UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

MARCIO ALEXANDRE PULGA

A TÉCNICA DO ALTERSTIL: Uma Investigação dos Materiais e da Maneira Rústica de Pintura a Óleo de Van Rijn

The Alterstil Technique: An Investigation of the Materials and the Rough Manner in Rembrandt Van Rijn´s Oil Paintings

CAMPINAS

2019

MARCIO ALEXANDRE PULGA

A Técnica do Alterstil: Uma Investigação dos Materiais e da Maneira Rústica de Pintura a Óleo de Rembrandt Van Rijn

The Alterstil Technique: An Investigation of the Materials and the Rough Manner in Rembrandt Van Rijn´s Oil Paintings

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Artes Visuais

Thesis presented to the Institute of the University of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor in Fine Arts

ORIENTADOR: PROF. DR.º HAROLDO GALLO

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO MARCIO ALEXANDRE PULGA, E ORIENTADO PELO PROF. DR. HAROLDO GALLO.

CAMPINAS 2019

COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

MARCIO ALEXANDRE PULGA

ORIENTADOR: HAROLDO GALLO

MEMBROS: 1. PROF. DR. SÉRGIO NICULITCHEFF 2. PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA 3. PROFA. DRA. ROSA COHEN 4. PROFA. DRA. FERNANDA CARLOS BORGES

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 25.06.2019

Ao maior Mestre de todos os tempos: Rembrandt Van Rijn.

AGRADECIMENTOS

Para minha mãe Maria, meus avós Dirce e Lorenzo, minha esposa Luciana e meus filhos Julia, Vito e Larissa.

Ao professor Dr. Haroldo Gallo.

A todos meus alunos, por me ensinarem todos os dias.

RESUMO Investiga-se o estilo de pintura a óleo denominado alterstil, usado por Rembrandt van Rijn e seu círculo, em quinze pinturas do período tardio observadas em quatro museus holandeses, a partir da perspectiva da tecnologia dos materiais e das técnicas de pintura. Primeiramente, organizou-se textos históricos que definem a terminologia e as características formais do estilo. Definiu-se que o estilo também conhecido como maneira rústica (alterstil), é associado com a idade avançada e maturidade artística, além das suas características de natureza estilística transgressora. Analisou-se em seguida os possíveis conceitos usados pelo artista como pensamento técnico e processual, sobretudo aqueles extraídos do manual Inleyding, acerca da teoria de cores correlatas e conflitantes, cores quebradas, a valorização do disegno acima do colorito e os conceitos holandeses de houding e kenlijkheyt. Através da análise das investigações físico-químicas de suas pinturas, foi possível definir os materiais do artista: tipos de suporte, base, o uso quase exclusivo do óleo de linhaça como veículo, o modo de organização de sua paleta simples, as características de seus pigmentos, o uso do óleo com litargírio como medium e as adições de carbonato de cálcio, albumina e quartzo. Quanto ao processo de pintura, investigou-se a estratificação de camadas dessas quinze obras, revelando os principais estágios técnicos usados pelo artista: primuersel, invenção (stelsel), camada morta (doodverf) e o accenten (opschilderen). Durante o desenvolvimento desse estudo, as quinze pinturas foram investigadas in loco e o material extraído dessas observações comparado as análises físico-químicas dessas obras. Este estudo sugere três hipóteses primárias: a técnica desenvolveu-se de modo gradual, foi identificado o uso do contraste de complementares no campo pictórico e o uso de cores complementares em misturas para neutralização. As hipóteses secundárias são três: a sugestão da terminologia maneira rústica como sendo mais adequada ao estilo na língua portuguesa, a identificação de inúmeros padrões processuais e o uso de modelagem da tinta sobre camada semi-seca.

Palavras-chave: Rembrandt Harmenszoon van Rijn, Pintura, Arte Barroca, Pintura - Técnica, Materiais de Pintura.

ABSTRACT This study investigates the painting style called alterstil, used by Rembrandt van Rijn and his circle, from the point of view of the technology of art materials and painting techniques on fifteen paintings. First, historical texts that defines the terminology and the characteristics of the style were organized. The style was defined as the rough manner (alterstil), related to advanced age and artistic maturity, also by his transgressive stylistic nature. After that, possible concepts used by the artist as technical thinking were analyzed on the treatise called Inleyding, about color theory, broken color, the valorization of disegno over colorito and the dutch concepts of houding and kenlijkheyt. With the help of the chemical analysis, it was possible to define his materials: supports, grounds, the almost exclusive use of linseed oil, the methods of organization of his simple palette, his pigments characteristics, the use of litharge on his medium, the addition of chalk, albumin and quartz. On the painting process was possible to define the stratification of layers of his works, technical stages used by the artist called primuersel, invention (stelsel), dead layer (doodverwen) and accenten (opschilderen). During the development of this study, the fifteen paintings analyzed here were examined in loco, the analytical material extracted from these observations was compared with the material collected on the bibliography. As a conclusion, this study suggests as the first hypothesis that this style has developed in a gradual way, the use of the concept of complementary contrasts on his compositions, the use of complementary colors on mixtures as a mean to neutralize colors and the identification of processual patterns. As secondary hypothesis, this study suggests the term maneira rústica (rough manner) as a more adequate Portuguese terminology for this style and also the possibility that the painter used to model the form on top of semi-dried layers of oil paint.

Key words: Rembrandt Harmenszoon van Rijn, Painting, Baroque Art, Painting Technique, Art Materials.

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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...... 12

1.1. OBJETO DE ESTUDO ...... 12 1.2. JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO ...... 13 1.3. OBJETIVOS ...... 16 1.3.1. Gerais ...... 16 1.3.2. Específicos ...... 16 1.4. HIPÓTESES ...... 17 1.4.1. Primárias ...... 17 1.4.2. Secundárias ...... 17 1.5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...... 17 1.5.1. Gerais ...... 17 1.5.2. Específicos ...... 18 1.6. DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA ...... 18 2. BREVE BIOGRAFIA E CONTEXTO DA HOLANDA ...... 22

2.1. ANOS DE FORMAÇÃO ...... 22 2.2. ATELIÊ EM LEIDEN E JAN LIEVENS ...... 23 2.3. ...... 24 2.4. AUGE E CASAMENTO COM SASKIA ...... 28 2.5. MORTE DE SASKIA ...... 29 2.6. HENDRICKJE STOFFELS ...... 30 2.1. ÚLTIMOS ANOS ...... 31 3. DEFININDO ALTERSTIL, LATE WORK E ROUGH MANNER ...... 34

3.1. ALTERSTIL ...... 34 3.1.1. Associações com o Declínio da Qualidade: Roger De Piles ...... 37 3.1.2. Associações com a Perda da Visão: Joachim von Sandrart ...... 40 3.1.3. Associações com a Maturidade: Giorgio Vasari e Karel Van Mander ...... 41 3.2. ESTILO TARDIO (LATE WORK) E MANEIRA RÚSTICA (ROUGH MANNER) ...... 44 3.3. CARACTERÍSTICAS ...... 45 3.3.1. Visuais ...... 45 3.3.2. Conceituais ...... 50 3.3.2.1. Distanciamento ou Aproximação do Naturalismo: Ruptura e Transgressão ...... 50 3.3.2.2. Abreviação e o Inacabado ...... 54 3.3.2.3. Temática: Ethos...... 56 4. MATERIAIS ...... 59

4.1. SUPORTE ...... 60 4.2. BASE (GROUND) ...... 61 4.3. PALETA ...... 62 4.3.1. Organização ...... 64 4.4. TINTA ...... 68 4.4.1. Veículos ...... 69 4.4.1.1. Solventes ...... 69 4.4.1.2. Óleo Vegetal ...... 70 4.4.1.2.1. Definição de Óleo Prensado a Frio...... 70 4.4.1.2.2. Definição de Óleo Espessado e Óleo de Sol...... 71 4.4.1.2.3. Óleos usados por Rembrandt e seu Círculo ...... 73 4.4.1.2.4. Modificação do Óleo com Litargírio: Empastes ...... 78 4.4.1.3. Adições ...... 81 4.4.1.3.1. Resina...... 82

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4.4.1.3.2. Proteína ...... 84 4.4.1.3.3. Giz (Carbonato de Cálcio) ...... 87 4.4.1.3.4. Goma de Cerejeira ...... 91 4.5. CORES (PIGMENTOS) ...... 92 4.5.1. Branco de Chumbo ...... 94 4.5.2. Amarelo de Chumbo e Estanho (Tipo I) ...... 98 4.5.3. Vermilion ...... 102 4.5.4. Pigmentos Terrosos ...... 106 4.5.4.1. Ocres...... 107 4.5.4.2. Sienas ...... 109 4.5.4.3. Sombras ...... 110 4.5.4.4. Terra de Colônia ...... 113 4.5.5. Lacas ...... 118 4.5.5.1. Carmim (Madder Lake) ...... 118 4.5.5.2. Buckthorn (Stil de Grain) ...... 122 4.5.6. Preto de Osso (Bone Black) ...... 124 4.5.7. Azuis ...... 126 4.5.7.1. Vivianite ...... 126 4.5.7.2. Esmalte (Smalt) ...... 126 4.5.7.3. Azurite ...... 130 4.6. PINCÉIS E ESPÁTULAS ...... 132 5. PROCESSO DE PINTURA ...... 134

5.1. PROCESSO CONCEITUAL DE PINTURA ...... 135 5.1.1. Visibilidade da Pincelada, “Sprezzatura” e “Pittura di Macchia”: Tiziano ...... 135 5.1.2. Pensamento Cromático Geral ...... 142 5.1.2.1. A Cor no Séc. XVII ...... 142 5.1.2.2. Karel Van Mander, Schilder-boeck e o Grondt ...... 144 5.1.2.3. Junius e Angel ...... 147 5.1.2.4. Samuel van Hoogstraten e o lnleyding ...... 148 5.1.2.4.1. Teoria de Cor em Inleyding ...... 152 5.1.2.4.2. Espelho da Realidade: Mimeses ...... 153 5.1.2.4.3. Disegno vs. Colorito ...... 154 5.1.2.4.4. Ornatus e Brevitas ...... 155 5.1.2.4.5. Correlatas e Conflitantes ...... 157 5.1.2.4.6. Lumen (chiaroscuro) e Cor-quebrada...... 159 5.1.2.4.7. “Houding” (Espacialidade) ...... 164 5.1.2.4.8. Sugestão Tátil e Profundidade: “Kenlijkheyt” (Perceptibilidade) ...... 167 5.1.2.4.9. Conclusão Pensamento Cromático ...... 171 5.2. PROCESSO FÍSICO DE PINTURA ...... 173 5.2.1. Doerner e o Mito das Velaturas ...... 173 5.2.2. Estágios da Técnica de Pintura Tardia de Rembrandt van Rijn ...... 181 5.2.2.1. Base e Primuersel ...... 182 5.2.2.2. Doodverf (Camada Morta) ...... 191 5.2.2.2.1. Stelsel (Esquema) ...... 192 5.2.2.2.2. Accenten ...... 197 5.2.2.2.3. Cor Local ...... 202 5.2.2.2.4. Maniera Lavata (Velaturas) ...... 207 5.2.2.2.5. Camada Morta “Direta” em Cores ...... 209 5.2.2.3. Opverken (Camadas de Cima) ...... 209 5.2.2.3.1. Fundos ...... 210 5.2.2.3.2. Nat op Nat (Alla Prima) e Molhado sobre Seco ...... 214 5.2.2.3.3. Tom de Pele ...... 217 5.2.2.4. Resumo dos Estágios ...... 220 6. ANÁLISES DAS OBRAS NOS MUSEUS HOLANDESES ...... 224

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6.1. PROBLEMÁTICAS DE ATRIBUIÇÃO ...... 226 6.2. RIJSKMUSEUM ...... 230 6.2.1. Titus van Rijn como São Francisco (1660) ...... 231 6.2.2. Análises Físico-químicas ...... 235 6.2.3. Autorretrato como o Apóstolo Paulo (1661) ...... 237 6.2.4. Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (1662) ...... 244 6.2.5. Casal como Isaac e Rebecca (ou A Noiva Judia; 1665) ...... 251 6.3. MAURITSHUIS ...... 263 6.3.1. Homero (1663) ...... 264 6.3.2. Saul e David (1652) ...... 270 6.3.3. Dois Homens Negros (ou Dois Mouros; 1661) ...... 276 6.3.4. Retrato de um Idoso (1667) ...... 280 6.3.5. Autorretrato (1669) ...... 284 6.3.6. Homem Sorrindo (1629) ...... 293 6.4. BOIJMANS VAN BEUNINGEN ...... 304 6.4.1. Titus numa Mesa (1655) ...... 305 6.4.2. Tobit e Anna (1659) ...... 309 6.4.3. Concordia do Estado (1637) ...... 313 6.4.4. Homem com Boina Vermelha (1660) ...... 319 6.5. HERMITAGE AMSTERDAM ...... 325 6.5.1. Lição de Anatomia do Dr. Deijman (1656) ...... 326 7. CONCLUSÃO ...... 329

7.1. HIPÓTESES PRIMÁRIAS ...... 329 7.1.1. Desenvolvimento Gradual da Maneira Rústica ...... 329 7.1.2. Uso do Contraste Verde-Vermelho (e Castanhos) no Campo Pictórico ...... 339 7.1.3. Uso de Mistura de Complementares para Neutralização ...... 353 7.2. HIPÓTESES SECUNDÁRIAS ...... 363 7.2.1. Terminologia Adequada ao Estilo: Maneira Rústica ...... 363 7.2.2. Padrões Processuais ...... 365 7.2.2.1. Paleta (Pigmentos) ...... 367 7.2.2.2. Khenlijkheit (perceptibilidade) e houding (espacialidade) ...... 371 7.2.2.3. Base e Primuersel ...... 371 7.2.2.4. Stelsel (Blocagem Inicial) ...... 372 7.2.2.5. Doodverf (Camada Morta ou Pré-pintura)...... 372 7.2.2.6. Quantidade de Camadas ...... 373 7.2.2.7. Resumo Pontual de Padrões Processuais ...... 374 7.2.3. Aplicações sobre Tinta Semi-seca ...... 377 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 380

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Objeto de Estudo As características conceituais e sobretudo formais da técnica de pintura a óleo de Rembrandt van Rijn e seu círculo1, usada em seu período tardio2, também chamada Alterstill3, observada nas obras dos quatro mais importantes museus holandeses: o Rijksmuseum4, Mauritshuis5, Hermitage Amsterdam e Boijmans6, analisadas da perspectiva do fazer pictórico7 e da tecnologia dos materiais artísticos. Portanto, pretende-se compreender de modo geral a técnica de pintura empregada nas obras a serem analisadas, os procedimentos técnicos e conceituais tais como a teoria de cor usada no pensamento cromático, o número e ordem de etapas usadas no processo, seus materiais, os instrumentos de aplicação de tinta e tudo aquilo que de alguma forma contribui para a compreensão da execução técnica dessas obras. Este estudo não pretende discutir a experiência estética do barroco holandês ou do alterstil de Rembrandt da perspectiva da filosofia, do conceitualismo, da mercadologia ou da percepção humana. Também não oferece uma análise ou nova leitura da biografia do artista ou do contexto histórico do barroco holandês, embora esses assuntos possam ser abordados brevemente como um pano de fundo e contextualização.

1 A razão da inclusão do termo “e seu círculo” e não somente “Rembrandt”, veio da dificuldade de se atribuir com absoluta certeza uma autoria a certas pinturas que serão analisadas neste estudo e que já foram hora atribuídas ao mestre e hora atribuídas ao círculo do artista. Uma grande parcela de pinturas são atribuídas ao “ateliê” de Rembrandt, a “imitadores” de Rembrandt, a “pupilos”, mas no entanto, a reatribuição é algo comum, deixando dúvidas quanto a verdadeira autoria. Nesse caso, é sempre mais seguro utilizar o termo “Rembrandt e seu Círculo”, “Ateliê de Rembrandt” ou ainda “Escola de Rembrandt”, como comentado no artigo de Van de Wetering organizado por Bruyn (BRUYN et al., 1986, p. 45). Essa problemática é discutida no cápitulo 5.1 “Problemáticas de Atribuição”. 2 Os especialistas identificam que o período no qual Rembrandt começa a fazer uso de um estilo denominado como seu período tardio a partir do ano de 1651 (BIKKER; WEBER, 2015, p. 13). 3 Alterstil.: Embora a tradução literal do alemão seja “estilo da velhice” recentemente os especialistas de língua inglesa tem usado o termo rough manner (maneira bruta) e em português, o termo é traduzido como “maneira madura”. Este estudo, mais adiante, sugere uma tradução mais adequada para o português. 4 Amsterdam, Holanda. 5 Haia (Den Haag; Hague), Holanda. 6 Rotterdam, Holanda. 7 Tudo aquilo que estuda o modo de execução técnica ou processual de uma obra de arte.

