0

UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

FÁTIMA TRINDADE DO AMARAL

O PROTAGONISMO NO ESPAÇO DA ESCOLA INDÍGENA

Ijuí – RS 2013

1

FÁTIMA TRINDADE DO AMARAL

O PROTAGONISMO KAINGANG NO ESPAÇO DA ESCOLA INDÍGENA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação nas Ciências, como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Educação nas Ciências.

Orientadora: Profª. Drª. Elza Maria Fonseca Falkembach

Ijuí – RS 2013 2

FÁTIMA TRINDADE DO AMARAL

O PROTAGONISMO KAINGANG NO ESPAÇO DA ESCOLA INDÍGENA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação nas Ciências, como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Educação nas Ciências.

Banca Examinadora:

______Noeli Valentina Weschenfelder – UNIJUÍ

______Walter Frantz – UNIJUÍ

______Anna Rosa Fontela Santiago – UNIJUÍ

______Maria Aparecida Bergamaschi – UFRGS

Ijuí, 16 de outubro de 2013 3

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus por ter possibilitado esta conquista, pois és o ser supremo que permeia toda a Cosmologia Kaingang. Estendo meus agradecimentos. Aos parentes, professores e colegas intelectuais kaingang, os quais oportunizaram o enriquecimento desta dissertação, através dos nossos diálogos embasados nas suas produções intelectuais e também por aceitarem dar vida às narrativas e mobilidade a este trabalho. À nossa turma do PROEJA INDÍGENA que se tornou inesquecível pelas vivências solidárias, agradáveis e produtivas: Clarice dos Santos Berton, Pedro Sales, Zaqueu Casemiro da Silva, Everaldo Kucrey Silveira, Fernando Loureiro Luchetta, Adilson Ricardo Ribeiro, Janaina Vaz, Daniela Franciela Sales, Carmelinda Caetano Chaves Ribeiro, Marco Antônio Ribeiro, Sara Cristina Kariká Sales, Josiléia Daniza Jagso, Inácio Jacobsen, Geovana Maciel de Anhaia, Laisa Erê Sales Ribeiro, Luciano Luiz Capitânio e Rosinei Alfaiate pelas vivências. Aos nossos pesquisadores e intelectuais kaingang que nos brindaram com seus conhecimentos nas aulas do PROEJA: Danilo Braga, Zaqueu Key Claudino, Lúcia Fernanda Inácio, Marcia Ggoitéy Nascimento, Bruno Ferreira, Dorvalino Cardoso Refey, Maria Inês de Freitas, Andila Inácio Belfort, pelos quais tenho grande respeito, admiração e apreço. À minha orientadora, Drª. Elza Maria Fonseca Falkembach, que com sabedoria e sensibilidade me conduziu neste processo, respeitando meu tempo de produção intelectual. Ao querido Rodrigo Venzon, por quem nutro profunda admiração, gratidão e respeito, pelas sábias palavras que sempre tens no momento certo, que me ajudaram a definir meu tema de pesquisa. Aos professores do Programa de Pós-Graduação da Linha 3, pela acolhida e por apostarem em mim e proporcionarem a oportunidade de aprimorar meus conhecimentos na academia. À CAPES pela bolsa de estudo, pois sem ela não conseguiria realizar o sonho de ser pesquisadora, iniciar e concluir o curso de mestrado nesta Instituição. Aos professores que compuseram a Banca Examinadora da dissertação, Drª. Noeli Walentina, Drª. Anna Rosa Fontella, Drª. Maria Aparecida Bergamaschi e o Dr. Walter Frantz, que com muita generosidade aceitaram o convite e se disponibilizaram a ler o texto, agradeço a atenção e a magnitude de suas contribuições.

4

À 9ª CRE pela sensibilidade dos gestores, que flexibilizaram meus horários para cursar as disciplinas do curso, conciliando-o com meu trabalho na escola. À querida Claudia Antunes, pelo incentivo e apoio didático. À minha Comunidade (Comunidade Kaingang da Borboleta), às lideranças e aos pais e mães de alunos que há 15 anos confiam a minha pessoa a educação escolar de seus filhos, os quais depositaram sua confiança em mim, me dando carta branca para ousar e tentar construir uma educação escolar adequada e de qualidade para nossas crianças. Passagem pedagógica que faz jus a um capítulo desta dissertação. Aos parentes Evanice Kutá da Silva e Jarbas Padilha da Silva, artesões da Comunidade Borboleta, pela cedência de fotos de seus trabalhos (em cipó e taquara), os quais enriqueceram a explanação do meu trabalho na Universidade. Ao Vô Fredo (Alfredo Mariano Gonçalves, in memorian), meu avô paterno pelo Legado Cultural, passando a mim as vivências em meu tempo de criança, as quais possibilitaram o enriquecimento desta dissertação. Ao meu pai Sebastião Gonçalves do Amaral, aos meus irmãos Claudio José Trindade e Joarez Gonçalves do Amaral (in memorian), pelas vivências e bênçãos deixadas. À minha filha Paola Jumy do Amaral Padilha da Silva, minha princesinha... pela compreensão das minhas ausências. À mãe Lorena Maria Francisca Trindade com muito carinho, pelo incentivo e cuidado da nossa Paola nas minhas idas e vindas à Universidade. À minha irmã Glaci Trindade do Amaral, aos sobrinhos Raiane do Amaral e Alexandre do Amaral, que mesmo distantes demonstraram seu carinho e apoio. Ao Companheiro e Amor Ezequias Padilha da Silva pelo apoio incondicional nesta caminhada, que nas minhas ausências também foi cuidadoso com nossa princesinha...

A todos meu muito obrigada!

5

RESUMO

O trabalho está referido as minhas práticas e de outros professores kaingang que se somam a tantas outras em desenvolvimento em escolas das comunidades kaingang. Decorre de questão que sempre me intrigou, ou seja, o que seria a Educação Escolar Indígena específica e diferenciada nas escolas kaingang? Nós, professores kaingang, sabemos que a educação para o kaingang tem duas dimensões que deveriam se complementar, uma antes das nossas crianças irem para a escola, a educação indígena ou educação tradicional e a outra que acontece depois que a criança kaingang passa a participar do espaço da escola, a educação escolar indígena. Está aí o maior desafio do professor indígena, que é dar sentido à “escolarização do conhecimento” em uma escola indígena. Atualmente somos desafiados a desconstruir conceitos de escola, pois sabemos que o modelo de escola dos fóg não serve para nossas comunidades. Mas também nos interrogamos: O que nos serve? Por meio de narrativas, relatos de histórias e reflexões teóricas situadas em pesquisa de campo, procuro indagar: O que é educação escolar indígena específica e diferenciada? Como são “garantidas” mudanças no cenário da educação escolar kaingang? A pesquisa de campo fez uso de registros em “cadernos de campo”, do que corresponde às minhas memórias de quinze anos de vivências como professora na escola indígena de minha comunidade, conversas informais e “diálogos dirigidos” com professoras e professores kaingang (mediante consentimento prévio informado), compartilhando dados retirados de documentos da escola. Produzi, também, histórias baseadas em fatos vivenciados por parentes kaingang e recorrendo às minhas memórias. Pautando-me na cultura kaingang proponho uma possibilidade de currículo alicerçado em seus componentes relevantes onde a escola torna-se o espaço educativo e elementos da cultura passam a ser prática educativa no âmbito escolar. Para sustentar as reflexões apresentadas na dissertação apoiei-me basicamente na produção teórica de parentes kaingang, protagonistas no processo de luta pela construção de uma educação escolar diferenciada e de qualidade (Andila Nivygsãnh Inácio, Maria Inês de Freitas, Márcia Gojten Nascimento, Bruno Ferreira, Clarice dos Santos Berton, Dorvalino Cardoso e Sara Kariká Sales) e de pesquisadores da cultura indígena (Maria Aparecida Bergamaschi, Sérgio Baptista, Sandro Luckmann e Carlos Eduardo de Sousa). O foco da pesquisa foi desdobrado em reflexões centradas nos conceitos de diálogo, consciência, experiência transmitida e resistência, para as quais a interlocução se deu, principalmente com Paulo Freire, Stuart Hall e Carlos Rodrigues Brandão. Palavras-chave: protagonismo kaingang, educação tradicional, educação escolar.

6

ABSTRACT

The work is referred to my practice and other kaingang teachers that add up to so many other schools in developing kaingang communities. It follows that the question has always intrigued me, namely, what would be the indigenous education specific and differentiated kaingang schools? As kaingang teachers, we know that education for kaingang has two dimensions that should be complementary, one before our children go to school, the indigenous or traditional education and one that happens after the kaingang child begin to participate at school ambient, the indigenous school education. There is the greatest challenge of indigenous teacher, which is to give meaning to “school knowledge” in a Indigenous School. Currently we are challenged to deconstruct concepts of school, because we know that the school model of fóg is good for our communities. But we ask ourselves: What do we do? Through narratives, stories and reports of theoretical reflections located in field research, I try to ask: What is specific and differentiated and indigenous education? How are changes “guaranteed” within the school in the kaingang education? The field research made use of records on “field notebooks”, which corresponds to the memories of my fifteen years of experiences as a teacher in Indian school in my community, and informal conversations and “directed dialogues” with teachers and kaingang teachers (by consent prior informed), sharing data drawn from school documents. It brings also stories based on facts experienced by kaingang relatives and resorting to my memories. Based on the kaingang culture I propose a curriculum possibility grounded in their relevant components where the school becomes an educational environment and cultural elements become educational practice in schools. To sustain the reflections presented in the dissertation I have relied primarily on theoretical production on kaingang relatives, the protagonists in the struggle to build a differentiated education and quality (Andila Nivygsãnh Inácio, Maria Inês de Freitas, Márcia Gojten Nascimento, Bruno Ferreira, Clarice dos Santos Berton, Dorvalino Cardoso and Sara Kariká Sales), and researchers of indigenous culture (Maria Aparecida Bergamaschi, Sergio Baptista, Sandro Luckmann and Carlos Eduardo de Sousa). The focus of the research was split into reflections centered on the concepts of dialogue, awareness, experience and transmitted resistance, for which dialogue was mainly with Paulo Freire, Stuart Hall and Carlos Rodrigues Brandão.

Keywords: kaingang protagonism, traditional education, school education.

7

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANAÍ-BA – Associação Nacional de Apoio aos Índios da ANAÍ-RS – Associação Nacional de Apoio aos Índios do Rio Grande do Sul APBKG – Associação dos Professores Bilíngues Kaingang e Guarani CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação CIMI – Conselho Indigenista Missionário COPIAR – Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, e CPI-AC – Comissão Pró-Índio do Acre CPI-SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo CTI – Centro de Trabalho Indigenista EJA – Educação de Jovens e Adultos FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional da Saúde GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC – Ministério da Educação e Cultura NEI – Núcleo de Educação Indígena NIT/UFRGS – Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ONGs – Organizações Não Governamentais OPAN – Operação Anchieta PPP – Projeto Político Pedagógico RCNEI – Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas RS – Rio Grande do Sul SEE – Secretaria Estadual de Educação SIL – Summer Institute of Linguistics SPI – Serviço de Proteção ao Índio TI – Terra(s) Indígena(s) UFI – Universidade Federal Independente UNI – União das Nações Indígenas UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UPF – Universidade de Passo Fundo

8

GLOSSÁRIO DAS EXPRESSÕES KAINGANG

biriva – galpão próximo a moradia para fazer fogo de chão caféi – flor emã – comunidade/moradia ẽmĩ – pão da cultura kaingang fóg – não índio gir – crianças Jógóg – gavião jyvãn – traduzido por aconselhamento kairu/rá ror – marca redonda (O) kamé e kairu – metades exogâmicas/metades clânicas que compõe a dualidade do povo kaingang kame/rá téi – marca comprida (/) kame/rá téi (/) e kairu/rá ror (O) – são as metades clânicas que dividem o povo kaingang em dois grandes grupos kasiki – cacique kófa – velho(s) kórég – feia kre – cestos kujá – mestres espirituais e curandeiros pẽj – mestres espirituais/ cerimoniais Rã do – raio de sol regre – espírito da mata Toto Sin – borboletinha tugfy – trançados aplicados a objetos os mais variados como garrafas, flechas, arcos wogfy – trançados em geral que podem ser kre – cestos

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10

1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA ...... 17 1.1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA – ASPECTOS ASSOCIADOS À CULTURA ...... 17 1.2 A EDUCAÇÃO TRADICIONAL ENTRE O POVO KAINGANG ...... 18 1.3 ALGUMAS VIVÊNCIAS E APRENDIZAGENS ...... 22

2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ...... 31 2.1 ORIENTAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA – ELEMENTOS DA HISTÓRIA ...... 31 2.2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR KAINGANG ...... 37 2.3 PEDAÇOS DE VIDAS DE PROFESSORES KAINGANG ...... 44

3 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE UMA ESCOLA INDÍGENA: REFLEXÕES E VIVÊNCIAS DE UMA EDUCADORA E PESQUISADORA ...... 58 3.1 O INÍCIO ...... 58 3.2 O PRINCÍPIO DAS DORES ...... 60 3.3 ALGUNS ELEMENTOS DA HISTÓRIA DA NOSSA ESCOLA ...... 63 3.4 A NOSSA ESCOLA ATUALMENTE ...... 64 3.5 OS CONCEITOS DE CICLOS ...... 66 3.6 A VIVÊNCIA DA PROPOSTA ...... 67 3.7 A MOBILIDADE DAS AULAS ...... 68 3.8 O CURRÍCULO ESPECÍFICO COMO UMA POSSIBILIDADE ...... 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 73

REFERÊNCIAS ...... 78

ANEXOS ...... 81

10

INTRODUÇÃO

Os desafios nos impulsionam a continuar! Com esta frase, inicio esta dissertação, pois para elaborá-la foram dois anos de intensos desafios que me impulsionaram ao estudo sistemático e à pesquisa. O primeiro desafio eu assumi quando decidi fazer um curso de especialização direcionado especificamente para a formação de professores indígenas. Na mesma época, fui selecionada para um Curso de Mestrado em Educação. Com as duas responsabilidades pela frente, me senti intensamente instigada, pois teria de conciliar dois cursos que demandavam muito estudo, o trabalho na escola e a manutenção do cuidado com a família. Porém, como “guerreira kaingang”, aceitei enfrentar as exigências decorrentes do conjunto de responsabilidades que deveria assumir, embora soubesse que seriam muitas, mas acreditando que poderia contar com a força e a sabedoria divina para chegar à vitória. Muitas vezes, acordando na madrugada, consegui desenvolver partes das atividades intelectuais que me apresentavam, pude trabalhar com afinco e passar por um dos desafios que foi concluir a especialização em Educação Indígena ministrada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sinto que esta especialização me proporcionou aporte teórico para impulsionar minha produção no Mestrado, sem falar na riqueza de conviver com meus parentes kaingang, que também frequentaram o curso e com eles trocar ideias continuamente. Foi uma experiência muito rica e se não tivesse aceitado o desafio de fazer este curso não teria essas vivências que me deram subsídios para minha pesquisa do Mestrado. Como kaingang, posso afirmar que ultrapassei (sem abandonar) traços da minha cultura, a cultura da oralidade para concretizar o sonho de ser pesquisadora, pesquisadora da educação escolar kaingang. Posso dizer que hoje vivo diariamente 11

sendo desafiada, pois estou me constituindo pesquisadora, educadora indígena kaingang, compreendendo que o mundo acadêmico é muito diferente e distante do nosso cotidiano indígena e muito exigente também. É muita leitura! É muito difícil ver de outro ângulo a nossa realidade, para poder escrever sobre ela, e ao mesmo tempo, ser crítica, ter um olhar problematizador sobre o objeto pesquisado, mesmo sendo parte deste objeto. Outro desafio enfrentado foi definir meu tema de pesquisa, pois a temática indígena é muito ampla e eu necessitava escolher um tema e também “recortá-lo”. Sorte a minha foi ter conversado sobre meus anseios em relação à dissertação com o querido amigo Rodrigo1, pois foi numa das nossas conversas que ele me sugeriu que me desafiasse a escrever sobre o “protagonismo indígena”, considerando minha experiência como educadora e também protagonista em nossa escola. Embora eu tivesse pensado num primeiro momento em outro tema, já havia tomado consciência que não teria condições de dar conta dele porque necessitaria de mais tempo e dinheiro para trabalhá-lo. Queria escrever sobre a história da educação escolar kaingang. Após a conversa com esse amigo, fui para casa e comecei a gostar da sugestão e, então, veio o tema da minha pesquisa “O Protagonismo Kaingang no Espaço da Escola da Aldeia”. Percebi que começava a definir meu tema para pesquisa, pois pretendia analisar as mudanças ocorridas no contexto educacional kaingang nos últimos anos. Dei-me conta de que este era o tema ideal para minha pesquisa, porque poderia problematizar uma experiência de quase quinze anos em sala de aula, compreender minhas falhas e acertos ao tentar construir um diferencial na prática educativa no espaço da escola indígena e também por conhecer o trabalho de vários colegas, parentes kaingang que atuam como professores em suas comunidades. Por ter um tempo de convivência com eles, desde a época da graduação, muitas trocas de experiências e muito diálogo sobre a educação escolar indígena foram subsídios no processo de dissertar sobre o tema. Além das vivências, interação com meus parentes e formação como pesquisadora kaingang no Curso de Especialização em Educação Indígena, para aprimorar minha dissertação tive a oportunidade de ter acesso aos artigos produzidos nesta especialização, pois eles foram editados, tornando-se uma rica

1Rodrigo Alegretti Venzon: Historiador, Indigenista, atual Coordenador da Educação Escolar Indígena no Estado do Rio Grande do Sul. 12

fonte bibliográfica sobre o protagonismo kaingang nos diversos espaços que estamos começando a assumir. Uma dúvida, um questionamento que sempre me intrigou e me acompanha até a atualidade, é o que seria, na prática, a educação escolar indígena específica e diferenciada nas escolas indígenas. Este é um questionamento que acompanha todos os educadores indígenas, estudiosos e simpatizantes da causa indígena, pois percebemos que, na maioria dos casos, a prática da escola indígena é muito parecida ou igual a da escola dos fóg (não índio). Nós, professores kaingang, sabemos que a educação para o kaingang tem dois momentos, duas dimensões que deveriam se complementar, uma antes das nossas crianças irem para a escola, a qual atribuímos a denominação de educação indígena ou educação tradicional e a outra que acontece depois que a criança kaingang passa a participar do espaço da escola na aldeia, que chamamos de educação escolar indígena. É neste período e lugar que está o maior desafio do educador indígena, que é dar sentido à “escolarização do conhecimento” em uma escola denominada escola indígena. Nesta perspectiva, nós, kaingang, sabemos da importância da educação tradicional para nosso povo, pois é a partir dela que conhecimentos milenares do nosso povo sobreviveram graças aos conhecimentos que nossos kófa (velhos) passam às novas gerações através da oralidade. Cabe aqui mencionar as sábias considerações de Jecupé (1998, p. 26):

A memória cultural se baseia no ensinamento oral da tradição, que é a forma original da educação nativa, que consiste em deixar o espírito fluir e se manifestar através da fala aquilo que foi passado pelo pai, pelo avô e pelo tataravô.

