito trabalho.

Figura 05: Saber-fazer: o preparo da bolacha colonial – da receita herdada à mesa do café colonial da festa. Fonte: autora, 2010.

No cotidiano desses homens e mulheres, ocorre uma divisão sexual do trabalho, correspondente a uma hierarquia familiar, associada a relações sociais de 48

gênero. A divisão sexual do trabalho no campesinato foi analisada em muitos estudos, como o de Heredia et al. (1984), que mostram que,

Se o lugar do homem é o roçado, o lugar da mulher, mãe de família, é a casa. [...] A casa não se restringe ao espaço físico ocupado pela construção; ela inclui também o terreiro (pátio) que a rodeia, local onde vive a criação (aves de quintal), cabras e porcos. (HEREDIA et al., 1984, p.30-1).

Essas classificações com relação ao espaço e ao trabalho mantêm-se na organização da festa, sendo as mulheres responsáveis pela parte interna do salão, limpeza, arrumação das mesas, colocação das cortinas e preparação da comida, enquanto que os homens são responsáveis pela parte externa ao salão, por organizar a churrasqueira, preparar espetos e fazer a lenha para assar o churrasco.

Mas não é apenas em relação ao espaço e ao trabalho que operam as classificações entre os camponeses estudados. Em conversa, ao explicar como prepara o pão de milho acrescido de batata doce, uma interlocutora explicou que faz o pão com farinha de milho branca, a mais fraquinha, porque a amarela é muito forte. Partindo do estudo de K. Woortmann e E. Woortmann (1997), realizado junto a sitiantes sergipanos, em que analisam suas classificações com relação à comida forte e fraca, podemos sugerir que, na Colônia Maciel, utilizar a farinha fraquinha no pão de milho pode estar associado ao fato desse pão ser servido com a comida de domingo, dia de descanso, em que as atividades não demandam força física, não sendo necessária a ingestão de comida forte. Ainda, é no dia consagrado ao descanso, o domingo, que ocorre a presença, na localidade, de moradores da cidade, em sua maior parte parentes e amigos dos que residem na colônia. Muito possivelmente essa presença de gente da cidade está entre os elementos explicativos da utilização da farinha mais fraquinha na elaboração do pão de milho consumido em dia de festa. Para os colonos, a comida da cidade é usualmente considerada como mais fraca.

Em conversa com algumas mulheres da localidade – senhoras situadas na faixa etária entre 65 e 80 anos –, elas revelaram que a preparação das cucas, pães e bolachas para esta festa antes era manual, sendo a massa preparada à mão e assada nos fornos de tijolo, na rua. Elas relembram que eram três fornos e que 49

chegavam a amassar mais de cem quilos de farinha à mão, para fazer as cucas para a festa. Comentaram, ainda, as dificuldades que havia na preparação da festa, pois não dispunham de um espaço adequado, era tudo feito em um galpão sem estrutura e tudo precisava ser emprestado por vizinhos: louça, panelas, talheres. A maioria dos alimentos era arrecadada na comunidade, mediante doações. Segundo relatos, antigamente vinham mais pessoas para esta festa e as mulheres preparavam as carnes de galinha e porco nos fornos da rua e também assavam bolinhos de carne, preparavam diversas saladas, arroz, massa e sopa de galinha. Com o tempo, foram construindo o salão, reformaram a casa paroquial e, com o dinheiro arrecadado nas festas, compraram louça, eletrodomésticos e adquiriram uma máquina para preparar as massas e um forno industrial para assar pães, bolachas e cucas.

Aliada à aquisição de equipamentos e eletrodomésticos, percebe-se a continuidade dos saberes antigos: no controle da temperatura do forno industrial, as mulheres utilizam folhas de bananeira, assim como utilizavam nos fornos de tijolos, tanto para medir a temperatura como para baixá-la (Fig. 06).

Figura 06: folha de bananeira no chão, ao lado do forno, Fonte: autora, 2010.

Analisando, ainda, os saberes e sabores que conformam a festa de Sant‟Ana, cabe apontar a inserção de alimentos industrializados nas receitas preparadas pelas mulheres. Ao observar a elaboração dos bolos doces, indaguei a mulher que os preparava a respeito da utilização de misturas pré-preparadas, os bolos de caixinha. Ela respondeu que considera que esses são mais práticos e são gostosos. Na mesa em que estavam expostos os ingredientes para elaboração dos bolos e pudins, podia-se notar a predominância de produtos industrializados, tais como: chocolate em pó, granulado de chocolate para decoração, margarina, leite condensado, açúcar, óleo, canela em pó, fermento para bolos, ovos comprados na cidade (ovos brancos). No entanto, enquanto preparava o pão, uma das mulheres comentou que utiliza a banha de porco na massa, porque considera que o óleo resseca o pão. 50

Percebe-se aí o que Ramos (2007) denominou de um “cardápio hibrido”, ou seja, um cardápio “montado” a partir do que se produz e do que se compra, composto a partir de alimentos produzidos na propriedade e os industrializados (Fig. 07). Assim, os saberes e sabores se conformam entre modos de preparo e produtos modernos e tradicionais.

Figura 07: Cardápio híbrido: cuca, receita mantidas por gerações, preparada com ingredientes da colônia e o bolo de caixinha, à base de produtos industrializados. Fonte: autora, 2010.

Essa festa religiosa conforma a sociabilidade da comunidade analisada, pois a festa tradicional da padroeira alimenta a alma, o corpo e as relações sociais. Assim, na realização da festa em homenagem à padroeira, os festeiros são mediadores do compromisso da comunidade para com Sant‟Ana. Os dois casais escolhidos pela comunidade como festeiros são responsáveis – juntamente com a diretoria da comunidade da Igreja católica – pela divulgação e organização da festa, bem como pela recepção e atendimento do público no dia da festa.

No final da manhã de domingo, após a missa, com as almas nutridas, depois da recepção do “corpo de cristo” – a hóstia – e de agradecerem e pedirem proteção à padroeira, todos seguem em direção ao salão, para alimentar os corpos e as relações. As famílias compram, na churrasqueira, os espetos de carne (porco, galinha e gado), enquanto que na copa – das mulheres – compram porções de salada de batata, pães e cucas. Posteriormente, seguem para as mesas, distribuídas pelas sombras, enquanto outros rumam para suas casas, com familiares e amigos, retornando pela tarde para o baile e jogos e/ou para matear com parentes, amigos e vizinhos. A tarde segue com o café colonial, com todos os quitutes preparados pelas “mulheres da cozinha”, jogos e dança (Fig. 08). 51

Figura 08: Missa em homenagem à padroeira (os fiéis estão em fila, para receber a hóstia), seguida do almoço e jogos à tarde.

Fonte: autora, 2010. No café, nota-se uma grande presença de casais mais velhos, sendo aí raros os jovens. O público da tarde é formado por famílias, com a presença de avós e crianças. No baile da tarde, animado por uma banda, as famílias dançam músicas gaúchas, de bandinha, as que costumam escutar no dia a dia. Quando a noite cai, a banda para de tocar e a discoteca, formada por rapazes da localidade, assume o baile constituído, na maioria das vezes, por jovens (Fig. 09).

Figura 09: O baile da tarde e a discoteca da noite. Fonte: autora, 2010.

Como já mencionado, entendemos que a cultura de um grupo social passa por contínuas atualizações e ressignificações, sendo este um processo dinâmico. Assim, na festa de SantʼAna, entendida como uma festa da e para a comunidade, pode-se perceber que o “antigo” segue presente no saber-fazer, o que é evidenciado, por exemplo, na manutenção da folha de bananeira para verificar a temperatura do forno, nas receitas herdadas e no trabalho em mutirão. No entanto, 52

temos a incorporação do que podem ser considerados elementos de modernidade: a aquisição de forno industrial em substituição ao de tijolos ou a utilização de ingredientes industrializados na preparação das receitas. Contudo, não observamos uma perda da cultura, mas sim uma mudança.

Também há uma disjunção, em que os jovens rompem com a festa antiga, preferindo a comida (cachorro quente e coca-cola) e música (discoteca) urbanas. Na festa de SantʼAna, os jovens frequentam a discoteca somente à noite, para dançar ao som das músicas urbanas, do mesmo modo que Bourdieu (2006, p.85) apontou em seu estudo: “as danças de antigamente, que traziam a marca do campo em seus nomes (la crabe, lou branlou, lou mounchicou etc.), em seus ritmos, em sua música, nas letras das músicas, foram substituídas por danças importadas da cidade”. Para o autor, a partir de categorias urbanas o camponês introjeta uma imagem desvalorizada que outros constroem dele e passa a perceber seu corpo como pesado, lento, rude, mal vestido, característico das atividades associadas ao trabalho do campo. Entendendo seu próprio corpo como “encamponesado”. Portanto, compreende-se a relação destes jovens com a festa antiga, em que o café colonial e as músicas tidas como “de colonos” são substituídas pela comida, dança e modo de vestir urbanos, associados à modernidade.