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1.2. Justificativa e Contextualização O presente estudo compreende um resgate e conservação da memória dos materiais de pintura e dos procedimentos técnicos. Define e organiza a anatomia de pinturas executadas no período tardio, ou alterstil, de um dos mais influentes pintores de todos os tempos, uma arqueologia processual útil para a área da conservação, assim como também para os processos criativos nas artes visuais. A investigação de um modo de pintura é importante para a compreensão de uma técnica que ainda oferece incógnitas do ponto de vista do fazer pictórico e do uso dos materiais de pintura. Embora haja considerável material analítico sobre as técnicas empregadas pelo artista, há certamente diversas lacunas a serem preenchidas. Pintores de todo o mundo ainda suscitam questionamentos sobre como exatamente Rembrandt van Rijn executava suas obras: como conseguia obter pinturas tão expressivas e envoltas numa aura tão idiossincrática? Como eram feitas essas pinceladas e marcas de tinta tão diferentes de outros pintores? Como eram compostas as cores de sua paleta? Qual o veículo e o medium8 usado por ele? Embora seja pertinente estudar os trabalhos de artistas partindo de um viés conceitual é necessário lembrar que acima de tudo, Rembrandt se entregara primeiramente à ritualidade da prática. Isto é, parte do resultado dessas pinturas concretiza-se através da articulação mental e física de uma técnica ou modo de operar: os tipos de materiais escolhidos, a maneira como esses materiais são aplicados e manejados, a ordem na qual cada etapa é executada, enfim, cada escolha e pensamento, cada ato e manipulação usada pelo artista na construção de uma maneira específica de pintar. Walter Benjamim9 definiu que toda obra de arte possui uma aura10, problematizando a perda dessa aura em seu tempo, julgando-a como fundamental para a experiência estética. Benjamin vê essa perda como uma consequência das diversas novas formas de arte que, naquele momento, passavam a recorrer amplamente a meios e novas tecnologias de reprodutibilidade, principalmente a fotografia, deixando suas características de objeto único,

8 Medium.: Veículo ou concatenação de várias substâncias que modificam o comportamento da tinta, algo que confere uma outra função a tinta, como fluidez, menor viscosidade, maior adesão, secagem mais lenta, etc. 9 Walter Benjamim (1892; Berlin - 1940; Espanha).: filósofo judeu, crítico cultural e ensaísta. Pensador eclético, combinava elementos do idealismo alemão, romantismo, marxismo e do misticismo judeu. Benjamim gerou contribuições duradouras à teoria estética, ao criticismo literário e ao materialismo histórico. Era associado a escola de Frankfurt. 10 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1975.

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específico e irreprodutível, um fenômeno que tem origens numa peculiaridade social que abraça os movimentos de massa. O texto de Benjamim foi importante para discutir a estética no momento da popularização da fotografia não só como meio de reproduzir obras mas também como uma nova ferramenta de criação artística, um texto que ganha novamente importância, nessa sociedade que evoluiu o meio de reprodutibilidade com ferramentas onipresentes no dia a dia, não importando classe social, raça, idade e nacionalidade: o telefone celular, leve, portátil, de preço acessível, com dispositivos fotográficos de alta resolução e conectado às redes sociais tornou-se parte incondicional de nossa rotina. Hoje, o ato de captar imagens através de um aparelho de reprodução imagética tornou-se um ato absolutamente corriqueiro, praticamente diário. Esse meio tecnológico também é usado por artistas que criam obras de arte a partir de fotografias digitais. Até mesmo os artistas que ainda pintam recorrem, em sua grande maioria, às fotografias digitais como referências a serem transformadas em pinturas. Houve uma banalização ainda mais potente do meio de captação, do momento em que Benjamin cria sua teoria até o momento que vivemos hoje, e é exatamente por conta dessa banalização do reprodutível que o estudo de uma técnica de pintura tão peculiar e misteriosa, meio que produz algo único, compreende um oásis criativo, se analisado do ponto de vista de um mundo onde o reproduzível faz parte intrínseca do dia a dia. Se o irreprodutível apresenta essa aura, que lhe confere o status e a presença de algo único, exclusivo e insubstituível e se toda pintura possui essa aura, o que dizer então sobre a aura das pinturas de Rembrandt? A técnica do artista fascina não somente o grande público, críticos e galeristas, mas principalmente os pintores, aqueles que, a priori, mais entendem sobre esse meio. Há algo de absolutamente misterioso no modo orgânico e quase acidental com que o artista aplica despojadamente o volume de tinta, uma simplicidade cativante no modo como organiza as cores conseguindo criar diversidade e unidade num mesmo campo, a sutileza inconfundível no julgamento e relação de lumen11 e outras características que cativam o olhar e despertam o desejo de desvendar o modus operandis das técnicas mais refinadas: não há dúvida que a obra de Rembrandt é uma obra para pintores, ela é a exaltação do pictórico em sua última consequência, ela define o melhor exemplo de como esse meio deve ser manipulado e articulado, mentalmente e fisicamente. Sendo assim, não há aura de pintura como a aura de um Rembrandt. Pode-se argumentar que toda pintura possui uma aura e

11 Lumen.: como será visto mais adiante, é o termo usado por Samuel Hoogstraten para definir chiaro-scuro.

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portanto, todo trabalho é único. Mas a pintura de Rembrandt é construída de modo decididamente diferente a de outros pintores, sobretudo as pinturas do período tardio. Ao contrário de Vermeer, Caravaggio, Leonardo, Raphaello e muitos outros Mestres, Rembrandt não somente faz notável uso de seus materiais e técnica mas coloca em evidência as características da linguagem com que trabalha. Há uma intenção de tornar aparente tudo aquilo que outros artistas escondem: ao invés de esconder ou disfarçar suas pinceladas, escancara-as, revelando orgulhosamente a marca do pincel e do gesto. A partir de uma visão moderna, o modo como o artista constrói suas obras apresenta sinais do que poderia ser chamado de metalinguagem. Ao invés das aplicações lisas e baixas, aplica verdadeiras placas de tinta, que revela, mesmo de longe, a condição de pintura. Não seria nenhuma ousadia definir que a aura de um Rembrandt é categoricamente a aura pictórica, um exemplo de aura para quando tratamos sobre pintura. Nas palavras de Eduard Kollof12:

Especialistas meticulosos e amadores que estudaram tudo através de lentes de aumento ficam desconsertados por sua maneira de pintar e desolados: incapazes de descobrir como essas pinturas foram feitas, não podem fazer melhor do que declarar que a fatura hermeticamente selada de suas pinturas é feitiçaria, e que até o próprio pintor não tinha um claro entendimento de como era feito (VAN DE WETERING, 1997, p. 156).

Nas novas academias13 de pintura, aos moldes dos antigos ateliês europeus, essa estética ainda é pertinente e deveras atual: a rica textura e o sintetismo de formas presentes nesse tipo de execução são considerados um modelo a ser seguido para a criação dos mais atuais estilos de pintura de cunho figurativo. É impossível não associar o modo direto de pintar, chamado hoje de método alla prima14 (GOTTSEGEN, 2006, p. 211) com o modo que Rembrandt desenvolveu a perfeição em seu último período. Essa influência ainda é observada em galerias e até nas novas gerações de pintores que divulgam seu trabalho em redes sociais, jovens artistas influenciados pela maneira rústica de Rembrandt ao desenvolver um novo estilo contemporâneo. Bebe-se na dramaticidade do filho mais famoso de Leiden15 para criar

12 Jornalista alemão da virada do século. 13 Alguns exemplos são: Florence Academy of Art, Angel Academy of Art, Studio Incamminati, Charles Cecil Studios, ARA (Academy of Realist Art), New Masters Academy, Los Angeles Academy of Art, Grand Central Atelier, Saint Petersburg Imperial Academy of Art, entre muitos outros. 14 Alla Prima.: Método direto de pintura, modo de se pintar numa só sessão, “de primeira” ou como se costuma dizer nos ateliês, “numa sentada só”. 15 Cidade ao sul da Holanda onde nascera Rembrandt.

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algo novo: a técnica do velho mestre insiste em alimentar a contemporaneidade, uma reação á saturação da hiper-reprodutibilidade, ela move os jovens em direção à aura. É por isso que o estudo do alterstil é pertinente como conteúdo analítico para a pintura contemporânea. O estilo é um exemplo de como trabalhar e pensar a linguagem de um meio, enaltecendo suas características como linguagem artística, a técnica manipulada em favor da retórica. É especialmente pertinente a contemporaneidade pois a forma de execução das pinturas feitas nesse estilo, em função de uma necessidade estética ou conceitual, mostra de modo claro e evidente a importância da intimidade do artista com seus materiais e com o modo pelo qual se manipula e controla-se a tinta, a alma do próprio meio. Observar o inacreditável controle reológico16 de Rembrandt revela a qualquer pintor sua verdadeira missão: enaltecer as características que definem aquilo que chamamos pictórico, colocar em evidência aquilo que faz da pintura, uma pintura. Esta pesquisa torna-se útil tanto para os profissionais da área da conservação e restauração quanto para artistas visuais que precisam compreender melhor o modo de trabalho de Rembrandt e de sua escola, seja por conta da necessidade de simular o estilo em restaurações, no ensino de técnicas históricas ou como um caminho para a descoberta de novos processos de pintura contemporâneos.

1.3. Objetivos 1.3.1. Gerais Compreender os procedimentos técnicos usados nessas obras observadas in loco, isto é, como Rembrandt executava suas pinturas em seu período tardio, a técnica usada pelo artista.

1.3.2. Específicos • Avaliar quinze pinturas do período tardio atribuídas a Rembrandt e seu círculo exibidas nos museus mais importantes da Holanda, sendo o Rijksmuseum, Mauritshuis, Boijmans e Hermitage Amsterdam. • Definir quais os materiais usados pelo artista: suporte, base, veículos, pigmentos, cargas inertes etc. • Definir quais as etapas ou estágios técnicos usados na execução dessas pinturas.

16 Reologia.: ramificação da física que estuda a deformação e fluidez da matéria, especialmente os líquidos não- Newtonianos e a plasticidade dos sólidos.

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• Definir quais os possíveis conceitos e teorias por trás do pensamento cromático.

1.4. Hipóteses 1.4.1. Primárias ✓ O desenvolvimento do estilo aconteceu de forma gradual, e não a partir de 1650. ✓ Rembrandt sabia o que eram cores complementares e fazia uso do contraste de complementares, principalmente entre verde-vermelho (juntamente com castanhos), para enaltecer a dramaticidade visual no campo pictórico. ✓ Rembrandt usava a propriedade neutralizadora de cores complementares para obter cores de baixo croma em suas misturas17, principalmente da dupla de complementares verde e vermelho como artifício para criar sutilidade de contrastes cromáticas obtendo tons de pele mais realistas.

1.4.2. Secundárias ✓ Sugere-se uma terminologia mais adequada, na língua portuguesa, para o termo alterstil. ✓ Refuta-se a opinião de Bomford: há mais padrões do que diferenças processuais na técnica empregada no período tardio. ✓ O artista possivelmente trabalhava por cima de camadas de tinta semi-secas para criar efeitos que não são alcançáveis com a técnica de molhado sobre molhado.

1.5. Procedimentos Metodológicos 1.5.1. Gerais O formato deste estudo compreende uma tese de compilação18 que oferece um panorama geral sobre as descobertas científicas mais importantes das pinturas do período tardio do artista, além de oferecer algumas hipóteses relacionadas aos procedimentos técnicos usados nessas pinturas. Pretende-se compreender o conteúdo material e processual dessas pinturas

17 Complementares em misturas.: Verde com vermelho, azuis com laranjas, violetas com amarelos, mas provavelmente um uso maior do primeiro: verde com vermelho. É importante lembrar que o artista não fazia muito uso do azul, assim como do violeta, possuindo somente um azul e um violeta de baixa intensidade (Smalt e Terra de Colônia), assim como os amarelos (Amarelo Ocre e Amarelo de Chumbo e Estanho). 18 “[...] numa tese de compilação, o estudante demonstra haver compulsado criticamente a maior parte da literatura existente, oferecendo assim uma visão panorâmica inteligente”. (ECO, 2004, p. 2)

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através da organização dos resultados de testes químico-físicos publicados por instituições que conservam essas obras, como também pela observação in loco das mesmas nos museus holandeses supracitados. O cruzamento dessas informações será organizado e analisado neste estudo.

1.5.2. Específicos • Análise de material bibliográfico com a definição conceitual e semântica de alterstil, com intuito de oferecer uma visão abrangente das definições e características desse estilo. • Analisar os resultados de análises físico-químicas que definam os materiais usados nessas pinturas assim como a ordem e a estrutura de camadas das pinturas em questão19. • Análise in loco das obras tardias de Rembrandt encontradas nos quatro principais museus holandeses: Rijskmuseum, Mauristhuis, Hermitage Amsterdam e Boijmans. • Certificar, in loco, que os pigmentos detectados nos resultados físico-químicos correspondem à cor visível das obras originais, assim como outras características formais. Cruzar as informações dos resultados físico-químicos e do que se observou nas obras dos museus holandeses.

1.6. Discussão Bibliográfica A obra Art in The Making: Rembrandt, organizada por David Bomford, serviu como uma fonte inicial de pesquisa que organiza as fontes de estudo de Rembrandt, mostrando um panorama geral compreensivo e resumido (BOMFORD et al., 2006). A obra compreende um pertinente ponto de partida, com artigos que apresentam um resumo das importantes pesquisas feitas pela National Gallery nas mais diversas categorias: como sobre o treino formal de Rembrandt e suas práticas de ateliê por Jo Kirby, seus suportes e bases por Ashok Roy, camadas e método de trabalho por David Bomford, paleta e pigmentos por Ashok Roy e Jo Kirby e finalmente, a pesquisa sobre veículos de Raymond Whyte e Catherine Higgity. A

19 Este estudo desconsidera os materiais e processos que não influenciam diretamente na estética da obra, como por exemplo, o modo de construção do chassi que suporta a tela.

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obra define uma primeira análise sobre os materiais do artista, sua paleta, tinta e medium, assim como seu suposto método de trabalho. A compilação de artigos organizada por Jonathan Bikker (BIKKER; WEBER, 2015) também publicada pela National Gallery, feita exclusivamente para a famosa exposição Rembrandt: The Late Works, serviu como um guia visual e contextual das obras tardias de Rembrandt, além de um plano geral mais específico ao período tardio. Quase todos os artigos são escritos por Jonathan Bikker, às vezes em parceria com Gregor Weber e outros pesquisadores. Um dos artigos de Bikker definem o que se compreende hoje como alterstil e também revelam os primeiros textos que originaram o termo, como as importantes obras de Karel Van Mander, Joachim von Sandrart, Samuel van Hoogstraten e Roger De Piles, discutidos detalhadamente neste estudo. Além dos artigos de Bikker, as obras de Nicola Suthor (SUTHOR, 2018) e especialmente a de Svetlana Alpers (ALPERS, 2010), serviram como material analítico para a discussão semântica sobre o alterstil e a maneira rústica, assim como para o estudo das características visuais da técnica. Portanto, ambos tornaram possível balizar uma discussão terminológica e estética do estilo. O imenso e brilhante corpo de pesquisa coletiva realizada pelo Rembrandt Research Project20 (RRP), gerenciado pelo chairman Ernst Van de Wetering, e publicado nos cinco volumes da coleção A Corpus of Rembrandt Paintings (VAN DE WETERING et al., 1982) forneceram um inigualável respaldo técnico. Essa é a mais extensa pesquisa que guiou este estudo na definição dos materiais e das técnicas usadas pelo artista através da apresentação de evidências científicas: resultados das análises físico-químicas dissecadas em obras de Rembrandt, como radiografias, espectrometrias, imagens em raio ultravioleta, entre muitos outros testes que confirmam cientificamente a presença de determinados materiais e procedimentos técnicos usados pelo artista. Além dos indispensáveis volumes de A Corpus, fez-se o uso do arquivo complementar online, no site Rembrandt Data Base. Entre os artigos

20 Rembrandt Research Project (RRP).: É uma iniciativa da Nederlandse Organisatie voor Wetenschappelijk Onderzoek (NWO), ou em português, “Organização dos Países Baixos pela Pesquisa Científica”. O propósito era organizar e categorizar a pesquisa sobre Rembrandt, com o objetivo de descobrir novos fatos sobre o pintor e seu atelier. O projeto começou em 1968 e tornou-se a autoridade sobre o assunto, tendo palavra final nas questões de autencidade de obras do pintor ou de seu ateliê. No começo de 2011, o conselho do RRP votou pelo término do projeto mesmo que até então apenas um quarto da obra do artista havia sido investigada. Uma das razões do fim da pesquisa foi a falta de acadêmicos disponíveis para assumir as responsabilidades do presidente (chair) do RRP e a falta de fundos. No entanto, o fundo da Mellon Foundation e do Mauristhuis lançou uma iniciativa piloto chamada de Rembrandt Database, um suplemento do RRP.