Independente de qual for a etnia indígena, os mecanismos de transmissão da cultura são os mesmos: a oralidade e a socialização. Atualmente somos desafiados a desconstruir conceitos de escola, sabemos que o modelo de escola dos fóg não serve para nossas comunidades. Mas também nos interrogamos: O que nos serve? Não apresentarei respostas “fechadas” a esta questão, neste texto, não é esta a minha intenção, mas sim trazer elementos que instigarão o leitor a refletir comigo sobre a escola indígena, tendo por base os elementos e formulações que exponho nesta dissertação. Nós, envolvidos com o 13

processo de educação escolar indígena, sabemos que muitas mudanças significativas aconteceram no espaço da escola indígena, porém sabemos que ainda é pouco, devendo acontecer muitas mudanças para que a escola indígena que temos possa ficar parecida com a que queremos. É neste ponto que foco minha dissertação, em experiências, práticas significativas que deram certo no espaço da educação escolar indígena e me arrisco também a fazer proposições para termos uma educação escolar indígena mais adequada as nossas comunidades. Numa lógica de partilha, a qual faz parte das nossas vivências como kaingang, relato minha experiência enquanto educadora indígena, no intuito de enriquecer meu trabalho registrando uma experiência vivenciada por mim, com os impasses, desafios e conquistas no contexto escolar, no espaço da escola da minha comunidade. Apresento, também, partes de experiências de companheiros que comigo compartilham propósitos para a educação escolar. As reflexões teóricas aqui apresentadas estão situadas, portanto, em pesquisa de campo desenvolvida sobre a minha prática educativa como educadora kaingang na escola indígena da minha comunidade. Nesta escola estamos protagonizando novas possibilidades na educação escolar indígena e mantendo o diálogo com outras práticas pedagógicas de parentes kaingang que também atuam em escolas indígenas. Tento trazer este diálogo, na dissertação, partindo de narrativas baseadas em fatos vivenciados por mim e por parentes kaingang que, no texto, aparecem com pseudônimos. Por ser kaingang, conhecer e acompanhar a trajetória profissional de alguns parentes kaingang, vejo-me em condições de complementar minhas vivências com diálogos sobre nossas práticas educativas escolares. A partir das narrativas que apresentarei irei tratar do protagonismo kaingang no espaço da escola indígena, procurando indagar como são “garantidas” mudanças no cenário da educação escolar kaingang, o que é educação escolar indígena específica e diferenciada? A pesquisa de campo que embasou esta dissertação se deu a partir de registros (em “cadernos de campo”) que correspondem a memórias da autora sobre seus quatorze anos de vivências como professora na escola indígena de sua comunidade, conversas informais com outros intelectuais, educadores kaingang, “diálogos dirigidos” com professores kaingang, com seu consentimento prévio 14

informado, compartilhando dados, também retirados de documentos da escola, para a pesquisa. Desafiada por minha orientadora, fui instigada a produzir histórias baseadas em fatos reais, relatadas como “histórias da carochinha” (como disse minha orientadora), utilizando fatos vivenciados por parentes kaingang (com os quais compartilho laços de amizade e afeto) e recorrendo às minhas memórias como professora indígena. O desafio era criar histórias com personagens, protagonistas e coadjuvantes kaingang, focando na pergunta de pesquisa: O que é educação escolar indígena específica e diferenciada? No primeiro momento fiquei muito preocupada quanto ao que poderia vir a ser minha pesquisa! Diante das circunstâncias e exigências do Mestrado aceitei o desafio e comecei a escrever, já com o consentimento e interesse dos que seriam os personagens da história, aqueles que compartilham comigo o enredo. Quando comecei a escrever passei a gostar e me senti uma “contadora de histórias”, porém nessas, eu narrava os fatos e me sentia personagem da história. Conforme combinado, com os parentes/colegas, após terminar a escrita da história, passei-as para leitura e apreciação. Utilizei, nas histórias (sobre a escolarização e prática educativa indígena), pseudônimos dos protagonistas para não expor meus parentes/colegas, mas certamente, nada do que é apresentado os desabona. Os textos foram aprovados primeiramente pelos personagens, os quais gostaram, acharam muito apropriada a forma como descrevi parte de suas vivências como educador. Depois enviei as histórias para apreciação da minha orientadora, que demonstrou ter gostado também dos meus escritos. Produzir estas histórias foi muito gratificante para mim, enquanto indígena e como professora, pois pude fazer a integração das minhas vivências com as vivências de meus colegas/parentes/amigos. Procurei nestas narrativas demonstrar como foi a nossa experiência como alunos, tanto em escola indígena como na escola não indígena, e também nossa experiência como professores, como protagonistas no espaço da escola indígena na aldeia. Tratei de evidenciar, nas narrativas, as mudanças nas práticas pedagógicas desenvolvidas no contexto da escola indígena, graças ao esforço, empenho e amor por nosso povo (povo kaingang), que faz com que nós, professores indígenas, estejamos comprometidos 15

em buscar, ousar e construir uma educação escolar indígena específica, diferenciada em qualidade, adequada às necessidades atuais das nossas aldeias. Fico muito grata por minha orientadora ter apostado e acreditado que eu poderia criar narrativas significativas, como uma das fontes do conhecimento trabalhado na minha dissertação. Esta pesquisa em educação, focalizando a importância do kaingang no cenário educacional no espaço da escola da aldeia tem importantes implicações. Avanços aconteceram nas práticas educativas nas escolas indígenas, considerando os períodos de escolarização na época em que atuava o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Embora constatarmos que os avanços ocorridos são significantes, sabemos que ainda são insuficientes para constituirmos uma escola indígena adequada às necessidades das nossas comunidades. A dissertação está organizada em três capítulos. No primeiro capítulo apresento ao leitor aspectos relevantes da educação indígena, mais detalhadamente sobre a educação tradicional kaingang enfatizando aspectos associados à cultura, como ela acontece, em quais espaços e quem faz a mediação deste processo. Neste capítulo apresento memórias vivenciadas no tempo de criança, com meu vô paterno, o qual muito me ensinou sobre a cultura kaingang, também apresento o papel fundamental dos kófa e kujá (mestres espirituais e curandeiros) na manutenção e propagação da cultura kaingang às novas gerações. No segundo capítulo apresento um breve histórico da educação escolar indígena em nosso país (Brasil), foco o processo de educação escolar do povo kaingang no Estado do Rio Grande do Sul (RS). Em seguida aprofundo como se deu a educação escolar kaingang no RS, centrando no processo de formação dos monitores e professores kaingang. Este capítulo também aborda como acontecia a educação escolar nas escolas para índios, localizadas em TI do nosso Estado. Abordarei o protagonismo kaingang no processo pedagógico da escola indígena, onde apresento duas narrativas baseadas em fatos reais, vivenciadas por parentes/colegas kaingang (os quais são apresentados com pseudônimos) e também pela pesquisadora. Nestas narrativas apresento fatos e práticas que foram vivenciadas e que estão sendo vivenciadas no espaço das escolas indígenas localizadas em nossas comunidades. Neste capítulo, a partir das narrativas procuro dialogar com a produção teórica de Paulo Freire, trazendo a realidade vivenciada em 16

escolas indígenas kaingang e as possibilidades para a educação escolar indígena numa perspectiva de educação popular. No terceiro capítulo relato o processo de constituição da escola localizada na minha comunidade, da qual fui protagonista, apresento minha experiência enquanto educadora kaingang, uma experiência de quinze anos “de sala de aula” em minha comunidade (Comunidade Kaingang da Borboleta). Sistematizo neste capítulo experiências pedagógicas que deram certo no contexto escolar, trago também meus anseios como pesquisadora kaingang na busca por uma educação escolar indígena adequada às nossas comunidades. Encerro esta dissertação apresentando possibilidades para constituirmos um currículo escolar adequado às comunidades kaingang, na busca pela construção de uma educação escolar kaingang adequada e de qualidade. As bibliografias utilizadas para sustentar as reflexões e relatos apresentados nesta dissertação são de parentes kaingang, também protagonistas no processo de luta pela construção de uma educação escolar diferenciada e de qualidade (Andila Nivygsãnh Inácio, Maria Inês de Freitas, Márcia Gojten Nascimento, Bruno Ferreira, Clarice dos Santos Berton, Dorvalino Cardoso e Sara Kariká Sales); também li pesquisadores da cultura indígena (Maria Aparecida Bergamaschi, Sérgio Baptista, Sandro Luckmann e Carlos Eduardo de Sousa) e ainda nosso educador emérito Paulo Freire. Estes são autores que fundamentarão diretamente esta pesquisa, porém tem outros autores que contribuíram para o aperfeiçoamento intelectual da pesquisadora os quais serão mencionados na bibliografia. O foco desta pesquisa foi desdobrado em reflexões centradas nos conceitos de diálogo, consciência, experiência transmitida e resistência, para as quais a interlocução se deu, principalmente com Paulo Freire, Stuart Hall e Carlos Rodrigues Brandão.

17

1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA

Neste capítulo apresento ao leitor uma abordagem teórica dos aspectos que permeiam a educação indígena, mais precisamente a educação kaingang no contexto familiar que antecede a educação escolar. Esta é uma abordagem dos aspectos associados à cultura do nosso povo. Farei referências ao contexto, à organização social do povo kaingang e à importância dos nossos kófa e também dos kujá que através da oralidade conseguiram manter por séculos, perpassando gerações, os conhecimentos tradicionais do povo kaingang.

1.1 A EDUCAÇÃO INDÍGENA – ASPECTOS ASSOCIADOS À CULTURA

Os povos indígenas possuem uma grande diversidade sociocultural e sempre se fizeram presentes nos seus cotidianos os conhecimentos e os saberes tradicionais, revelando, então, que sempre existiram processos educativos nas relações entre diferentes gerações, com práticas pedagógicas próprias. O povo kaingang sobrevive como etnia específica e diferenciada, conservando vivos aspectos de sua cultura perpassados por gerações. Embora algumas comunidades tenham perdido alguns aspectos de sua cultura, como o domínio da língua kaingang, e muitos outros aspectos tenham se modificado, compreendemos que a cultura não é estática, que ela acompanha a sociedade envolvente (ora sendo absorvida, ora se mantendo em interação). Como afirma Brandão (2010, p. 100) “somos humanos porque criamos cultura e continuamente as transformamos”. Podemos ilustrar essas modificações citando o exemplo do ẽmĩ (pão da cultura kaingang). Os ingredientes tradicionais ainda são os mesmos e o processo de preparo, o amassar o pão, também. Porém, atualmente, não o assamos mais na cinza, exceto nas festividades. Assamos o pão no forno, pois é mais prático. Não deixamos de preparar, nem de comer o ẽmĩ. Apenas, o processo de preparo teve alterações. Isso não significa que não saibamos mais fazer o ẽmĩ, assado na cinza, como na tradição. Só estamos usando tecnologias que facilitam o seu preparo, como é o caso do forno, pois nossas aldeias não são isoladas, sofrem impactos e influências externas. 18

Para o preparo do ẽmĩ na cinza, um fator que temos que ter muito cuidado é com o tipo de lenha que dispomos para assá-lo, pois se não for uma lenha apropriada poderá intoxicar quem comer do pão assado com qualquer lenha, para assar um ẽmĩ na cinza temos que ter de preferência lenha de angico tirado do mato, que não seja madeira que tenha sofrido alguma alteração química, como tinta, por exemplo, ou reaproveitamento de sobras de madeira utilizada para outros fins. A educação indígena, no sentido amplo do conceito, se refere a todo o processo de aprendizagem que vivenciamos na aldeia, no convívio com nossa família e com os demais membros da aldeia; em especial com os nossos kófa, quase sempre representados por nossos avós. Mesmo quando uma família indígena não está aldeada esta educação ocorre no âmbito familiar (pai, mãe e avós), através da oralidade. Isso se dá por meio da transmissão de conhecimentos específicos, o que ocorre na preparação de chás e de alimentos e nas práticas de rituais que, por sua vez, traduzem todos os valores que perpassam uma comunidade kaingang.

1.2 A EDUCAÇÃO TRADICIONAL ENTRE O POVO KAINGANG

O povo kaingang no Brasil, segundo dados da Fundação Nacional da Saúde (FUNASA, 2003), está estimado em uma população de 25.875 pessoas, podendo chegar na atualidade a um contingente populacional de 30 mil pessoas. Pertence ao tronco linguístico Jê e habita os Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Vive em Terras Indígenas (TI) e também em cidades e acampamentos. No Rio Grande do Sul encontram-se doze TI: Cacique Doble, Carreteiro, Guarita, Votouro, Nonoai, Iraí, Monte Caseiros, Rio da Várzea, Inhacorá, Borboleta, Ligeiro e Serrinha. Efetivamente, ainda hoje os grupos kaingang, além de um registro mitológico comum, compartilham crenças e práticas acerca de suas experiências rituais – o profundo respeito aos mortos e o apego às terras onde estão enterrados seus umbigos são expressões incontestáveis do valor estruturante da cosmologia para este povo. Nimuendajú (1913) foi o primeiro a afirmar que os kaingang estão articulados através do reconhecimento de um sistema de metades. A organização social do povo kaingang é feita a partir de metades clânicas (kame/rá téi (/) e kairu/rá ror (O)). 19

Entre os kaingang as metades que deram origem à sociedade recebem os nomes de kamé e kairu. Segundo a tradição kaingang os casamentos devem ser realizados entre indivíduos de metades opostas; os kamé devem casar-se com os kairu e vice-versa. O pertencimento a uma metade decorre da descendência paterna. Baptista (2008, p. 6) descreve que:

Os trançados expostos nas cidades, nas feiras de domingo, na beira de estradas ou em qualquer lugar em que esteja um kaingang, não são apenas wogfy (trançados em geral que podem ser kre – cestos – ou tugfy – trançados aplicados a objetos os mais variados como garrafas, flechas, arcos): são marcas visíveis da diferença, uma vez que fazem parte de um sistema de representações visuais (as formas tradicionais dos kre, os grafismos tradicionais neles presentes), originado de um tradicional e específico sistema cultural kaingang. Além disso, esses trançados revelam formas e grafismos vinculados à percepção dual kaingang do cosmos, enfatizando e sintetizando sua organização social baseada em duas metades exogâmicas, patrilineares, assimétricas e complementares designadas kamé e kairu – kre.

Nós, kaingang, muitas vezes não nos damos conta da presença constante da dualidade kaingang em nosso dia a dia, porém com um olhar pesquisador podemos concordar com Baptista (2006) quando afirma a permanente presença das metades clânicas (kamé e kairu) no universo kaingang, sendo mais evidenciados por nossos artesões, pois cada peça que fabricam tem sua marca (kamé ou kairu). Resumidamente podemos afirmar que no mundo kaingang tudo pertence a uma das metades ou é kamé ou é kairu. Esta divisão não é só pertencente a nós, kaingang, mas a todo o cosmos e ao que nele vive. A pesquisadora, pedagoga kaingang, Sales (2010, p. 8), em sua monografia de conclusão de curso de Especialização descreve sobre conhecimentos tradicionais:

(...) para os kanhgág os saberes tradicionais são extremamente importantes, todo o conhecimento medicinal, por exemplo, vem sendo cultivado ao longo da história, ainda é comum o uso de ervas medicinais, conhecimentos de poderes espirituais, conhecimentos de caça/pesca, crenças etc. Os kujá para os kanhgág são a representação de que ainda possuímos saber tradicional, em plena era da globalização. Os kujá são pessoas com dons de curas milagrosas através de ervas medicinais e interpretação dos fenômenos da natureza – boa ou má colheita, períodos de caça e pesca.

20

Considerando as afirmações de Sales (2010), compreendemos que para o povo kaingang os conhecimentos tradicionais são de suma importância para a sobrevivência da nossa cultura, e além dos nossos kófa, detentores do conhecimento oral, temos nossos kujá que, além de terem o conhecimento da cultura kaingang, são nossos mestres espirituais, pois possuem muitos dons, inclusive o da cura. Embora estejamos vivendo em tempo de globalização, conforme referência anterior, temos ainda vários kujá que estão sempre prontos a atender o nosso povo. Baptista (2008, p. 5), pesquisador do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT/UFRGS), em seu artigo “Sociocosmologias Indígenas no Espaço Metropolitano de Porto Alegre” descreve o kujá kaingang como:

O kujá apresenta-se, então, como elemento domesticador desta força, usada por ele como poder para prevenir, proteger, curar e prever (...) O domínio da floresta representa todos os recursos simbólicos que podem ser por ele utilizados. O kujá, portanto, detém um poder oriundo de outros domínios do cosmos: só ele ousa e consegue domesticar estas forças. Daí vem seu prestígio e poder social.

Nossos kujá são pessoas de extrema importância, são pessoas com dons especiais que velam pelo bem-estar de todos os kaingang, realizam curas, rituais de transição e proteção. Estão dispostos a andar pelas várias TI, caso necessário, para realizar sua missão.

21

Figura 1 – Terras indígenas kaingang Fonte: FUNAI (2000), ISA (2001).

A educação tradicional kaingang fundamenta-se, portanto, na oralidade e é transmitida de geração a geração. Tem como seus principais agentes, os kófa de cada comunidade, que consideramos nossas bibliotecas, pois são os detentores de toda a sabedoria do nosso povo. Este é um dos motivos deles serem os representantes de maior importância e de ocuparem lugares de destaque em nossas 22

comunidades. Prova disso é o poder de liderança que eles exercem sobre os indígenas mais novos. Geralmente, os kófa são os conselheiros da aldeia, e mesmo quando não o são formalmente, sempre são solicitados a se manifestar e ouvidos na mediação e na solução dos conflitos internos à aldeia.