Até aqui, podemos perceber como se conforma uma festa preparada pela e para a comunidade, mas como se constitui uma festa preparada pelos colonos para os citadinos?

3.2 O DIA DO VINHO: FESTA À ANTIGA

O Dia do Vinho ocorre no mês de agosto, na Colônia Maciel, tendo a primeira ocorrido em 2006. As reflexões aqui trazidas são decorrentes da observação das edições realizadas nos anos de 2010 e 2011. Esta festa (um jantar) se realiza no salão da comunidade católica Sant'Ana e as famílias que a preparam são as mesmas que organizam a festa da padroeira.

A festa do Dia do Vinho foi concebido pelos produtores de vinho da Colônia Maciel e colônias vizinhas com o apoio de entidades como Embrapa, Emater, 53

Universidade Federal de Pelotas, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Prefeitura Municipal de Pelotas. Segundo um interlocutor, membro de entidade de assistência técnica, as discussões em torno da uva, nesta localidade, ocorrem há cerca de 20 anos: o cultivo da uva constituiu-se como alternativa frente à crise nos cultivos de cebola, batata e pêssego. Nessa época muitos colonos compravam uva da Serra Gaúcha para fabricar vinho, tanto para consumo próprio como para comercialização. A festa do Dia do Vinho constituiu-se como forma de colocar em evidência a produção de vinho e demais produtos locais, buscando conformar novos mercados e, ao mesmo tempo, resgatar a cultura italiana, tanto no modo de fazer o vinho como na comida típica.

Para pensarmos sobre a comida da festa, cabe refletir sobre o que seria “típico”. Neste sentido, Maciel (2001) aponta a constituição da comida enquanto típica como associada a um pertencimento,

A constituição de uma cozinha típica vai assim mais longe que uma lista de pratos que remetem ao “pitoresco”, mas implica no sentido destas práticas associadas ao pertencimento. Nem sempre o prato considerado “típico”, aquele que é selecionado e escolhido para ser o emblema alimentar da região é aquele de uso mais cotidiano. Ele pode, sim, representar o modo pelo qual as pessoas querem ser vistas e reconhecidas. (MACIEL, 2001, p.152).

Portanto, podemos pensar que o cardápio servido como típico da cultura italiana na janta do vinho não representa necessariamente a comida servida no cotidiano das famílias que preparam a festa, mas está relacionado a seu pertencimento à comunidade. Desse modo, é criado/recriado um cardápio baseado em uma “lista de pratos” da culinária italiana.

No início da tarde de sábado, quando as famílias preparavam a festa, teve início a observação do processo. Após o reencontro com as mulheres da cozinha, recebi um avental16 para ajudar na festa, tendo sido designada para, além de ajudar

16 Considero esse um momento importante no acompanhamento do grupo, pois aí eles admitiram uma pessoa de fora no mutirão, no exterior dos “bastidores” da cozinha, circulando no salão. Pergunto-me em que medida o avental simbolizou uma maior aproximação em relação ao grupo ou se, sendo uma festa pensada e criada com a participação de pessoas de fora da comunidade, como entidades apoiadoras, eu seria mais uma dessas pessoas de fora. Ambas são possibilidades não necessariamente excludentes, a respeito das quais apenas novas experiências a campo junto ao grupo poderão lançar luzes. 54

no período de preparação da festa, servir à noite as entradas e atuar como assistente no abastecimento do buffet. Durante a tarde, enquanto ajudava as mulheres na cozinha, pude observar que os homens limpavam o salão, passando pano molhado nas mesas e cadeiras, enquanto que outros confeccionavam arranjos de flores para decorar as mesas e colocavam as cortinas no salão. Pude ainda perceber que a presença masculina se dava também na cozinha: os homens preparavam a polenta, orientados por uma das cozinheiras mais experientes que, segundo explicaram as mulheres, sabe as medidas. Já na 5ª edição da festa, as orientações no preparo foram dadas por um homem, que aprendera as medidas e o ponto da polenta com um vizinho que, segundo a equipe, é o responsável pelo preparo da polenta desde a primeira festa (como não pode comparecer em 2010, uma das mulheres mais experientes assumiu, naquela ocasião, a orientação no preparo da polenta). A divisão de trabalho aqui observada entre homens e mulheres é muito distinta daquela que se dá na Festa de Sant'Ana, como anteriormente descrita. Lá, tal qual ocorre no cotidiano dessas famílias, a parte interna (salão e cozinha) é delimitada como espaço feminino, enquanto que a parte externa (churrasqueira e copa) constitui-se um espaço masculino.

Figura 10: Mulheres “classificando” tempero verde e homens preparando a polenta no espaço da cozinha.

Fonte: autora, 2011. Se pode sugerir que, no Dia do Vinho, o envolvimento dos homens na organização do salão e no preparo da polenta é relacionado ao fato de que esta festa é um evento de negócio, que abre portas para a comercialização do vinho e

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demais produtos: neste dia, segundo eles, tudo tem que estar impecável, sendo acompanhado de perto (Fig. 10). Mas também a razão dos homens adentrarem o espaço originalmente estabelecido como feminino pode estar no número reduzido de mulheres que trabalham nesta festa, o que, por sua vez, deve estar associado ao fato do Dia do Vinho ser uma festa criada por produtores de vinho da comunidade, com o apoio de entidades, mas não pelo conjunto da comunidade.

Para pensar os motivos que levam os homens a ocupar o espaço usualmente estabelecido como feminino, trazemos um estudo realizado junto a agricultores familiares do Paraná, que observou o cotidiano de vida e trabalho de famílias produtoras de leite. Comentando aquela pesquisa, Menasche (2004) indica que foi então possível observar que quando ocorreu a introdução de tecnologia na produção leiteira e a intensificação da produção destinada ao mercado, essa produção deixou de estar sob o domínio das mulheres, passando ao controle masculino. Nas palavras da autora,

[...] podemos sugerir que, para o caso paranaense, a introdução de tecnologia na produção leiteira estaria alterando não a hierarquia entre homens e mulheres, mas o lugar da atividade leiteira na hierarquia da atividade doméstica: a produção de leite, agora tecnificada, atingiria o estatuto de trabalho – atributo masculino. A assunção desse novo estatuto pela produção de leite seria, assim, explicativa da exclusão das mulheres da atividade à medida que se tecnifica. (MENASCHE, 2004, p. 33).

Do mesmo modo, podemos pensar que na medida em que a festa do Dia do Vinho tem seu estatuto associado ao mundo dos negócios, é de responsabilidade dos homens. É assim que os homens ocupam o espaço da cozinha: nesta festa, a preparação da polenta é entendida como trabalho, e trabalho pesado.

No salão a decoração é na cor lilás, com cachos de uva confeccionados com balões, mesas decoradas com arranjos de flores naturais como flor de pessegueiro. Já o espaço externo é coberto com lona, abrigando as mesas e cadeiras. No ambiente do salão, ao fundo, está a copa, onde ficam os produtores de vinho, servindo ao público. Na parte da frente do salão, há uma estrutura em que fica a banda, que toca música gaúcha – não tocaram sequer uma música italiana. A abertura da festa segue com os discursos do presidente da comunidade e de 56

representantes de entidades apoiadoras, seguidos da benção do pároco e de um pastor (vindo de outra comunidade) e da apresentação do coral de crianças, cantando músicas religiosas. Na edição de 2011, também o prefeito municipal prestigiou a festa, discursando sobre sua importância para divulgar as potencialidades da localidade e das colônias como um todo.

Outro ponto a ser destacado na edição de 2011 da festa consiste na intensificação do apelo à cultura italiana. No balcão em que os produtores serviam vinho e suco, estavam expostas fotografias dos primeiros imigrantes chegados à Colônia Maciel, assim como das famílias e da casa de pedra construída por Jiusto Casarin, hoje pertencente a uma família que se dedica à produção de uva e vinho e ao turismo (Fig. 11). Havia também um quadro exibindo o passaporte de um imigrante vindo da região italiana de Treviso e um banner em que era narrada a saga dos imigrantes italianos no Estado do Rio Grande do Sul e sua chegada às colônias da Serra Gaúcha. Ao analisar o banner, elaborado pela filha de um dos produtores de vinho que organizam a festa, podia-se perceber que no texto não constava a história dos imigrantes da Colônia Maciel: as imagens e legendas referiam-se à localidade, enquanto que a imagem de uma pipa de vinho exibida era de uma vinícola de Bento Gonçalves. Assim na tentativa talvez de buscar legitimar a italianidade local, é feita referência à Serra Gaúcha.