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mais notáveis publicados pelo RRP, estão Kirby e White em 1994 (WHITE; KIRBY, 1994), Kirby e White novamente em 1997 (KIRBY; WHITE, 1996), Billinge (BILLINGE et al., 1997), Keune e Boon (KEUNE; BOON, 2005), Groen (GROEN, 1997) e Carlyle (CARLYLE, 1995). As obras de Ernst Van de Wetering Rembrandt: The Painter at Work (VAN DE WETERING, 1997) e Rembrandt: The Painter Thinking (VAN DE WETERING, 2016) apresentam os resultados de quase quarenta anos de pesquisas científicas coletivas, em forma de ensaios eloquentes embasados pelos resultados de incontáveis análises científicas. Sem essas publicações, essa pesquisa não seria possível, na verdade, seria correto afirmar que elas moveram o ímpeto e a vontade de desenvolver este estudo. As obras de Plínio (PLINÍO, 1855), Theophastrus (THEOPHRASTUS, 1746), De Mayerne (FELS, 2001) e Strasburg (BORRADAILE; BORRADAILE, 1966) são os textos históricos mais antigos usados para este estudo. Além desses, um texto em particular recebeu maior importância e atenção, a célebre obra holandesa do período barroco Inleyding, de Samuel van Hoogstraten. A laboriosa e extensa pesquisa de Thijs Weststeijn (WESTSTEIJN, 2008) sobre o fascinante tratado de Samuel von Hoogstraten tornou possível o desenvolvimento de um importante capítulo dessa pesquisa, fornecendo uma sólida base de discussão que viria a ser uma das hipóteses principais deste estudo: se Rembrandt possuía uma educação cromática formal, quais eram as possíveis teorias de cor usadas por ele? Sem a organização e a visão particular de Weststeijn sobre a obra Inleyding de Hoogstraten, não seria possível tecer uma perspectiva tão específica sobre o pensamento cromático e outros conceitos usados nas pinturas durante o séc. XVII, portanto, a obra de Weststeijn e de Hoogstraten mostraram-se fundamentais para delinear o possível modo como o artista pensava a cor organizada num campo pictórico, assim como seu método de mistura de cor. A publicação mais recente de Van de Wetering, Rembrandt: The Painter Thinking (VAN DE WETERING, 2016), também foi usada para analisar Inleyding, mostrando uma outra perspectiva além daquela de Weststeijn. Max Doerner (DOERNER, 1984), Maroger (MAROGER, 1948), Charles Eastlake (EASTLAKE, 1847) e Merrifield (MERRIFIELD, 1849) correspondem as obras da área da história da tecnologia dos materiais e das técnicas de pintura, compreendendo o corpo bibliográfico que analisa a reconstrução das técnicas e dos materiais da antiguidade. Fez-se uso das publicações de Gettens e Stout (GETTENS; STOUT, 1942), Feller e Schweppe (FELLER; SCHWEPPE; ROOSEN-RUNGE, 1986) e as mais recentes de Mayer (MAYER,

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2006), Roy (ROY et al., 1993), Eastough (EASTOUGH et al., 2005) e Gottsegen (GOTTSEGEN, 2006) que investigam os materiais de uma perspectiva mais científica do que os primeiros. Para compreender de modo pormenorizado a biografia do artista usou-se a compilação de Charles Ford, The Lives of Rembrandt (FORD et al., 2018), contendo as três mais antigas biografias sobre o artista, escritas por Joachim von Sandrart, Filippo Baldinucci e Arnold Houbraken. Como material biográfico mais recente, usou-se sobretudo, as obras O Poder da Arte21 (SCHAMA, 2010) e Rembrandt´s Eyes (SCHAMA, 2015), ambos escritos pelo historiador da arte Simon Schama.

21 O livro foi escrito após o grande sucesso de uma série de televisão com o mesmo nome (The Power of Art) escrita por Simon Schama em 2006 produzida pela BBC e exibida originalmente no canal BBC2. O teor biográfico sobre Rembrandt contido no livro é idêntico ao da série de TV, apresentando apenas uma maior quantidade de detalhes.

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2. Breve Biografia e Contexto da Holanda Este estudo não tem o objetivo analisar de forma pormenorizada ou formar hipóteses sobre a biografia do artista. Apenas como forma de contextualização, segue uma brevíssima biografia. As publicações usadas para a biografia do artista foram Ford (FORD et al., 2018), como fonte dos textos históricos mais antigos, para o contexto histórico da Holanda Zumthor (ZUMTHOR, 1989) e como material mais recente sobre a vida do pintor, publicações de Schama (SCHAMA, 2010) e (SCHAMA, 2015).

2.1. Anos de Formação Rembrandt Harmensoonz (filho de Harmemn) van Rijn (do rio Rhine22) nasceu no dia 15 de Julho de 1606, na provinciana cidade de Leiden, rica em devoção calvinista23, erudição clássica (na universidade24) e próspera pela fortuna da indústria têxtil (SCHAMA, 2010, p. 137).

22 Rio Reno (em alemão: Rhein, em francês: Rhin, em neerlandês: Rijn e Rain em romanche) é um rio com 1233 km de comprimento que atravessa a Europa de sul a norte, desaguando no Mar do Norte no delta do Reno e Mosa. Ele se subdivide em oito trechos pela Europa. Nos Países Baixos o delta do Reno dá origem a vários braços. Junto com o Danúbio, o Reno constituía a maior parte da fronteira setentrional do Império Romano. Os romanos chamavam o rio de Rhenus. Desde essa época o Reno é um curso de água muito usado para o transporte e o comércio. O Reno nasce nos Alpes, no leste da Suíça, no cantão de Grisões, a montante de Coira, e é o resultado da confluência de dois rios, o Reno Anterior (em alemão, Vorderrhein) e o Reno posterior (Hinterrhein). Desagua no mar do Norte misturando suas águas com as do rio Mosa no grande delta. Atravessa ou acompanha seis países: a Suíça, a Áustria, o Liechtenstein, a Alemanha, a França e os Países Baixos. Constitui a fronteira natural entre a Suíça e o Liechtenstein, entre a Alemanha e a Suíça e entre a Alemanha e a França. 23 Calvinismo.: O calvinismo (também chamado de Tradição Reformada, Fé Reformada ou Teologia Reformada) é tanto um movimento religioso protestante quanto um sistema teológico bíblico com raízes na Reforma Protestante, iniciado por João Calvino em Genebra no século XVI. A Tradição Reformada foi desenvolvida, ainda, por diversos outros teólogos como Martin Bucer, Heinrich Bullinger, Pietro Martire Vermigli e Ulrico Zuínglio. Apesar disso, a Fé Reformada costuma levar o nome de Calvino, por ter sido ele seu grande expoente. Calvinistas romperam com a Igreja Católica Romana, mas diferiam dos luteranos na doutrina sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, o princípio regulador do culto, e o uso da lei de Deus para os crentes, entre outras coisas. O termo calvinismo pode ser enganoso, pois a tradição religiosa que por ele é identificada sempre foi diversificada, com uma vasta gama de influências, em vez de um único fundador. O movimento foi chamado pela primeira vez de calvinismo pelos luteranos que se opunham a ele, e muitos dentro da tradição preferem usar o termo Reformado para o descrever. 24 Universidade de Leiden (em holandês Universiteit Leiden, abreviada como LEI).: Fundada na cidade de Leiden, é a universidade mais antiga dos países baixos, fundada em 1575 por William, Príncipe de Orange, líder da Revolta Holandesa na Guerra dos 80 anos. A realeza holandesa possui fortes relações com a universidade, sendo que a pincesa Juliana, a Rainha Beatrix e o Rei Willem-Alexander são ex-alunos. A universidade alcançou proeminência durante a Era de Ouro Holandesa, quando catedráticos de toda a europa foram atraídos a República Holandesa devido a sua tolerância a um clima intelectual e a reputação internacional de Leiden. Durante essa época, Leiden foi a residência de René Descartes, Rembrandt, Christiaan Huygens, Hugo Grotius, Baruch Spinoza e o Barão d´Holbach.

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Segundo Houbraken, o pai de Rembrandt chamava-se Harmen Gerrtisz van Rijn, e tinha “uma vida muito boa” exercendo a profissão de moleiro25 num moinho de milho26. Sua mãe chamava-se Neeltgen Willemsdr van Zuytbroeck. Rembrant era o irmão mais jovem de sete irmãos, entre os quatro homens, um exercia a profissão de padeiro e outro, sapateiro (FORD et al., 2018, p. 65). Seus pais matricularam-no para estudar latim na Escola Latina de Leiden, mas Rembrandt não terminaria esse curso, seria enviado para estudar pintura no ateliê de Jacob Isaaksz van Swanenburgh, permanecendo como seu pupilo durante três anos. De acordo com Houbraken, seu bom desempenho com Isaaksz persuadiu seu pai a enviá-lo a Pieter Lastman em Amsterdã, com quem passou seis meses como aprendiz. Após seu aprendizado com Lastman, Rembrandt teria passado alguns meses com Jacob Pynas27 (FORD et al., 2018, p. 65).

2.2. Ateliê em Leiden e Jan Lievens Rembrandt era um dos dois jovens “prodígios” da Holanda na opinião de Constantijn Huygens, o preposto cultural e secretário do príncipe de Orange28, Frederik Henry (e mais tarde, de outro príncipe de Orange, William II), que “descobriu” o pintor em 1629.

25 Moleiro (do latim molinarìus).: é uma antiga profissão ligada à moedura de cereais, especialmente à do trigo para a fabricação de farinha. O termo moleiro denominava tanto trabalhadores braçais de um moinho, como o proprietário de uma moenda. A profissão de moleiro é uma das mais antigas ocupações humanas e surgiu de forma independente em várias partes do mundo, tendo sido essencial para o desenvolvimento da agricultura, embora tenha sido anterior ao seu surgimento, remontando a épocas dos caçadores-coletores. A profissão do moleiro deu origem a um apelido de família apesar de ser pouco comum, diferentemente do ocorrido com outros ofícios tradicionais, como "Miller" em inglês, "Müller" em alemão. "Mugnaio" em italiano, "Meunier" em francês e "Melnyk" em russo. 26 Houbraken cita que o moinho ficava “entre Leidendorp e Koukerk” (FORD et al., 2018, p. 65). 27 Jacob Pynas (1592, Haarlem; 1650, Delft).: De acordo com o RKD ( Institute for Art History), ele foi o irmão de Jan Pynas, que viajou a Itália. Sua irmã, Meynsge casou com o artista Jan Tengnagel em 1611. Embora Jacob seja conhecido por suas “cenas italianas”, essas pinturas podem ser estudos trazidos da Itália por seu irmão Jan, não há certeza que Jacob viajou a Itália. Influenciou Rembrandt e tornou-se um membro da Guilda de São Lucas de Delft durante os anos de 1632 até 1639. Tornou-se professor de Bartholomeu Breenberg. Os irmãos Pynas estão entre os pintores holandeses chamados de Pre-Rembranescos. O trabalho de ambos é parecido ao do pintor Adam Elsheimer, inclusive com históricos de confusão de atribuição entre eles. Jan morreu em Amsterdam, Jacob sobreviu por mais anos do que o irmão e morreu provavelmente em Delft. 28 Principado de Orange.: (Principauté d'Orange) Durou de 1163 até 1713, um estado feudal originário em Provence, ao sul da França atual, as margens oeste do rio Rhone (em português Reno), ao norte da cidade de Avignon, e cercada pelo estado papal e independente de Comtat Venaissin. Os Condes Carolíngios de Orange possuem suas origens no século VIII, o fief (estado feudal) passou para a família dos Lordes de Baux, que tornaram-se Condes de Orange e totalmente independentes com a dissolução do Reino de Arles em 1033. Em 1163 o Santo Imperador Romano Frederick I elevou o Condado Burgundian de Orange (consistindo na cidade de Orange a das terras ao redor) a soberania de principado na Europa. O principado tornou-se Orange-Nassau na época em qua William I “o Silencioso” (1533 – 1584) nascido Conde de Nassau, na região de Dillenburgh

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Teoricamente, Rembrandt usava um espelho para estudar e treinar as expressões humanas. Com esses estudos, criava o que os holandeses chamam de tronies: cabeças de personagens, não eram retratos e nem pinturas históricas, mas estudos de expressões ou humores, que podiam ser colocados mais tarde em obras maiores (SCHAMA, 2010, p. 138). Schama parece ver em Rembrandt uma influência enorme de Caravaggio, inclusive quanto ao uso dos modelos: ambos artistas faziam uso de pessoas comuns, o povo “sujo e ordinário das ruas”, pratica não convencional à muitos artistas (SCHAMA, 2010, p. 140). Segundo carta escrita pelo próprio Huygens, Rembrandt era “incomparável na execução de texturas tridimensionais e na expressividade humana” (SCHAMA, 2010, p. 137), impressionando o intelectual e tornando-o uma espécie de padrinho do artista e de seu conterrâneo e colega Jan Steen. Ambos abririam, juntos, um ateliê em sua cidade natal, durando apenas um ano, de 1624 a 1625.

2.3. Amsterdam Por volta de 1620, embora fosse uma potência militar, a Holanda era insegura culturalmente. O Staedholder Frederick Henry virava-se a corte inglesa dos Stuarts, seus primos, como um exemplo, modelos culturais. Portanto, Rembrandt tornava-se indispensável a corte holandesa em Haia (SCHAMA, 2010, p. 146).

“Uma vez que o rei Carlos I tinha obras de Rembrandt, e uma vez que Rembrandt era visto, mais ou menos como a resposta dos holandeses a Rubens e Van Dyck, o Staedholder encomendou-lhe o retrato de Amalia van Solms, princesa de Orange. Além disso, Huygens o encarregou de elaborar toda uma série de quadros sobre a Paixão de Cristo para o stadhouder. Se quisesse, Rembrandt poderia morar em Haia e tornar-se um artista-cortesão. Mas ele não quis. Preferiu ir para Amsterdã, e com isso mudou para sempre não

(Holanda e Alemanha), também conhecido hoje como William de Orange (Willem van Oranje), com somente 11 anos e com grandes propriedades nos Países Baixos, herdou toda a fortuna, estados e o título de Príncipe de Orange de seu primo René de Châlon (que não tinha herdeiros) em 1544, dando o nome para o que conhecemos hoje como Casa Real dos Países Baixos e na época, a Casa dos Orange. Em 1568 a Guerra dos Oitenta Anos começa com William como satdtholder da Holanda liderando o movimento para a independência dos Países Baixos contra a Espanha, é assassinado em Delft, 1584. Seu filho, Maurice of Nassau (Príncipe de Orange) que solidifica a Republica da Holanda. William III de Orange foi o último Príncipe de Orange a governar com o principado, como Rei da Inglaterra.

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só sua própria história como a história da pintura. Dar esse passo equivaleu a apostar no futuro comercial em detrimento do passado áulico: Rembrandt simplesmente foi para onde havia dinheiro” (SCHAMA, 2010, p. 146)

Quando Rembrandt chega a Amsterdam em 1630, a cidade passava por uma metamorfose: o porto, que outrora comercializava produtos comuns como o arenque e grãos estava se tornando o principal mercado do mundo, o centro da primeira economia global, estendendo- se desde as Índias Orientais ao Brasil, entre outras localidades coloniais que produziam produtos exóticos. O segredo dos holandeses era a compra em grande escala: “Com dinheiro vivo, os holandeses compravam províncias inteiras de cereais poloneses e florestas norueguesas, geralmente com anos de antecedência. Levando uma vida de luxo que superava suas posses, os aristocratas suecos e poloneses agarravam o dinheiro e, em troca, entregavam aos holandeses madeira, cânhamo, breu e ferro a preços módicos” (SCHAMA, 2010, p. 146). Essa matéria prima era usada para a construção de navios cuidadosamente concebidos e detalhadamente construídos para transportar tripulações menores e cargas maiores, barateando significativamente o custo do frete e possibilitando que os holandeses cobrassem preços baixos pelas mercadorias. Desta forma, ninguém possuía motivos para comprar os produtos na fonte.