1.3 ALGUMAS VIVÊNCIAS E APRENDIZAGENS

Quando ainda era criança, apesar de não ter me criado em aldeia, nossa família, principalmente a paterna, praticava e mantinha vivos muitos aspectos da nossa cultura. O vô Fredo era detentor de muito conhecimento tradicional, assim como todos os kófa do nosso povo, o povo kaingang. Transcrevo então algumas passagens (do tempo de criança), decorrentes de um convívio com meu vô, que geraram aprendizagens. A fruta não cai longe do pé – as frutas, os sons e os cheiros... Sou Fátima Trindade do Amaral, meu nome em kaingang é Toto Sin (borboletinha), sou da metade kamé, tenho 39 anos (14/10/1974), provenho de família humilde, filha de pai indígena e mãe mestiça (indígena com negro), me criei fora da aldeia. Recordo-me de minha infância, das vivências que tive com meu vô paterno, o vô Fredo (Alfredo Mariano Gonçalves), como o chamávamos. Meus avós paternos moravam no Campo Comprido, hoje área pertencente ao município de Jacuizinho, lugar onde junto com meu pai ia visitar meu vô e lá eu ficava semanas, pois eu ainda não estudava. Recordo-me claramente dos cinco aos oito anos, que quando eu ia lá no vô, ele saia comigo para o mato, nas roças, me mostrando as plantas, para que elas serviam, as frutas nativas, e já aproveitávamos para nos deliciar comendo guabiju, guaiava, pitanga e angá, frutas nativas daquela região. Nós saíamos de manhã de casa e só voltávamos quando era de tardezinha. Lembro-me que o vô sempre dizia quando íamos entrando no mato: “Agora neguinha (como eu era chamada, por ser pequenina e miudinha), temos que ter muito cuidado e respeito com essas plantas e animais, nós temos que aprender a conhecer cheiros e sons que se forem perigosos nós temos que ir pra outro lado, e agora o vô vai benzer aqui o mato para nenhum mal nos acontecer”. Ele fazia umas conversas estranhas, caminhando e falando, benzendo como ele dizia, depois íamos caminhando dentro do mato e o vô me 23

dizendo: “Sente este cheiro... tem cobra por perto!”. Até hoje eu me lembro do cheiro das cobras e das aranhas, pois cada vez que a gente saía eu aprendia muito. Os fogos de chão... Todos nós tínhamos na época uma biriva (galpão próximo da casa para fazer fogo de chão). A biriva do meu vô era um pouco diferente, como ele era de idade, passava a maior parte do tempo que estava em casa na sua biriva e eu junto, não desgrudava do vô. Lembro-me que uma vez na semana, quase sempre nas sextas-feiras, quando eu estava lá eu ia ao mato ajudar o vô juntar lenha e muitos chás, ele fazia fogo na biriva, botava um tacho com água e os chás que nós tínhamos coletado para ferver e pedia para que eu fosse estar lá com minha vó Maria, porque ele precisava ficar sozinho. Eu nunca entendia o porquê de não poder ver o que ele estava fazendo. Certo dia, com a minha curiosidade de criança, fui espiar por uma fresta o que o vô estava fazendo, porque estava há muito tempo trancado na biriva, eu olhei pela fresta e vi o vô dentro do tacho com chá, uma fumaceira naquela biriva e o vô só com a cabeça para fora d’água. Saí dali assustada, perguntei para a vó Maria o que ele estava fazendo. Ela disse: “Há!... Isso aí é coisa dele!...”. Fiquei sem entender nada. No outro dia perguntei ao vô Fredo porque ele estava dentro daquela água com chá quente lá na biriva, o vô me respondeu que eu era muito nova para entender, que um dia eu ia saber. Tinha muita coisa que eu presenciava na família e não entendia, mas como um dia eu ia entender acabava me conformando. Agora, adulta, consigo compreender o que antes não compreendia, pois a espiritualidade e a cosmologia kaingang formam um universo amplo cheio de significados e muitos deles, embora não estejamos prontas para entender, aceitamos sem questionamentos, pois fazem parte da nossa cultura. As rezas e os remédios... Outra vivência que achei interessante trazer neste texto é que o meu vô era benzedor conhecido na região, ele preparava chás, xaropes, benzia terreiros, lavouras e muitas pessoas o procuravam para também passar por uma benzedura. Minha vó era parteira, mas não se envolvia muito com as benzeduras do meu vô. Várias vezes, quando eu estava na casa do vô Fredo, pelas noites ele passava na biriva e sozinho, no outro dia como eu também levantava cedo, escutava o vô conversando com o pai, com a vó, dizendo: “Maria, ontem o André veio me visitar e 24

falou...”. Eu ficava novamente sem entender coisa alguma, porque o tio André já havia falecido, e meu vô, segundo o que ele falava, tinha uma comunicação frequente com os nossos parentes já falecidos. Essas passagens me assustavam um pouco. As histórias... Outra lembrança que tenho da minha infância é de quando meu vô ia lá em casa. Nesta época eu já tinha quase sete anos e nós morávamos em Estrela Velha, que era distrito do município de Arroio do Tigre. Meu pai era empreiteiro2. Lembro- me que lá nós também tínhamos uma biriva onde nos reuníamos e, principalmente, no inverno passávamos boa parte do nosso tempo ouvindo histórias neste espaço da nossa moradia. Tinha noites que amanhecíamos escutando histórias ao redor do fogo, lembro-me que às vezes chegamos a dormir ao redor do fogo, em cima dos sacos de sementes que eram guardadas na biriva, porque não queríamos perder a narrativa de história alguma. Eu adorava quando o vô Fredo ia lá pra casa porque toda noite todos nós íamos escutar histórias, e os outros se empolgavam e depois que o vô parava de contar histórias, lembro que o pai e a mãe também contavam histórias. Lembro-me de algumas como: “A Festa no Céu”; “O Tigre e o Macaco”; “Pedro Malazarte” e também histórias de assombração. Minha mãe ainda conta histórias, quando temos tempo para ouvi-la. Hoje vejo com clareza que, embora o fato de nossa família não morar em aldeia, muitos aspectos da cultura kaingang sempre estiveram presentes em nossas vivências, principalmente quando meu vô era vivo. Uma “daquelas” histórias contadas na minha infância... Há muito tempo atrás, tempo em que os animais falavam e faziam muitas festas, mas eles tinham suas diferenças entre si, uns se davam mais outros menos. Certo dia, os animais de pena resolveram fazer uma festa no céu, onde iriam participar só os animais que voavam, era uma forma de excluir da festa animais indesejados, como o sapo. Mas como o sapo era um animal esperto e curioso escutou a conversa do corvo combinando como seria a animação da festa, pois ele era o violeiro.

2Trabalho de diarista, empreitava lavouras dos fazendeiros para limpar, arrancar feijão por um valor estipulado antes do serviço ser executado. 25

O corvo, um dia antes da festa foi falar perto do sapo com a comadre coruja. - Pois é comadre coruja, a festa que vamos fazer no céu vai ser um festão! Pena que o compadre sapo não vai poder ir, porque ele não voa! - É mesmo compadre corvo! Ele não vai poder escutar as suas músicas... E o sapo escutou-os se vangloriando da festa, bem quietinho. O sapo, como não era animal bobo, ficou pensando em como iria fazer para ir àquela festa. Ele estava decidido, arranjaria uma maneira de chegar à festa. Foi para a casa do corvo, se escondeu dentro da viola do corvo, pois ele teria que levar a viola para animar a festa. E assim foi, ele ficou dentro da viola. Na hora de ir para a festa, o corvo levou também o sapo junto com sua viola, sem saber é claro. Chegando à festa, todos os animais de pena se apavoraram ao ver como o sapo foi parar na festa, e o sapo se vangloriava, dizia que podia também voar, saltar, ele tinha muitas habilidades que ninguém sabia. Então ficou o sapo na festa no céu se gabando de suas proezas, comeu e bebeu muito, mas quando estava perto da festa acabar ele começou a se preocupar de como iria descer do céu se na verdade ele não voava. Despediu-se dos outros animais e se escondeu, tentando achar um descuido do corvo para novamente entrar na viola, e assim ele fez. Lá pelas tantas, já de volta para a terra o sapo acabou fazendo xixi na viola do corvo, pois tinha bebido muito e não conseguiu segurar. Foi então que o corvo descobriu como o sapo havia ido à festa, e enfezado virou a viola de boca para baixo e falou: - Há seu danado! É assim que você voa, dentro da minha viola! Então voe agora! E o sapo desceu como um trapo do céu gritando: - Saia da frente porque te quebro! (dizendo para o monte de pedras que enxergava). Os outros animais se matavam de rir do sapo, pois desta vez seria seu fim. O sapo cai em cima das pedras e se espatifa todo, seus olhos saltam, sua pele fica toda rachada. É por esse motivo que até hoje o sapo tem essa aparência, pelo tombo feio que levou. Os outros animais se aproximam do sapo e percebem que ele não está morto e começam a falar: - Vamos jogar ele no fogo para ele não escapar?

26

E o sapo, fazendo um esforço começa a rir muito e diz: - Isso mesmo! Me joguem no fogo, pois sou animal do fogo e vou viver muito! E ria... ria... sem parar. Os outros animais desconfiados resolveram matá-lo de outra forma. - Vamos então jogar ele naquele penhasco que ele termina de se quebrar! Novamente o sapo desanda a rir sem parar, dizendo: - Isso mesmo, me joguem lá, que num salto só saio para bem longe daqui! Vamos, me joguem de uma vez! Com ar de felicidade continua rindo e implorando que o jogassem no penhasco. Os animais de pena que ali estavam não sabiam mais o que fazer, até que dona coruja diz: - Vamos jogar ele na água para morrer afogado, tem um rio bem perto daqui! Os outros animais concordaram. E o sapo ouvindo a conversa caiu num choro só, implorando: - Por favor, poupem minha vida! Não me joguem na água senão vou morrer! Gritava e chorava desesperado, pedindo para que não o jogassem no rio. Mas como o sapo previa foi jogado no rio e saiu nadando bem feliz. O sapo esperto foi à festa no céu e conseguiu escapar com vida dos animais de pena. A contação de histórias sempre esteve presente em nossas vidas. Consistia numa das formas que os adultos tinham de revelar a cultura para as gerações mais novas e preservar aspectos da cultura. Nesta perspectiva de valorizar os conhecimentos que nossos kófa possuem sobre a cultura do nosso povo, revitalizando práticas de narrativas, menciono Nascimento (2010), uma pesquisadora kaingang que em seu artigo de conclusão de curso de Especialização, conta uma experiência que vivenciou na escola em que trabalhava com seu Jorge Garcia, um dos nossos kujá muito respeitado e amado por todo povo kaingang e que por onde passa deixa sua marca, por ser um ser fora do comum, dotado com dons muito especiais, é um dos sábios kaingang, nosso mestre em conhecimentos tradicionais. Nascimento (2010, p. 78-83) relata detalhadamente em seu artigo como foi a experiência vivenciada na escola em que trabalhava: Escola Estadual Indígena Pero Ga, na comunidade da Aldeia Bananeiras, TI de Nonoai. 27

Os integrantes da comunidade escolar decidiram organizar uma atividade significativa para os alunos indígenas daquela comunidade que foi realizar uma noite cultural. Convidaram seu Jorge Garcia para conversar com os alunos da escola, já que muitos estavam indo estudar fora da aldeia, haviam concluído a 4ª série do Ensino Fundamental e para dar continuidade a seus estudos iriam para a escola da cidade. A programação era: o aconselhamento, seguido de cantos, ritual do banho com remédios, momento de narrativas e o jantar. Segundo Nascimento (2010) foi uma experiência extraordinária que deveria ser vivenciada por outras comunidades. A seguir relato a partir do registro de Nascimento (2010, p. 79-82) parte do aconselhamento (variante da narrativa kaingang) realizado por seu Jorge Garcia.

Hoje vim visitar vocês. Sou avô de vocês, sou a geração velha do tempo de vocês. Olhem! Olhem para minha velhice. Eu presenciei o crescimento de todos vocês. Vocês são filhos da minha gente. Estou muito feliz por poder estar aqui hoje com vocês, com esta idade bem avançada que tenho hoje. Vou falar para vocês, então me escutem. Não vou mentir para vocês. Sempre falo o que é correto. Não tenho motivos para falar mentiras. Vocês são os meus filhinhos, por isso estou muito feliz. Então guardem em suas mentes o que contarei a vocês (...) de agora em diante assim como eu fiz, vocês cuidarão um do outro. Reparem, nós somos todos kaingang. Não somos diferentes um do outro. Lembrem-se somos todos irmãos, parentes. Somos cunhados, irmãos. Devemos nos lembrar de kamé e kairu. É bonito quando aprendemos isso (tudo está em seu devido lugar quando aprendemos isso). Portanto, guardem em suas mentes, perguntem a seus pais sobre o que o vovô está dizendo e eles contarão a vocês. Isso são coisas nossas. Cuidar um do outro são coisas dos kaingang desde antigamente. E ainda vivo seguindo isto até estar velho agora (...). Todo kaingang sabe que tem algo em comum com a mata, o ser espiritual da mata. Todos vocês o conhecem. Até os pássaros o conhecem. E ele também sabe de nós. Sabemos quando acontece algo, e os fóg já não percebem isso. Ele chora, se manifesta pra nós. E entendemos o que quer dizer. É como se falasse com a gente. Sou kujá e sei prever o que está para acontecer. Mas já não acreditam mais no que eu falo. Chegou o momento de cuidarem uns dos outros, assim como eu fiz. Pois logo não me verão por aqui. Vocês é que ficarão por aqui. Então escutem e guardem o que estou dizendo a vocês. (...) Não permitam que o kaingang se perca. Nunca devemos tentar ser como os fóg, não há razão alguma para isto. Já observei em toda parte (...). Então sejam persistentes. Vocês, crianças, são muito lindas para mim, não há nada igual para mim. Andei muito e não encontrei nada igual a isto: um lugar cheio só de kaingang. Por isso estou muito feliz de sermos kaingang.

Nossa! Podemos imaginar como foi esta experiência para os pequenos kaingang da comunidade kaingang de Bananeiras (situada na TI de Nonoai), que certamente jamais irão esquecer esta vivência. Lembro-me do meu tempo de criança com meu vô paterno, que também era uma pessoa muito especial, apesar de não ser aldeado (viver em aldeia kaingang), mantinha vivos os conhecimentos 28

tradicionais e tentava passar para os familiares. Muita coisa que aprendi, vivenciei com meu vô, como afirmei anteriormente e jamais esqueci. Sobre o relato acima descrito (do seu Jorge Garcia), podemos dizer que é uma fala típica de aconselhamento aos mais jovens, conforme descreve Nascimento (2010, p. 82-83):

Esta “fala” é um tipo de discurso específico dos chefes/lideranças, kujá, anciãos. É um gênero de discurso denominado jyvãn, traduzido por aconselhamento. (...) Quem realiza este discurso, são pessoas que obtêm uma boa conduta na sociedade. São pessoas com prestígio social. Percebe-se uma relação entre velhice, experiência e sabedoria.

Mediante ao anteriormente exposto, estão evidenciados aspectos da pedagogia kaingang, e é relevante a afirmação de Luckmann (2011, p. 28) de que a educação kaingang e pedagogia kaingang possuem um aspecto importante que é a socialização. Foi o que seu Jorge Garcia proporcionou aos alunos da professora Márcia G. Nascimento, o que meu vô me proporcionou, ambos repassaram seus conhecimentos tradicionais do povo kaingang aos mais jovens, dando elementos da cultura e possibilitando referências às novas gerações. Estas são referências constituidoras para nós, como kaingang. Vivências como estas, nós kaingang jamais esquecemos, estas memórias nos acompanham no decorrer de nossas vidas e fundamentam nossas práticas e também provocam nossas teorias, quando decidimos ser pesquisadores. São incorporadas sob a forma de consciência que vai crescendo mediante a experiência transmitida e nos dá a força da resistência. Sem deixar de atribuir um sentido superior aos fatos – ao levar em conta as divindades que nos rodeiam – a educação tradicional indígena por meio do aconselhamento e de outras formas de repassar a experiência enfatiza a observação: ver, escutar, respeitar e criar uma forma de relação que preserve ao invés de destruir a terra, as águas, as plantas, as pessoas, a cultura e a história. Esta forma de desenvolver a consciência se aproxima do que Freire (PO, p. 70) pretendeu com a educação que leva à prática da liberdade e “implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”.

29

Desta forma, se evidencia o contexto da educação tradicional indígena, a qual antecede a educação escolar indígena. Todos os espaços de convivência na família e na comunidade são espaços educativos que em conjunto com a palavra possibilitam práticas e aprendizagens: palavração. Como pesquisadora, cheguei à compreensão de que o pensador e o educador que nos dá muitos elementos para fundamentar a prática da educação indígena é o nosso memorável Paulo Freire que, em todas as suas publicações, nos chama a atenção para, como educadores, não nos esquecermos de considerar o meio em que vivemos, o contexto social do aluno, da família e do educador. Torna- se também muito significativa a frase de Freire (2011, p. 143): “(...) ninguém pode estar no mundo e com os outros de forma neutra”. Esta frase fundamenta a prática da educação kaingang no contexto familiar, da aldeia, do viver e conviver uns com os outros, nossos kofá nossas gir (crianças). A vida do povo kaingang não é neutra, é ativa; o aprendizado, as trocas de saberes acontecem corriqueiramente, no cotidiano, no contexto, mas têm o sentido político de manter um povo como “povo”, com “identidade”. É uma educação que produz resistência às relações criadas numa sociedade que pouco reconhece essa “identidade”. Como descreve Freire (1979, p. 43):

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura.

Podemos chegar também à compreensão de que muitos elementos da educação popular permeiam o viver e conviver na aldeia e de que Freire é mesmo o grande teórico que pode nos oferecer princípios e instrumentos pedagógicos desta educação quando fala em diálogo, em educação libertadora, em cultura, em curiosidade, em alegria, em respeito, em enraizamento, em meio ambiente, em reciprocidade, em tolerância, em silêncio, em palavra... Enquanto educadores indígenas, protagonistas das mudanças pedagógicas no espaço da escola, temos que encontrar meios para utilizar o espaço da escola indígena como meio para auxiliar nossas comunidades a manter, revitalizar e divulgar a cultura kaingang, promovendo um movimento dialético, considerando que a cultura não é estática, que ela também se transforma, se adapta e se modifica. 30

Temos o comprometimento de utilizarmos elementos da nossa cultura em nossas salas de aula e tornarmos o mais harmônico possível a transição da educação indígena para a educação escolar indígena, de modo a mantermos o foco do ensino e da aprendizagem em nossa realidade, que como descreve Freire sabiamente em suas obras: “que a prática educativa se paute na realidade na qual a comunidade escolar está inserida”.

31

2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Neste capítulo apresento a educação escolar indígena em seus aspectos históricos e contextuais. Inicialmente trato das relações entre o Estado brasileiro com as sociedades indígenas, caracterizando as duas tendências que as pautaram: a de integração, dominação e homogeneização cultural e a do pluralismo cultural. Estas tendências formam a base da política de governo que é desenvolvida a cada etapa da história do país. O texto traz também depoimentos de professores que ilustram a narrativa com fatos reais, vivenciados por parentes kaingang e pela pesquisadora. São práticas e fatos que foram e estão sendo vivenciados no espaço das escolas indígenas localizadas em nossas comunidades. Discorro ainda sobre o que denomino protagonismo kaingang, ou seja, liderança ativa, no processo pedagógico da escola indígena. No decorrer da narrativa, procuro seguir dialogando com a produção teórica de Paulo Freire e passo a fazer algumas sugestões para a educação escolar indígena em uma perspectiva de educação popular.

2.1 ORIENTAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA – ELEMENTOS DA HISTÓRIA

A escola para os índios, no Brasil, data do século XVI quando os portugueses aqui chegaram. Os índios, considerados pagãos, precisavam ser civilizados e catequizados, segundo a visão do colonizador. Discutia-se sobre sua humanidade e sobre a possibilidade de se integrarem à civilização ocidental cristã. Os religiosos católicos acreditavam que os índios tinham possibilidades de se desenvolver espiritualmente, de serem “educados”. Por isso, a educação foi orientada pelo objetivo de civilizar e catequizar os povos indígenas. Cabe aqui referenciar Bergamaschi (2006, p. 45-58):

A ação dos missionários católicos, foi com certeza, a iniciativa mais antiga e contundente para educar o nativo e, entre outras práticas que visavam a europeização e a cristianização da América, inauguraram a escola para os povos indígenas.