Figura 11: Salão decorado para a festa e exposição de fotos e documentos contando a história dos primeiros imigrantes chegados à Colônia Maciel. Fonte: autora, 2011.

O jantar servido na festa do Dia do Vinho tem como cardápio a comida “típica” italiana, acompanhada de vinho e suco de uva. Como entrada, os petiscos, 57

como comenta um dos produtores: queijo, salame, conserva de pepino e pão. O serviço é realizado por moças, filhas das mulheres da cozinha, que caminham pelo salão com bandejas, oferecendo ao público os petiscos. Mais tarde, é servido o jantar, composto por saladas (alface, rúcula, radicci, agrião) e pelos pratos: polenta, massa com molho de tomate e carne de galinha desfiada, fortaia (preparada a base de ovos e leite, com linguiça, toucinho e tempero verde), carne assada de porco e de galinha (Fig. 12). A comida é disponibilizada em dois buffets, um no salão e em outro na parte externa. As pessoas, em fila, servem-se à vontade das saladas e pratos e depois das sobremesas (compota de pêssegos, sagu de vinho e creme à base de leite e ovos). Depois de servidas as sobremesas, algumas mesas são afastadas e a banda anima o baile. Algumas pessoas dançam, enquanto as demais permanecem sentadas, conversando e saboreando o vinho.

Figura 12: Comida apresentada como típica: fortaia, polenta e o cardápio completo. Fonte: autora, 2011.

Como anteriormente comentado, nas duas edições da festa observadas a maior parte das mulheres que haviam trabalhado na festa da padroeira não participaram na realização desta festa. Do mesmo modo, também apenas uma parcela da comunidade estava presente: o público desta festa é predominantemente urbano. Retomando o estudo de Champagne (1997), mencionado no início do capítulo, esse autor mostra que nas festas em que a tradição é folclorizada e cujo sentido é ancorado em motivações econômicas, é justamente o público externo aquele que se faz presente, diferentemente do que ocorre nas festas “da comunidade” – como as festas de santos padroeiros –, em que é grande o esforço 58

de moradores e familiares – inclusive dos mais idosos – para comparecer. A festa do Dia do Vinho tem como público alvo os citadinos e os ingressos são limitados, visando acomodar e atender bem ao público. São disponibilizados 500 ingressos, vendidos pelos produtores e membros das entidades apoiadoras para o público urbano. Cada responsável por certo número de ingressos tem os seus “clientes”, em Pelotas e municípios vizinhos como Morro Redondo, Canguçu (a título de exemplo, observamos que funcionários da Emater de municípios vizinhos compram ingressos dos colegas de Pelotas, que estão na organização da festa). A festa não é divulgada na rádio local, a Rádio Comunitária da Colônia Maciel, e tampouco são colocados cartazes para divulgação nos ônibus, como é praxe ocorrer em relação às demais festas realizadas na comunidade. Assim, podemos concluir que o público pensado para esta festa não é da colônia.

Quanto ao público urbano, podemos sugerir que vão em busca do rural de suas infâncias ou contado por seus pais e avôs, mas depurado das dificuldades da vida no campo, um rural idealizado. Por isso o sucesso da festa à antiga.

Ainda na reflexão a respeito da festa do Dia do Vinho, do mesmo modo que faz Santos (2004), ao analisar a festa da uva e a construção da identidade entre descendentes de imigrantes italianos de /RS, podemos lembrar do que Hobsbawn (1997) entende como tradição inventada,

[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas, tais práticas; de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWN, 1997, p.9).

Neste sentido, entendem-se as tradições como apropriações do passado para refletir no presente a ideia de comunhão e marcar pertencimentos (SANTOS, 2004), ou como produtos que encarnam o lugar de origem

Identidade e/ou patrimônio são novos “recursos” da modernidade e de usos polivalentes. Já não se trata de seu lugar de origem, mas de produtos que o encarnam. Espera-se desses produtos que evoquem um território, uma paisagem, alguns costumes, uma referência de identidade. (CONTRERAS H., 2005, p.142).

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Como indícios de uma ressignificação do rural, pode-se entender que este processo esteja relacionado às transformações referentes à modernização da agricultura, que assim como transforma os cardápios das famílias e da festa de Sant'Ana em um cardápio híbrido, possibilita emergir “novas tradições”, como as que se constituem na festa do Dia do Vinho.

60

4 O COTIDIANO DAS FAMÍLIAS: UM OLHAR A PARTIR DA COMIDA

Seu Carlos, 71 anos, diz tomar vinho desde menino, mas lembra que antigamente não se fazia isso todos os dias porque a bebida não era produzida em grande quantidade. Sendo assim, costumavam tomar vinho nos finais de semana, às vezes à noite e quando chegavam visitas e/ou clientes para comprá-lo. Em seu depoimento, Cíntia, nora de seu Carlos, que não possui ascendência italiana, enfatiza a importância de manter a tradição. Ela lamenta que o esposo tenha perdido muito da tradição, pois não fala nem compreende italiano; come polenta – preparada pela mãe –, mas não a aprecia; não trouxe da casa dos pais o costume de tomar vinho diariamente. Na interpretação de Cíntia, tomar vinho todos os dias é prática associada à manutenção da tradição.

Podemos afirmar que os embates em torno do processo de constituição da italianidade, em curso na localidade, têm por emblema o vinho, destacado na Janta do Vinho. Como podemos notar no trecho anterior, esses embates estão presentes também no cotidiano das famílias.

É para observar como isso se dá que, neste capítulo, o olhar se volta para as práticas alimentares cotidianas das famílias que trabalham nas festas da comunidade: para tentar perceber como a comida e o vinho, apresentados nas festas como símbolos da cultura italiana, fazem, no dia-a-dia, parte do cardápio dessas famílias.

Para tanto, antes de entrar nas casas de algumas famílias residentes nas colônias Maciel e São Manoel, vale buscar entender como se dá a produção nessas colônias, tanto para comercialização quanto pro gasto. Dessa maneira teremos presente o contexto em que se realiza sua alimentação.

4.1 A PRODUÇÃO PRA VENDA E PRO GASTO NAS COLÔNIAS MACIEL E SÃO MANOEL

Nas colônias Maciel e São Manoel, os colonos, na sua maioria, comercializam pêssego, fumo e tomate. No processo de integração com o mercado 61

os cultivos comerciais assumem papel de destaque na organização interna da produção, representando a principal fonte de renda. Já por volta de 1960, em registros no Livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, o pêssego consta como o cultivo comercial mais expressivo na Colônia Maciel e colônias vizinhas.

Chácaras de pessegueiros quase todos os agricultores as possuem, quem não tem procura formar [...]. Há diversas fábricas de compota na paróquia. O ministério da agricultura está fazendo experiências para produzir o pêssego de mercado e mesa e pêssego grego por meio de enxertos. Está dando bom resultado, em novembro já se pode comer pêssego. (Livro Tombo Paróquia Sant‟Ana, p.59).

Ainda referente à produção para comercialização é relatada a inserção dos agricultores ao complexo fumageiro nas colônias de Pelotas. E o padre da época se diz preocupado com a substituição da produção de alimentos pelo fumo:

Como as indústrias de batata e cebola são perecíveis e cujo preço flutua muito conforme mercados interno e externo, os agricultores receberam de braços abertos e dando risada a uma e promissora indústria de fumo em folhas [...] Segundo pesquisas da mesma firma os solos desta paróquia se prestam muito bem para o cultivo de fumo. A firma se responsabiliza pelo trabalho de estufas, sementes e fungicidas e paga por fumo de 1ª qualidade 10 mil cruzeiro a razão de uma arroba. [...] Só este ano 65 agricultores aderiram a indústria do fumo. Se assim continuar não vai restar terra para outras culturas mais úteis, principalmente para abastecer a cidade de Pelotas e Rio Grande. (Livro Tombo Paróquia Sant‟Ana, p.61).

Podemos perceber que a produção para o autoconsumo17 se mantém, mesmo que possivelmente em uma escala menor, mas a adesão aos “cultivos comerciais” não elimina esta produção, tal como na análise de Grisa e Schneider (2008, p.488):

Embora a condição de complementariedade dentro da unidade de produção, o autoconsumo continua sendo uma estratégia recorrida pela grande maioria das explorações familiares e cumpre papéis importantes na agricultura familiar. Dentre as várias motivações para a sua existência, provavelmente a mais assídua situa-se no aspecto econômico por tratar-se de uma forma de “economização” [...] ao produzir seus próprios alimentos, a unidade familiar deixa de gastar o equivalente em recursos monetários com a compra de alimentos nos supermercados.