“Quem precisava de pele russa, seda italiana, lã inglesa, vinho francês, cobre sueco, canhão alemão, couro ou aço do inimigo espanhol, noz-moscada, macis ou pimenta das Índias Orientais ou um carregamento de tabaco ou açúcar, novas coqueluches do mercado de massa, tinha de ir a Amsterdam, Por volta de 1630, a cidade nadava em dinheiro. E para lá rumou Rembrandt, com a certeza, partilhada por dezenas de milhares de imigrantes, de que viveria na nova Veneza.” (SCHAMA, 2010, p. 146).

A cidade contava com uma nova melhoria estrutural: três novos e elegantes círculos concêntricos de canais, em cujas margens se erguiam casas e mansões com primorosos frontões. As casas, antes feitas de tijolos escalonados, eram agora em forma de sino e feitas de calcário, altas e estreitas, mas também profundas. Para decorar os abundantes quartos e salas de estar de todas essas casas: “armários pesados, cadeiras de couro, espelhos, azulejos pintados, mapas do mundo que os comerciantes holandeses haviam conquistado e, numa profusão sem paralelo, quadros” (SCHAMA, 2010, p. 146).

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Amsterdã vivia um momento em que a riqueza bruta se convertia em criatividade cultural. Ao invés do mecenato dos nobres, a cidade florescia o primeiro mercado de arte popular, um recomeço para a arte: “[...] por dois ou três florins, o salário semanal de um carpinteiro, podia-se comprar o flagrante de um grosseirão bolinando uma garçonete de seios fartos ou uma paisagem com riacho, salgueiros e pescadores [...]” (SCHAMA, 2010, p. 147). Zumthor corrobora para a mesma afirmação: “[...] aos olhos do patrício, do burguês rico, o pintor é um fornecedor como qualquer outro. Não pratica o mecenato. Encomenda-se, paga-se [...]” (ZUMTHOR, 1989, p. 239). A burguesia emergente da abundante atividade comercial de Amsterdam passava a se cercar de objetos de luxo, assim como faziam os reis, os nobres e a igreja. Zumthor atribui o crescimento exponencial da pintura a “falta de possibilidades de investimentos dos lucros comerciais”. A estrutura dessa sociedade e sua moral limitavam a escolha dos seus bens, principalmente para aqueles que possuíam conforto e espaço suficiente para a decoração em casa. Amsterdã tornou-se “uma colônia de pintores” (ZUMTHOR, 1989, p. 238).

“Para o neerlandês do séc. XVII, o quadro é um móvel. É um móvel insubstituível em sua função, que é cobrir as superfícies nuas, de que se tem horror. Simultaneamente, o quadro, sobretudo se é um retrato ou representa uma cena de interior, lisonjeia a vaidade um tanto ingênua do homem recentemente enriquecido. O proprietário do ‘alojamento dos senhores’, de Edam, encomenda a um pintor, em 1633, que fixe na tela a corpulência que constitui seu orgulho: aos quarenta anos e dois anos, ele pesa mais de duzentos quilos! J. Molenaer retrata um armador cercado por toda a família e apontando com o dedo os noventa e dois barcos que possui no porto. Por volta de 1675, um rico livreiro de Amsterdam possuía nada menos do que quarenta e uma telas em sua casa; e seu caso não tinha nada de excepcional, embora nessa época já tardia as tapeçarias houvessem começado a fazer às pinturas uma temível concorrência” (ZUMTHOR, 1989, p. 239).

Zumthor cita que por volta de 1660, trinta anos após a chegada de Rembrandt a Amsterdam, “mesmo o mais humilde dos lojistas fazia questão de possuir quadros, que colocava em todas as suas salas. Até camponeses gastavam desse modo dois mil ou três mil florins. Contudo, não se tem consciência de que com isso se está favorecendo uma arte” (ZUMTHOR, 1989, p. 239). Entre o pintor e seus clientes, também haviam comerciantes de quadros e lojistas intermediários. Quadros eram vendidos em feiras e festas públicas, provavelmente em barracas, com preços convidativamente baixos, inclusive, mais baixos do que os quadros da

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Bélgica espanhola. Seiscentos florins não era um preço alto para uma pintura com dimensões medianas (ZUMTHOR, 1989, p. 240).

“A plasticidade, as cores do nu, pouco interessavam. O único tipo humano que merece atenção é o cidadão, o homem em seu traje verdadeiro, em sua presença cotidiana. Sob esse aspecto, é total a ruptura com a Renascença, especialmente com a Itália, com a qual, no entanto, aprendeu-se muito. Inúmeros pintores holandeses viajam a Roma, onde estudam sobretudo a arte da paisagem. Mas evitam os temas heroicos. Nas telas que trazem da Itália, veem-se uma camponesa e seu cântaro, um mascate, um pastor, um rebanho: tipos vivos saídos do espetáculo da rua, e sobre os quais concentram o calor daquele sol que lhes faltava na Holanda.

As pinturas em voga entre os novos ricos de Amsterdam apresentavam personagens ou retratos, que de uma forma contraditória, além de celebrar, também advertiam sobre os prazeres terrenos: “os holandeses [...] [...] orgulhavam-se de não ser uma nobreza ociosa e ricamente vestida [...] [...] dizia a lenda patriótica que o altíssimo [Deus] os abençoara em sua longa guerra contra a Espanha justamente por causa de sua antiquada modéstia, frugalidade e sobriedade”. Ao mesmo tempo que os trajes dos retratos deveriam mostrar certa opulência, a expressão facial e a linguagem corporal deveriam “atenuar a vaidade do traje e encarnar as virtudes redentoras – humildade, castidade, energia cívica, fidelidade conjugal, graça, prosperidade” (SCHAMA, 2010, p. 148). Rembrandt começou suas atividades em Amsterdam aproveitando o bom momento do mercado de arte: além de pintor, atuava como empresário e investidor, associando-se a um dos maiores marchands de Amsterdam daquela época, Hendrick van Uylenburgh (1587 – 1661). Compartilharam uma casa29 para poder trabalhar e se envolver com todo o tipo de transação, originais por encomenda, cópias, gravuras, aulas (com preços astronômicos), pinturas históricas, e principalmente, seu maior produto: o retrato (SCHAMA, 2010, p. 147). O principal produto vendido por ambos, Rembrandt e Uylenburgh, era o retrato. Segundo Schama, “em parte por que gostava desse gênero” e em parte também por ter consciência de

29 Compartilharam moradia na esquina da Sint Antoniesbreestraat com a , ao lado da atual Rembrandthuis. Nesse lugar, agora n. 2, há uma casa que data de 1889, hoje, um café chamado The Rembrandt Corner. Muitos outros artistas viviam nesse bairro, entre eles, , Nicolaes Eliasz. Pickenoy, Jan Tengnagel e Pieter Lastman, com quem Rembrandt estudou por seis meses, quando ainda tinha dezenove anos.

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tratar-se de um produto que saciava tanto a vaidade quanto a projeção de imagem moralista de seus clientes. Schama atribui ao sucesso de Rembrandt, além da produção de retratos para os novos burgueses, a inserção da ação nas cenas de suas pinturas históricas, constituindo o diferencial do artista:

“[...] cenas históricas repletas de ação, que deixavam de lado as decorosas poses clássicas para criar efeitos eletrizantes. Inspirava-se em Rubens e – através de pintores de Utrecht, como Gerrit van Honthorst e Handrick ter Brugghen, que tinham estado em Roma – Caravaggio. Figuras grandes pairando no espaço, aproximam-se umas das outras e de nós. Coisas voam pelos ares: uma taça de vinho, uma faca sacrifical, a urina de um bebê apavorado. Tudo é repensado. [...] [...] Nas salas das novas e vistosas casas ás margens do canal, essas grandes máquinas de terror e exaltação distinguiam como homens de ousado discernimento os negociantes que se atreviam a compra-las e expô-las” (SCHAMA, 2010, p. 148).

2.4. Auge e Casamento com Saskia Enquanto estava com Uylenburgh, Rembrandt conheceu Saskia, não por coincidência, pois ela era prima do marchand. Saskia era filha de um burgomaster30 da cidade de Leeuwarden, de quem recebera uma larga e generosa herança. Rembrandt casaria com Saskia e teria quatro filhos com ela, três dessas crianças (Rumbartus e duas filhas chamadas Cornelia) morreriam ainda bebês. Um ano depois de seu casamento, a amizade de Rembrandt com o marchand chegou ao fim, Rembrandt montaria finalmente um ateliê independente. No ano em que se casou, Rembrandt mudou-se para uma casa alugada, mas suntuosa, na Nieuwe Doelenstraat, uma rua que naquela época, estava na moda entre os bem afortunados. Naquela época, havia dois prédios novos31, lado a lado. Esses edifícios foram construídos para o patrício Willem Boreel, que se mudou para o edifício do lado esquerdo e alugou o do lado direito para Saskia e Rembrandt. Os recém casados viveram lá por dois anos, de 1635 a 1637 e depois mudaram-se para a rua Zwanenburgerstraat32, no meio do quarteirão judeu33. (“Houses Where Rembrandt Lived”, 2018). Em janeiro de 1639, no alto de seus trinta anos e

30 Posição similar ao de prefeito, na Holanda barroca. 31 No lugar onde hoje é o restaurante e café ‘De Jaren’. 32 Zwanenburgerstraat.: Essa rua desapareceu nos anos oitenta, quando Amsterdã construiu a nova prefeitura e a casa de opera, também chamada de Stopera. 33 em holandês e Jewish Quarter em inglês.

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agora um artista celebrado, Rembrandt comprou, a prestação, a magnífica casa de um comerciante na rua Sint Antoniesbreestraat34, onde viveu e trabalhou por mais de vinte anos. Em 1640, receberia a encomenda mais importante de sua carreira: pintar a companhia de arcabuzeiros de Amsterdam, obra que ficaria conhecida como A Ronda Noturna (1642). Schama considera como a obra mais importante pois Amsterdam era uma “cidade corporativa, governada por prédios públicos e não palácios”, portanto, assim como outros pintores possuíam mecenas nobres, Rembrandt por sua vez, cairia na graças do estado, era a prova de uma carreira bem sucedida (SCHAMA, 2010, p. 159), afinal o pintor que recebia esse tipo de encomenda era “efetivamente o artista oficial da cidade” (SCHAMA, 2010, p. 163). Embora o recebimento da encomenda fosse um indício de que Rembrandt possuía o maior status artístico da cidade, a completude da obra em 1642 traria um impacto dividido entre seus clientes: “[...] nem todos se empolgaram com esse teatro pintado. Com efeito, esse foi o ano [1642] que o clima de receptividade a Rembrandt passou de invariavelmente cálido a morno” (SCHAMA, 2010, p. 169), aparentemente, a ousadia de composição e de execução da A Ronda Noturna (1642), segundo Schama, teria sido o estopim para que clientes começassem a questionar as idéias do pintor: desse ponto em diante, não tendo mais que se preocupar com prestígio social, passa a pintar da maneira que julga satisfatória para ele mesmo (SCHAMA, 2010, p. 170).

2.5. Morte de Saskia O quarto filho do casal, Titus, finalmente vingaria e chegaria à vida adulta, no entanto, Saskia ficaria debilitada com o nascimento de Titus e viria a falecer (1642) por tuberculose um ano após o parto (1641), logo após Rembrandt completar A Ronda Noturna (1642). O casal ficou junto por somente oito anos. Muitos biógrafos apontam a morte de Saskia como um momento de profunda mudança na vida do pintor. Aparentemente, Saskia fora a grande paixão da vida de Rembrandt, com sua morte, o pintor agora mais amargo, passa a pintar cenas mais sombrias, seu estilo se torna cada vez mais rústico. A morte de Saskia coincide com a entrega da A Ronda Noturna e o começo de sua impopularidade. Portanto, é possível dizer que, o acontecimento é considerado como um

34 Sint Antoniesbreestraat.: Hoje, é a casa onde se encontra o museu Rembrandthuis. A casa foi construída em 1606, no ano em que Rembrandt nasceu, na rua Breetsrat, a rua mais larga no parte oeste da cidade. Por volta de 1627, o edifício foi renovado, provavelmente por Jacob van Campen, o arquiteto que desenhou a nova prefeitura (que agora se tornou o palácio real em Dam Square). Rembrandt comprou a casa pela enorme quantia de 13,000 guilders, a prestação. Na mesma rua, residia seu antigo Mestre, Pieter Lastman.

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divisor de águas na vida do pintor e de certa forma, sugestivamente subentendido como o gatilho dramático que impulsionou sua mudança estilística. O ano no qual os especialistas consideram como aquele em que o artista começa a fazer uso de seu alterstil, ou de sua maneira rustica de pintura, compreende quase dez anos após a morte de Saskia, a inauguração de seu alterstil sendo 1651 e a morte de Saskia em 1642. Durante o período de doença de Saskia, uma empregada seria contratada para ser a babá de Titus, Geertje Dircx, ela tornaria-se sua amante, após a morte de Saskia, mas a relação terminaria com Geertje processando o pintor por não cumprir a promessa de casamento. A lei obrigaria Rembrandt a pagar mensalmente 200 guilders à Geertje.

2.6. Hendrickje Stoffels Ao final de 1640, Rembrandt se envolveria com sua empregada, Hendrickje Stoffels, de idade consideravelmente mais nova. O casal aparentemente gozou de uma união estável embora nunca tenham se casado oficialmente, a união impediria que Titus se beneficiasse dos bens de sua falecida mãe, regra estipulada no testamento de Saskia. Em 1654, o casal teria uma filha, Cornelia. Apesar do pintor ter atingido uma posição invejável e de grande riqueza, aparentemente Rembrandt possuía grandes gastos. Schama, e outros biógrafos, descrevem que Rembrandt colecionava uma grande extensão de gravuras e pinturas de artistas que admirava, fazendo questão de pagar altos preços em leilões públicos (SCHAMA, 2010, p. 152). Além disso, colecionava objetos que serviam como cenografia à suas composições: armaduras, roupas do oriente, turbantes, armas, animais empalhados, instrumentos musicais, etc. Vários biógrafos relacionam esse impulso consumista a precariedade financeira que viria fazer com que o pintor fosse a falência, aparentemente, a crescente impopularidade acerca de sua maneira de pintura ajudou a consolidar a decadência. Quando Cornelia completava apenas dois anos, em 1656, o artista declara bancarrota, devido à perda de investimentos outrora aplicados em navios locais. A corte de Amsterdam determina a venda de toda sua coleção de pinturas e gravuras, assim como de seus exóticos objetos para pagar suas dívidas. O preço da venda desses bens não alcançou nem uma fração do que realmente valiam, e assim, a venda não conseguiu cobria a dívida do artista. Rembrandt foi obrigado a vendar sua casa e sua prensa de gravura, deixando-o praticamente sem nenhum bem (SCHAMA, 2010, p. 177).

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Embora o artista fosse conhecido, é necessário lembrar que nesse período sua fama não faria diferença para melhorar seu crédito: não havia mecenato ou tratamento especial por parte dos novos ricos de Amsterdam, embora a arte tenha tornado-se popular para o comerciante comum, os pintores ainda eram fornecedores como qualquer outro comerciante. Portanto, as dívidas do pintor não seriam quitadas facilmente. Zumthor explica:

“[...] consente-se em emprestar dinheiro a um artista a quem o desemprego ou a prodigalidade tenham transformado num necessitado; mas as condições são draconianas. O próprio Rembrandt sofreu por diversas vezes essa experiência, e chegou a dever a Cornelis Witsen quatro mil florins. Não poder pagar o empréstimo significava a falência e o arresto [prisão], ainda que com isso o artista perecesse. Mais do que as cobranças dos negociantes de quadros, foram seus credores patrícios de Amsterdam que arruinaram Rembrandt e apressaram seu fim. Pieter van Laar só encontrou socorro no suicídio; a miséria fez de Hercules Seghers um alcoólatra incurável; Frans Hals, Van Ruysdael, Hobbema cedo ou tarde acabaram vivendo às custas de instituições de caridade; a despeito das quinhentas telas que pintou, Jan Steen permaneceu pobre; e quando Vermeer morreu, devia seiscentos florins ao padeiro...” (ZUMTHOR, 1989, p. 240).

Em 1660, Amsterdam é a cidade mais rica do mundo e Rembrandt, aos 50 anos, após perder seu luxuoso residência e ateliê, agora vive com sua família numa casa humilde na Rozengracht35, no bairro Jordaan. Hendrickje e Titus agora assumiriam o controle dos negócios do artista, sendo que Rembrandt estava legalmente impedido de fazê-lo.