32

Com a independência e o estabelecimento do império o quadro das ideias e a legislação não mudam muito. Na república a situação permanece. Apesar de o Estado estar encarregado da educação escolar indígena verificava-se na prática a delegação desse trabalho para as diferentes missões religiosas (católicas e evangélicas) que se instalam cada vez mais próximas às áreas indígenas. As relações entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas no Brasil foram orientadas, como afirmamos, por duas tendências: a de integração, dominação e homogeneização cultural e a do pluralismo cultural. Essas tendências formaram a base da política de governo que vem sendo desenvolvida em cada etapa da história do país. Perpassaram as relações, tanto do Estado com as sociedades indígenas, quanto das demais instituições por ele delegadas para desenvolver a educação escolar indígena. Em 1956, instala-se no Brasil o Summer Institute of Linguistics (SIL), que tinha como principal objetivo a pesquisa das línguas indígenas para a tradução da Bíblia nessas diferentes línguas. Desde 1991, o SIL no Brasil se intitula Sociedade Internacional de Linguística e tem atuado com os mesmos objetivos dos primeiros catequistas: salvação das almas pagãs. O Instituto Internacional Interamericano ao qual o SIL era vinculado, com sede no México, foi criado em 1942, com o objetivo de estimular e coordenar a política indigenista no âmbito do Continente Americano. Na década de 70, o Estado brasileiro, através da FUNAI, procurou manter uma aproximação com este Instituto com o intuito de obter a credibilidade da opinião pública sobre seu projeto de integração dos povos indígenas. Segundo Oliveira (1999, p. 30), ao SIL, também conhecido com Instituto Linguístico de Verão, ficou a atribuição de difundir a metodologia do ensino bilíngue, que passou a vigorar em várias escolas da FUNAI. O SIL consegue atuar no Brasil, a partir de 1957, quando se propôs a estudar línguas indígenas, mediante um convênio com o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Segundo este convênio o objetivo seria a documentação das línguas indígenas e a escrita destas línguas. Era para uso da comunidade acadêmica. Neste modelo alternativo, a questão não era abolir a diferença, mas sim domesticá-la. Para Antunes (2012 apud SILVA; AZEVEDO, 1995, p. 151):

33

O caráter religioso da atuação deste organismo estava presente na própria organização curricular que incluía estudos bíblicos. Neste sentido Silva & Azevedo destacam que “os objetivos do S.I.L. (...) nunca foram diferentes dos de qualquer missão tradicional: a conversão dos gentios e a salvação de suas almas”.

A política integracionista começava por reconhecer a diversidade das sociedades indígenas que havia no país, mas apontava como ponto de chegada o fim dessa diversidade. Toda diferenciação étnica seria anulada ao se incorporarem os índios à sociedade nacional. Ao se tornarem brasileiros tinham que abandonar sua própria identidade. O Estado brasileiro pensava uma “escola para os índios” que tornasse possível a sua homogeneização. A escola deveria transmitir os conhecimentos valorizados pela sociedade de origem europeia. Nesse modelo, as línguas indígenas, quando consideradas deviam servir apenas de tradução e como meio para tornar mais fácil a aprendizagem da língua portuguesa e de conteúdos valorizados pela cultura “nacional”. A escola indígena, propriamente dita, começou a ser pensada dentro do quadro dos direitos humanos e sociais, direito de ver reconhecidas as várias culturas e experiências sociais e políticas. A atividade educacional passou a ser tratada em sua relação com os problemas das sociedades indígenas diante do contato com uma sociedade mais ampla, em oposição à política educacional governamental de base integracionista. Ao menos como proposição isso ocorreu a partir dos anos 80. Fazem parte do interessante momento de mudança os trabalhos desenvolvidos na área da educação escolar pelas Organizações Não Governamentais (ONGs) civis que integraram a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI- AC) e Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP); o Centro de Trabalho Indigenista (CTI); a Associação Nacional de Apoio aos Índios da Bahia (ANAÍ-BA) e Associação Nacional de Apoio aos Índios do Rio Grande do Sul (ANAÍ-RS) e o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), com a colaboração de estudiosos e pesquisadores das universidades. Também são importantes assessores desta mudança grupos militantes em defesa dos direitos indígenas ligados à Igreja Católica, a partir da Teologia da 34

Libertação3: o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Operação Anchieta (OPAN) e outros, e a esses projetos alternativos de educação escolar indígena foram sendo discutidos e aos poucos apoiados por alguns órgãos do Estado. As ideias que moviam estes projetos tornaram-se parâmetros para todos os trabalhos a serem desenvolvidos como política pública nessa área. (SILVA, 2005). Paralelamente a essa atuação, o movimento indígena começou a organizar- se através da realização, em diferentes regiões do país, de reuniões, assembleias e encontros. No que diz respeito à educação, a escola foi sendo apropriada por estes povos, entrando na pauta de suas demandas como mais um instrumento de afirmação de sua identidade diferenciada, ganhando novos significados e possibilidades. Por volta da metade dos anos 70 começa a haver uma mudança nesse contexto. Ocorre a mobilização de setores da população brasileira para criação de entidades de apoio e colaboração com os povos indígenas. Os movimentos indígenas no Brasil começam a tomar forma, integrando o amplo movimento de reorganização da sociedade civil que caracterizou os últimos anos de ditadura militar no país. Várias comunidades e povos indígenas, superando o processo de dominação e perda de seus contingentes de população, passam a se reorganizar para fazer frente às ações integracionistas do Estado brasileiro. Em consequência, estabelece-se uma articulação entre as sociedades indígenas e organizações não governamentais com mudanças importantes para a afirmação dos direitos indígenas, abrindo espaços sociais e políticos para que a questão indígena se impusesse no Brasil, exigindo mudanças (SILVA, 2005). Durante a década de 70 iniciaram-se as assembleias e a estruturação de diferentes organizações indígenas com o objetivo de defenderem suas terras e seus direitos. O movimento ganhou corpo e visibilidade nacional com as grandes reuniões que foram feitas em São Paulo, organizadas pela União das Nações Indígenas (UNI). Esta organização juntou grande número de povos indígenas em torno da defesa de seus territórios e de suas culturas.

3Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), o Grupo de Trabalho Missionário Evangélico (GTME), dentre outros.

35

Alguns povos começaram a estruturar também organizações de professores e de agentes de saúde indígenas. Começaram a ocorrer em todo o Brasil diferentes encontros de professores indígenas, ou encontros de educação indígena, nos quais se discutiam as escolas que queriam para suas comunidades – currículos, línguas faladas e organização (regimentos). Durante esses muitos encontros foram produzidos documentos em que as reivindicações e os princípios de uma educação escolar indígena diferenciada estão expressos de forma diversificada, por região, por povo, por Estado. Todos os documentos finais desses encontros de professores indígenas falam desses princípios, criticando de uma forma ou outra o modelo de escola imposto pelo Estado brasileiro. Os professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, dos povos Apurinã, , Baré Desano, Jaminawa, , Mura, Pira-Tapuia, Shanenawa, Sateré-Maué, Tariano, Taurepang, Tikuna, Tukano, Wanano, Wapixana, , reunidos em Manaus (Amazonas), nos dias 16 a 20 de outubro de 1994, preocupados com a situação atual e futura das escolas indígenas reafirmam os seguintes princípios (SILVA, 2005). - as escolas indígenas deverão ter currículos e regimentos específicos, elaborados pelos professores indígenas, juntamente com suas comunidades, lideranças e assessorias; - as comunidades indígenas devem, juntamente com os professores e organizações, indicar a direção e supervisão das escolas; - as escolas indígenas deverão valorizar as culturas, línguas e tradições de seus povos; - é garantida aos professores, comunidades e organizações indígenas a participação paritária em todas as instâncias consultivas e deliberativas de órgãos governamentais responsáveis pela educação escolar indígena; - é garantida aos professores indígenas uma formação específica, atividades de atualização e capacitação periódica para o seu aprimoramento profissional; - é garantida a isonomia salarial entre professores índios e não índios; - é garantida a continuidade escolar em todos os níveis aos alunos das escolas indígenas; 36

- as escolas indígenas deverão integrar a saúde em seus currículos, promovendo a pesquisa da medicina indígena e o uso correto dos medicamentos alopáticos; - o Estado deverá equipar as escolas com laboratórios onde os alunos possam ser treinados para desempenhar papel esclarecedor junto às comunidades no sentido de prevenir e cuidar da saúde; - as escolas indígenas serão criativas, promovendo o fortalecimento das artes como formas de expressão de seus povos; - é garantido o uso das línguas indígenas e dos processos próprios de aprendizagem nas escolas indígenas; - as escolas indígenas deverão atuar junto às comunidades na defesa, conservação, preservação e proteção de seus territórios; - nas escolas dos não índios será corretamente tratada e veiculada a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos e racismo; - os municípios, os Estados e a União devem garantir a educação escolar específica às comunidades indígenas, reconhecendo oficialmente suas escolas indígenas de acordo com a Constituição Federal; - a União deverá garantir uma Coordenação Nacional de Educação Escolar Indígena interinstitucional com participação paritária de representantes dos professores indígenas. O movimento da Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR) tem mantido encontros anuais desde 1988 até hoje. Também são amplos e importantes fóruns de discussão a Associação dos Professores Kaingang do Brasil, a Organização dos Professores do Brasil. Esses movimentos têm produzido ideias que são pragmáticas e centrais para o projeto indígena da sua educação escolar (SILVA, 2005). A partir de 1991, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) passou a ser responsável pela coordenação da política educacional para as sociedades indígenas e a Secretaria Estadual de Educação (SEE) pela sua execução, ouvindo o órgão indigenista, a FUNAI. Desde então, estão sendo elaboradas políticas públicas para atender às demandas e às necessidades educacionais dos povos indígenas, principalmente no Ensino Fundamental. 37

Porém, até o momento não existe uma política pública definida para atender as demandas da educação escolar indígena, principalmente quanto ao seu financiamento. A mantenedora, como no nosso caso o Estado, ainda não tem uma rubrica específica para atender adequadamente às necessidades de estruturas físicas e de recursos humanos, pois apesar da legislação amparar atendimento diferenciado para as escolas indígenas, as escolas no Rio Grande do Sul são enquadradas como escolas rurais.

2.2 A EDUCAÇÃO ESCOLAR KAINGANG

Num primeiro momento, a educação escolar para o povo kaingang foi pensada, então, visando integração dos povos à sociedade nacional. Durante os anos 70 do século passado, a FUNAI procurou manter uma política de aproximação com o SIL, na tentativa de obter credibilidade da opinião pública para seu projeto de integração dos índios. O SIL celebra seu primeiro convênio com a FUNAI em 1969, quando passa a ser oficialmente responsável pela educação escolar indígena. O SIL assumiu o compromisso na produção de material didático específico, cartilhas de alfabetização na língua materna e treinamento de professores (OLIVEIRA, 1999). O primeiro curso de formação para monitores bilíngues kaingang da região sul, foi promovido em 1970, como fruto do convênio entre FUNAI, SIL e Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). Nesta lógica de organização e pensamento, a FUNAI, órgão indigenista oficial do país, passou a se preocupar também com um modelo de educação escolar que tivesse fundamentação científica e aceitação em âmbito internacional, fundamentando-se, a partir da década de 70 às formulações teóricas do Instituto Indigenista Interamericano especialmente do SIL. Deste convênio firmado entre FUNAI e SIL surge o primeiro curso para formar monitores bilíngues no Rio Grande do Sul, ministrado em regime de internato na Escola Normal Indígena Clara Camarão, localizada na TI da Guarita, que foi criada pela FUNAI em 1970, objetivando sediar cursos de formação de monitores bilíngues, sendo a primeira experiência de formação no Brasil para o povo kaingang (OLIVEIRA, 1999). O curso de formação para monitores bilíngues esteve sob a coordenação da missionária linguista Ursula Wiesmann, que foi também quem “descreveu” a língua kaingang, produziu todo material didático nesta língua (cartilhas e dicionário) e 38

também traduziu para o kaingang o novo testamento dentre outros documentos de cunho religioso. O curso pautou-se nos seguintes objetivos, conforme descreve o professor Bruno Ferreira em seu livro “Políticas Públicas para uma Educação Escolar Indígena Diferenciada”.

Promover a formação do senso de responsabilidade em relação a si próprio, para com seu trabalho, para com sua família e comunidade. Despertar o espírito crítico no sentido de que se tornem mais aptos a desenvolverem suas personalidades e para que melhor conduzam suas vidas. Colaborar no desenvolvimento do espírito de iniciativa para que melhor possam atender suas necessidades e as de sua comunidade. Colaborar com a sua autoafirmação para que se constituam pessoas equilibradas e que isto se reflita em maior atividade e mais realizações. Cultivar o desejo de servir ao desenvolvimento e integração das comunidades indígenas. Conduzir pela educação bilíngue, que caracteriza fundamentalmente a escola, a uma reestruturação psicológica que colabore para sua integração a vida nacional. Salvaguardando sua cultura e tradições, auxiliar, pela informação e formação, na sua integração à comunidade nacional (FERREIRA, 2012, p. 18).

Analisando os objetivos do curso de formação de monitores bilíngues, podemos chegar à compreensão de que a FUNAI tinha claro seus objetivos de utilizar os monitores bilíngues kaingang para auxiliar no processo de integração dos kaingang à sociedade nacional, seguindo a lógica da política integracionista que vigorou em nosso país até a Constituição Federal de 1988. A primeira turma do curso acima mencionado formou dezenove kaingang, em dezembro de 1971, provindos de várias TI da região sul, com o título de Regente do Ensino Bilíngue. Em 1972, a FUNAI contratou os dezenove kaingang na função de monitor bilíngue, que passaram a atuar em escolas localizadas nos postos indígenas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná (OLIVEIRA, 1999). Começam então as primeiras experiências de indígenas no espaço escolar; este é o marco inicial de indígenas assumindo a educação escolar nas escolas das aldeias. Como relata uma das formandas kaingang da primeira turma de monitores bilíngues, em um artigo de conclusão do Curso de Especialização, publicado em 2010, que foi contratada pela FUNAI para atuar como monitora bilíngue. Foi grande o dilema vivenciado pelo povo kaingang, na década de 70, pois de tanta exploração e privações culturais já estava incorporando objetivos da política integracionista 39

vigente em nosso país também naquela década, onde muitos já estavam negando sua identidade kaingang, como relata a professora Andila:

Naquela época, o povo kaingang passava por um período, talvez o mais sério, de conflitos quanto sua identidade, pois não queriam mais ser “índios”. Tinham vergonha, pois aprenderam que “a sua língua não valia nada”, seus conhecimentos também não, por isso não queriam ser mais “índios”. Queriam ser “brancos”, não queriam mais que seus filhos aprendessem o kaingang e sim o português, supostamente uma língua superior. Então os monitores começaram a fazer um trabalho de conscientização junto às famílias kaingang que pensavam desta forma, alegando que as crianças precisavam passar por esta escola bilíngue de “transição”, na qual primeiramente as mesmas seriam alfabetizadas em kaingang e posteriormente conduzidas ao domínio do português oral, de forma que facilitaria a continuidade de sua formação escolar junto a professores não indígenas (INÁCIO, 2010, p. 29).

Como kaingang fico imaginando como os primeiros professores, os monitores bilíngues, passaram por imensa oposição do seu próprio povo para dar início nas escolas das aldeias ao ensino bilíngue. Admiro muito estes parentes, pois tive o privilégio de conhecer alguns destes primeiros professores e também de ouvir relatos destes, inclusive da professora Andila pessoa pela qual nutro grande respeito e apreço. Podemos dizer que os monitores bilíngues foram os protagonistas da educação escolar indígena, pois foi com iniciativas destes professores, muito esforço, resistência e reivindicação que conseguiram aos poucos ir transformando as antigas escolas para índios, localizadas nas TI kaingang da região sul. Outra oposição vivenciada pelos monitores era dos professores não indígenas que atuavam naquelas escolas, provavelmente por temerem perda de espaço por estes monitores.

Também houve, na época, um conflito entre os monitores bilíngues e professores não indígenas, que alegavam que os primeiros não possuíam estudos suficientes para trabalhar com classes de alfabetização. No entanto, embora constituísse uma afirmação verdadeira, o rendimento dos alunos junto aos professores não indígenas era quase insuficiente, ao contrário dos monitores bilíngues. Com eles, as crianças rapidamente eram alfabetizadas. A partir deste momento, o ensino regular se tornou viável nas escolas kaingang, porque começou finalmente a surtir os resultados esperados (INÁCIO, 2010, p. 29).

40

Embora os monitores sofressem também esse tipo de preconceito em relação a sua formação e atuação não desistiram frente a estes impasses. Passados alguns anos de atuação dos monitores nas escolas da aldeia, a FUNAI começou a mediar encontros de formação para estes monitores.

Os monitores bilíngues passaram a se encontrar com certa regularidade em reuniões chamadas pela FUNAI, para encaminhar sua formação e avaliação das atividades desenvolvidas em suas comunidades. Estes momentos eram também oportunamente usados pelos monitores bilíngues, em reuniões internas, promovidas fora das reuniões oficiais e à noite, para avaliar culturalmente os resultados deste processo para o povo kaingang (INÁCIO, 2010, p. 29).

Graças a estas reuniões internas, os monitores começaram a tomar consciência do que estava ocorrendo, ou seja, de quais eram as intenções da FUNAI em manter nas aldeias escolas bilíngues de transição. Devido à perspicácia destes kaingang, começa então mais um momento de mudanças significativas no contexto da educação escolar kaingang.

Após vinte anos do início do processo de alfabetização na língua kaingang, pelos monitores bilíngues, já não havia dúvidas pelos mesmos de que estavam a serviço da destruição cultural do seu povo, de que a escola era constituída nos padrões não indígenas, visando aculturamento. A meta ideal era realmente fazer com que os indígenas abandonassem sua cultura em prol da cultura não indígena, devendo ser absorvidos por esta e assim, deixassem de ser kaingang. Feito isso, o governo não precisaria se preocupar com a implementação de políticas específicas para povos indígenas, já que, na concepção dos não indígenas, estes estariam assimilados. Tal situação provocou uma insatisfação geral e incontida entre os monitores bilíngues, por terem sido usados por tanto tempo num projeto que previa o seu desaparecimento enquanto povo (INÁCIO, 2010, p. 29-30).

O descontentamento dos monitores bilíngues com a FUNAI foi tão intenso que começaram a se organizar, como povo, contra este projeto de aculturamento, de assimilação, mantido e conduzido por esta instituição.

Os kaingang não sabiam, naquela época, que a insatisfação era geral entre os povos indígenas do Brasil em relação à política indigenista oficial então implementada, não somente quanto à assistência educacional que esses povos estavam recebendo, como também com relação à saúde, demarcação, insuficiência e redução das terras indígenas, aos projetos de subsistência, dentre outros, nos quais muitas vezes os indígenas foram utilizados como mão de obra barata. Enfim houve um movimento nacional dos povos indígenas, com a colaboração de instituições de apoio à causa indígena, externando tal insatisfação que pressionou o governo brasileiro a 41

garantir os direitos dos povos indígenas na atual Constituição Federal do Brasil (INÁCIO, 2010, p. 34).