17 A produção para o autoconsumo nessas colônias foi discutida em Machado, Salamoni e Costa (2010) e trazida aqui para salientar o que as famílias rurais estudadas comem e como valoram esses alimentos em seu dia a dia. 62

A produção para o autoconsumo, além do aspecto econômico, garante uma alimentação variada sem a utilização de agroquímicos, denominado pelo agricultor como um alimento “limpo”, a base da alimentação da família. Aqui cabe lembrar que o sentido de família ultrapassa os limites da propriedade familiar, uma vez que há sistematicamente o fornecimento de alimentos a membros da família que residem na cidade. Ademais, o ato de compartilhar o alimento assemelha-se a “tecer fios”, pois “embora a ida definitiva para a cidade pareça um destino provável, a ʽretribuiçãoʼ implícita é como um seguro contra o risco de que tais ʽfiosʼ se rompam” (MARQUES et al., 2007, p.160). Outro aspecto importante é que esta produção “alimenta” e constrói relações sociais, representadas na doação e troca de alimentos, que possuem valor simbólico, constituindo-se como elemento criador e mantenedor de vínculos e compromissos entre as famílias (MARQUES, et al.,2007). Assim, a produção para o autoconsumo possui um valor de uso que conforma e estabelece relações sociais, consolidando a vida comunitária. Nesse sentido, Wanderley (1989) sugere em seus estudos que a persistência da produção familiar camponesa reside, exatamente, na luta dos produtores para concretizar seus ideais de reprodução social, quando afirma que:

Combinando trabalho, meios de vida e meios de produção, o produtor familiar constrói o seu patrimônio, condição de reprodução social da família, hoje e amanhã. Patrimônio, cujo elemento central é a propriedade da terra, mas que incorpora também as benfeitorias, os meios e os instrumentos de trabalho. É assim que capital e patrimônio familiar se confundem numa estratégia em que a forma de produzir hoje, baseada no próprio trabalho familiar, reflete as possibilidades, dadas e assumidas, a respeito das gerações seguintes. (WANDERLEY, 1989, p. 78).

Em pesquisa realizada no ano de 2009, no âmbito do projeto “A Sustentabilidade dos Recursos Hídricos na Colônia Maciel – Distrito de Rincão da Cruz – Pelotas - RS: ecoturismo, educação e gestão ambiental”, foram visitadas 43 propriedades rurais na Colônia Maciel e 48 na Colônia São Manoel (Fig.13).

63

Figura 13: Mapa das propriedades visitadas em 2009. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

No que se refere à produção agrícola para autoconsumo na Colônia Maciel, destacou-se a produção de hortaliças e frutas (entre 30 produtores), seguida pelo cultivo de milho (26 produtores), feijão (25 produtores) e pêssego (24 produtores). Na Colônia São Manoel novamente a produção de hortaliças e frutas ocupou o lugar de maior destaque na produção para o autoconsumo (36 produtores), seguida pela produção de feijão (32) e milho (31) (Fig. 14). O milho, produzido por grande parte das famílias desde a chegada dos primeiros imigrantes italianos, tem sido matéria prima para a polenta, base da alimentação das primeiras famílias e responsável pela criação de suínos, que fornece carne, toucinho, banha e salame.

Entende-se que essas famílias são de fato autofornecedoras de uma série de produtos, tais como batata, batata doce, abóbora, hortaliças em geral, feijão, milho, tomate, pimentão, morango, laranja, pêssego, leite, mel e ovos (Fig. 15). É possível identificar a diversidade de alimentos que compõem esta produção proveniente da criação animal, da horta, do pomar e da lavoura.

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Produtos para Autoconsumo

80,00

70,00

60,00

50,00

40,00 Maciel (%) São Manoel (%) 30,00

20,00

10,00

-

Uva Mel Figo Pera FeijãoMilho LeiteOvos Maçã LaranjaTomate Cebola Ameixa BananaChuchu Amora Pêssego Morango Melancia Abóbora Hortaliças Pimentão Batata-doce Bergamota Batata-inglesa

Figura 14: Produtos para autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel

Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

Figura 15: Produtos para autoconsumo: hortaliças, ovos e queijo (secando em um tabuleiro).

Fonte: autora, 2011 .

A criação animal nas colônias analisadas apresenta como característica sua destinação ao autoconsumo, uma vez que, em 2009, 37 agricultores da Colônia

Maciel e 43 da São Manoel não comercializavam seus animais (Fig. 16). Por outro lado, as aves têm lugar de destaque no que se refere ao autoconsumo, seguido do rebanho bovino e os suínos para a alimentação doméstica. Com relação à criação de aves, percebe-se um conflito com as famílias integradas que possuem aviários, pois pelas normas sanitárias não é permitida a criação de galinhas coloniais na propriedade. Pode-se reparar que a integração aos Complexos Agroindustriais – 65

CAI‟s18 – acaba por limitar esta produção para o autoconsumo, porém alguns destes agricultores desenvolvem estratégias para a manutenção desta produção como a criação de galinhas caipiras afastada do aviário e/ou em parceria com os vizinhos, em que a família fornece o milho para o vizinho alimentar a criação. E, ainda, quando optam por não criar a galinha colonial, procuram criar frangos de aviário em um galinheiro, alimentando-os não com ração, mas com milho e sobras da horta.

Criação para Autoconsumo

90,0 80,0 70,0 60,0 50,0 Maciel(%) 40,0 S. Manoel (%) 30,0 20,0 10,0 0,0 Bovinos Suínos Aves Peixes Nenhum

Figura 16: Animais para o autoconsumo nas colônias Maciel e São Manoel

Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

A criação de animais domésticos se constitui, também, em uma importante fonte de alimentação para a família, tanto pelo consumo direto (carne e banha) quanto pelo indireto (ovos, leite, manteiga). Do mesmo modo, os animais se constituem em reserva econômica, na medida em que, em momentos de dificuldade, podem ser vendidos, gerando uma renda extra para a família. Ademais, o consumo dessa carne reforça o “comer saudável”, pois o agricultor sabe a procedência da carne e como o animal se desenvolveu até o abate.

A diversidade na produção de alimentos para o autoconsumo encontra-se na direta dependência dos recursos disponíveis na unidade familiar, seja na forma de matérias-primas ou de instrumentos necessários à sua transformação. Além disso, é

18 A integração aos Complexos Agroindustriais – CAI‟s consiste, basicamente, na integração do agricultor com outros ramos da indústria, onde se encontram, de um lado, as indústrias que fornecem insumos, máquinas e equipamentos (setor a montante) e, de outro, as indústrias de classificação, beneficiamento e/ou industrialização da matéria-prima agrícola, bem como a sua distribuição (setor a jusante).

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importante ressaltar que o processo social que move tal produção traz técnicas, costumes e valores simbólicos que são concretizados no produto final. Isso dá a dimensão da importância da manutenção dos saberes e práticas agrícolas, associados à identidade particular e diferenciada, que se distingue do processo homogeneizante dado pela industrialização da produção e pela padronização da produção e do consumo.

No que se refere à produção, podemos observar a diversidade presente a partir do olhar das crianças. No decorrer das oficinas realizadas na Escola Garibaldi, em que filhos e netos das famílias analisadas estudam, foi solicitado que as crianças da turma da 3ª série (13 alunos) desenhassem o lugar em que vivem, retratando o que é produzido para a alimentação da família. Na maior parte dos desenhos, além da casa, galpões e maquinários, podia-se notar a lavoura e a horta da família (Fig. 17). A lavoura aparece representada com pomares de pêssego, fumo, parreiras, enquanto que na horta observa-se toda uma diversidade de alimentos como parte de seu lugar de viver.

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Figura 17: Desenhos crianças ilustrando a produção na propriedade de sua família. Fonte: pesquisa 2011.

Os desenhos ilustram os dados aqui apresentados, dentre eles o lugar do pêssego como principal produto para comercialização, tanto na Colônia Maciel 68

quanto na São Manoel, sendo que, segundo a pesquisa realizada em 2009, respectivamente 22 e 32 produtores destinavam esse produto à venda. O tomate era, então, comercializado por 9 agricultores da Colônia Maciel e 13 da São Manoel, seguido pelo feijão, comercializado por 10 agricultores da Colônia Maciel e por 5 da São Manoel. Por último, destaca-se a produção comercial do fumo, então praticada por 8 agricultores da Colônia Maciel e 5 da São Manoel (Fig. 18 e 19).

Figura 18: Produtos para comercialização nas colônias Maciel e São Manoel. Fonte: Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

Figura 19: Produtos para comercialização: pêssego (2011), feijão e fumo (2009). Fonte: Autora (2011) e Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, 2009.