2.1. Últimos Anos Após a construção de uma nova e monumental prefeitura, foi decidido que era necessário uma série de pinturas históricas para decorá-la. O primeiro artista da lista de candidatos a pintá-las é Govert Flinck, mas ele morre inesperadamente e Rembrandt recebe a encomenda. A obra completa seria uma série de quadros sobre a história dos batavos, remotos ancestrais holandeses. Essas obras lembrariam os amsterdameses de que seu império começou com um

35 Rozengracht Straat.: rua localizada no bairro Jordaan. O Jordaan é parte do distrito chamado Amsterdam- Centrum. Antigamente, a rua possuía um canal, o canal Rozengracht, que foi coberto e é a artéria de trafico principal do bairro. Rembrandt passou seus anos finais em Jordaan, no canal Rozengracht. O bairro tem uma grande concentração de hofjes (pátios internos), muitos destes com jardins. A teoria mais comum sobre a origem do nome do bairro é que se trata de uma derivação do francês jardin (jardim). Foi enterrado na igreja Westerkerk, no canto entre a rua Rozengracht e a rua Prinsengracht.

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ato de insurreição contra o império romano. A tela de Rembrandt era a mais importante, pois ilustra o momento em que o líder batavo Claudius Civilis jura morrer pela liberdade de sua pátria (SCHAMA, 2010, p. 134). Em 1662, a prefeitura instala o quadro na área de exposição, mas o mesmo permanece apenas alguns meses exposto na galeria que contorna a sala de cerimônias do salão dos cidadãos, quando a pintura é finalmente devolvida ao artista, supostamente sem nenhum pagamento (SCHAMA, 2010, p. 136). As teorias sobre a devolução da obra envolvem políticas internas, desavenças quanto ao preço originalmente estipulado pelo artista e relutância em se aceitar uma obra com o estilo rústico e transgressor de Rembrandt36. Contratam o pintor Juriaan Ovens37 para fazer a pintura que ficaria no lugar daquela pintada por Rembrandt. Essa seria a última grande encomenda estadual de Rembrandt e com isso, o encerramento de sua carreira de pintor oficial da cidade. Após esse incidente, o pintor ainda teria sete anos de vida. Passou a se sustentar de alguns poucos alunos e de algumas encomendas de retratos, como o de Cosimo III de Medici, Duque da Toscana, que viria pessoalmente a casa do artista para fazer a encomenda em 1667 e provavelmente da sua última grande encomenda Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (1662), feita entre 1661 e 1662. Rembrandt em seus últimos anos testemunhou a morte de Hendrickje, Titus e de sua nora Maddalena, o pintor faleceria um ano após seu filho, em outubro de 1669. Ele foi enterrado na igreja de Westerkerk em Amsterdam, num túmulo público. .

36 Schama diz que o próprio Rembrant, num momento de “pobreza desesperadora”, teve de cortar a pintura para que a mesma pudesse encontrar um espaço menor e assim ser finalmente vendida. Em 1734, 65 anos após sua morte, um batavo-sueco compraria essa obra por meros sessenta florins, segundo Schama, custo equivalente na época a uma “cama de luxo”. Foi levada para Estocolmo, onde permanece até hoje (SCHAMA, 2010, p. 137). 37 Juriaan Ovens ou Jürgen Ovens (1623 - 1678). Pupilo de Rembrandt, pintor e negociante de arte que se especializou em retratos e pinturas históricas, provavelmente nascido na Alemanha (na Frisia do Norte), há uma breve biografia do artista na obra de Arnold Houbraken. É mais conhecido pela sua pintura do salão dos cidadãos em Amsterdam e por aquelas dos duques de Holstein-Gottorp, para quem trabalhou mais de 30 anos, também como negociante de arte.

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3. Definindo Alterstil, Late Work e Rough Manner Embora não seja a pretensão deste estudo identificar quais os fenômenos ou atributos que contribuíram para o desenvolvimento do alterstil ou de um estilo rústico de pintura, tão pouco a reestruturação de suas terminologias, para melhor compreender a definição desse estilo, é necessário entender além de suas características formais: as associações do estilo com certos atributos, explorados a seguir. Os estudos de Bikker (BIKKER; WEBER, 2015), Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2016), De Witt (DEWITT, 2011) e Alpers (ALPERS, 1991) trataram sobre o assunto anteriormente, definindo como a bibliografia mais antiga as obras de Vasari (VASARI, 2008), Van Mander (MIEDEMA, 1973), De Piles (DE PILES, 1754), Sandrart (FORD et al., 2018) e Hoogstraten (WESTSTEIJN, 2013). A relevância desse capítulo encontra-se na organização do assunto, dividida aqui em função das associações feitas no corpo bibliográfico, tais como: declínio ou ascensão de qualidade, a perda da visão e a maturidade do artista.

3.1. Alterstil A definição formal e acadêmica de alterstil específica à obra de Rembrandt, segundo Bikker, é o estilo usado pelo pintor a partir da obra Jovem Moça na Janela38 (Nationalmuseum; Estocolmo; 1651) (BIKKER; WEBER, 2015, p. 13). Sendo assim, Rembrandt inaugura o uso do estilo quando fazia quarenta e quatro anos de idade.

As pinceladas monumentais que são componentes essenciais no manuseio solto do trabalho tardio de Rembrandt aparece primeiramente em Jovem Moça na Janela de 1651 [...] [...]A resposta para quando o trabalho tardio de Rembrandt começou é mais fácil de dar do que por quê começou, embora as discussões dos historiadores da arte sobre o período tardio, são quase sempre vagos sobre a cronologia, ou apenas levam os trabalhos muito tardios em consideração, sem indicar como eles diferem daqueles um pouco mais recentes (BIKKER; WEBER, 2015, p. 13).

38 Anteriormente chamada de Ajudante de Cozinha (The Kitchen Maid). Óleo sobre Tela. 78 x 64 cm. 1651. Nationalmuseum, Estocolmo.

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Figura 1 Jovem Moça na Janela, Rembrandt Van Rijn (Nationalmuseum, Estocolmo; 1651). Fonte: Nossa, 2018.

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No dicionário alemão/português Michaelis39, a tradução literal para a palavra alemã alter é “velhice” ou “de idade”40. No mesmo dicionário, a tradução para a palavra alemã stil (ou em sua forma mais antiga, stile), é “estilo”41. O uso de ambas palavras alter stil; alter stile ou ainda de sua junção altersstil; alterstil; alterstile, formam um termo que pode ser interpretado literalmente no português como “estilo da velhice”. Segundo Bikker, quando usado em textos críticos de pintura e da história da arte, nas línguas de raízes germânicas, confere significado de estilo tardio de um artista (BIKKER; WEBER, 2015). No entanto, se traduzirmos o termo literalmente para o português, fazendo uso da tradução literal estilo da velhice, é possível interpretar o termo de outras maneiras. Há de se considerar que o termo original em alemão, assim como sua tradução literal para o português, fazendo uso da palavra velhice, ou outro substantivo similar, exercem função sugestiva ao termo alterstil: velhice confere sentido subjetivo, passível de interpretação, relativo quando usado numa frase que tenta descrever uma técnica de pintura. Afinal, a velhice é um conceito universalmente interpretado como um declínio físico ou como um período de sabedoria. Dessa forma, há duas principais leituras ou interpretações do termo velhice. O termo pode ser lido de modo negativo, associado à ideia de diminuição da qualidade do trabalho, uma consequência da decrepitude ou desgaste físico ou psíquico do artista, reveses geralmente comuns na idade avançada. Afinal, é possível que qualquer pintor de idade avançada possa sofrer das aflições da velhice, nos casos mais brandos interferindo de alguma forma em seu trabalho, e nos casos mais graves, tornando seu ofício impraticável e suas pinturas irreconhecíveis: falha da visão, falta de sintonia motora, dificuldade em manter-se de pé por longos períodos, confusão mental, entre outros sinais que por ventura possam atrapalhar a execução de suas obras. A segunda leitura, de uma perspectiva mais positiva, relaciona o termo velhice não com a redução, mas com o aumento qualitativo do trabalho. O pintor ao tornar-se idoso, controla do modo mais perfeito seus instrumentos de trabalho, mostra extenso conhecimento de várias técnicas do ofício, profunda intimidade com o processo, discerne claramente e com naturalidade automática os caminhos processuais que podem se tornar armadilhas futuras ou abordagens de pouca praticidade, uma clareza de percurso que o faz optar sempre pelo mais

39 http://michaelis.uol.com.br/escolar-alemao/. Acessado em 2017-04-11 11:11:40. 40 http://michaelis.uol.com.br/busca?r=4&f=3&t=0&palavra=alter. Acessado em 2017-04-11 11:11:44. 41 http://michaelis.uol.com.br/busca?r=4&f=3&t=0&palavra=stil. Acessado em 2017-04-11 11:12:01.

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prático e o mais rápido sem prejudicar a estética final, o método funciona de forma fluida e plena: enfim, o completo amadurecimento da sabedoria sobre seu meio, consequência da experiência e da habilidade acumulada ao longo de tantos anos. É notável como os estudiosos que enxergam no alterstil uma ascensão, descrevem uma qualidade particular para esse tipo de pintura, podendo ser descrita como um maneirismo estilístico, atingido somente na idade avançada, que demonstra características intrínsecas de um melhoramento. Há ainda o que Bikker chama de alterstil universal: o termo não é usado apenas para descrever o estilo tardio de Rembrandt Van Rijn, mas de forma geral, para quaisquer outros pintores, sendo possível encontrar o uso do termo para descrever as obras tardias de Tiziano42, Hals43 e Turner44 (BIKKER; WEBER, 2015). Como será definido mais adiante, os textos de Vasari, Van Mander, De Piles e Sandrart descrevem um estilo bruto associado à idade, embora o termo alterstil não seja usado. Heinrich Wölfflin45 e Alois Riegl46 foram os primeiros de uma longa série de historiadores e críticos que usaram o termo alterstil como referência direta as obras tardias de Rembrandt. Para compreender de maneira mais profunda o alterstil e definir com mais detalhes esse termo, segue uma análise de autores sugeridos por Bikker (BIKKER; WEBER, 2015) que usaram o termo alterstil tanto para denotar o aumento da qualidade do trabalho do artista quanto sua diminuição. A investigação das opiniões dos autores sobre a qualidade das pinturas de Rembrandt no período de seu alterstil são importantes para o entendimento do termo, sendo os autores em questão aqueles que moldariam o termo para seu amplo uso na bibliografia do artista.

3.1.1. Associações com o Declínio da Qualidade: Roger De Piles Bikker diz que os historiadores da virada do século Wölfflin e Riegl foram responsáveis pelo desenvolvimento do conceito moderno de estilo dentro das artes visuais, definindo-o

42 Tiziano Vecelli (1488/1490 – 1576).: Também conhecido na língua inglesa como Titian, foi um dos pintores italianos mais famosos e influentes de sua geração, considerado um dos fundadores da escola veneziana. Nascido em Pieve di Cadore, estudou pintura nos ateliês dos irmãos Bellini, em Veneza. 43 Frans Hals (Antuérpia, 1580 ou 1585 - Haarlem, 10 de agosto de 1666) foi um pintor holandês durante o Século de Ouro dos Países Baixos. O grande retratista de Haarlem ficou famoso por retratar a sociedade dos Países Baixos segundo uma estética naturalista, com ênfase no retrato pictórico. 44 William Turner (Londres, 1775 - 1851) pintor inglês, considerado por alguns como um dos precursores da modernidade na pintura, em função dos seus estudos sobre cor e luz. 45 Heinrich Wölfflin (1864 – 1945). Historiador da arte suíço, definiu os conceitos de pictórico e linear. 46 Alois Riegl (1858 – 1905). Historiador da arte austríaco, influente pelas suas idéias do formalismo.

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como a expressão de uma certa fase cultural, isto é, características visuais das obras artísticas de um período. Os mesmos autores viriam a cunhar o significado definitivo de alterstil. É importante lembrar no entanto, que embora as próximas passagens e citações sejam descrições de estilos de pintura que tratam de um estilo tardio, o termo alterstil só viria a ser usado na virada do século (BIKKER; WEBER, 2015, p. 16). Assim como Wölfflin e Riegl determinaram uma organização de estilos para diferentes épocas, anteriormente, em 1688, o acadêmico Roger de Piles47 definiu que os estilos dos artistas mudam conforme a idade, separando então a carreira dos pintores em diferentes estágios ou aquilo que poderíamos chamar hoje de estilos. Esse é provavelmente um dos primeiros textos que esboça uma definição do alterstil. Segundo De Piles, essas mudanças ocorrem em três fases distintas:

[...] não é a partir de uma única pintura de um artista, mas de seu trabalho geral, que julgamos seu mérito; pois não há pintor que não tenha feito algo bom, e também pinturas ruins, variando seu cuidado ou gênio. Não há pintor que também não teve seu início, progresso e seu fim; isto é, três maneiras. A primeira aprende com seu mestre, a segunda formada pelo próprio juízo, na qual sua capacidade e gênio são encontrados e a terceira comumente degenera-se no que chamamos de maneirismo: para um pintor, que por tanto tempo estudou a [partir da observação da] natureza, estará disposto, sem nenhum pesar, a fazer uso apenas de sua experiência (DE PILES, 1754, p. 62).

O uso do verbo degenerar, sugere que para De Piles a fase tardia caracteriza-se como pior do que as anteriores, isto é, um distanciamento da competência, um declínio na carreira dos artistas. Nesse texto não há explicações pormenorizadas indicando o que causa esse declínio na opinião de De Piles, o leitor permanece livre para supor, sendo elementar numa primeira análise, que a causa dessa diminuição provavelmente são as dificuldades fisiológicas surgidas com o avanço da idade, provavelmente ligadas a diminuição ou perda da visão. É válido lembrar novamente que, se o estilo considerado como alterstil aparece nas obras de Rembrandt a partir de sua pintura Moça Jovem na Janela, de 1651, então o pintor possuía quarenta e quatro anos de idade quando começou a fazer uso do estilo.

47 Roger de Piles (1635 – 1709). Pintor, gravurista, crítico de arte e diplomata francês. Estudou teologia e filosofia, mas se dedicou a pintura. Trabalhou como embaixador da França em Portugal, Veneza e Espanha. Foi preso no Hague como espião da corte francesa portando passaporte falso, permaneceu no cárcere por cinco anos, onde escreveu L'Abrégé de la vie des peintres, publicado em 1669. Nesse livro, apresenta “notas” numéricas para diferentes pintores, numa tabela comparativa.

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Van de Wetering, De Witt, Bikker e Alpers traçam paralelos entre os estilos tardios de Rembrandt e Tiziano, por suas consideráveis similaridades estéticas. A data de nascimento de Tiziano é mencionada na bibliografia do artista como duas possíveis datas: 1488 e 1490. Considera-se o período “maduro” de Tiziano a partir de 1530 ou pouco antes, nesse ano o pintor possuía entre quarenta ou quarenta e dois anos de idade.

Figura 2 Detalhes da obra Menino com Cães em Paisagem, Tiziano Vecellio (Boijmans, 1565-75). Fonte: Nossa, 2018.

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Estaria então De Piles correto em afirmar que as características rústicas desse estilo, seu maneirismo estilístico, usado por ambos os artistas aos seus quarenta e poucos anos, significam uma degeneração da qualidade de suas obras? A seguir, define-se outras perspectivas sobre o estilo tardio desses pintores.

3.1.2. Associações com a Perda da Visão: Joachim von Sandrart Em 1675 o pintor e historiador da arte Joachim von Sandrart48, contemporâneo de Rembrandt, em seu livro Teutsche Academie, influenciado pelo texto de Karel Van Mander (analisado adiante), sugere aos jovens pintores que “[...] pratiquem pinturas delicadas e sutis, pois naturalmente irão adquirir o estilo bruto e solto na maturidade, conforme a visão começar a falhar49” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14). É pertinente notar que, diferente de De Piles, Von Sandrart menciona de modo explícito que as características de uma fase tardia é um estilo bruto. Na passagem de Sandrart, o termo maturidade gera uma espécie de impasse quando apresentado junto ao conceito da perda de visão. Maturidade enaltece um estado avançado de experiência e conhecimento, enquanto a perda da visão sugere um defeito ou estado de retrocesso. Portanto, é possível interpretar a relação feita por Sandrart de modo negativo, devido a sua relação a falha da visão. Por outro lado, embora Sandrart mencione a falha da visão de modo explícito, ele não define qualitativamente as características desse estilo, parece não compará-lo como melhor ou pior do que o estilo delicado e sutil, mas apenas diferente. Para Bikker, embora críticos como Sandrart pudessem associar o alterstil com a perda de visão, é possível que de maneira geral, a associação não fosse necessariamente negativa. Bikker sugere que para Sandrart a dificuldade de enxergar não significava um empecilho, mas uma condição que poderia facilitar a transição de um estilo “liso” para um estilo “solto”:

[...] essa técnica definitivamente não era vista como uma evidência do declínio dos poderes artísticos; ao contrário, o processo natural de envelhecer daria a eles um estilo mais solto e individualístico. Não

48 Joaquim (ou Joachim) Sandrart (1606 – 1688). Pintor, gravurista e historiador da arte nascido em Frankfurt, hoje mais conhecido como o autor de livros sobre arte, alguns em latim, especialmente sua obra Teutsche Academie. Estudou pintura com inúmeros mestres e em diversas cidades como em Praga, Veneza, Roma, Bologna, Firenze, Nápoles, Malta, Londres (fazendo cópias de Holbein), Utrecht (como pupilo de Gerrit van Honthorst, quando também conheceu Rubens, trabalhando para o pintor nas pinturas de Maria de Medici, hoje no Louvre). Mudou-se para Amsterdam em 1637, onde ficou famoso por fazer retratos e pinturas de gênero. O escritor Houbraken, que fora seu pupilo, diz que Sandrart era “próximo a Rembrandt”, usa em seu livro "Schouburg" de 1718, dados contados por Sandrart. 49 “[...] free , coarse technique in old age as their eyesight failed”.