A organização e pressão dos povos indígenas do Brasil sobre as instâncias governamentais culminaram com um marco nacional na legislação brasileira, que passou a dar amparo legal às reivindicações dos povos indígenas, em nosso país. Foram asseguradas aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988 várias garantias. Dentre estas garantias, cito o Art. 22: Compete privativamente à União legislar sobre: XIV – Populações Indígenas; XXIV – Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Cito ainda o Art. 210: Serão fixados conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artístico, nacionais e regionais. Ainda, no § 2º, há a afirmação: O Ensino Fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Começa então uma nova fase na educação escolar indígena no nosso país, quando passamos, então, a ter fundamentação jurídica para reivindicar uma educação escolar indígena específica, diferenciada e de qualidade. A tomada de consciência e resistência dos monitores bilíngues kaingang desencadeou um processo de reestruturação nas escolas das aldeias. Considero que este processo está em fase de construção, pois nós, atuais professores indígenas, instigados a mudanças pelo protagonismo dos monitores kaingang, os primeiros professores a atuarem em instituições escolares que, depois de se sentirem manipulados pela FUNAI a serviço do Estado brasileiro, chegaram à compreensão que não poderiam dar continuidade ao trabalho que vinha sendo desenvolvido nas escolas da aldeia, passaram a reivindicar direitos que ajudaram a conquistar na nova Constituição Federal do país. Na década de 90 foi fundada a Associação dos Professores Bilíngues Kaingang e Guarani (APBKG), composta por professores indígenas do Rio Grande do Sul, associação esta que, embora atualmente esteja desativada, possibilitou várias conquistas para o povo kaingang do sul: organização jurídica, parcerias com instituições superiores de ensino e organizações não governamentais com o intuito 42

de buscar formação para os professores indígenas garantirem direitos e também incentivos à produção de material didático específico. Objetivando ampliar o quadro de professores kaingang no RS, respaldados pela Constituição Federal de 1988, a APBKG, junto com lideranças indígenas, estabelecem parcerias e participam da criação do primeiro Curso de Magistério Específico para Professores Kaingang, conforme relata o professor Bruno Ferreira que também fez parte da coordenação do curso.

Com a parceria da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul, COMIM – IECLB, FUNAI, CIMI – CNBB e UNIJUÍ – Universidade de Ijuí, criou-se então, o primeiro Curso de Magistério Específico para Professores Kaingang, com o principal objetivo de valorizar a língua, a cultura e a história dos kaingang e seus processos próprios de aprendizagens. O curso teve início em 1993 e sua conclusão em 1996 (FERREIRA, 2012, p. 19).

Neste curso de formação os objetivos já estavam mais voltados aos anseios do povo kaingang. Formam-se então os primeiros professores kaingang, mais um marco no protagonismo kaingang no espaço da escola, pois os vinte e dois professores formados nesta turma passaram a atuar nas escolas de suas comunidades. Não existindo uma política pública específica para atender a demanda de formação de professores kaingang o curso formou aquela turma e acabou; não teve continuidade, mas como a demanda por formação existia, reinicia um novo processo de reivindicação e constituição de alianças para promover novos cursos para formação de professores. A APBKG junto com a Universidade de Passo Fundo (UPF) e Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), com o apoio de lideranças kaingang obtiveram mais uma conquista, em 2001, quando inicia o “segundo curso de formação para professores kaingang, Curso de Magistério Específico”, o Curso Vãfy, para professores do Rio Grande do Sul. O curso funcionou em núcleos, nas TI (um na TI de Guarita, município de Redentora e outro núcleo na TI de Votouro, município de Benjamin Constant do Sul). Em 2005, formam-se oitenta professores kaingang. O Curso Vãfy tinha como objetivos: 43

1. oferecer condições aos professores cursistas para conhecer e reconhecer formas de conhecimentos distintas, originadas e praticadas em diferentes sociedades e culturas, de modo a poderem interagir criticamente com elas, tendo por referências sua própria tradição cultural; 2. proporcionar aos professores cursistas condições para promover em suas salas de aula um processo educativo fundado nas práticas, conhecimentos e valores culturais de suas sociedades, que oriente a apropriação crítica de bens e recursos tecnológicos externos e esteja voltado para o desenvolvimento de respostas aos desafios contemporâneos e futuros, colocados às suas sociedades pelas relações com a sociedade majoritária nacional envolvente; 3. instrumentalizar os professores cursistas com metodologias apropriadas para que sua ação pedagógica crie condições para que seus alunos de Ensino Fundamental possam produzir conhecimentos a partir da realidade que os cerca pelo exercício da observação, registro, da pesquisa, da experimentação, reflexão e do acesso a leituras; 4. criar laços interativos e cooperativos entre este programa de formação e as comunidades em cujo local ele se realizará; 5. habilitar o profissional de educação das escolas indígenas possibilitando- lhe, ao final do curso, a entrada na carreira do magistério indígena e sua integração no plano de cargos e salários; 6. preparar professores cursistas para que sejam capazes de atuar na avaliação e na formulação da proposta político pedagógica das escolas indígenas em que atuam; 7. capacitar os professores cursistas para atuar em programas de educação escolar bilíngue e intercultural, na perspectiva de valorização, fortalecimento e desenvolvimento da língua e da cultura minoritária; 8. permitir aos professores cursistas uma compreensão crítica dos processos históricos socioeconômicos de subordinação de sua sociedade aos Estados Nacionais de origem europeia e as consequentes relações conflituosas vigentes, decorrentes daqueles processos; 9. contribuir para o processo de construção de uma crescente autonomia dos programas de educação escolar indígena e dos seus principais autores, educadores indígenas (FERREIRA, 2012, p. 21-22). 44

A seguir apresento algumas passagens da vida escolar de companheiros indígenas que se tornaram professores em nossas escolas. O que descrevo sobre essas vidas, dá margem a acompanharmos as conquistas tratadas neste capítulo da dissertação que aborda a educação escolar indígena.

2.3 PEDAÇOS DE VIDAS DE PROFESSORES KAINGANG

Rã do (raio de sol) Rã do nasceu e se criou na T. In. Tiaraju. Teve sua primeira experiência escolar no seu emã (comunidade/moradia), na época que foi à escola pela primeira vez numa escolinha que funcionava na sua aldeia, estudou lá da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, Rã do, antes de chegar à escola estava muito entusiasmada, muito feliz, pois iria realizar o sonho de ir para a escola, porém no decorrer dos dias seu sonho começou a perder o encanto. Não era como ela tinha imaginado, era tudo muito diferente do que sempre pensara, a escola era pequenina, e a professora Rute, se tirasse a última sílaba e acrescentássemos a sílaba de representaria mais sua pessoa, não tinha paciência nenhuma principalmente com Rã do, era gritona, má, por qualquer motivo colocava seus alunos de castigo de joelhos nas tampinhas de garrafa, além do mais, os alunos não podiam nem se mexer na cadeira, muito menos falar, e Rã do que já era quietinha, ficava cada vez mais calada. Além do mais, a professora de Rã do era muito kórég (feia)... Os anos foram passando e Rã do ficava muito triste com as atitudes da professora, e imaginando o porquê dela ser tão rude com seus alunos, mas como não tinha nada a fazer, ia executando as tarefas que a professora ia mandando, mesmo que muitas vezes não entendesse o que estava fazendo. Outra coisa que deixava Rã do muito confusa era o de que antes de ir à escola ela achava que tinha tanta coisa que ela já sabia, ela se achava tão inteligente e sábia, mas depois que começou a ir na escola percebeu que parecia que ela não sabia nada, e a professora Rute nem se importava se ela sabia alguma coisa ou não, isso Rã do não entendia. Rã do estudou na Escola Pindorama até a 4ª série do Ensino Fundamental.

45

Rã do, incentivada por seus pais, que sempre diziam que ela tinha que estudar para ser alguém na vida, estudou da 5ª a 8ª série na E. M. E. F. Ciranda, no município de Linha Bonita. Lá não era muito diferente da escola da aldeia, só não ficava mais de castigo, eram professores diferentes, vários professores, nenhum era indígena, e em nenhum ano que Rã do estudara tinha ouvido falar sobre a cultura kaingang, sobre seu povo, assunto que gostava muito e tinha conhecimento. Concluiu o Ensino Fundamental com muito sacrifício. Um dos sonhos de Rã do era ser professora na escola da aldeia, mas como ela não tinha estudo suficiente ficava imaginando o dia que iria realizá-lo. Certo dia veio o kasiki (cacique) e falou a Rã do que ia ter um curso que iria formar professores indígenas e a convidou para fazer este Curso de Magistério Específico. Rã do aceitou o desafio, estudou e concluiu o curso que formou os primeiros professores bilíngues do Estado do Rio Grande do Sul. E aí, finalmente, Rã do podendo ser professora na sua aldeia, vem então o grande desafio: Como iria começar a dar aula, passar de aluna a professora? Começa então a grande caminhada, árdua, mas gratificante de Rã do, que estava formada, tinha diploma de professora bilíngue e não conseguia contrato para dar aula na escola da sua aldeia, e ainda tinha que ouvir da diretora, que achava que ela não iria conseguir dar aula, pois afinal fora sua aluna e imagine, ela achava que Rã do não estava preparada para ser professora. Foi então que kasiki decidiu tomar providência, foi até a diretora da escola e mandou que dessem uma turma de alunos para Rã do, que ela iria começar a trabalhar como professora naquela escola. Começa então, o início da carreira de Rã do como educadora indígena, sendo professora de alfabetização. Rã do não sabia que tinha vencido apenas uma batalha e que muitas outras já estavam a caminho. A primeira depois da conquista do emprego era conviver com a diretora, pois ela era uma pessoa muito conservadora que não gostava de mudanças, de inovações na sala de aula. De tudo que Rã do havia aprendido no seu Curso de Magistério, muito pouco estava conseguindo aplicar, porque tudo de diferente que ela tentasse fazer era barrada. Aborrecida Rã do não se conformava com a situação, pois afinal ela era uma professora indígena, morava e dava aula na sua aldeia, mas não tinha nada, nenhum conteúdo que pudesse trabalhar a questão indígena, falar do seu povo. 46

Mesmo sendo contrariada na escola e sem ter apoio pedagógico, Rã do decide conversar com as lideranças da sua comunidade e com os pais dos alunos. Colocou-os a par da situação que estava vivenciando na escola e também do que ela aprendera no Curso de Magistério Específico que fez. Foi então que as lideranças e os pais dos alunos disseram a Rã do que ela poderia por em prática suas propostas, suas ideias e que iriam apoiá-la, pois queriam que seus filhos estudassem na escola assuntos da cultura kaingang e também a língua kaingang, pois afinal aquela escolinha era uma escola indígena. Rã do se sentiu fortalecida para enfrentar a diretora e começou então a fazer mudanças no currículo da escola, trabalhava assuntos da cultura kaingang, cantos na língua kaingang. Desta forma, conseguiu superar a indiferença da diretora e realizar um bom trabalho conquistando a confiança dos pais dos alunos e das lideranças. Rã do era muito dedicada ao trabalho de revitalização e manutenção da cultura do seu povo, trabalhava na escola e também fora da escola, chegou até a montar um coral, que faziam apresentações de cantos na língua kaingang, chegaram a fazer apresentações em Brasília. Foi desta forma que Rã do começou a construir na escola um currículo diferenciado que abordava vários aspectos da cultura kaingang. A comunidade, pais, lideranças e, principalmente, os alunos passaram a valorizar mais a cultura e a língua kaingang. Quando se passaram três anos que Rã do era professora na escola da sua comunidade, trocou a diretora da escola, e a nova diretora era bem diferente da outra. Rã do ficou muito feliz, porque tudo que ela ia propor para fazer na escola ela ouvia com atenção, dava a maior força, sugeria e ainda ajudava na execução. Foi muito bom ter trocado a direção da escola, com isso Rã do tinha mais liberdade e incentivo para trabalhar a cultura kaingang no espaço da escola. Com o passar dos anos Rã do foi percebendo que os alunos, pais e lideranças daquela comunidade estavam mais próximos da escola, seguidamente faziam reuniões para trocar ideias e ir trabalhando na escola assuntos do interesse da comunidade. Rã do não se acomodou, pois sempre procurava respostas para o que seria educação escolar indígena, educação específica e diferenciada: Onde estava este específico em sala de aula? Estava sempre procurando se aprimorar nos seus 47

conhecimentos, sempre tentava fazer o melhor possível na sua turma, na sua escola, foi então que resolveu fazer curso de graduação, formou-se em Sociologia, na Universidade Nacional, depois fez especialização em Educação Indígena pela Universidade Federal Independente (UFI), desta forma, Rã do sempre estava e continua buscando aperfeiçoar seus conhecimentos, para ir melhorando sua prática educativa. Rã do estava cada vez mais esperançosa para ajudar a transformar a escola da comunidade. Logo começou a dar aulas na escola mais uma professora indígena, a caféi (flor), tudo melhorou ainda mais, porque eram duas para pensar a educação diferenciada para a escola da comunidade e sabiam que podiam contar com a diretora. Rã do com suas atitudes positivas na escola conquistou o respeito e admiração dos alunos, pais e lideranças, pois passaram a lhe confiar a responsabilidade de ser a responsável na comunidade de discutir a educação escolar indígena para seu povo. Rã do pôde perceber que sua escola tinha mudado muito nos últimos anos, depois que ela havia começado a trabalhar lá. Ela começou a relembrar das aulas dos cursos específicos que fizera e comparar como eram as escolas indígenas desde a época do SPI da escola em que estudara nos anos iniciais e da atualidade da escola que estava vivenciando e pôde perceber que muita coisa mudou na escola indígena desde a época do SPI, muitas mudanças aconteceram com o protagonismo dos professores indígenas em sala de aula. Porém, Rã do percebe que ainda tem muita coisa a ser feita para mudar, para ser construída uma educação escolar indígena adequada às comunidades kaingang, tanto na parte pedagógica, quanto na construção de material didático específico e, também, no que se refere à infraestrutura das escolas indígenas. Rã do está esperançosa, acredita que mudanças significativas aconteçam na educação escolar indígena e de que são os professores indígenas, assim como ela, que tem a tarefa de propor estas mudanças. Nesta primeira narrativa, evidenciam-se partes da vida profissional de uma professora indígena, como foi o início como aluna e depois sendo professora na sua aldeia. A narrativa aborda elementos culturais do povo kaingang que foram levados para o espaço da escola para direcionar o currículo e do seu comprometimento que 48

contribuiu para tornar a sua atuação, como educadora kaingang, significativa, buscando construir uma educação escolar indígena de qualidade. A narrativa, a seguir, ilustra parte da vida de um parente/educador, que é mais um dos muitos protagonistas da educação escolar kaingang. Jógóg (gavião guerreiro) Jógóg sempre foi um menino robusto, forte e saudável. Nasceu e se criou na Terra Indígena (T.I.) Pindorama, onde aprendeu a língua kaingang com sua família, a qual possibilitou que Jógóg vivenciasse todos os aspectos da cultura kaingang. Foi em Pindorama que Jógóg iniciou sua vida escolar, frequentando a escola da aldeia até a antiga 5ª série do Ensino Fundamental. Jógóg teve que interromper seus estudos, porque na aldeia não tinha recurso para atender a sua escolaridade e trabalhava na roça com seus pais para ajudar no sustento da família, nesta época também Jógóg ia trabalhar no Panelão4 na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi um dos principais motivos para Jógóg interromper seus estudos. Anos mais tarde, voltou a estudar na cidade, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Conceição, onde concluiu o Ensino Fundamental. Quando ainda rapazote e, como sabemos, na cultura kaingang tudo começa mais cedo, Jógóg casou-se com uma kaingang que o encantou e conquistou o seu coração. Então, Jógóg passou a ter que trabalhar mais, pois teria uma família para sustentar. Interrompeu novamente seus estudos. Passaram-se alguns anos até que, certo dia, chega o kasiki e faz um convite a Jógóg. Pergunta a ele se queria estudar para ser professor indígena, professor bilíngue, pois um curso iria começar estavam atrás de kaingang que tivesse um pouco de estudo para participar deste curso de formação para professores bilínguesl. Jógóg aceita o convite e continua seus estudos, agora com a perspectiva de se tornar professor, o que o levou a conviver durante quatro anos com grandes desafios.

4Segundo Freitas, em depoimentos coletados por indígenas que vivenciaram os trabalhos do SPI, estes afirmam que eram obrigados a trabalhar na lavoura: homens, mulheres (mesmo as que tivessem filhos pequenos), rapazes e moças (...). O trabalho na lavoura era realizado de segunda a sexta-feira. A turma ficava acampada e não era permitido aos indígenas irem para casa durante a semana (...) se alguém faltasse ao trabalho, os responsáveis faziam uma relação com os nomes dos “faltosos”, que eram chamados e levados para a cadeia. (...) no período de preparo das lavouras, plantio ou colheita, eles eram obrigados a acampar, às vezes por até 30 dias, sem poder voltar para casa ou ir para a escola (FREITAS, 2010, p. 57).