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Também a comercialização de gêneros alimentícios – queijo, vinho, suco de uva, mel, ovos – está presente, tanto no atacado quanto no varejo. Como já analisado por Brumer,

A diversificação das atividades representa, assim, uma forma de economizar recursos e, dessa maneira diminuir os riscos, pela limitação das despesas necessárias e pela não contratação de dívidas. Ao mesmo tempo, possibilita a intensificação do trabalho familiar e a manutenção, na residência familiar de um número maior de membros da família. (BRUMER, 1994, p.101).

Diante desse contexto, dada a significância da produção para o autoconsumo entre as famílias rurais estudadas, entende-se que a manutenção das práticas agrícolas e do saber-fazer, herdados dos antepassados, adquire importância fundamental em sua reprodução socioespacial. E é nesse sentido que a policultura, assim como o pioneirismo dos antepassados, a propriedade privada da terra e o trabalho familiar são, como ensina Seyferth (1992), elementos fundamentais na constituição da identidade colona.

Na sequência, partimos para a observação do cotidiano das famílias rurais estudadas, tendo a comida como fio condutor das conversas. Afinal, “a comida envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos”. (MACIEL, 2001, p.151).

4.2 COMIDA E IDENTIDADE: HISTÓRIAS, SABERES E PRÁTICAS ALIMENTARES

Partimos da produção das famílias para adentrarmos em suas casas, ou melhor, em suas cozinhas, onde passamos a maior parte do tempo. Seguimos na família de seu Carlos, residente na Colônia Maciel e composta por descendentes de imigrantes italianos. Carlos e Laura possuem quatro filhos, dos quais dois, Guilherme e Cláudia, moram com os pais – o rapaz trabalha na propriedade rural e a moça é professora. Seguindo pelo pátio da casa paterna, chegamos à casa de outro filho, Marcos, casado com Cíntia. E, dali a poucos quilômetros de distância, vive Roberto, casado com Vanessa. Os filhos homens seguem trabalhando na 70

propriedade rural com o pai, dedicando-se à produção de uva e pêssego, à fabricação e comercialização de vinho, ao turismo rural e às demais atividades socioprodutivas da família.

Pensando no significado do vinho no cotidiano desta família, temos que seu Carlos afirma que costuma tomar vinho diariamente, no almoço e na janta. Brinca dizendo que quando recebe “visitas” toma vinho também, isto é, acompanha os turistas na degustação de vinho. Já dona Laura conta que quando morava com seus pais não gostava de vinho, não tomava em nenhum momento. Lembra que seu pai (italiano) também não tomava vinho. Diz, também, que foi aprender a tomar vinho com o esposo, pois ele oferecia e ela para não descontentá-lo aceitava: “mas pra mim parecia ta tomando um copo de banha, de tão ruim que eu achava” (Laura), mas depois foi acostumando e hoje toma vinho no almoço e na janta. Atualmente a família chega a vender em torno de 400 litros de vinho por semana. Este ano produziram mais de 10 mil litros e a tendência é aumentar a produção em função da legislação, pois pagar impostos e se adequar à normatização aumenta o custo.

Na família de seu Paulo e dona Marisa (ele descendente de imigrantes italianos e ela de alemães), moradores da Colônia Maciel, o vinho também tem acompanhado as gerações. O casal tem 3 filhos, todos casados e com seus próprios filhos. Sua filha mais nova, Ana, mora com o esposo e a filha na casa dos pais. Os outros dois filhos construíram suas casas em áreas próximas à dos pais. Ana cuida da casa, do pomar de pêssego e do parreiral junto com o esposo e o pai. A filha Crisitina trabalha em um posto de saúde e seu filho Marcelo trabalha em uma empresa de ônibus. Nesta família o vinho acompanha as refeições do almoço e da janta. Dona Marisa diz que sempre produziram vinho pro gasto, mas, também, vendem para os amigos e clientes antigos. Contudo, como eles não são legalizados, somente vendem o vinho em sua propriedade.

Em uma manhã, quando eu estava na casa desta família, chegou um carro e seu Paulo foi atender. Era um de seus clientes, mas como este percebeu ter pessoa estranha na casa, perguntou pelo produto sem falar no vinho. Percebe-se, assim, a relação de confiança que se estabelece entre ambos, uma vez que não é um selo que certifica a qualidade do vinho, mas a relação de confiança que o leva até a casa de seu Paulo para comprar o produto. Eles contam que, no verão, a Emater realiza uma excursão para a Serra Gaúcha. Dona Marisa lembra que no ano anterior 71

haviam visitado produtores de vinho em Caxias do Sul e na festa da Uva, e que achou o vinho muito fraco. Revela ainda que parecia que haviam batizado o vinho, isto é, diluído em água. Ela apreciou a espumante que serviram em uma propriedade e diz ter pedido ao técnico que acompanha o seu parreiral para que os ensinasse a preparar essa bebida, porque vinho sua família já sabe fazer.

Na família de Gerônimo, a esposa Inês se intitula brasileira por não possuir ascendência italiana ou alemã, enquanto que o esposo é descendente de alemães. Há quase 30 anos residem na Colônia Maciel e dedicam-se à produção de pêssegos, criação de frangos (aviário) e produção de leite. A filha mais nova, Rita, que mora perto da propriedade do casal, é técnica agrícola e seu esposo trabalha na cidade de Pelotas. A outra filha é casada e reside na cidade de Pelotas com o esposo e dois filhos, mas também possuem uma casa próxima à de seu Gerônimo, para os finais de semana. Seu filho reside em Canguçu e trabalha de pedreiro.

A família de seu Gerônimo produz o vinho para consumo. Mas este ano ele plantou aproximadamente 400 pés de parreira e ainda almeja completar os 1.000 pés. A intenção é substituir o pêssego pela uva, para não utilizar mais veneno. Seu Gerônimo diz ter investido na produção de vinho porque várias pessoas provaram, gostaram e o incentivaram a produzir para venda. O casal, como mencionado anteriormente, tem o hábito de tomar vinho no almoço e na janta, mas dona Inês revela ter exagerado no consumo e diz que está atualmente meio enjoada e por isso parou de tomar por um tempo. A supracitada decisão de substituir o pomar de pêssego pela produção de uva e vinho pode ser resultante de uma demanda dos amigos e vizinhos que apreciam seu vinho. Contudo, por que somente agora seu Gerônimo vislumbra a comercialização do vinho como alternativa de renda e/ou substituição do pêssego? Não estaria a festa do Dia do Vinho sendo o fator motivador, onde o vinho, antes produzido e valorado pelo colono, é demandado por citadinos e turistas?

Na propriedade de seu Jorge e dona Catarina, na Colônia São Manoel, o pêssego e o tomate são os produtos para comercialização. Ademais dessa renda, vivem da venda do queijo produzido por dona Catarina e da aposentadoria de seu Jorge. O casal tem duas filhas que optaram por continuar na agricultura, casaram e foram morar com os pais de seus esposos porque ambos são filhos únicos e, então, tem de cuidar dos pais. Uma tem um menino de 4 anos e a outra uma menina de 9 e 72

ambas moram em colônias vizinhas e visitam os pais frequentemente. Seu Jorge, descendente de alemães, e dona Catarina, descendente de italianos, sempre produziram vinho para o autoconsumo e este ano prepararam 100 litros. Costumam tomar em certas ocasiões e quando chega visita. Seu Jorge conta que a filha mais velha, Joana, quando morava em casa, era sua companheira de vinho, pois abriam um garrafão e tomavam todas as noites, fazendo com que não durasse sequer uma semana. Dona Catarina diz gostar mais de suco de uva, o qual prepara, guarda em garrafas e dá um banho maria para conservar por mais tempo.

No cotidiano destas famílias, pode-se perceber que, embora já não com tanta frequência, a polenta, assim como o vinho, é um prato presente em suas mesas, tanto entre descendentes de imigrantes italianos quanto entre descendentes de imigrantes alemães – o que pode ser atribuído às relações de vizinhança e casamentos interétnicos.

Na propriedade de Ivânia e Henrique, na Colônia São Manoel, a produção de pêssego foi herdada do pai de Henrique. Atualmente possuem 15 mil pés de pessegueiro e necessitaram contratar, somente este ano, 18 pessoas para trabalhar na colheita. O casal tem duas filhas, que quando adolescentes foram morar na cidade de Pelotas para continuar os estudos e por lá casaram e ficaram residindo.