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há sugestão de que o trabalho de artistas idosos faltava em criatividade. O processo criativo na velhice poderia ser apreciado como uma fase de maturidade e experiência; de fato, era visto como o oferecimento da oportunidade para um novo estilo expressionista [...] (BIKKER; WEBER, 2015, p. 15).

Há ainda outras perspectivas a serem consideradas antes que uma conclusão possa ser esboçada, e por isso, analisa-se a seguir os textos de Giorgio Vasari e Karel Van Mander, que associam o estilo à maturidade dos artistas, embora Van Mander também cite a perda da visão.

3.1.3. Associações com a Maturidade: Giorgio Vasari e Karel Van Mander Bikker cita a importância de certas passagens da obra de Vasari pois elas definem o alterstil e a maneira rústica usada por Tiziano (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14). Embora Vasari não aponte de modo explícito uma relação direta entre a idade avançada e o estilo rústico de pintura, o autor reconhece que o estilo se desenvolveu no final da carreira do artista: “ [...] é certamente verdade que seu método de trabalhar em suas pinturas tardias é muito diferente daquele usado quando era jovem” (VASARI, 2008, p. 503). Portanto, pelo menos no caso de Tiziano, Vasari associa o estilo com a maturidade, claramente admirando o estilo rústico como uma “[...] técnica, que feita nessa maneira, é repleta de bom senso, linda e estupenda, porque faz as pinturas não só parecerem vivas mas executadas com grande habilidade escondendo o esforço” (VASARI, 2008, p. 504). Mais adiante, na tentativa de definir de modo pormenorizado as características da maneira rústica, o texto de Vasari será detalhadamente analisado. Van de Wetering cita a importância das definições do pintor e historiador Karel Van Mander50, que em seu manual de pintura escrito em 1604, Schilder-Boeck, em duas passagens cita a maneira rústica. Numa primeira passagem, discorre sobre a evolução do estilo de Tiziano, definindo:

50 Karel Van Mander (1548 – 1606). Pintor, crítico de arte, poeta e teórico flamengo. Residente na Holanda no período final de sua vida, se tornou o principal biografo dos artistas dos países baixos nesse período, comparado a Giorgio Vasari. Foi professor de Frans Hals e influenciou uma série de escritores e historiadores da arte. Van Mander fez uso da obra de Giorgio Vasari, As Vidas dos Artistas (VASARI, 2008), como base para escrever o seu Schilder-Boeck, literalmente usando as mesmas palavras de Vasari. Sua obra foi praticamente formatada pela anterior: uma extensa biografia sobre os mais célebres pintores.

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Os primeiros trabalhos de Tiziano são pintados numa maneira que as cores são suavemente mescladas umas nas outras, o que com certeza fora feito com o pincel carregado, mas em sua última fase, quando a definição de sua visão já falhava, ele deixava as pinceladas largas sem muito trabalho, as quais, vistas de certa distância, maior do que o comprimento de um braço, possui um efeito ainda mais poderoso (VAN DE WETERING, 2016, p. 205).

Nota-se, que embora o autor trate que o estilo está em função de uma decrepitude biológica, novamente a falha da visão, o efeito estético do mesmo é poderoso e, portanto, um modo de pintura adequado para Van Mander. Numa outra passagem, que pode soar numa primeira análise como uma contradição, adverte aos seus jovens leitores que “[...] comecem com uma técnica sutil, pois somente os maiores e mais experientes artistas conseguem empregar de modo adequado a maneira rústica de pintura”51 (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14). Nessa passagem, Van Mander é claro em definir o estilo como uma exclusividade dos mais experientes artistas. Portanto o estilo é definitivamente fruto da experiência, embora a perda da plena funcionalidade da visão é um facilitador para que se possa trabalhar com o estilo. É um revés aparentemente desejável ao artista, que aproveita o defeito a seu favor, interpretando aquilo que vê de forma resumida, econômica e abreviada, com pinceladas menos trabalhadas, subsequentemente obtendo um resultado mais solto e de maior frescor. O termo frescor ainda é particularmente usado nos ateliês para descrever pinturas soltas, um jargão pertinente nesse caso, pois ilustra o contrário daquilo que está velho ou passado52. Portanto, diferente de De Piles e Sandrart, Van Mander e Vasari associam o estilo com um aumento da qualidade, uma perspectiva positiva ligada a uma ascensão estilística e a experiência do artista. É importante notar que Van Mander não parece reservar o privilégio desse conhecimento a qualquer um, mas somente aos “maiores e mais experientes”. Assim como Vasari e Van Mander, outros historiadores mais recentes, como Neumann e Simmel, parecem reservar o brilhantismo da fase madura apenas para artistas experientes (BIKKER; WEBER, 2015, p. 17).

51 Frase tirada da Vida dos Artistas (VASARI, 2008). 52 No sentido de perder a validade, ter expirado.

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Figura 3 Artista em seu Ateliê, Gerrit Dou (1649). Fonte: Nossa, 2018.

A pintura de um dos pupilos de Rembrandt, Gerrit Dou53, conhecida como Artista em seu Ateliê (1649), para Bikker, inspira-se na visão de que a idade traz maturidade ao pintor: ilustra um artista em idade avançada, exercendo seu ofício de maneira digna e plena, sem nenhum tipo de impedimento físico (BIKKER; WEBER, 2015, p. 15). A pintura foi executada aproximadamente no período em que Rembrandt adotaria definitivamente seu alterstil. É possível que para Dou seu próprio mestre servira como a confirmação de que a velhice traz melhorias à técnica de pintura. O pintor contemporâneo Odd Nerdrum54, oferece uma pertinente observação acerca da fase madura de diferentes artistas, todos com incontestáveis reputações artísticas: “[...] se você olhar as últimas pinturas de Tiziano, as últimas pinturas de Rembrandt, as últimas esculturas de Michelangelo, pensaria que foram todas feitas pela mesma pessoa [...]” (NERDRUM, 2014). Com vasta experiência no ofício da pintura, Nerdrum oferece em sua máxima a opinião de que é possível notar características similares, associadas a uma maturidade processual, nos últimos trabalhos desses grandes artistas. É possível que Dou acreditava que esse conhecimento e desenvoltura técnica, alcançada na idade avançada por pintores dedicados, poderia também ser alcançada por pintores extraordinariamente dedicados ainda na juventude? Ou seria essa maturidade

53 Gerrit Dou (1613 – 1675).: Nascido em Leiden, aluno de Rembrandt durante três anos. 54 Odd Nerdrum (1944). Pintor figurativo norueguês, famoso por ser fortemente influenciado pela pintura barroca, principalmente pela pintura de Rembrandt, mostra em seu trabalho todos as características de um alterstil.

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processual descrita nos textos de Vasari, Van Mander, Simmel e Neumann um estado alcançável somente a alguns pintores excepcionais? Seria esse o caso dos artistas comumente citados como possuidores de um período alterstil, como Rembrandt, Hals, Tiziano, Velásquez e Turner? Como citado anteriormente, não é objetivo deste estudo investigar as causas que influenciam o desenvolvimento de um estilo alterstil ou maneira rústica, para isso seria necessário investigar o estilo usado por uma série de pintores. Mas, parece correto afirmar que, cada caso é único. Os fenômenos e atributos responsáveis pela formação da estética do alterstil são provavelmente um conjunto e não um único fator responsável. Embora a definição mostre considerável complexidade terminológica e estética, Bikker afirma que o termo alterstil “[...] tornou-se padrão em publicações alemãs [...], sendo o período tardio de Rembrandt um exemplo de alterstil por excelência. [...]” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 17). A seguir, define-se ainda outros termos comumente usados para descrever o estilo de pintura usado por Rembrandt em seu período tardio.

3.2. Estilo Tardio (Late Work) e Maneira Rústica (Rough Manner) A discussão terminológica mais atual dos termos rough manner e late work são discutidos por Bikker (BIKKER; WEBER, 2015), Schama (SCHAMA, 2015) e Alpers (ALPERS, 1991). A bibliografia pioneira sobre a terminologia e sobre as características estéticas dos estilos são Vasari (VASARI, 2008), De Lairesse (DE LAIRESSE, 1817), Van Mander (MIEDEMA, 1973), Baldinucci (FORD et al., 2018), Hoogstraten (WESTSTEIJN, 2013) e Houbraken (FORD et al., 2018). Os termos estilo rugoso e fase madura, aparecem primeiramente na língua portuguesa na versão traduzida da obra de Alpers (ALPERS, 2010). A relevância deste capítulo se encontra na discussão pormenorizada sobre os termos em português e na tentativa de cunhar um termo mais adequado para o estilo na língua portuguesa. O objetivo é definir pormenorizadamente cada um desses termos, analisando suas características estéticas. Enquanto o termo alterstil é amplamente usado ao norte da Europa, principalmente nos textos de raiz germânicas, o termo late work aparece em inúmeras publicações em inglês (BIKKER; WEBER, 2015). A tradução literal do termo alterstil funciona como um indicador temporal, o último período de uma produção, o período próximo ao fim da vida de um pintor. A tradução para o português do termo é comumente encontrada na bibliografia do artista

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como estilo tardio, embora a tradução literal seja trabalho tardio. Portanto, alterstil e maneira rústica, são termos usados para descrever uma mesma estética. Além do termo late work, os termos rough style ou rough manner também são usados para descrever o estilo tardio de Rembrandt em inúmeras obras da bibliografia em inglês usada neste estudo. A tradução literal de rough style para o português é estilo bruto ou estilo rude. No livro original de Svetlana Alpers (ALPERS, 1991) a autora faz uso de ambos os termos (late work e rough manner) para descrever a obra do artista. Uma recente edição do livro de Alpers editado pela Companhia das Letras traz uma tradução para o português onde o termo late work foi auspiciosamente traduzido por Vera Pereira55 como fase madura (ALPERS, 2010, p. 223), interpretação inédita na bibliografia em português sobre o artista. Já o termo rough style foi traduzido por Pereira como “estilo rugoso”. Mais adiante, após uma definição mais clara das características formais do estilo em questão, discute-se com mais detalhes as especificidades de cada um desses termos e suas traduções. De qualquer forma, define-se que estilo ou período tardio (late work), maneira bruta ou rústica (rough manner ou maniera grossa) e alterstil são termos usados para apontar, de maneira geral, um estilo particular de pintura usado no período tardio da carreira de certos artistas, embora haja diferentes significados e possibilidades interpretativas para cada um desses termos. Uma solução dessa discussão é proposta na conclusão deste estudo, onde sugere-se como hipótese (secundária) um termo mais adequado para o estilo do artista. A seguir, investiga-se as características visuais e conceituais do alterstil, ou maneira rústica.

3.3. Características 3.3.1. Visuais Na obra de Vasari, As Vidas dos Artistas (VASARI, 2008), há algumas descrições sobre a aparência das pinturas de estilo tardio do mestre Tiziano. Vasari chama essa maneira de pintura de estilo grosso, em português, estilo rude ou rústico. Bikker, assim como Alpers e Van de Wetering, apoiam-se constantemente nessa passagem de Vasari sobre Tiziano, pois o trabalho tardio do artista demonstra forte correspondência estética com o de Rembrandt, ambos artistas desenvolveram esse estilo grosso mencionado por Vasari depois dos quarenta

55 Tradução de Vera Pereira, coordenação de Sérgio Miceli, Editora Compainha das Letras (São Paulo).

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anos de idade. (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14). É por isso que se faz necessário, comparar os estilos de ambos pintores para uma análise mais concisa. Vasari descreve em detalhes a aparência das pinturas e o possível processo do estilo tardio de Tiziano:

[...] executadas com pinceladas largas e seguras, de tais contornos grosseiros, de forma que de perto pouca coisa pode-se ver, mas de certa distância parece perfeito. E essa técnica explica por que muitos, tentando imitar Tiziano para provar sua habilidade, produziram obras desajeitadas, e isso acontece pois embora acredita- se que foram executadas sem esforço, a verdade é bem diferente, pois estes artesãos estão muito enganados, é óbvio que suas pinturas são retrabalhadas e voltando para trás com as cores muitas vezes, fazendo evidente seu esforço. E essa técnica, feita nessa maneira, é repleta de bom senso, linda e estupenda, por que faz as pinturas não só parecerem vivas mas executadas com grande habilidade escondendo o esforço (VASARI, 2008, p. 504).

Analisando cuidadosamente cada um dos trechos dessa passagem (VASARI, 2008, p. 504), podemos visualizar as características que Vasari julga como as mais importantes para descrever o estilo. Ao descrever que essas pinturas são “[...] executadas com pinceladas largas e seguras [...]”, evoca-se a imagem do uso de trinchas largas, certamente ferramentas que não soam como pequenos pincéis macios. Como comparação, é possível citar o texto de Houbraken: “[...] em seus últimos anos, [suas pinturas] quando vistas de perto, pareciam que a tinta havia sido aplicada com uma trincha rústica56 para pixe [...]” (FORD et al., 2018, p. 101). Ao usar a palavra “segura”, Vasari remete à ideia de que, apesar do uso de ferramentas rudimentares, o trabalho aparenta ser executado com clareza processual, provavelmente seguindo um método estabelecido, portanto, não se trata de um processo que recorre ao acaso. Também remete à ideia de que o estilo revela pistas de uma mão experiente, já acostumada com uma mesma abordagem. Os “[...] contornos grosseiros [...]” descritos por Vasari dão conotação de velocidade de execução ou de uma deliberada intenção em deixar alguns detalhes sem uma descrição absolutamente perfeita, afinal, há certamente algo de tedioso na perfeição excessiva, é aquilo que nos faz apreciar a liberdade processual desse aspecto rústico e grosseiro do estilo.

56 Segundo Bikker, o termo original usado por Houbraken é “ruwe teerkwast” (rough tar brush) (BIKKER; WEBER, 2015, p. 133).

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Vasari faz então uma observação absolutamente pertinente, apontando uma das características mais importantes do estilo, o fato de que, “[...] de perto pouca coisa pode-se ver, mas de certa distância parece perfeito”. Esse fenômeno visual, claramente observável nas obras do período tardio de Rembrandt e de Tiziano é uma descrição precisa da experiência estética do estilo. Vasari parece pouco interessado na riqueza de marcas e texturas presentes nesta técnica, tão apreciadas hoje, ou não teria dito que “de perto pouca coisa pode-se ver”. Seria isso uma pista de que, nessa época, essas texturas não eram consideradas apreciáveis, mas somente aquilo que assumia uma forma figurativa e reconhecível à distância? De qualquer forma, a frase de Vasari indica a necessidade de tomar-se distância, forma “perfeita” de observar essas obras. Outros comentários de Vasari provam que o autor conhecia profundamente a natureza e a dificuldade processual dessa técnica. A passagem “[...] embora acredita-se que foram executadas sem esforço, a verdade é bem diferente [...]” demonstra que Vasari entendia perfeitamente que não se tratava de velocidade na execução, brevidade ou falta de acabamento, mas um processo complexo que atinge um resultado solto, expressivo e de maior espontaneidade. Descreve que tais pinturas eram “[...] retrabalhadas, voltando para trás com as cores muitas vezes, fazendo evidente seu esforço [...]” portanto, também demonstra que embora essas pinturas pareçam o fruto de um processo veloz e descomprometido, era necessário grande esforço do pintor para conseguir bons resultados, isto é, assim como nas pinturas lisas e trabalhadas, a maneira rústica também exigia um árduo debruçar do artista. Vasari demonstra em simples palavras grande entendimento do processo: a maneira grossa não se trata de um resultado acidental e do acaso, mas da assertividade, da segurança e de um método. A frase “[...] executadas com grande habilidade escondendo o esforço” prova que além de compreender a técnica, admirava sua estética, “[...] repleta de bom senso, linda e estupenda [...]”. Levando-se em consideração a descrição de Vasari, é possível definir alguns parâmetros que fazem a diferença entre esses dois modos de pintura: o academicismo liso e a maneira grossa.