49

Jógóg estava muito preocupado com a responsabilidade que iria assumir sendo professor. Ainda mais porque ele não queria ser um professor como os muitos que tivera na sua vida escolar, tanto na aldeia quanto na cidade, pois se dera conta de que a escola da Aldeia Pindorama, na prática, não era uma escola indígena. Não se recordava de ter ouvido na escola a professora dizer que a cultura kaingang era importante, que a língua kaingang era importante, inclusive os alunos eram proibidos de falar na escola o kaingang. Eles tinham que falar português. Também nunca tiveram um professor que fosse índio. E agora, como fazer esta diferença? Como ser um professor kaingang? Jógóg queria ser um bom professor kaingang, mas o que corresponderia ser um bom professor kaingang? Começam então os impasses e os desafios pedagógicos na vida profissional de Jógóg (como preparar suas aulas, como iria fazer diferente, como seriam na prática as atividades para uma escola específica e diferenciada). Chega o dia tão esperado, o da sua formatura. Jógóg conclui seu curso e estava apto a ser um professor bilíngue, um professor kaingang. Jógóg aprendera tantas coisas que já ficava imaginando como seria dar aula para crianças kaingang. Jógóg, além de ser professor, era um bom conhecedor da cultura e da vida kaingang. Conhecia a mata como ninguém, conhecia muitas plantas medicinais, sabia para que servia cada uma. Tinha aprimorado seus conhecimentos, pois no Curso de Magistério que fizera tinha fundamentado seus conhecimentos sobre a cultura kaingang, porque era um curso direcionado para trabalhar as questões indígenas. Aprendera também a fazer pesquisa, a pesquisar a cultura local, colocando no papel dados da cultura fornecidos por nossos kófa, analisando-os, posteriormente, e tentando transformá-los em currículo para a escola indígena. Jógóg conseguiu um contrato para ser professor na sua aldeia, ficando responsável por uma turma de alfabetização. Pois é, começa um novo impasse na vida profissional, pois tinha dois desafios nas mãos, ser professor e alfabetizador. Mesmo com muita insegurança assumiu este compromisso na Escola Tupinambá, onde desenvolveu a primeira experiência, como professor. Foi então no ano letivo de 1999, que Jógóg chegou mesmo a pensar em desistir da profissão, eram tantos impasses, tantas dúvidas que tinha sem ter a quem recorrer que estava se sentindo quase um derrotado. Queria fazer diferente, fazer o melhor possível, mas não sabia como. A escola em que trabalhava não era como ele imaginava, muita coisa que ele queria trabalhar não era possível: sair para 50

o mato com as crianças para que aprendessem sobre as ervas medicinais, frutas nativas, jagóro – verduras típicas da alimentação kaingang; ter aula ao ar livre na aldeia, ouvindo, entrevistando os kófa, os detentores dos conhecimentos tradicionais da cultura kaingang, nossos mestres. Estas ações não eram permitidas pela direção da escola. E aí, como mudar? O que mais preocupava Jógóg, ainda era a lista de conteúdos que tinha que vencer até o final do ano, pois ele seria o responsável por passar ou reprovar vinte crianças. Para o seu lamento muitas não conseguiram passar de série naquele ano. Começou a se questionar sobre o que seria realmente educação escolar indígena, pois o que ele vivenciara no decorrer do ano letivo que atuou como professor era bem diferente do que ele pensava serem as aulas para crianças kaingang. Para ele as crianças indígenas teriam que vivenciar a cultura kaingang na escola, coisa que na sua escola não acontecia. Pensava que a escola poderia ser um instrumento de fortalecimento da cultura kaingang na comunidade onde estivesse em funcionamento. Ainda mais uma escola que trazia em seu nome o diferencial de escola indígena, acreditava ele. Jógóg trabalhou na escola mais dois anos e depois foi trabalhar em outra escola, em outra T.I. kaingang. Nesta escola Jógóg conseguiu realizar um trabalho mais direcionado para alunos kaingang. Fez alguns projetos para tentar levar para a escola a cultura kaingang, integrando-a ao currículo. Entre erros e acertos Jógóg acredita que foi descobrindo o caminho para construir na escola formas de trabalhar um pouco da pedagogia kaingang, como: fazer a escuta dos nossos kófa, levar a oralidade para a sala de aula, contando, narrando ou ouvindo junto com os alunos mitos kaingang, procurando levar os alunos a observarem e terem contato com objetos, elementos e relações da própria cultura. Convidava os kófa para contarem histórias de antigamente, do nosso povo kaingang, também levava as crianças até eles. Jógóg estava ficando mais animado em ser professor indígena, pois estava começando a ter mais êxito nas suas metas de trabalho, que era usar o espaço da escola para fortalecer a cultura kaingang. Acreditava que o que favoreceu estas mudanças foi também o fato de não haver uma diretora presente no dia a dia daquela escola. Jógóg era o professor responsável por uma sala de aula que funcionava anexa a outra escola, para fins legais. Desta forma, havia mais liberdade 51

para realizar o trabalho de professor, além do mais tinha o apoio integral dos pais e das lideranças da comunidade. Foi neste período que Jógóg começou a dedicar-se cada vez mais à pesquisa e, quanto mais o tempo passava, Jógóg se realizava mais e mais, pois sua fonte de pesquisa eram os kófa de cada comunidade, onde estavam morando e também seus parentes de outras T.I. que o acolhiam muito bem e sentiam gosto por poderem colaborar com a escola e educação das crianças. Neste viver e conviver com os kófa kaingang, muito aprendera, ampliou seu horizonte de conhecimentos, especialmente da história e cultura do seu povo, do nosso povo, o povo kaingang. Nesta fase da vida profissional de Jógóg, ele se descobriu como pedagogo kaingang, conseguiu entre erros e acertos criar, construir formas de levar para o espaço da escola parte daquilo que vinha pesquisando, além de se tornar um grande conhecedor da espiritualidade e da cosmologia kaingang. Foram tantas as experiências significativas que Jógóg vivenciou que conseguiu, a partir delas, construir muito material didático e idealizar formas de uso adequadas às crianças que educava. Ele ia construindo e utilizando, experimentando o material e reformulando até acertar a adequação entre o conteúdo e o jeito de trabalhá-lo para que a criança aprendesse. O que acertou foram os fonemas do alfabeto kaingang, passou a fazer banner do alfabeto para expor na sala de aula, a escrever no quadro e a trabalhar com muitos detalhes, atento aos jogos de sons, na escrita da língua. Tem muita letra que, em kaingang, é usada com som emprestado de outra como, por exemplo: o M às vezes tem som de B, o K pode assumir o som de C, o N o som de D, dentre outros sons. Em um dos materiais que produziu cuida muito disso. Desde o primeiro ano do aluno (na alfabetização em kaingang), esta foi uma das tantas experiências realizadas que deu certo. Encontrou desta maneira uma forma de alfabetizar em kaingang com êxito, pois os alunos quando passam pela alfabetização aprendem tanto a ler, como também a escrever a língua kaingang. Para Jógóg, depois que os indígenas começaram a assumir as escolas, e a levar a elas as suas orientações filosóficas, pedagógicas e sua didática, mudaram muito as práticas pedagógicas, mas ainda tem muita coisa para mudar. O que ajudou para que isso acontecesse foi a Constituição Federal de 1988, porque deu autonomia ao professor que começou a atuar proporcionando as mudanças que a constituição passou a firmar. Os professores, hoje, assumem seus espaços na 52

escola e começam a trabalhar de um jeito condizente com a cultura do povo kaingang, tornando-se protagonistas deste processo de mudanças. “Assumimos nosso espaço e começamos a trabalhar do nosso jeito”, diz o professor Jógóg. Jógóg acredita que, apesar da escola não ser da cultura kaingang, pode ser aproveitado o espaço da escola para tentar trabalhar a manutenção e revitalização da cultura indígena. Este é o grande desafio aos educadores indígenas na atualidade. As duas narrativas apresentadas nesta dissertação têm o objetivo de evidenciar e contar ao leitor, parte do muito que já foi feito por nós educadores indígenas, do que foi alcançado no âmbito pedagógico da educação escolar kaingang. Deixam evidenciados a consciência e o comprometimento com a educação escolar por parte destes personagens, professores, em construir um diferencial para seu povo. Comprometimento que notadamente encontramos em nossas escolas, claro que também existem exceções, porque infelizmente não são todos os professores kaingang que tem este envolvimento com a perspectiva de buscar transformar o quadro educacional que temos, mas são poucos que estão nesta condição. Os avanços que tivemos no quadro educacional indígena em todos os aspectos, não são por acaso, como já mencionado nas páginas anteriores desta dissertação. É fruto de muita luta e reivindicação dos povos indígenas e devido ao esforço conjunto dos povos indígenas e de entidades de apoio que conseguiram conquistas tornadas garantidas na legislação brasileira, amparo legal necessário para possibilitar que nossa pedagogia seja levada para o espaço da sala de aula. Isto demonstra como resistimos ao processo de integração, dominação e homogeneização cultural. Com o novo marco jurídico se estabelecem novas possibilidades, onde a educação diferenciada encontra amparo legal. Podemos citar alguns pontos da Constituição Federal de 1988. O Art. 210, § 2º, assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. No Art. 231 é reconhecido o direito a sua organização social, costumes, línguas e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 53

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394/96 regulamenta as formulações contidas na Constituição de 1988, determinando em seu Art. 78, que a União em colaboração com as agências de fomento à cultura e de assistências aos índios, deverá desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa para a oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I – Proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II – Garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias. O Art. 79 define como competência da União, apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino e pesquisa, visando: I – Fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade indígena; II – Manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas; III – Desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; IV – Elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado. Atualmente o decreto nº 13/2012, que substitui o decreto nº 14/1999, institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena na educação básica que objetivam: - orientar as escolas indígenas de educação básica e os sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na elaboração, desenvolvimento e avaliação de seus projetos educativos; - orientar os processos de construção de instrumentos normativos dos sistemas de ensino visando tornar a educação escolar indígena projeto orgânico, articulado e sequenciado de educação básica entre suas diferentes etapas e modalidades, sendo garantidas as especificidades dos processos educativos indígenas; 54

- assegurar que os princípios da especificidade, do bilinguismo e do multilinguismo, da organização comunitária e da interculturalidade fundamentem os projetos educativos das comunidades indígenas, valorizando suas línguas e conhecimentos tradicionais; - assegurar que o modelo de organização e gestão das escolas indígenas leve em consideração as práticas socioculturais e econômicas das respectivas comunidades, bem como suas formas de produção de conhecimento, processos próprios de ensino e de aprendizagem e projetos societários; - fortalecer o regime de colaboração entre os sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, fornecendo diretrizes para a organização da educação escolar indígena na educação básica, no âmbito dos territórios etnoeducacionais; - normatizar dispositivos constantes na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 143/2003, no que se refere à educação e meios de comunicação, bem como os mecanismos de consulta livre, prévia e informada; - orientar os sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a incluir, tanto nos processos de formação de professores indígenas, quanto no funcionamento regular da educação escolar indígena, a colaboração e atuação de especialistas em saberes tradicionais, como os tocadores de instrumentos musicais, contadores de narrativas míticas, pajés e xamãs, rezadores, raizeiros, parteiras, organizadores de rituais, conselheiros e outras funções próprias e necessárias ao bem viver dos povos indígenas; - zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja garantido às comunidades indígenas com qualidade social e pertinência pedagógica, cultural e linguística, ambiental e territorial, respeitando as lógicas, saberes e perspectivas dos próprios povos indígenas. Estes princípios regulamentados pela Resolução nº 05 de 22 de junho de 2012, que substitui a Resolução nº 03/1999, definem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena na educação básica e normatizam a 55

organização escolar indígena, dos aspectos pedagógicos à infraestrutura, como podemos ver em alguns dos seus artigos aqui citados. Art. 1º – Esta Resolução define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena na educação básica oferecidas em instituições próprias. Parágrafo único – Estas Diretrizes Curriculares Nacionais estão pautadas pelo princípio da igualdade social, da diferença, da especificidade do bilinguismo e da interculturalidade, fundamentos da educação escolar indígena. Art. 4º – Constituem elementos básicos para a organização, a estrutura e o funcionamento da escola indígena: II – A importância das línguas indígenas e dos registros linguísticos específicos do português para o ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades indígenas, como uma das formas de preservação da realidade sociolinguística de cada povo; III – A organização escolar própria, nos termos detalhados nesta Resolução; VI – A exclusividade do atendimento a comunidades indígenas por parte de professores indígenas oriundos da própria comunidade. Art. 7º – A organização das escolas indígenas e das atividades consideradas letivas podem assumir variadas formas, como séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos com tempos e espaços específicos, grupos não seriados com base na idade, na competência e em outros critérios ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. Os pontos da legislação, citados neste texto, referentes à educação escolar indígena, passaram a amparar todas as etnias indígenas do nosso país. Decorrem, como já afirmamos, de lutas que, para o povo kaingang, foi protagonizada pelos monitores bilíngues, nossos primeiros professores, os protagonistas centrais das mudanças contextuais e pedagógicas nas escolas kaingang. Somaram-se às demandas também de outros povos indígenas, incluindo demandas por terra e saúde, além da educação diferenciada para atender os povos indígenas considerando interesses e respeitando o contexto social e cultural. A atuação dos monitores kaingang (já apresentada no início deste capítulo), pautada pelo espírito de resistência (por sermos um povo guerreiro), e guiada por seus regre (espírito da mata) permitiu que conseguissem começar a desconstruir conceitos de escola para o índio (na época) e passaram a traçar horizontes para a 56

escola que precisamos ter em nossas comunidades, uma escola que valorize nosso povo, nossa cultura. Foi uma conquista sem precedentes, garantir na legislação brasileira o direito aos povos indígenas de ter uma educação escolar específica, diferenciada, multicultural e bilíngue. Os desafios ainda são muitos porque nós, atuais professores indígenas, ainda temos que continuar provando aos pais e lideranças das nossas comunidades que temos condições de gerenciar nossas escolas e atuar com eficiência como professores de seus filhos e no quadro pedagógico (processo que teve início com os monitores bilíngues, nossos primeiros professores). Considerando o contexto desta pesquisa (práticas pedagógicas em escolas indígenas), posso aqui descrever que houve muitos avanços no contexto pedagógico como um todo, e estas mudanças se deram a partir do momento que passamos a nos assumirmos como professores em nossas escolas. Existem práticas pedagógicas consideráveis que estão mudando o contexto das nossas escolas indígenas, práticas semelhantes às que narrei nesta dissertação, elas estão ocorrendo nas escolas das comunidades kaingang, temos consciência que muito foi feito, mas ainda temos um largo caminho pela frente, para podermos construir uma educação escolar kaingang adequada às nossas comunidades. Situando a teoria e o método de educação, criados por Freire, Brandão (2005), reafirma a ideia de que ninguém se educa sozinho. A educação deve ser um ato coletivo, solidário, um ato de amor, é um ato de troca entre pessoas. Considerando a produção teórica e a prática desses educadores populares, posso afirmar que a prática da educação escolar kaingang é fundamentada no legado freireano, que estamos praticando em nossas escolas a educação popular. Acredito que se Freire estivesse “neste plano”, atualmente, estaria presenciando sua teoria sendo posta em prática pelos professores indígenas, no caso, professores kaingang. Posso dizer, enquanto educadora kaingang que só conseguimos protagonizar mudanças significativas no contexto das nossas escolas porque procuramos sempre fazer o melhor possível por e com amor, amor ao nosso povo, às nossas comunidades. Educar para nós professores kaingang é um ato de amor...

57

Conseguimos também essas mudanças significativas porque estivemos sempre atentos (e fomos vitoriosos) à gradativa definição da política pública para o atendimento específico a educação escolar indígena, o que nos garante uma continuidade independente das trocas governamentais.

58

3 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DE UMA ESCOLA INDÍGENA: REFLEXÕES E VIVÊNCIAS DE UMA EDUCADORA E PESQUISADORA

O presente capítulo apresenta o processo de constituição da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Almerinda de Mello. Esse processo é narrado através da trajetória vivenciada pela própria pesquisadora, por um período de treze anos como educadora indígena. Apresenta considerações e retoma reflexões acerca da educação escolar indígena, enfocando a trajetória de construções pedagógicas na referida escola, tais como os processos de construção do Projeto Político Pedagógico (PPP), dos Planos de Estudos, os planejamentos e a sua organização curricular. Trago também no capítulo a elaboração conceitual de dimensões da educação escolar indígena que venho trabalhando no decorrer de uma prática docente que exerço, há treze anos, na escola da aldeia em que moro (Aldeia Horto Florestal, Comunidade Kaingang da Borboleta, município de Salto do Jacuí – RS) e nos meus fazeres acadêmicos no Curso de Especialização Proeja Indígena e do Mestrado em Educação da UNIJUÍ. O presente texto procura, então, explanar o processo de constituição de uma escola indígena e realizar uma reflexão sobre: O que é a educação diferenciada na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Almerinda de Mello? Este questionamento sempre esteve presente no meu cotidiano escolar, sempre me acompanhou e me acompanha até a atualidade, pois ainda estou buscando construir respostas para essa pergunta. Para a elaboração do capítulo, pautei-me em pesquisa de campo e em observações e análises, pois durante os treze anos de envolvimento com o fazer pedagógico em nossa escola, sempre estive, e estou empenhada em buscar respostas e possibilidades para a prática pedagógica na escola indígena. O texto também apresenta narrativas de minhas vivências, experiências e reflexões acerca de experiências narradas por outros colegas indígenas e não indígenas.

3.1 O INÍCIO

Tudo começou no ano de 1998. Eu havia terminado o Curso de Magistério, no ano de 1996, no atual Instituto Estadual de Educação Miguel Calmon, no 59

município de Salto do Jacuí. Porém, esse curso não era um magistério específico indígena. No ano de 1998, iniciei também minha caminhada de militante indígena na luta pela demarcação da nossa terra, a TI da Borboleta. Essa é uma luta que perdura até os dias de hoje, pois já faz quatorze anos que estamos acampados, aguardando uma resolução da questão fundiária em favor de nossa comunidade (Comunidade Kaingang da Borboleta). Como eu também me encontrava acampada com meus parentes e já havia concluído o Curso de Magistério (antigo segundo grau), a pedido da comunidade fui contratada para dar aulas para nossas crianças no mês de julho de 1998. Estávamos acampados, não tínhamos estrutura alguma nem apoio pedagógico. Nossa escola era, no início, itinerante, ou seja, onde o acampamento fosse, a escola (eu), o acompanhava. Chegávamos a nos deslocar por até três vezes em um ano. Nossa primeira sala de aula começou a funcionar no dia 07 de junho de 1998. Na ocasião, estávamos acampados no distrito de Capão Bonito – Salto do Jacuí, na Granja Oriental, Rio Grande do Sul. Por não dispormos de local fixo, nossa sala de aula itinerava e possuía vínculo, para fins legais, com a Escola Municipal de Ensino Fundamental João Gonçalves Vieira.

Figura 2 – Foto da nossa primeira sala de aula, em 18 de outubro de 1998 Fonte: Arquivo pessoal FTA.

No início, a escola era constituída por mim, uma professora inexperiente, recém-formada e sem nenhum conhecimento sobre escola específica, multicultural e bilíngue, uma caixa de livros “didáticos” da 1ª a 4ª série, duas caixas de giz (um branco e um colorido), um quadro verde e, mais tarde, uma lona amarela. E alunos. Foi assim que tudo começou.