Quando comenta sobre o que comiam na infância, Ivânia diz que comia muita polenta, até hoje ela prepara e coloca em uma tábua, taier de la polenta, para cortar ainda morna, com uma linha, como sua mãe fazia. Quando pequena não gostava de comer polenta no café da manhã, gostava de comer pão, mas a mãe não deixava para economizar, pois a farinha era escassa, então comiam pão só no café da tarde, na lavoura. No Rio Grande do Sul os imigrantes italianos consumiam o pão de farinha de trigo em menor proporção que a polenta “por ser considerada uma comida fraca demais para alimentar o trabalhador agrícola e, especialmente, para economizar o mais caro e vendável produto da colônia, que era o trigo”. (DE BONI e COSTA, 1984, p. 165). Nas colônias Maciel e São Manoel esta realidade não difere, pois as famílias que plantavam trigo priorizavam a venda e as que compravam a farinha economizavam o pão por não ter como comprar farinha com frequência.

Pela manhã, então, comiam polenta aquecida na chapa do fogão (polenta brustolada) com toucinho, ovos e linguiça, o café não era acompanhado de leite. O 73

leite era para fazer manteiga e queijo e depois vender para comprar mantimentos que não produziam na propriedade, como café, açúcar e sal. No almoço comiam feijão e arroz e Ivânia conta que o arroz era comprado na venda e que para economizar colocavam somente uma xícara de arroz no feijão (produzido na propriedade) e cozinhavam tudo junto. No café da tarde era o café, pão e alguma schimier (doce de fruta) melancia, abóbora ou uva e na janta era polenta cortada em fatias com alguma mistura, como queijo, linguiça, toucinho, ovos e o que sobrava da polenta comiam no café da manhã. À noite Ivânia se lembra de ficarem na cozinha, a mãe preparando a polenta e eles todos rezando o terço em italiano. Como não tinham rádio, nem televisão, nesse momento de preparo da polenta estavam todos reunidos na cozinha, conversando sobre a lida do dia e rezando o terço. O pai ensinou os filhos a rezar o terço em italiano, mas com o tempo Ivânia e os irmãos esqueceram a reza nesse idioma. Atualmente somente a mãe de Ivânia fala em italiano, já ela e seus irmãos só compreendem algumas coisas, mas não falam.

Com o passar dos anos, novas práticas alimentares foram se incorporando ao cotidiano destas famílias, pela convivência e a troca com os brasileiros (gaúchos), o que permitiu que hábitos e costumes fossem introduzidos e ressignificados ao longo dos anos. O chimarrão, hoje muito presente, é o momento em que as famílias se reúnem para conversar e assistir televisão, ou seja, não é mais o preparo da polenta e o rezar o terço que reúne a família. Este momento foi substituído, em parte, pela televisão. O churrasco, atualmente considerado nas festas da comunidade o prato principal, é comida valorada pelas famílias.

Quando criança, Ivânia diz que o que mais gostava era de chocolate, lembra de sua madrinha, que morava em Canguçu, vir visitá-la e presenteá-la com uma barra de chocolate, Ivânia recorda que a visita da madrinha era um momento muito esperado. A gemada também era muito apreciada por Ivânia e seus irmãos, mas como o açúcar era escasso e os ovos eram economizados para serem vendidos, sua mãe não deixava que preparassem gemada. Por isso, quando os pais estavam na lavoura as crianças roubavam um pouquinho de açúcar e ovos e corriam para o mato, onde preparavam a gemada, escondidos. Ela diz que sempre deixavam um rabo para trás, era o canto da boca sujo, um garfo ou até mesmo a roupa e, por isso, a mãe sempre descobria. Ivânia também conta que quando a mãe preparava uma 74

carne assada no forno ou uma massa com molho, era uma festa, porque carne era muito escassa, só quando matavam um porco, uma galinha ou animal de caça.

Na família de seu Carlos e dona Laura, comem polenta pelo menos uma vez por semana. Dona Laura prepara a polenta com farinha de milho amarela, gostam de comer a polenta preparada na hora, com água e sal ou com um molho, mas raramente a preparam frita. No dia a dia, dona Laura diz preparar mais comumente batata sequinha, carne, arroz e feijão e uma salada de radicci, tomate, alface, rúcula e polenta. Os filhos comem, mas não gostam muito de polenta. Contudo, o arroz e feijão são servidos praticamente toda a semana, com exceção dos sábados e domingos, quando não comem feijão. No domingo, ela sempre prepara salada de batata, uma carne assada no forno ou há churrasco, preparado por seu Carlos ou um dos filhos.

No almoço com seu Gerônimo e dona Inês, ela comentou que o marido tinha comido pouco, então ele contou ter comido muita polenta frita pela manhã e por isso não estava com fome, já que não tinha trabalhado no pesado. Eles contam que comem polenta toda a semana e apreciam polenta frita no café da amanhã, no almoço ou na janta. Perguntei se compravam a farinha no mercado, pré-pronta e eles disseram que compram a farinha no moinho, de milho branco. Explicaram que as compradas [no mercado] nem tem gosto de polenta e que se é para comer aquela polenta comprada no mercado nem comem.

Também na casa de dona Catarina e seu Jorge a polenta é um prato presente. Ela diz que o dia que tem polenta não precisa outro acompanhamento no almoço ou na janta, pois comem polenta com ovo frito ou toucinho frito. Seu Jorge diz que ovo e toucinho acompanham bem uma polenta. Para dona Catarina, a polenta com leite acrescida de açúcar é uma delícia, mas para seu Jorge ela tem de ser salgada.

Outro ponto sempre comentado pelas famílias refere-se à produção, isto é, o que produziram e o que continuam produzindo atualmente (Fig.20). Seu Jorge e dona Catarina contam que para o seu consumo plantam de tudo um pouco: feijão, milho, batata, batata doce, hortaliças, frutas (uva, laranja, bergamota, limão, lima, goiaba, caqui, banana, morango, figo, etc.). Eles lembram que quando as filhas eram pequenas, eles chegaram a plantar arroz (do seco) e trigo e levavam o trigo no 75

Moinho do Bachini19 para moer e transformar em farinha para o pão. Então na venda compravam açúcar, café e uma coisinha que outra. Tinham praticamente tudo na propriedade, matavam porcos e galinhas. A sexta-feira era o dia do açougue, então compravam um pedaço de carne de gado e cozinhavam toda carne porque não tinham geladeira. E quando recebiam visitas ou era uma festinha, colocavam a cerveja, vinho e refrigerante na cacimba (fonte), para gelar. Hoje compram mais coisas na cidade. Dona Catarina diz sempre ter leite condensado, creme de leite e maionese pronta. De vez em quando, carneia um boizinho, um porco, repartem com as filhas e colocam o restante no freezer.

Figura 20: Comida no cotidiano das famílias: mesa posta para o almoço, vinho para acompanhar o almoço e sobremesa – sagu de vinho

Fonte: Autora, 2011.

Ainda sobre a produção, seu Geraldo, morador da Colônia Maciel, em entrevista realizada em 2009 pela equipe do Laboratório de Estudos Agrários e Ambientais, destacava:

Hoje é o pêssego, mas quando os meus antepassados chegaram aqui, o que mais se destacava era o milho, batata, alfafa, feijão e bem depois começou a cebola, mas essa eu já me lembro quando começou, eu era guri, e naquele tempo os pais eram muito seguros e os rapazes e moças que queriam ir para as festas com aqueles relógios de pulso, ai então eles pegavam sábado e domingo e pediam para o pais para plantar um fardo de cebola separado só para eles, pra depois vender e comprar seus relógios, os famosos “cebolões”. (Geraldo, janeiro de 2009). [grifos meus].

19 O moinho é um engenho em que se mói (origem da denominação moinho) milho, trigo e outros cereais, tendo como força motora a água. O nome “Moinho do Bachini” deve-se ao sobrenome de seu fundador. A família Bachini também deu origem ao nome da “localidade do Bachini”, na Colônia Santo Antonio – 7º Distrito – Quilombo – Pelotas. 76

Na fala de seu Geraldo também se pode perceber que os anseios de consumo dos jovens diferem daqueles dos pais. Enquanto os pais estão voltados para a produção e venda para manter a propriedade, seja na aquisição de algum maquinário, a compra de um animal e a alimentação diária da família, os jovens vislumbram comprar acessórios para compor a roupa de festa.