Vasari sobre a diferença entre modo Acadêmico e Grosso ACADÊMICO ESTILO GROSSO Sem pinceladas ou pinceladas modestas Pinceladas largas e seguras Contornos sutis Contornos grosseiros

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Obra permanece a mesma em diferentes distâncias De perto “pouco se vê”, De longe é “perfeito” Apresenta sinais de esforço e muitas etapas Obra parece ter sido feita “sem esforço”

Na versão italiana de Le Vite dei Artisti (VASARI, 1997), a passagem que descreve a maneira grossa dispõe de algumas descrições importantes sobre as características do estilo. Como por exemplo, os termos57 di colpi (de um golpe), diligenza (diligência, velocidade, presteza, segurança) e grosso (bruto) (VASARI, 1997, p. 728), que seriam usados até os dias de hoje para descrever o estilo. Na obra de Bikker (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14) cita-se a mesma passagem, extraída da edição do The Lives of the Artists de 197958. Numa outra edição da mesma obra, de 200859, encontram-se pequenas diferenças, embora os termos que realmente importam sejam exatamente os mesmos: “[...] executadas com pinceladas largas e estocadas com o varrer amplo e até grosseiro do pincel [...] “. Em ambas as traduções para o inglês, encontram-se os termos bold60 (corajoso; decidido; abrupto; nítido), broad61 (amplo; generoso; direto; grosseiro) e coarse62 (grosso; áspero; rude; rústico; grosseiro; bruto), todos os termos usados em ambas as edições parecem concordantes com os termos usados originalmente em italiano por Vasari. Além da descrição de Vasari, outros termos usados em outros textos para definir o estilo devem ser levados em consideração e comparados a outras descrições do período, na tentativa de encontrar correspondentes e variantes.

57 [...] Conciò sia che le prime son condotte con una certa finezza e diligenza incredibile e da essere vedute da presso e da lontano, e queste ultime, condotte di colpi, tirate via di grosso e con macchie, di maniera che da presso non si possono vedere e di lontano appariscono perfette; e questo modo è stato cagione che molti, volendo in ciò immitare e mostrare di fare il pratico, hanno fatto di goffe pitture, e ciò adiviene perché se bene a molti pare che elle siano fatte senza fatica, non è così il vero e s'ingannano, perché si conosce che sono rifatte e che si è ritornato loro addosso con i colori tante volte, che la fatica vi si vede. E questo modo sì fatto è giudizioso, bello e stupendo, perché fa parere vive le pitture e fatte con grande arte, nascondendo le fatiche. [...] 58 Tradução de Gaston De Vere. 59 Tradução de Julia e Peter Bondanella. 60 Bold.: Michaelis On-line. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017. 61 Broad.: Michaelis On-line. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017. 62 Rough.: Michaelis On-line. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017.

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A obra de Lairesse também descreve um estilo bruto nos mesmos moldes da descrição de Vasari (DE LAIRESSE, 1712, p. 11). O autor faz uso do termo holandês ruwer63 (do substantivo ruw, ou mais grosseiro que), traduzido para o inglês como rougher (DE LAIRESSE, 1817, p. 5) para descrever a estética de um estilo diferente do usual. Na obra de Baldinucci, assim como Vasari, associam o estilo com “golpes”, transmitindo uma ideia similar de que o estilo é feito com pinceladas rápidas e de uma vez, uma pintura feita de “[...] violentas e consecutivas pinceladas [...]” (FORD et al., 2018, p. 43). O uso dos termos golpes e violento certamente remetem a ideia de velocidade de execução mas é importante salientar que provavelmente, essa velocidade empregada não da forma que se imagina. O que Vasari provavelmente tentou ilustrar, é que a maneira grossa é uma técnica que faz uso de uma construção com menos etapas e camadas, um processo mais econômico e dinâmico, ou, como se diz nos ateliês, uma técnica mais direta do que aquela usada nas pinturas lisas. Isso é o que os italianos viriam a chamar um dia de alla prima64. Além de Vasari e Baldinucci, Bikker, também faz citação a obra de Karel Van Mander. Van Mander trata sobre o alterstil na seguinte passagem: “[...] somente os maiores e mais experientes artistas conseguem empregar a maneira bruta de pintura. [...]” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14), a tradução feita por Bikker, do holandês para o inglês, para maneira bruta faz uso do termo rough (cru, rústico, grosseiro). Alpers (ALPERS, 2010) também cita Van Mander, indicando que o autor usa o termo holandês rouw para descrever o tipo de pintura de Rembrandt. O sentido do termo é passível de interpretação através de diversos possíveis substantivos em sua tradução para o inglês e Alpers sugere o termo inglês rough (cru, rústico, grosseiro), exatamente como Bikker o fizera (ALPERS, 2010, p. 69). Abaixo, organizou-se uma tabela com alguns termos usados para descrever as características da maneira rústica de pintura, acompanhados de suas fontes originais e suas traduções para o português.

63 O pintor e estudioso holandês Jan Bustin, em correspondência, nos esclarece que a grafia correta é rouw e não ruw, embora seja preciso lembrar que a conjugação verbal da época era diferente e há uma recorrente falta de consistência gramatical na escrita do período. 64 Alla Prima.: Método direto de pintura, modo de se pintar numa só sessão, “de primeira” ou como se costuma dizer nos ateliês, “numa sentada só”.

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Descrições para “Rough Style” ou “Rough Manner” 1550 Giorgio Vasari (em Di Colpi de um golpe italiano) Diligenza diligência, velocidade, presteza, segurança Grosso grosso; rude; grosseiro; bruto Giorgio Vasari (em inglês) Bold corajoso; decidido; abrupto Broad amplo; generoso; grosseiro Coarse grosso; áspero; rude; rústico; grosseiro; bruto 1604 Karel Van Mander Rouw (Ruw) Cru, rústico, grosseiro 1675 Joachim von Sandrart Ruw Cru, rústico, grosseiro 1678 Samuel von Hoogstraten Ruw Cru, rústico, grosseiro 1686 Filippo Baldinucci Penellate violente Violentas pinceladas 1712 Gerard De Lairesse Ruwer Cru, rústico, grosseiro 1718 Arbold Houbraken Ruwe (Ruwer) Cru, rústico, grosseiro

Na recente obra que analisa o alterstil de Velásquez, Ortega, na língua espanhola, cita que uma das características do estilo é a: “[...] construção da pintura baseada na premissa que será vista de certa distância, técnica conhecida como ‘manchas distantes’ (o que explica o uso dos pincéis de cabo longo)[...]” (ORTEGA, 2016, p. XII), em total concordância com o texto de Vasari sobre Tiziano, assim como aos textos holandeses que descrevem as características das pinturas de Rembrandt. Portanto, de maneira geral, é possível concluir que os textos germânicos mais importantes do barroco empregam os termos rouw, ruwer e ruw, traduzidos literalmente na língua inglesa pelo termo rough (cru, rústico, grosseiro) e na língua italiana mostram o uso de um correspondente praticamente literal: grosso (rude, bruto).

3.3.2. Conceituais Nesse capítulo, analisa-se as características de cunho intelectual ou conceituais da maneira rústica, isto é, todos os conceitos por trás das inovações técnicas e estilísticas. Não é o foco deste estudo analisar em profundidade essas características ou oferecer um novo olhar sobre as mesmas., mas apresentá-las brevemente como forma de contextualização para o entendimento da técnica.

3.3.2.1. Distanciamento ou Aproximação do Naturalismo: Ruptura e Transgressão A ideia de que a maneira rústica não era um estilo amplamente popular durante o período barroco é levantada por Bikker (BIKKER; WEBER, 2015) e pode ser analisada através dos textos históricos de De Piles (DE PILES, 1706), von Sandrart e Hoogstraten (FORD et al.,

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2018). A relevância deste capítulo é apresentar o estilo como uma transgressão, um conceito de ruptura para com os ideais estéticos em voga no período. Os textos históricos organizados para este estudo descrevem a maneira rústica de modo a destacar o tratamento das pinceladas: largas, generosas, grossas, de uma vez, brutas, decididas, corajosas e outras palavras que de alguma forma dão a ideia contrária de uma pintura lisa, delicada e contida. Essa mesma ideia é citada por Bikker, aparecendo como um estilo diferente daquele empregado por artistas mais comerciais:

[...] que o artista tivesse grande experiência: precisava ter dominado por completo as habilidades de pinturas finamente detalhadas antes que pudesse empregar com sucesso uma técnica bruta – por abreviação e omissão – para criar o efeito desejado [...] (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14).

A escolha dessas exatas palavras por Bikker é muito importante. O uso dos conceitos de abreviação e omissão trazem uma dimensão totalmente diferente ao procedimento da maneira rústica e ajudam a ilustrar de forma brilhante algumas das ideias mais importantes a compor o tipo de pensamento técnico por trás desse estilo. Ao invés de pintar exatamente aquilo que vê, Rembrandt abrevia, omite e sintetiza parte do que observa, distanciando-se do naturalismo, cada vez mais próximo de uma idealização das formas. O sintetismo no olhar artístico é fundamental, um dos grandes pilares da maneira rústica, substitui a estética da descrição pela estética da sugestão: o embarque para o universo sui generis. Todos os textos analisados aqui, mostram de alguma forma que esse não era o estilo padrão de pintura, portanto, distinguem a maneira bruta do trabalho “acadêmico” aceito como o modo adequado pelo mercado de arte do séc. XVII. Portanto, a maneira bruta qualifica-se como um estilo menos popular. Não há dúvida de que o estilo apreciado pela massa era a pintura lisa, com toques delicados e executada de modo absolutamente descritivo e detalhado.

[...] Não há pintor que também não teve seu início, progresso e seu fim; isto é, três maneiras. A primeira aprende com seu mestre, a segunda formada pelo próprio juízo, na qual sua capacidade e gênio são encontrados e a terceira comumente degenera-se no que chamamos de maneirismo: para um pintor, que por tanto tempo estudou a [partir da observação da] natureza, estará disposto, sem nenhum pesar, a fazer uso apenas de sua experiência (DE PILES, 1754, p. 62).

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Aventurar-se no estilo da maneira rústica, para De Piles, aparentemente não era um caminho comumente escolhido por qualquer pintor. Em sua descrição das diferentes etapas ao decorrer da carreira de um artista, De Piles (DE PILES, 1754, p. 62) menciona que no início, há primeiramente a simulação do estilo do Mestre (professor), depois o progresso ou maturidade e finalmente a última fase (período tardio) na qual há o desenvolvimento de um estilo próprio, isto é, a maneira do pintor (BIKKER; WEBER, 2015, p. 14). Embora Bikker não faça um mergulho profundo nessa questão, essa passagem pode ajudar a compreender as características do alterstil na perspectiva de De Piles, visão provavelmente compartilhada por outros críticos e artistas desse período. O uso do termo estilo próprio denota a tentativa de descrever um modo de pintura que ainda não possuía uma definição específica, um estilo que não se adaptava as tendências populares. É possível interpretar que na visão de De Piles, esse estilo distancia-se do modo de pintura considerado apropriado ao período. É possível que De Piles, ao usar os termos “estilo próprio” e “maneira do pintor”, considere o alterstil como um modo de pintura que desconsidera o mimetismo absoluto, em voga na época, denotando a maneira rústica um grau de idealização, um processo de pintura no qual o artista não limita-se apenas imitar a natureza, mas a ter alguma liberdade de interpretação daquilo que vê, executa aquilo que é observado conforme as leis da natureza (mimetismo) mas coloca embutindo algo “seu”, criando por fim, um maneirismo. Note que De Piles parece desaprovar esse conceito, fazendo uso de um tom aparentemente crítico, com o uso dos termos “degenerar” e “sem nenhum pesar”. De Piles parece defender uma posição a favor do naturalismo e contrária ao maneirismo. Se a degeneração a um estilo próprio é a característica observada por De Piles no último estágio das fases dos pintores, considera-se que a observação seletiva e a execução interpretativa são seus principais guias estilísticos: esse pode ser portanto o significado daquilo que ele chama do uso de “apenas da experiência”. Em outras palavras, o artista pinta “de cabeça” ou a partir da sua interpretação pessoal, criando uma realidade própria, um maneirismo. A própria frase entrega De Piles, revela de forma literal a opinião de que recorrer à experiência não é adequado, os artistas devem executar a realidade exatamente como ela é, sem nenhuma interferência racional ou poética: distanciar-se da observação e da execução puramente reprodutiva, aparentemente não é o que De Piles espera dos artistas. O autor parece enxergar os maneirismos de um estilo próprio, que não segue as normas da academia, como um retrocesso.

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O texto de Joachim Von Sandrart, um dos muitos pupilos de Rembrandt, opina diretamente sobre o trabalho do artista, elogiando e enaltecendo suas pinturas (FORD et al., 2018, p. 91), embora outra passagem possa ser lida tanto como uma aprovação quanto como uma reprovação o fato de que Rembrandt se distanciou dos estilos em voga na época: “[...] ele persistiu com sua própria maneira de pintura, e não hesitou em se opor e contradizer as nossas regras da arte [...] (FORD et al., 2018, p. 29). É possível interpretar que Sandrart, assim como De Piles e Hoogstraten parecem desaprovar o fato de que o mestre transgrediu as normas estilísticas da academia, optando por seguir suas próprias regras. Embora os autores mais importantes da bibliografia usada para este estudo consigam traçar algumas explicações sobre isso, não é absolutamente claro porque cada um desses autores, critica o trabalho de Rembrandt. A priori, é possível interpretar que a desaprovação é por conta do afastamento do naturalismo, ou da aproximação do tenebrismo, mas o fato é que nenhum desses autores claramente explica a problemática. Entrar nos méritos de uma discussão estética não é objetivo deste estudo, mas é necessário questionar a compreensão das críticas de seus contemporâneos através da relação da aproximação ou distanciamento do naturalismo. A interpretação do que é mais naturalista ou mais idealizado sempre estará dependente do contexto ao qual o interlocutor projeta sua análise, ou pelo menos, de algum outro parâmetro comparativo. É fato que o estilo do período tardio possui como característica algum desprendimento do mimetismo, embora ainda seja fortemente vinculado ao mesmo. Afinal, suas obras são compostas de uma aguçada observação da realidade, mas ao mesmo tempo, também mostram uma licença poética do olhar, um distanciamento do que se vê, o uso de sua interpretação em função de um efeito pictórico, provavelmente uma tentativa de fazer com que a realidade pareça melhor do que ela é, ou mais dramática. Portanto, pelo menos a partir da perspectiva da teoria de cor, abandonar as ideias da escola italiana do renascimento, configura-se como um distanciamento do idealismo, afinal, os italianos exageravam fortemente as cores de suas obras. Nesse sentido (cromático) há uma aproximação do naturalismo por parte de Rembrandt. Portanto, embora possamos definir que, em certo sentido a obra do período tardio distancia-se do naturalismo, em outros sentidos ela na verdade aproxima-se. É devido a essa complexidade que muitos dos tratados holandeses estudados aqui, soam às vezes confusos ou até contraditórios. Essas críticas e enaltecimentos são bravatas poéticas que nem sempre possuem uma retórica que faça absoluto sentido nesses tratados, a não ser

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que as mesmas sejam explicadas de modo pormenorizado por seus autores, o que quase nunca é o caso. Portanto, tentar definir o estilo de Rembrandt de modo tão dualista, definindo-o através dos extremos realismo e idealismo, é uma tarefa impossível, e pode-se dizer o mesmo quanto a uma compreensão das críticas ao estilo de Rembrandt feitas nos textos do período. Por hora, para este estudo, basta apenas compreender que, a maneira rústica não era exatamente aquilo que estava nas graças da sociedade como um estilo oficial de bom gosto, embora certamente não fosse tomado como um estilo inaceitável. É certo que podemos nos identificar com a noção romântica de que Rembrandt escolheu pintar dessa maneira por convicção de que a maneira lisa não é o caminho mais expressivo e, portanto, a maneira rústica seria um rompimento com essa estética. Por outro lado, Bikker sugere considerar que apesar do estilo ser aparentemente um conceito transgressor, é possível que a decisão de Rembrandt pode ter sido puramente comercial, isto é, escolheu um estilo diferente pois apostava num nicho específico com menor oferta no mercado, menor concorrência e certamente menos explorado do que a maneira lisa (BIKKER; WEBER, 2015, p. 18).