60

3.2 O PRINCÍPIO DAS DORES

O período entre 1998 a 2000 foi uma época muito desgastante para a comunidade, principalmente para as crianças e para mim. Foi uma época de grandes desafios já que eu era a única professora, e iniciante, pois acabara de concluir o Curso de Magistério. Além dos muitos impasses de cunho pedagógico que encontrei e da falta de estrutura do espaço físico da escola, outra dificuldade foi a minha adaptação no acampamento, pois não havia luz elétrica, o banho era em bacia ou no rio, o fogo era de chão, as casas e a escola feitas de lona. Eu só ia para casa aos finais de semana ou de 15 em 15 dias. Cheguei a permanecer por até um mês longe de casa, dependendo do local onde estávamos acampados. Foi essa a época em que comecei a vivenciar o dilema maior da minha vida: passei noites e noites pensando no que fazer, em como fazer e a quem recorrer. Foram tantas as incertezas que pensei, muitas vezes, em desistir. Na época, eu me sentia como se tivesse “entrado numa canoa furada e sem remo”. No acampamento, no primeiro mês, na condição de professora, para minha surpresa, os únicos recursos para trabalhar eram giz, quadro negro e uma listagem de conteúdos (do município). Os alunos eram 21 crianças, na faixa etária dos 7 aos 14 anos, provindos de várias realidades, a maioria das periferias de Cruz Alta, Porto Alegre, Salto do Jacuí e arredores. Havia demanda de atendimento de 1ª a 4ª série. Frente a essa realidade, o que fazer? Eu estava frente a duas turmas multisseriadas, sem nenhuma experiência com esse tipo de realidade e com muitas expectativas por parte dos alunos e de alguns pais. Afinal, teriam uma “escola no movimento [indígena]”. Entrei em conflito comigo mesma, aliás, vivo em constante conflito até hoje, pois ser educadora é uma profissão muito complexa. Ao ler a “listagem de conteúdos mínimos” (elaborada pela SMED de Salto do Jacuí) e relembrar o que “aprendi” no Curso de Magistério, confrontei-os com a realidade que me foi apresentada. Percebia que não seria correto seguir aquela listagem de conteúdos e organizar as aulas por unidades didáticas. Mas como eu ainda não sabia fazer diferente comecei a trabalhar da forma que havia aprendido, sendo guiada pela lista de conteúdos do município. Vivia com a minha consciência 61

pesada, pois sabia que minhas aulas teriam de ser diferentes. Mas por onde começar? Em outubro de 1998, participei de um encontro de formação continuada em Passo Fundo, específico para professores índios, onde havia professores índios de todas as aldeias do Estado do Rio Grande do Sul. Foi então, ali onde comecei a me inteirar mais sobre o que seria a “educação diferenciada” nas escolas indígenas. E foi onde eu também tive a oportunidade de trocar ideias e experiências com colegas de outras áreas e de outras TI. Na ocasião, nos foram apresentados os Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas (RCNEI), os quais foram organizados pelo Ministério de Educação (MEC), com a participação de representantes indígenas de várias etnias e Estados, além de outros temas referentes à educação indígena, pois tivemos um curso com uma semana de duração. Durante o curso, participei da reunião do Núcleo de Educação Indígena (NEI), que passei a integrar, representando a minha comunidade. O NEI era um órgão consultivo e deliberativo, vinculado à SEE, onde tínhamos espaço para colocar os problemas de cada escola, expor suas necessidades e também fazer encaminhamentos visando solucionar os impasses encontrados. Voltei para casa mais ou menos satisfeita, ainda confusa, mas convicta de que era necessário mudar minha prática de trabalho. No curso, nos foram apresentados alguns caminhos, mas ainda não me satisfiz. Talvez, eu ainda estivesse esperando alguma “receita” do que fazer. Como, felizmente, não recebi receita alguma, tive que caminhar, que descobrir sozinha o que fazer para melhorar minhas aulas, para enriquecer o meu trabalho. Foi então que comecei a ler e a estudar sobre novas metodologias de ensino. Eu já havia feito leituras sobre os temas geradores de Paulo Freire. Nesse curso, nos foi apresentado o trabalho com a utilização dos temas transversais. Então, eu juntei os dois e fui buscando leituras e, assim, as coisas começaram a clarear. Desse dia em diante, minha sala de aula se tornou um “laboratório”. Era ali que eu experimentava, na prática, o que tentava aplicar em sala de aula, após leituras e análise, relacionando esses conhecimentos com a realidade que vivenciávamos. Foi então que substitui as unidades didáticas por temas geradores e, depois, por temas transversais. 62

Essa nova metodologia, que adotei, facilitou bastante o trabalho em sala de aula. Por ter de trabalhar com classes multisseriadas, eu utilizava o mesmo tema para todos. E apenas as atividades eram diferenciadas para cada aluno, de acordo com suas capacidades individuais, independente da série em que estavam matriculados. Adorei essa mudança, mas ela ainda não era bem aquilo que eu queria alcançar. As aulas até que estavam interessantes, porém, eu sempre me perguntava e ainda me pergunto: E o diferenciado? E o específico? Onde ficam? Tudo era e ainda é tão parecido com a educação não indígena. O que me frustrava, na época, era a solidão pedagógica, pois eu não tinha com quem conversar ou trocar ideias. Foi então que comecei a convocar mais os pais e as lideranças indígenas para participarem na escola e a apresentar a eles o que eu pretendia trabalhar com seus filhos. A maioria deles não se preocupava muito com a escola, porque a prioridade na época era a terra. Mas eu não desistia e quando alguns não participavam das reuniões eu ia até eles para ouvi-los. Eles não tinham escapatória, pois morávamos todos por perto e, portanto, não era difícil trocarmos ideias. Assim, consegui estabelecer um vínculo muito significativo entre a escola e a comunidade, o que perdura até os dias de hoje. Lembro-me, ainda, da primeira vez em que sentamos juntos eu, a comunidade escolar e as lideranças, com o objetivo de construirmos o currículo da escola. Foi um processo aonde cada um ia dando sua opinião sobre o que queria que seu filho aprendesse na escola e a respeito de por que aprender. Essas reuniões tiveram início na Granja Oriental, lugar onde estivemos acampados. Foi então que começamos a trabalhar os temas voltados ao interesse do movimento indígena e a revitalização cultural. No segundo semestre de 2000, devido a necessidade, foi ampliado o quadro de professores, sendo contratada uma professora fóg. Então, passamos a ter vínculo administrativo, para fins legais, com a Escola Estadual de Ensino Fundamental Euclides Kliemann, localizada no distrito de Tabajara, município de Salto do Jacuí – RS. Nesse momento, nossa escola ainda estava em fase de regularização, ou seja, ela existia de fato, mas não de direito. No período de 1998 a 2002, participávamos regularmente de encontros de formação continuada para professores índios e dos encontros do NEI, onde tínhamos a oportunidade de ampliar nossa visão sobre educação indígena e, com isso, de ir reformulando nossa prática educativa. 63

3.3 ALGUNS ELEMENTOS DA HISTÓRIA DA NOSSA ESCOLA

O nome de nossa escola foi escolhido em assembleia no segundo semestre de 1999, com a participação de pais, de alunos e de lideranças. A escola ficou assim designada: Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Almerinda de Mello. Este nome foi escolhido pela maioria por se tratar de um nome muito significativo para a nossa comunidade. Dona Almerinda é a indígena mais idosa da comunidade; nasceu e se criou na área da Borboleta; e é avó do nosso cacique, Sr. Abílio Padilha da Silva. Dona Almerinda, hoje com seus 104 anos, vive no Jardim Protásio Alves, em Porto Alegre. Outro fator muito significativo foi o processo de implantação da escola. Nossa escola teve uma história diferenciada daquela das demais escolas das aldeias kaingang no Estado do Rio Grande do Sul. A escola teve seu início atendendo a interesses da Comunidade Indígena da Borboleta que via, na escola, a oportunidade de utilizá-la como espaço de revitalização da cultura kaingang. Ou seja, a escola surgiu desempenhando uma função social ao atender aos interesses da comunidade e não àqueles do Estado brasileiro. Nossa escola, por ter seu currículo fundamentado nos interesses da comunidade, desenvolve atividades que retomam os fundamentos da cultura kaingang, que quase se perderam, a exemplo da língua, e reforçam os que restaram, tais como o artesanato com cipó, os conhecimentos dos mais velhos sobre as plantas medicinais e os alimentos típicos. Essas atividades são reforçadas na escola durante o mês de abril, na Semana do Índio, em que são organizadas atividades voltadas à cultura kaingang. Por exemplo: apresentações de danças e de cantos, gincana cultural, concursos de artesanato, dentre outras atividades. Encerramos a semana com um almoço coletivo entre escola e comunidade, momento em que são servidos os alimentos típicos. A construção do currículo da escola e do seu projeto pedagógico se deu a partir da pesquisa participante, feita pelo corpo docente da escola. Essa pesquisa deu origem aos temas que trabalhamos e que foram desdobrados em redes temáticas. Dessa forma, nós reconstruímos o currículo da nossa escola em um processo do qual fui protagonista, no papel de coordenadora do processo e, também, enquanto professora. Até hoje, em nossa escola, trabalhamos utilizando os temas geradores e as redes temáticas, pois estes nos auxiliam a organizar o 64

currículo e a aplicá-lo de maneira significativa. No decorrer de todo o ano letivo, as atividades escolares estão voltadas para a revitalização e o fortalecimento cultural da Comunidade Kaingang da Borboleta.

Figura 3 – Rede temática anual de 2010 da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Almerinda de Mello Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os temas definidos na Rede Temática Anual se tornam os temas geradores, que, por sua vez, irão nortear os planejamentos trimestrais e a elaboração dos planos de aula.

3.4 A NOSSA ESCOLA ATUALMENTE

O quadro atual de docentes é formado por três professores índios (eu, uma colega bilíngue e outro colega; pertencemos à Comunidade da Borboleta), três professores não índios, os quais foram acolhidos pela comunidade e quatro funcionários indígenas. Atendemos 63 alunos, cuja idade varia dos 6 aos 40 anos, todos provenientes da respectiva comunidade. A estrutura da escola é precária: compõe-se de três salas de aula, duas de madeira e uma de alvenaria, classes e cadeiras suficientes e poucos recursos didáticos. Dessas três salas, duas ficam localizadas onde é a sede da escola, na 65

Aldeia Horto Florestal e uma em outro setor da comunidade, na Aldeia Julio Borges a aproximadamente vinte quilômetros uma sala das outras. Tem um sanitário que é utilizado pelos alunos e professoras, não temos sala de merenda, a merenda é servida na sala de aula.

Figura 4 – Foto da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Almerinda de Mello Fonte: Arquivo pessoal da autora (18 ago. 2011).

O regime da escola é ciclado, ou seja, o tempo escolar é organizado em ciclos. O primeiro ciclo tem a duração de quatro anos (ciclo de alfabetização), o segundo ciclo tem a duração de dois anos e o terceiro ciclo tem a duração de três anos, completando o Ensino Fundamental de nove anos. Atualmente, estão funcionando os três ciclos na escola, oferecendo estudos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, bem como a Educação de Jovens e Adultos (EJA), do terceiro ciclo. Optamos por organizar o tempo escolar em nossa escola por Ciclos de Ensino/Formação/Aprendizagem em 2001, porque, apesar de nossa escola não dispor de boas estruturas (por exemplo, laboratórios), temos lido e estudado sobre ciclos desde o ano de 1999. Antes de decidirmos colocar em prática esta experiência, conversamos e apresentamos a proposta de ensino ciclado à comunidade e às lideranças, que nos deram aval (“carta branca”) para dar início a essa proposta. Tínhamos classes multisseriadas e a seriação nos causava alguns transtornos. Além disso, almejávamos mudanças significativas na organização curricular da escola, visando melhorias na aprendizagem dos alunos. A carga horária 66

semanal seria ampliada e a parte específica seria trabalhada em turno inverso. Foi por estas muitas razões, que optamos por organizar os tempos na nossa escola por ciclos. A partir de 2011, nossa escola também está vivenciando uma experiência mais recente: o terceiro ciclo e a EJA foram organizados dentro do ciclo por Módulos de Ensino5. Optamos organizar os anos finais por módulos devido à necessidade de trabalhar por áreas do conhecimento. E, também, para o gerenciamento otimizado de recursos humanos, pois temos turmas pequenas e que também se localizam em setores distantes. A escola funciona durante os três turnos: manhã, tarde e noite.

3.5 OS CONCEITOS DE CICLOS

A ideia nuclear de ciclos é a de a escola estar comprometida, essencialmente, com o máximo desenvolvimento humano dos sujeitos. Esta formulação, aparentemente simples, quando levada a sério representa uma verdadeira revolução na organização da escola. Essa transformação pode ser sintetizada em três grandes rupturas: com a seriação, com a reprovação e com os conteúdos preestabelecidos sem sentido. Explica Perrenoud (2000), autor que teoriza sobre o tema:

Uma nova organização do trabalho, pela introdução, por exemplo, de ciclos de aprendizagem modifica o equilíbrio entre responsabilidades individuais e responsabilidades coletivas e torna necessário não somente um trabalho em equipe, mas também uma cooperação da totalidade do estabelecimento, de preferência baseada em um projeto.

A proposta de ciclos tem, logo de partida, graves repercussões administrativas, comunitárias e pedagógicas, tocando na materialidade dos processos de aprendizagem e de desenvolvimento (questão do tempo), na socialização e no vínculo grupal (questão do agrupamento dos alunos) e, ainda, nos núcleos da organização curricular e do vínculo pedagógico (questão dos conteúdos). O ciclo é uma maneira de organizar a escola que privilegia a continuidade das trajetórias escolares dos alunos, respeitando seus processos de desenvolvimento e

5Os módulos de ensino são a forma de organizarmos o currículo da escola dentro do ciclo 3, por áreas do conhecimento trabalhadas enquanto uma unidade de tempo.

67

de aprendizagem (características, ritmos, interesses, história de vida) e com eles interagindo, orientados por um projeto coletivo. Tem como parâmetro não um programa e sim o próprio educando. Implica numa reviravolta, dado que não se parte mais de um rol de conteúdos e sim de uma questão fundamental: De que estes sujeitos concretos precisam para se desenvolverem plenamente? É, também, uma forma estrutural de romper com a lógica classificatória ao ajudar o professor a perceber que é possível existir outra forma de relacionamento com os alunos, que não é aquela baseada no medo, na ameaça da “nota”. O professor que pretende ser justo não deve avaliar quem merece ou não justiça, mas tratar a cada um de acordo com a sua necessidade.

3.6 A VIVÊNCIA DA PROPOSTA

Temos, em nossa escola, vivenciado uma experiência, uma tentativa de pensar os tempos escolares, na perspectiva da organização curricular por ciclos. Como é uma forma nova e ousada, necessitamos de estudos e de reflexões constantes sobre o tema, visando avaliar e redimensionar permanentemente nossa prática educativa. Em nosso primeiro ano de experiência, em 2002, tivemos apoio significativo da mantenedora (autonomia para elaboração do PPP da escola, considerando os anseios da comunidade escolar). Tanto na prática em sala de aula quanto nos planejamentos, obtivemos construções significativas. Tentávamos, apesar dos poucos recursos de que dispúnhamos, qualificar a experiência. Já, em 2003, posso afirmar que, na prática, o ciclo em nossa escola adormeceu porque, com a troca de governo, tivemos alguns espaços cerceados (“podados”). Além disso, houve divergências internas ao corpo docente, que acabaram desestruturando e desmotivando a nossa equipe de trabalho. Mesmo tendo que enfrentar muitas barreiras, principalmente no contexto político educacional, nunca deixamos de enfrentar as adversidades e de reafirmarmos o que pensávamos e o que queríamos em nossa escola. Foi assim que resistimos às trocas de governos. A educação indígena é uma nova modalidade de educação que está buscando espaços, trilhando novos caminhos, visando construir uma educação 68

escolar adequada e de qualidade, atendendo às especificidades das comunidades indígenas. Podemos afirmar que a educação escolar indígena, hoje, vem enfrentando grandes impasses e desafios. Isso no que se refere, principalmente, ao reduzido número de professores indígenas capacitados; às questões burocráticas, que dificultam o atendimento adequado e necessário a cada comunidade; à falta de preparo da maioria das pessoas que estão nos setores administrativos dos órgãos públicos, em todas as instâncias, para tratar os indígenas com equidade, num diálogo flexível e diferenciado (com sensibilidade para compreender o tempo, o pensar diferente e o contexto de uma comunidade). Mas o que reivindicamos não é um tratamento diferenciado vinculado à inferiorização (pois, não precisamos ser tratados como coitadinhos ou como seres incapazes) ou à imposição de padrões ou modelos gerais e sim de respeito ao diferente. Estes são, apenas, alguns dos tantos impasses que fazem parte do cotidiano das escolas indígenas. Estamos num constante lutar, para que as práticas no âmbito escolar indígena aconteçam. Acredito que somente com a persistência de professores ousados e comprometidos com a educação é que conseguiremos construir uma educação de qualidade. Estas experiências, por mais que se lhes apresentem com todas as suas deficiências, se constituem em marcos referenciais rumo à construção de uma educação escolar indígena de qualidade.

3.7 A MOBILIDADE DAS AULAS

Cada turma, em todos os ciclos, possui no mínimo dois professores que atuam junto a ela. No primeiro ciclo, há a professora regente, a professora de revitalização e uma assessoria pedagógica (que é feita por mim e por outros professores com formação e disposição pedagógica para auxiliar nos planejamentos). A língua kaingang é trabalhada na sua oralidade. Nesse ciclo, o fazemos por meio de cantos populares traduzidos para a língua kaingang e de mitos narrados na mesma língua indígena. No segundo ciclo, há a professora regente, o professor de revitalização cultural e de língua kaingang e, também, a assessoria pedagógica, que acontece quando se considerar necessário. No terceiro ciclo, que iniciou em 2011, cada módulo tem quatro professores envolvidos em seu planejamento e em sua aplicação: o professor da área do conhecimento, o professor 69

de revitalização cultural, a professora de língua kaingang e a direção. O planejamento é coerente com os projetos e com os trabalhos, que perpassam a área do conhecimento. Nela, são inseridos os conhecimentos específicos do povo indígena, enfocando os vários aspectos da cultura kaingang. Esse mesmo processo acontece nas turmas da EJA. O planejamento e as trocas de experiências acontecem com periodicidade semanal ou quinzenal. Procuramos mobilizar nossos professores, no sentido de que tomem consciência, ao realizar os planejamentos individuais e coletivos, da importância de sabermos o que queremos trabalhar, por que vamos trabalhar e como vamos trabalhar. Enfatizamos tais aprendizagens por meio dos registros nos diários e em possíveis relatórios, os quais começaram a surgir no ano letivo de 2011, de forma mais sistemática diversas atividades relevantes são feitas na escola. Mas, se não as registrarmos, muitas delas, provavelmente, serão esquecidas. Formamos um grupo com oito professores, quase todos eles com graduação e/ou especialização. Três desses não têm formação pedagógica inicial, mas estão estudando e recebem assessoria dos que possuem mais experiência em sala de aula. Podemos dizer que estamos conseguindo nos constituir como um coletivo de professores. Estamos, também, nos organizando para trazer mais pais e lideranças a participar dos planejamentos, pois nesse momento, estamos organizando o currículo do terceiro ciclo.

3.8 O CURRÍCULO ESPECÍFICO COMO UMA POSSIBILIDADE

O currículo representa a vida da escola. É nele, e por ele, que a escola constrói seus valores e seus conhecimentos. A forma assumida pelo currículo deriva das concepções que se tem, do conhecimento e da educação. E, mediante as concepções que estabelecem a dinâmica curricular, podemos construir a educação indígena. O currículo escolar, durante muito tempo, foi compreendido como um rol de disciplinas. Há, atualmente, uma multiplicidade de definições que ultrapassam esta concepção. A busca incessante e necessária pela qualidade na educação, em contraposição aos padrões oficiais oferecidos pelos modelos neoliberais, desafia os educadores a construírem novas metodologias de ensino fundadas em outras concepções de educação. Essa busca se inspira, principalmente, no legado da 70

educação popular, concepção de educação que, quase sempre, esteve à margem do processo educativo escolar. Nessa perspectiva, o currículo é a ação, é a trajetória, é a caminhada construída coletivamente e em cada realidade escolar de maneira diferenciada. Ele é um processo dinâmico, mutável, sujeito a inúmeras influências e, portanto, aberto e flexível. Essa concepção de currículo veicula concepções de pessoa, de sociedade, de conhecimento, de cultura e de poder. Exprime sua destinação às classes sociais a que essas pessoas pertencem. Portanto, sempre se referencia a uma proposta político-pedagógica que explicita intenções e que revela, sempre, os graus diferenciados da consciência e do compromisso social existentes na realidade.

Currículo que acolha a diversidade, que explicite e trabalhe estas diferenças garantindo a todos o seu lugar e a valorização de suas especificidades, ao mesmo tempo em que aproveita o contato com essas diferenças para questionar o seu próprio modo de ser (SMED, 1999).