Algumas famílias mais antigas possuem um olhar de perda em relação à colônia. É o caso de seu Valter e de dona Cecília, residentes na Colônia São Manoel, pais de Henrique. O casal já não planta, em função da idade (ele 89 anos e ela 86). Para seu Valter, a colônia está quebrada, pois hoje ninguém mais produz o que come. Acredita que sai mais barato comprar no mercado, porque as sementes e os adubos custam caro e tem o trabalho de lavrar a terra, plantar e capinar e ainda corre o risco de ter uma seca (estiagem) ou chuvarada e não dar nada, então o pessoal compra praticamente tudo. Perguntei o que eles plantavam logo que casaram e tiveram seus filhos e dona Cecília relata que plantavam milho pro gasto, para alimentar os bichos (galinhas e porcos) e para a polenta. Comiam polenta todos os dias, mas ultimamente não a comem com frequência, já que ela está com problemas de saúde e não tem como fazer. Por isso, comem somente quando Ivânia (nora) a prepara. Além do milho, plantavam batata para o gasto e para vender, feijão, trigo e cebola. Vale lembrar que tinham chácara20 de pêssego.

Seu Valter lembra que na época da safra do pêssego tinha que ter mais de uma junta de bois para puxar a carreta com os balaios de pêssego, porque os bois se estrupiavam, feriam os cascos e, então, tinha-se que trocar a junta de boi, deixando a outra em descanso. Quanto à comida preparada no dia a dia, eles dizem que sempre comeram feijão, arroz, batata, carne (quando tinha) e polenta. Não eram muito de salada, mas sempre faziam schimier no tacho – de melancia, pêssego, abóbora –, para melar o pão. Seu Valter também revela que, na época em que não tinham dinheiro para comprar café, torravam batata doce no forno, batiam no pilão e depois coavam num saquinho de pano com água quente. Quando perguntei a dona Cecília com quem aprendeu a fazer polenta, ela respondeu que com o esposo. Ele diz que “a polenta é coisa de italiano e a batata de alemão” e que eles gostam

20 Os termos pomar e chácara de pêssego são denominações locais, usadas como sinônimos.

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mesmo é de batata. Ele lembra que alguns vizinhos cozinhavam em uma panela pendurada na corrente. Colocavam feijão e arroz juntos ou faziam sopa no fogo de chão. A cozinha era, na maioria das casas, separada dos quartos porque as famílias tinham medo que o fogo atingisse a área utilizada como dormitório.

Para estas famílias, o planejamento de suas vidas está em torno da produção para a comercialização, já que demanda a maior parte do tempo. Em conversas escutei de uma mulher, que pretende ter mais um filho, que tinha pensado em engravidar no início deste ano, mas o marido achou melhor depois da safra do pêssego, porque de outro modo estaria com a barriga já grande e não conseguiria ajudá-lo. Conversando sobre a saúde do esposo, Ivânia disse que ele precisa fazer uma cirurgia, mas somente depois que terminar a safra do pêssego. A Festa de Sant‟Ana, realizada em fevereiro, é sempre planejada após o final da safra de pêssego, pois os colonos já receberam o pagamento da safra e terão disponibilidade de tempo para ajudar na preparação da festa.

4.3 FAMÍLIA: AS HISTÓRIAS PARA ALÉM DA COMIDA

Nas falas de algumas famílias, quando recordam da época de infância, é presente a história da trajetória de seus antepassados da Itália para o Brasil. A trajetória destes imigrantes remete à família a suas memórias, como aponta Zanini (2004),

Para construir a identidade de italiano no presente, os descendentes a visualizam como uma trajetória no sentido de que, se hoje são ítalo- brasileiros, isso se deve a uma origem que está assentada no passado. Origem essa que é traçada pela construção dessas memórias. A travessia se tornou o marco inicial das construções e há, sobre ela, um infinito número de construções individuais e coletivas. É desse momento em diante, que as trajetórias familiares adquirem sentido. (ZANINI, 2004, p.58-59).

Em suas lembranças, Ivânia conta a saga de seu bisavô para o Brasil. O barco lotado, com pessoas morrendo e tendo-se que atirar os corpos no mar. Além disso, quando o vento mudava, o barco ficava navegando sem rumo. Levaram muito tempo para chegar ao Brasil. Seu bisavô chegou no porto de Santos e, com a 78

esposa e os filhos, vieram para a Colônia Maciel. Quando chegaram, não tinham nada, construíram um barracão e começaram a derrubar o mato. Era só mato para todos os lados. Depois foram construindo suas casas com madeira, tudo feito com machado, e começaram a plantar. Ivânia recorda o avô dizer que o povo passou muita fome até ter o milho para fazer polenta. A trajetória destes imigrantes para o Brasil e as dificuldades enfrentadas nestas terras, relatadas por autores como De Boni e Costa (1984), Zanini (2004; 2006) e Lorenzoni (2011) é o processo de constituição da concepção do italiano desbravador e vencedor. As histórias são contadas pelas famílias, em cujas narrativas o antepassado representa o herói civilizador que venceu a natureza e refez sua vida, assim, “o pioneiro representa o domínio da passagem de despossuído no país de origem para civilizador e proprietário em terras estrangeiras.” (ZANINI, 2004, p.56).

A fala de seu Geraldo sobre a travessia de seu avô e de seus companheiros também ressalta as dificuldades nos primeiros tempos na Colônia Maciel. Quando perguntado em qual localidade os descendentes de imigrantes italianos estão concentrados, ele revela:

Mais na Maciel, pois quando chegaram já ficaram na Maciel mesmo, ali na casa do lado eles fizeram o barracão, eles viveram três meses ali, todos juntos quando saíram da Itália eles pensavam que viriam para São Paulo, Rio de Janeiro ali naquela zona que tinha café, e quando chegaram no porto de Santos, mandaram eles para Rio Grande, também ficaram contentes porque viram campo e dali de Rio Grande mandaram eles para cá, chegando aqui só viram mato, ai montaram o barracão, me parece que vieram em doze famílias mas não tenho bem certeza disto. Quando chegaram, ficaram parados três meses porque o governo não tinha acertado uns problemas de terras, aí quando começaram foi só derrubando mato para conseguirem plantar alguma coisa. Meu avô tinha 12 anos quando veio de lá, ele me contava que foi brabo, quando eles chegaram, eles tinham que cortar as árvores, depois queimavam para poder plantar. (Geraldo, janeiro de 2009).

Assim, entende-se que “o passado comum, relatado como experiência pioneira, repleta de dificuldades e lutas, é um dos elementos fundamentais na elaboração da identidade do colono” (SEYFERTH, 1992, p.80). Hoje é presente para estes colonos as lembranças do país de origem de seus antepassados, alguns buscam encontrar parentes na Itália ou nutrem o sonho de visitar esse país, mesmo sabendo da indiferença dos que lá estão, como relata seu Geraldo: 79

Eu não sei bem, mas tem uma prima da minha esposa que andou se informando e me parece que aqui na Maciel os que vieram da Itália, quando vão visitar os italianos de lá [Itália], eles não querem nem saber, não dão bola e fazem que nem são parentes, por causa da “dota”, a herança, que ficou perdida lá, quem veio pra cá não herdou dos pais que ficaram por lá, eles têm medo que a gente vai querer requisitar alguma parte e por isso não dão bola. Eu gostaria de ir lá, não pela herança e sim para uma visita para a gente conversar como estamos aqui no Brasil, mas eles são ariscos que não tem jeito. (Geraldo, janeiro de 2009).

Na memória dos casais mais antigos da colônia, é presente a repressão da Segunda Guerra Mundial, em que o Brasil, compondo o grupo dos aliados, lutou contra o Eixo – formado pela Itália, Alemanha e Japão. Em relatos, estes contam que a colônia vivia com muito medo, as famílias destruíram ou esconderam os documentos, livros, bíblia, fotos, enfim tudo que pudesse revelar pertencimento à Itália ou Alemanha. Neste período foi estabelecida por lei a obrigatoriedade de falar somente na língua portuguesa, como símbolo de pertencimento a pátria. Na escola os professores tinham de cumprir a lei e alfabetizar as crianças em português e em casa os pais, sob repressão, proibiram os filhos de falarem em alemão ou italiano e não conversavam mais na língua do país de origem. Dona Cecília lembra que os vizinhos esconderam os animais (cavalos, bois, vacas) no mato, com medo de que os homens da guerra levassem. Este período é denominado por Zanini (2004) como “varredura cultural”,

Denominei esse processo de varredura cultural, o qual fez com que muitas famílias, que ainda tinham em suas memórias informações acerca do processo migratório e das histórias dos antepassados, preferissem o silêncio e a omissão dessas informações às gerações sucessivas. A história do grupo passou a estar associada às humilhações sofridas durante o período repressivo. Além disso, ser colono representava ser “grosso” e atrasado, e mesmo aqueles descendentes que haviam migrado para o mundo urbano e ascendido socialmente carregavam consigo essas representações. (ZANINI, 2004, p.55).

Este fato histórico é, em parte, responsável pela perda do dialeto italiano falado entre as famílias das colônias, já que são poucas as pessoas que falam ou compreendem o italiano. Na época, os imigrantes tentavam se afirmar como brasileiros pela língua e adotando costumes e hábitos considerados como pertencentes à identidade brasileira. Nas conversas, a maioria dos colonos mais 80

velhos, entre 60 e 80 anos, dizem compreender e, uma minoria, falar em italiano. Deve-se levar em consideração que nos casamentos entre italianos e alemães, na maioria das vezes, optavam por falar em brasileiro.

Contudo, se o enfraquecimento da presença do dialeto pode ser considerada como uma perda entre algumas famílias, em seu cotidiano estão presentes as práticas agrícolas, na produção de uva e fabrico de vinho, e no preparo da comida, herdado o saber fazer expresso no consumo da polenta, na manutenção da horta e dos animais domésticos.

Refletindo sobre o processo específico de constituição de uma identidade étnica italiana e tomando em conta que, nas localidades estudadas, ela se dá em contexto de colonização compartilhada com imigrantes europeus de outras nacionalidades, podemos pensar que a italianidade ali construída reflete no que Seyferth (1994) denominou de cultura camponesa compartilhada. Para essa autora (1992), no caso que ela estuda, são identificados como elementos em comum que acionam uma identidade colona o pioneirismo dos antepassados, a propriedade privada da terra, o trabalho familiar e a policultura. No contexto deste estudo, podemos sugerir que a italianidade torna-se um dos elementos de constituição de uma identidade colona compartilhada, em que o vinho e a polenta, símbolos da cultura italiana, tornam-se presentes no cotidiano também de famílias rurais de origem alemã e brasileira nas colônias Maciel e São Manoel.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo se propôs entender, a partir das práticas alimentares das famílias rurais estudadas, como o processo de valorização do rural assume características particulares associadas à constituição de uma italianidade nas colônias Maciel e São Manoel, no município de Pelotas/RS.

Assim, as ocasiões festivas constituíram-se em importante ponto de observação. Na festa de Sant‟Ana, comemoração religiosa realizada por e para os membros da comunidade, “bolos de caixinha” são preparados medindo-se a temperatura do forno com folhas de bananeira. Aí a tradição – reafirmando identidades – faz-se presente, ainda que atualizada a partir de técnicas e ingredientes modernos. Já na festa do Dia do Vinho, tem-se a comida preparada com os produtos da colônia para um público urbano, ávido por consumir o vinho, a comida e, mais do que tudo, por travar contato com o rural de seu ideário.

Dos momentos festivos, o olhar voltou-se para o cotidiano das famílias rurais, para seus saberes e práticas alimentares, incluindo aí a organização do trabalho em torno da produção para o autoconsumo. Com relação às mudanças advindas com a modernização da agricultura, entende-se que, assim como a lavoura passou por um processo de transformação, com aquisição de máquinas, equipamentos e produtos químicos, a cozinha doméstica e a cozinha da comunidade também sofreram alterações, o que é demonstrado pela aquisição de fornos elétricos, máquina de preparar pão, liquidificadores, batedeiras, entre outros eletrodomésticos que hoje compõem essas cozinhas. Do mesmo modo, a adoção, em maior intensidade, de produtos industrializados está presente entre os ingredientes utilizados em casa, bem como, na preparação da festa, conformando o chamado “cardápio hibrido”.

Se antes a compra na venda resumia-se, praticamente, a comprar café, açúcar e sal, hoje se compram outras coisinhas, como narra uma senhora, referindo- se a produtos comprados no mercado. Por outro lado, mantém-se, mas em menor escala do que antes, a produção para o autoconsumo, base da alimentação diária das famílias. Os alimentos produzidos alimentam a família, mas também as relações 82

sociais, por meio da circulação de alimentos entre vizinhos e naqueles destinados a amigos e familiares moradores da cidade.

A comida e o vinho apresentados nas festas como símbolos da cultura italiana estão também presentes na alimentação diária das famílias. Além da produção da horta, o vinho e a polenta são alimentos culturalmente valorizados. O vinho é comumente produzido para o consumo da família, sendo que algumas o produzem em maior escala, para comercialização. Mas o vinho e a polenta, símbolos da culinária italiana, estão à mesa das famílias de descendentes de imigrantes italianos e também de alemães e brasileiros, evidenciando que, naquela localidade, a italianidade pode ser interpretada como elemento que constitui uma identidade colona compartilhada (Seyferth,1994).

No contexto das festas e no cotidiano das famílias rurais estudadas, é possível notar que diferentes percepções do rural se fazem presentes. Cabe aqui lembrar o estudo de Woortmann (2007), que ao analisar as práticas alimentares de teuto-brasileiros do sul do Brasil, observa, em paralelo às transformações ocorridas no sistema produtivo, as modificações sofridas pelas comidas consumidas pelo grupo. Com a menor intensidade do trabalho na roça, decorrente especialmente da introdução de maquinário, a comida forte, associada ao trabalho forte, cede lugar a comidas mais leves, condizentes com as novas atividades, também tidas como mais leves. Ao mesmo tempo, com a redução da mão-de-obra disponível nas unidades familiares, a produção de vários gêneros alimentícios para o autoconsumo também sofre uma retração, o que faz com que esses agricultores consumam mais produtos industrializados. Na contraface dessas mudanças, o turismo conduziu a uma ressignificação dos hábitos alimentares das comidas tradicionais, ocorrendo uma revalorização da comida “étnica” Woortmann (2007). No caso em estudo, entendemos que a valorização positivada do rural, da comida, das festas e da cultura italiana conduziu à criação da festa do Dia do Vinho e a novas ressignificações que parecem fornecer elementos para a constituição de uma identidade italiana associada a uma identidade mais ampla, compartilhada. Poderíamos, assim, pensar que a constituição dessa italianidade não se dá relacionada estritamente à origem, mas estaria relacionada a um contexto de idealização do rural, constituindo-se em elemento estratégico de valorização do lugar de viver dessas famílias e dos produtos de origem local. 83

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Fontes pesquisadas:

Livro Tombo da Paróquia Sant‟Ana, da Colônia Maciel.

88

ANEXO A - Livro Tombo da paróquia SantʼAna: registro da chegada dos primeiros imigrantes italianos à Colônia Maciel (1884 a 1886).

Capa e primeira página do Livro Tombo da Igreja Santa Anna, na Colônia Maciel. Fonte: Paróquia Sant‟Ana, 2011.

89

Segunda e terceira página do Livro Tombo da Igreja Santa Anna, na Colônia Maciel. Fonte: Paróquia Sant‟Ana, 2011.

Nomes das primeiras famílias que vieram à Colônia Maciel - 1884 e 1886

Nome Função Outros dados

Noé Talamini Moleiro construiu o primeiro moinho

Jorge Bonat Agricultor

Pedro Bonat Agricultor

Antonio Marini Comerciante

Domingos Franconi Agricultor

Antonio Scaramuzza Agricultor 90

Luiz Genini apelido Marespro – Solteiro

Francisco Balbinotti Agricultor

Matheus Campores do Tyrol – Solteiro

Leopoldo Aldrighi Agricultor

Joaquim Aldrighi Comerciante

Luiz Aldrighi Agricultor

José Aldrighi Agricultor

Domingos Gasparoni Agricultor

Francisco Biché Agricultor Francês

José Arbés Agricultor Francês

Eugenio Tassi Agricultor

Manoel Bortolo Agricultor Solteiro

Nomes das famílias que vieram à Colônia Maciel – 1887 em diante

Cesar Schiavon Agricultor Zanete, por apelido

Silverio Domingos Agricultor Zanete, por apellido Schiavon

Norberto (Celeste) Agricultor Zanete, por apelido Schiavon

João Doro Agricultor

Angelo Artuso Agricultor

Angelo Cesson Agricultor

Angelo Tavanetti Agricultor

Angelo Camellato Agricultor Solteiro

Antonio Meggiatto Agricultor 91

Josué Bonnano Agricultor

Luiz Zaffalon Agricultor

Abraham Stocco Agricultor

Sebastião Formentin Agricultor

Antonio Giaconnin Agricultor

José Giaconnin Agricultor

Eugenio Cavalin Agricultor

Antonio Pegoraro Agricultor pai de Pedro, Angelo e Giacomo

Luiz Zanatti Agricultor

Estevam Zanatti Agricultor

Eugenio Zoia (Zoggia) Agricultor

Antonio Zanetti Agricultor

Antonio Zanetti sobrinho Agricultor

Bartolo Balbinotti Agricultor

Justo Casarin Agricultor

Antonio Portantiolo Agricultor

Vicente Meggiato Agricultor

Innocenti Voltan Agricultor

Eugenio Morello Agricultor

José Bassi Agricultor

José Zanotti por apelido Biélla

Natal Marcolin por apelido Scatola