Um currículo, se vinculado a esta concepção, será um currículo adequado à realidade de cada aldeia. Um currículo que seja capaz de romper com a histórica imposição da cultura dominante sobre as escolas indígenas, é uma forma de desconstruir os preconceitos estabelecidos no decorrer da história da educação escolar indígena. Ou seja, um currículo capaz de superar uma educação pensada “para o índio, na tentativa de civilizá-lo e de integrá-lo à sociedade e à cultura nacional”. As escolas das aldeias, na atualidade, buscam desempenhar uma função social em suas comunidades, tendo por objetivos a manutenção e a revitalização da cultura kaingang. Uma possibilidade em que acredito, e que pode vir a acontecer em nossas escolas, é aproveitarmos o espaço da instituição escola e pautarmos nossas práticas educativas nos conhecimentos tradicionais do povo kaingang. Poderemos fazer isso aproveitando os espaços educativos e as práticas educativas que acontecem em nossa TI, em nossa aldeia. E, a partir da valorização destes conhecimentos, construiremos redes e teceremos possibilidades (nos comunicando e trocando experiências). Trabalharemos conteúdos voltados para a realidade do povo kaingang sem, contudo, deixar de trabalhar, também, o que acharmos necessário das culturas não indígenas. E a forma de trabalhar que desejamos é dialógica – diálogo ampliado, que envolve a comunidade, não somente os 71

educandos e educadores (conforme propôs Freire e conforme a educação popular trabalha). Para tanto, acredito que poderemos considerar, em nossos planejamentos escolares, alguns elementos fundamentais da nossa cultura, tais como: (a) Mitologia kaingang e de outros povos indígenas. Os mitos nos possibilitam trazer, para os contextos escolares, a história de cada povo. Eles também podem ser utilizados, como ponto de partida, para trabalharmos a gramática, a produção textual, as ilustrações, as dramatizações, as concepções de saúde, as questões matemáticas, dentre outras possibilidades; (b) Organização social do povo kaingang. Compreender o que são as metades tribais kamẽ e kanhrukrẽ, as formas de organização internas e externas, as legislações específicas, as regras e os rituais dos casamentos, os aprendizados familiares, os mitos correlacionados; (c) Cosmologia e espiritualidade do povo kaingang. Abordar os mitos do sol e da lua, os kujá e os pẽj, conhecer as ervas medicinais, a alimentação típica, as proibições rituais; (d) Artesanato, grafismo e pintura. Identificar as pinturas corporais e os grafismos do artesanato de acordo com as metades clânicas a partir de mitos, fazer a coleta de materiais para a confecção de artesanato; (e) Espaços de sobrevivência física e cultural. Conhecer a produção de alimentos visando à sustentabilidade, a mata para coleta de matérias-primas para artesanato e de ervas medicinais, a coleta de frutas, raízes, folhas e dos demais alimentos típicos e promover a revitalização da língua kaingang como elemento relevante da nossa cultura. Possibilitar também a presença em nossas salas de aulas dos nossos kujá, nossos kófa. A educação escolar indígena é uma nova modalidade de educação que está buscando espaço, trilhando caminhos, visando construir uma educação escolar adequada e de qualidade, e atendendo as especificidades das comunidades indígenas. Esta tarefa é de todos nós, professores kaingang e simpatizantes da causa indígena. Com esta nova possibilidade de organizarmos o currículo da escola indígena, estaremos, na escola, possibilitando a contextualização e a produção de conhecimento a partir da realidade local e cultural, estaremos como teoriza Paulo Freire, considerando o contexto do educando e educador.

72

Considerando as práticas que ajudei a construir e que aos poucos estão se constituindo na escola da minha comunidade, posso afirmar que a organização curricular por ciclos de formação trouxe muitas melhorias para nossa escola: a organização das turmas, o compromisso da escola e do professor com o desenvolvimento individual e coletivo do aluno, o compromisso do professor em planejar coletivamente com seus colegas, o compromisso individual e coletivo com a execução do PPP da escola, a ampliação do tempo do aluno na escola, pois temos três dias na semana que os alunos vão à escola no turno inverso ao escolar, quando é trabalhada de forma mais direcionada a revitalização cultural da nossa comunidade conforme projeto pedagógico da escola, onde são trabalhadas com os alunos de todos os ciclos oficinas de artesanato, de dança, grafismo e pintura kaingang. Os módulos, nos anos finais, para uma escola com poucos alunos, facilitam a organização do currículo por área de estudo, e também para a dinamização de recurso humano que, devido ao pequeno número de alunos por turma, se torna mais dificultoso. Protagonizando estas mudanças no contexto da nossa escola, posso afirmar que ele é lento, gradativo, mas gratificante, possibilita ampliar os tempos do aluno na escola. O mais difícil de construir é o trabalho e o planejamento coletivo dos professores. Nós estamos em processo de construção, embora já tenhamos alcançado muitos avanços na implantação desta proposta.

73

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste período de quase dois anos de dedicação a esta pesquisa, sinto que este é apenas um começo para pensarmos uma educação escolar kaingang diferenciada. O trabalho não trouxe respostas, foram apresentadas situações, experiências pedagógicas bem-sucedidas e protagonizadas por professores kaingang, uma vez que os depoimentos e constatações aqui apresentados, tomarão novas dimensões, novos rumos, na medida em que nós professores kaingang formos nos apropriando da instituição escola e dando a ela outro significado, nova abordagem, principalmente no contexto pedagógico e este processo só poderá ser protagonizado por nós, kaingang, na busca constante de elementos para a afirmação de um conhecimento autônomo, de um ensino específico, de uma pedagogia kaingang. O término desta pesquisa é fruto de muito esforço pessoal, pois vivenciei uma experiência nova no contexto acadêmico, quando fui desafiada a ler e escrever muito. No início foi um processo doloroso e no final também, pois venho de uma cultura da oralidade, ler e escrever constantemente não fazia parte das minhas vivências, apesar de gostar muito de estudar e de pesquisar. Outro impasse é o desafio do tempo, o meu tempo de produção é outro, quase não consegui atender os prazos para conclusão deste texto, pois na academia, tudo tem prazo, tempo certo, e para minha produção a pressão bloqueia, só consigo produzir quando sinto vontade e inspiração para escrever, acredito que minha orientadora entendeu este meu tempo, pois imagino o quanto ela se angustiou esperando a conclusão deste trabalho.

74

Claro que outros fatores também interferiram. Estive enfrentando problemas de saúde, tinha que dar conta do trabalho na escola, pois me mantive na direção da escola; organizar e gerenciar uma escola pequena também dá muito trabalho, principalmente na parte financeira, na organização e prestação de contas. É muita burocracia! Isso acabou limitando muito meu tempo, além do engajamento na luta pela terra: foram muitas as reuniões e outras virão, pois estamos pleiteando uma solução fundiária para nossa comunidade e falta muito pouco para a concretização desta luta. Apesar de “dificultoso”, o processo de produzir uma dissertação e o produto conseguido podem ser considerados mais uma conquista pessoal e comunitária. Em minha pesquisa pude constatar que houve muitos avanços, embora não o suficiente, no contexto educacional escolar kaingang. Posso dizer que produzi uma dissertação que deverá apresentar contribuições ao meu povo, escola e comunidade, em relação ao foco da minha pesquisa, que era refletir e socializar o que temos conseguido no campo pedagógico das escolas indígenas e quem vem protagonizando este processo. Considerando a pergunta de pesquisa: O que é educação escolar indígena específica e diferenciada? Posso dizer que esta pesquisa mostra o início da construção efetiva de uma educação escolar adequada às comunidades kaingang. Constatei nesta pesquisa, que houve e está acontecendo um movimento consistente dos professores kaingang, buscando construir uma educação escolar kaingang específica, diferenciada e de qualidade. As narrativas apresentadas nesta dissertação ilustraram como está o quadro pedagógico atual nas escolas indígenas. Estamos ousando e buscando construir uma escola que exerça uma função social e que esteja atendendo aos interesses da comunidade escolar. Fiquei satisfeita com o resultado desta pesquisa, pois minha intenção não era buscar respostas “acabadas” para a educação escolar indígena diferenciada. Pude dar conta de que estamos no caminho, estamos entre erros e acertos, fazendo o melhor possível por nossas escolas, objetivando construir uma escola adequada às nossas comunidades. Estamos vivenciando um novo momento na história da educação escolar no Brasil. Falando especificamente em escola indígena, estamos vivendo um momento com novas possibilidades curriculares e o mesmo podemos dizer quanto à organização escolar. Hoje, a situação está o reverso do que foi a instituição escola 75

dentro das aldeias há algumas décadas. Anteriormente, sua função era estar na aldeia a serviço do Estado, com a finalidade de manter a política integracionista em vigor no Estado brasileiro. Essa escola desconsiderava as culturas que não fossem a hegemônica. Não reconhecia e nem atribuía valor algum à cultura indígena. E nem mesmo nos reconhecia como etnia diferenciada, com identidade própria, fato este que só toma outros rumos com a Constituição Federal de 1988. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a lei maior do Brasil, se inaugura, no cenário nacional, o reconhecimento de que a diversidade cultural é um bem jurídico a ser protegido pelo Estado brasileiro. Também se estabelece o respeito às organizações sociais, às línguas, às crenças e às tradições dos povos indígenas, em consonância com os artigos 215 e 231 dessa Constituição. A partir desse momento, os indígenas deixam de ser considerados semi-capazes. É, então, outorgada a possibilidade de nós, indígenas, sermos considerados cidadãos capazes de agir, de inferir sobre algo, sem a tutela do Estado, a qual foi por muito tempo, exercida através de agentes do SPI e até há pouco tempo pela FUNAI. Ao reconhecer que a diversidade cultural não desaparecerá, essa outra concepção de sociedade não se propõe a promover a integração das minorias étnicas, pelo contrário, estabelece ao Estado o dever de garantir e de proteger o exercício dos direitos culturais de seus cidadãos. O Art. 210 da Constituição Federal de 1988, que trata da educação, da cultura e do desporto, assegura o respeito aos valores culturais, ao uso das línguas maternas e de seus processos próprios de aprendizagem, aos povos indígenas. A lei maior do Brasil recepcionou, assim, os princípios já consagrados no cenário internacional. O atual cenário do país abriga a legislação sobre direitos humanos, especificamente a que está voltada para os direitos dos povos indígenas. Os referidos avanços permitiram a criação, em anos posteriores, de uma vasta normatização no âmbito da educação escolar indígena. Com a globalização, temos a circulação mais abrangente das novas tecnologias, das possibilidades de expressão e de ir e vir, e a convivência com grande diversidade cultural. Segundo o pensamento de Stuart Hall, apesar de a globalização desestabilizar identidades, este fenômeno contemporâneo também produz novas identidades e, ainda, oferece espaço para que identidades se firmem e se reafirmem (HALL, 2006, p. 70). 76

Hoje, a instituição escola, nas aldeias, pode estar a serviço da comunidade, exercendo uma função social oposta àquela implantada nas aldeias pela FUNAI. Ou mesmo da função exercida na época do SPI; em que, ao invés de proteger os índios, era uma instituição que facilitava sua exploração e onde se consolidava o massacre da cultura. Vislumbro, então, que a educação popular é considerada como:

(...) prática social cultural, que implica ensino e aprendizagem, favorecidos por relações dialógicas (entre sujeitos, saberes, perspectivas teóricas, metodologias, fundamentos filosóficos) e que se move mediante a intencionalidade política de contribuir para a construção de uma ordem social (nos mais diversos espaços sobre os quais incide) que não seja marcada pela exploração, opressão e submissão (FALKEMBACH, 2010).

Poderemos construir uma educação escolar indígena específica e diferenciada e, acima de tudo, de qualidade, que esteja voltada em direção aos valores culturais e sociais do povo kaingang. Podemos dizer que a educação escolar indígena está se construindo, à medida que estamos desconstruindo preconceitos estabelecidos historicamente referentes ao índio, estamos construindo práticas pedagógicas alternativas, visando atender nossas crianças de forma adequada. Para tanto a educação escolar indígena nos desafia a construir um currículo adequado à realidade de cada comunidade onde a escola está inserida, somos instigados a trabalhar com um currículo multicultural que respeite as diferenças e a pluralidade de visões de mundo, porém crítico e propositivo perante as desigualdades e injustiças sociais, tentando romper com as fronteiras entre as áreas do conhecimento, construindo uma educação que reconhece o processo de globalização, mas está fundamentada na sustentabilidade e vitalidade sem perder sua especificidade. Proposta esta que sito no final do capítulo 3, pois acredito ser este currículo uma possibilidade de mudar, redimensionar o contexto pedagógico das escolas kaingang, trazendo para as salas de aula abordagens culturais significativas para nosso povo. Estaremos assim contribuindo para a manutenção e revitalização de aspectos da cultura do povo kaingang e utilizando o espaço da escola da aldeia para exercer uma função significativa nas nossas comunidades, apesar das dificuldades com as quais convivemos. 77

Espero que esta pesquisa sirva de estímulo para os parentes indígenas, pois a pesquisa acadêmica é uma forma de selecionarmos conhecimentos e adequarmos à realidade das nossas comunidades. Este é um desafio necessário para construirmos uma educação escolar adequada às nossas comunidades. Para tanto, esta pesquisa é o começo das muitas outras que virão para complementar estes singelos escritos.

78

REFERÊNCIAS

AMARAL, F. O processo de constituição de uma escola indígena: reflexões e vivências de uma educadora pesquisadora. In: BENVENUTI, J.; BERGAMACHI, M. A.; MARQUES, T. B. (orgs.). A educação indígena sob o ponto de vista de seus protagonistas. Porto Alegre: Evangraf, 2013.

ANTUNES, C. P. Experiências de formação de professores kaingang no Rio Grande do Sul. 2012. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

BENVENUTI, J.; BERGAMACHI, M. A.; MARQUES, T. B. (orgs.). A educação indígena sob o ponto de vista de seus protagonistas. Porto Alegre: Evangraf, 2013.

BERGAMASCHI, M. A. (org.). Povos indígenas & educação. Porto Alegre: Mediação, 2008.

BERGAMASCHI, M. A. Nhembo’e! Enquanto o encanto permanece: processos e práticas de escolarização nas Aldeias Guarani. Tese (Doutorado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

BRANDÃO, C. R. (org.). A questão política da educação popular. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

BRANDÃO, C. R. O que é método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 2005.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, 1988.

CABIXI, D. A questão indígena. Cuiabá: Centro de Documentação Terra Índio (Cdti), 1984. 79

CLAUDINO, Z. K. Educação indígena em diálogo. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

D’ANGELIS, W.; VEIGA, J. (orgs.). Leitura e escrita em escolas indígenas: encontro de educação indígena no 10º COLLE. Campinas: ALB, 1995.

FALKEMBACH, E. M. F. Editorial. Contexto & Educação, Ijuí: Ed. UNIJUÍ, v. 25, n. 83, p. 7-12, jan./jul. 2010.

FERREIRA, B. Políticas públicas para uma educação escolar indígena diferenciada. Oikos, 2012. (Cadernos do COMIM, nº 10).

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 14. ed. atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

FREITAS, M. I. Educação de jovens e adultos: subsídios para construção de curso de Técnicas Agrícolas Kaingang. In: BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

FURASTÉ, P. A. Normas técnicas para o trabalho científico: explicitação das normas da ABNT. 16. ed. Porto Alegre: Dáctilo Plus, 2013.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 104p.

INÁCIO, A. N. Venh kanhrãn. In: BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

JECUPÉ, K. W. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Fundação Petrópolis, 1998.

KAINGANG, L. F. J. Povos indígenas e o direito a educação no Brasil. In: BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

LUCKMANN, S. Educação escolar indígena na Terra Indígena Guarita: um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLEB e COMIM. 2011. Dissertação (Mestrado), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2011.

80

MEC. Referencial curricular nacional para a escola indígena. Brasília, 2005.

MELLO, M. Reconstrução curricular via pesquisa da realidade e tema gerador. Cadernos Pedagógicos, Porto Alegre, 2002.

NASCIMENTO, M. G. Vi ki kãmén sinvi han: as artes da palavra no kaingang. In: BERGAMASCHI, M. A.; VENZON, R. A. (org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.

NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1992.

OLIVEIRA, S. M. Formação de professores indígenas bilíngues: a experiência kaingang. 1999. Dissertação (Mestrado em Educação), Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.

PERRENOUD, P. Dez novas competências para ensinar. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

SALES, S. C. K. O processo de educação nas famílias kanhgág: contribuições à educação escolar indígena. 2010. Trabalho de Conclusão (Especialização), Escola Superior de Teologia, Programa de Pós-Graduação, São Leopoldo, 2010.

SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Trad. Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.

SILVA, M. F.; AZEVEDO, M. M. Pensando as escolas dos povos indígenas no Brasil: o movimento dos professores indígenas no Amazonas, Roraima e Acre. In: SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B. A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995.

SILVA, S. B. Sociocosmologias indígenas no espaço metropolitano de Porto Alegre. In: GEHLEN, I.; SILVA, M. B.; SANTOS, S. R. (orgs.). Diversidade e proteção social: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre. Porto Alegre: Century, 2008. p. 93-109.

SMED. Ciclos de formação: proposta político pedagógica da escola cidadã. Cadernos Pedagógicos, Porto Alegre, 1999.

STRECK, D.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

81

ANEXOS

82

ANEXO A – Roteiro de Entrevista

Pesquisa: O protagonismo indígena Kaingang no Estado do Rio Grande do Sul no espaço da escola da aldeia Pesquisadora responsável: Fátima Trindade do Amaral, mestranda PPG em Educação nas Ciências UNIJUÍ – telefone (55) 9921-5145 Orientadora: Elza Maria Fonseca Falkembach – professora PPG Educação nas Ciências UNIJUÍ

Roteiro de Entrevista

Questões aos professores bilíngues:

1. Conte um pouco sobre você. Idade, onde mora? Onde estudou? Qual é sua formação? Há quanto tempo está envolvido com a educação escolar indígena? Onde está trabalhando, é efetivo ou contratado?

2. Descreva como foi sua primeira experiência em sala de aula como professor bilíngue.

3. Quais as maiores dificuldades encontradas? Conseguiu superá-las? Como?

4. Quais os maiores aprendizados que esta experiência possibilitou para você? Relate alguns.

5. Além de ser professor exerce algum cargo de liderança na comunidade ou realiza atividades pela comunidade fora do espaço da escola? Quais?

6. Além de ser professor, exerce alguma outra função na escola? Qual?

7. Como é a relação no espaço escolar entre professores indígenas e não indígenas, direção, pedagógico, Coordenadoria e Comunidade? Como você percebe este processo? 83

8. O que achas que deve ser aprimorado ou mudado no contexto da sua escola? Da escola e comunidade? De outras instâncias que poderiam atuar junto à escola?

9. Na escola em que trabalha estudam só alunos indígenas? Como você percebe o relacionamento entre os alunos, entre alunos e professores e entre professores?

10. Como você percebe o aprendizado dos alunos? Quais são as maiores dificuldades de aprendizagem que você percebe nos alunos? Você conseguiu detectar quais as causas destas dificuldades?

11. Em relação ao material didático que a escola dispõe são adequados à realidade, específicos da cultura kaingang ou não? Qual a sua opinião e sugestão em relação ao material didático específico?

12. Como você utiliza o material didático em suas aulas (livros, textos, etc.), poderias contar como você planeja suas aulas? Você adota algum livro didático ou não? Por quê?

13. Você consegue perceber em suas aulas do que os alunos mais gostam e o que eles menos gostam? Poderias descrever como chegou a perceber este processo? Na sua opinião porque isto acontece?

14. Em sua opinião houve avanços nas escolas das aldeias kaingang, considerando seu conhecimento de como eram nossas escolas na época do SPI e FUNAI e as da atualidade? Justifique sua resposta.

15. Quais fatores você acha que contribuíram para que acontecessem mudanças no contexto da escola indígena? O que você tem a dizer sobre o protagonismo indígena dentro das escolas indígenas como professores? Seria este fato um fator de mudança? Por quê?

16. Como você percebe nossas escolas na atualidade? Poderias descrever e justificar sua resposta. 84

ANEXO B – Convite