3.3.2.2. Abreviação e o Inacabado Apesar de Van de Wetering considerar algumas partes das pinturas Autorretrato com Dois Circulos e Retrato de um Menino como parcialmente inacabadas (VAN DE WETERING, 1997, p. 203), ele também parece disposto a considerar a hipótese de que Rembrandt considerava-as como obras finalizadas.

Em luz das ideias de Rembrandt acerca do que é algo finalizado, parece inapropriado referir-se as pinturas discutidas aqui como inacabadas. É de fato uma opinião arbitrária considerar essas pinturas como inacabadas no sentido em que o próprio Rembrandt pode ter considerá-las como tal. Não disse Houbraken que as palavras de Rembrandt foram que “uma obra está pronta quando o mestre alcança sua intenção com ela” implicando que um trabalho inacabado pode ser declarado como acabado pelo pintor. Por outro lado, Houbraken dá a entender que há trabalhos realmente inacabados quando diz – sem dúvida informado por Hoogstraten e Aert de Gelder, os quais possuíam íntimo conhecimento sobre Rembrandt e seus meios -: ‘uma coisa é estar arrependido, e isso quer dizer que mudar [de opinião] tão rápido e começava a fazer outras coisas, que muitos de seus trabalhos foram deixados somente meio terminados’ (VAN DE WETERING, 1997, p. 210).

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De Vries relata o histórico da pintura Homero (Mauritshuis, 1663), que apresenta informações pertinentes a essa discussão. De acordo com uma carta repleta de detalhes sobre a transação de compra dessa obra, a pintura foi despachada para Messina, na Itália, para o cliente Don Antônio Ruffo, juntamente com a obra Alexandre65 (1663). Aparentemente, o cliente não aprovou o estado de ambas as obras e as enviou em 1662 de volta a Amsterdam para serem terminadas. O cliente não aprovou completamente a pintura que havia encomendado, Alexandre, e se dispôs a aceitar Homero contanto que o pintor cobrasse um preço menor, como uma compensação pela incompletude da obra Alexandre. O pintor não aceitou a oferta, teimando nos preços originais. O pintor completou a pintura em 1663 (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 171). Embora muitos detalhes dessa transação sejam desconhecidos, é possível fazer algumas teorias a partir da interpretação da carta: se Rembrandt insistiu com os preços originais, é possível que não considerasse Homero como uma pintura “mal-acabada”. Talvez tenha aceitado continuar a desenvolver a pintura apenas para satisfazer o gosto do cliente. De qualquer forma, se o estado atual da obra é exatamente o estado da obra entregue na época para Don Ruffo, e se realmente Rembrandt desenvolveu ainda mais a pintura para agradar o cliente, então a obra em seu estado anterior era possivelmente ainda mais solta e ainda mais rústica. Se isso é verdade, teria Rembrandt ficado satisfeito com esse primeiro estado ainda mais cru de sua obra ou seria isso um mero truque comercial para receber mais dinheiro dessa encomenda? Houbraken, em seu livro Vidas dos Artistas, declara que Rembrandt “[...] no início de sua carreira, esforçava-se muito para concluir suas pinturas, mais do que em seu período tardio [...]” (FORD et al., 2018). A afirmação pode ser lida de duas maneiras: primeiro, que o pintor tinha dificuldade e penava mais para concluir as pinturas no início de carreira pois ainda não possuía experiência o bastante. Outra forma de ler a afirmação de Houbraken, é que o artista no início de carreira preocupava-se mais em trabalhar por mais horas em suas pinturas, uma intenção de capricho processual, ou maior preocupação em mostrar empenho. Parece impossível concluir com clareza sobre as opiniões pessoais do artista, ou até mesmo do público, sobre o estado acabado ou inacabado dessas obras. Embora haja uma categorização geral de estado acabado e um outro inacabado, aquilo que os define pode variar grandemente dependendo do conhecimento sobre pintura de quem analisa a obra. Existe nesse caso, confortável espaço para a subjetividade: enquanto alguns leitores podem

65 A obra nunca foi encontrada (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 172).

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considerar certas obras como peças inacabadas, outros podem considerá-las como fruto de uma execução sintética. Dentre todos os conceitos possivelmente usados por Rembrandt, encontrados em Inleyding ou aparentes em seu trabalho, embora cada um cumpra um pequeno papel de um todo maior, é possível que de maneira geral, o mais fundamental para a maneira rústica de seu período tardio seja a convicção do artista em sintetizar as formas observadas e executá-las na pintura omitindo informação em busca de um resumo visual, uma economia processual que torna a informação mais simples e solta, ao contrário de uma pintura trabalhada a exaustão que mostra cansaço, as pinturas de Rembrandt são frescas. Rembrandt provavelmente entendeu que, ao contrário do trabalho laborioso e detalhado, que se torna cansado e tedioso visualmente, uma execução determinada, segura, porém econômica em informação, apresenta mais expressividade. Para concluir, Weststeijn formula uma frase que representa de maneira soberba o espírito dos artistas por de trás do alterstil, no contexto da Holanda do séc. XVII: “[...] a opção da maneira rústica é essencialmente uma função do caráter do artista: a maneira rústica significa uma natureza ‘alerta’, enquanto um estilo liso e duro é efeito colateral proveniente da falta de impulso criativo [...]” (WESTSTEIJN, 2008, p. 235).

3.3.2.3. Temática: Ethos Apesar do foco deste estudo ser as características estilísticas formais e processuais do estilo de pintura tardio de Rembrandt, assim como uma análise de seus materiais, é necessário contextualizar, de modo breve, as temáticas usadas pelo artista nas obras desse período. Segundo Bikker, além das características visuais do estilo de pintura, há aparentemente um conceito mais elaborado por trás das temáticas escolhidas pelo artista: “[Há] outros marcos associados ao desenvolvimento desse estilo tardio, incluindo o primeiro uso de uma figura intensamente meditativa em seu trabalho” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 13). Bikker sugere que o estilo do período tardio não somente na obra de Rembrandt, mas como na obra de outros grandes mestres, tem como característica a escolha de temáticas ou de atmosferas insufladas do que chama de ethos (BIKKER; WEBER, 2015, p. 15). Segundo Bikker, o autor romano Quintiliano66 definiu dois modos de persuasão da retórica: o pathos, definido como agitado, um “apelo à emoção”, associado às paixões

66 Marcus Fabius Quintilianus (35 a 95 d.c.). Escritor, advogado, professor e filósofo romano.

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impetuosas e de natureza passageira, e o ethos, um “apelo à conduta ética”, denotando firmeza, de natureza permanente. Na antiguidade grega, temas edificantes, moralistas e épicos (ethos) eram considerados mais apropriados à artistas mais velhos, enquanto a sensualidade e as paixões (pathos) eram vistos como temas mais adequados aos jovens, os artistas mais velhos eram ridicularizados caso explorassem temáticas relacionadas ao pathos (BIKKER; WEBER, 2015, p. 15). Segundo Keuls67 (KEULS, 1978), o historiador Pollitt68 define ethos como “o caráter, formado através de modo hereditário, hábito e autodisciplina” ou “basicamente o tipo de homem que o herói é” (KEULS, 1978, p. 95). O autor também observa que tanto Quintiliano quanto outros romanos tiveram dificuldades em traduzir e definir o conceito de ethos para o latim pois não há um termo equivalente para a língua (KEULS, 1978, p. 100). Para Bosanquet “[...] nas tragédias [gregas], encontram-se quatro requerimentos para o ethos: primeiro, deve ser bom; depois, próprio da pessoa; depois, natural; depois, uniforme ou consistente [...]” (BOSANQUET, 1892, p. 73). Keuls explica que o ethos como um critério para as artes tem seu início na obra Poética, de Aristóteles69, possuindo nesse caso um significado mais específico, dependendo da atividade artística: nas artes cênicas é uma forma ou qualidade de ação dramática, no caso da pintura um tipo de ação ligada à demonstração de caráter ou ética dos personagens ou daqueles que são retratados, captada visualmente pelo pintor (KEULS, 1978, p. 107). Hoje, o termo ethos é amplamente usado nas mais diversas esferas profissionais. No Direito, com o significado de um “argumento moral”, em contrapartida ao “argumento emocional” (pathos) e definido, em outras esferas do conhecimento, como uma disposição mental permanente, isto é, atributo mental não momentâneo, personalidade, ação individual de manifestar caráter (KEULS, 1978, p. 96) . Baseado nesses parâmetros, podemos afirmar que ethos, dentro do contexto temporal do período tardio de Rembrandt, compreende o uso de temáticas que apresentam personagens, histórias, simbologias ou ícones insuflados de virtudes, ilustrando ideias ou captando momentos que façam o observador refletir sobre a conduta ética ou moral da humanidade: enfim, revelar a condição humana.

67 Eva Keuls (1923). Escritora e Professora, Universidade de Minnesota, EUA. 68 J.J. Pollitt (1934). Escritor e historiador, Universidade de Cambridge, Inglaterra. 69 Aristóteles (384 a.c.- 322 a.c.). Escritor, cientista e filósofo da Grécia antiga.

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Ficando então as principais características do estilo de modo razoavelmente organizado e definido, a seguir analisa-se os materiais usados pelo artista para a fatura de suas obras do período tardio.

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4. Materiais O atual capítulo é um apanhado geral da bibliografia técnica sobre o artista que define quais os materiais usados por Rembrandt, principalmente aqueles referentes ao seu período tardio. Artigos científicos e pesquisas que dissecam a anatomia de suas pinturas da perspectiva físico-química foram organizados e analisados, as informações mais pertinentes apresentadas aqui de forma objetiva. Para melhor organizar os diferentes tipos de materiais, o capítulo foi dividido em subcapítulos que tratam cada um desses materiais de modo individual. A relevância desse capítulo está na organização e definição pormenorizada de cada um desses materiais, quase sempre ausente nas publicações e artigos originais. As principais fontes bibliográficas para os estudos físico-químicos que analisam as pinturas do período tardio são as obras publicadas por Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997) desenvolvidas para o RRP que analisam os materiais e as técnicas empregadas no período tardio de modo geral. As análises sobre veículos, solventes e sobre a presença de resinas compreendem as obras de White e Kirby (KIRBY; WHITE, 1994), Keune e Boon (KEUNE; BOON, 2005), Maroger (MAROGER, 1948), Doerner (DOERNER, 1984), Smith (SMITH, 1687) e por Karin Groen (GROEN, 1997). As fontes que investigam as diferenças entre os óleos prensado a frio (não modificado) e o aquecido são as obras de Theophilus (THEOPHILUS, 1847), Billinge (BILLINGE et al., 1997), Carlyle (CARLYLE, 1995), Smith (SMITH, 1687), White (WHITE; KIRBY, 1994) e Groen (GROEN, 1997). Para a análise dos suportes as fontes foram Noble (NOBLE et al., 2010) e Roy (ROY, 2006). Para a organização da paleta, além de Van de Wetering, usou-se uma teoria de Kern (KERN, 2012). As fontes sobre o uso de litargírio são Kirby (KIRBY; WHITE, 1994) e Gonzalez (GONZALEZ et al., 2019). As fontes sobre proteína, são Stuart (STUART, 2007), Groen (GROEN, 1997), Bruyn (BRUYN et al., 1989) e Bomford (BOMFORD et al., 2006). As análises sobre o carbonato de cálcio como adição foram feitas com as fontes de Groen (GROEN, 1997), Bomford (BOMFORD et al., 2006), Roy (ROY et al., 1993) e Viguerie (VIGUERIE et al., 2018). A fonte sobre a goma de cerejeira é Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997). As principais fontes sobre cores e pigmentos são Bomford (BOMFORD et al., 2006), Kirby (KIRBY; WHITE, 1996), Eastough (EASTOUGH et al., 2005) e Roy (ROY et al., 1993). As pesquisas de Bomford (BOMFORD et al., 2006) e de Jonathan Bikker (BIKKER; WEBER, 2015) oferecem um resumo compreensivo das pequisas anteriores, com algumas complementações e através de uma perspectiva mais histórica do que técnica. As questões mais voltadas às propriedades e ao comportamento dos materiais usaram como fonte

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principal as obras de Ralph Mayer (MAYER, 2006), Mark Gottsegen (GOTTSEGEN, 2006), Eastough (EASTOUGH et al., 2005) e Roy (ROY et al., 1993), enquanto as fontes de materiais históricos foram as obras De Mayerne (FELS, 2010), o Manuscrito de Strasburg traduzido pelos Borradailes (BORRADAILE; BORRADAILE, 1966), Eastlake (EASTLAKE, 1847), Theophilus (THEOPHILUS, 1847) e Cennini (CENNINI, 1954).

4.1. Suporte Não é foco deste estudo uma análise pormenorizada das características dos suportes usados pelo artista pois estes não influem na estética da obra70, portanto, analisa-se de forma resumida as características dos suportes em seus principais períodos de trabalho. Van de Wetering cita que todas obras do período de Leiden são feitas em painéis71 de carvalho, (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 12). Em outro texto, cita que “além de algumas poucas obras pequenas feitas em cobre e algumas em papel, todas as pinturas iniciais de Rembrandt são em painéis de carvalho” (VAN DE WETERING, 1997, p. 11). É importante constar que “... os pintores não faziam seus painéis. Fazer suportes e painéis era uma ocupação que mostrava ser prerrogativa da guilda dos marceneiros72” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 16). Van de Wetering cita que “nos arquivos da cidade de Haarlem, é possível encontrar citação de imprimadores [primuerders] a partir de 1631” (VAN DE WETERING, 1997, p. 22), complementa com maiores informações particularmente pertinentes ao caso de Rembrandt:

Durante o séc. XVII, assim como antes, a aplicação de base a um suporte era um serviço usualmente feito por outros [que não o artista] fora do ateliê. Nos arquivos do município de Leiden, há um documento mostrando que em 1676 um Dirck de Lorm estava autorizado a produzir telas e painéis imprimadas para os pintores da cidade...... a possibilidade de que as bases foram feitas dentro do ateliê [pelo próprio artista] não podem ser excluídas (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 20).

70 Como exemplo: “[...] maioria [dos painéis] consistem em uma placa única, enquanto algumas consistiam em duas ou três placas [encaixadas ou coladas]...... os veios da madeira sempre correm de forma paralela ao cumprimento do suporte [lado mais largo]...... O formato das conexões usadas para fixar uma placa a outra varia...... os suportes possuem, na parte de trás, quinas arredondadas ou chanfradas...... os painéis que foram cortados para que pudessem adquirir tamanho menor perderam essas características...” entre outras informações relevantes as características dos painéis (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 12). 71 Painel.: suportes rígidos para pintura, feitos de placas de madeira. 72 Conforme os termos originais do inglês “Joiners and Cabinetmakers”, o segundo pode ser traduzido literalmente como “fazedores de armários”.

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Além disso, os painéis usados por Rembrandt no período de Leiden possuem um tamanho padrão do mercado condizente com esse período, e portanto, há razão para se acreditar que ele os comprou pronto, ou encomendou-os em algum marceneiro especializado em construir esse tipo de produto (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 16). O autor mostra a mesma opinião, anos depois, em outro texto sobre suportes: “[...] é mais provável que esses painéis são de tamanho padrão disponíveis comercialmente” (VAN DE WETERING, 1997, p. 14). Além dos painéis de madeira “em raras ocasiões, Rembrandt pintava em papel. Geralmente, essas pinturas serviam como uma preparação [estudo, rascunho] para outras obras. Somente em 1631 ele começa a trabalhar em tela” (VAN DE WETERING, 1997, p. 17)

[...] por muito tempo se pensou que os painéis nos quais as pinturas feitas durante o século dezessete eram feitos de madeira holandesa. Desde 1987 estudos dendrocronológicos73 mostraram que o carvalho74 usado na Holanda é na maioria da área do Báltico...... quase todo o carvalho usado por Rembrandt é de origem Báltica. Em seu período de Amsterdam, Rembrandt usa painéis de outros tipos de madeira além do carvalho. Por volta de 1640, frequentemente faz uso de painéis de salgueiro75. No mesmo período, também faz uso de mogno76 e outros tipos de madeira tropical...... esses painéis mostram um trabalho de carpintaria diferentes dos painéis de carvalho... mostrando que os painéis de mogno usados por Rembrandt foram usados anteriormente como caixas nas quais o dispendioso açúcar era importado da América Central. Provavelmente não era incomum que os modelos trouxessem seus suportes. Isso pode explicar por que os suportes de retratos são as vezes feitos de madeiras incomuns, os retratos de um casal por exemplo, foram pintados em painéis de nogueira77 (VAN DE WETERING, 1997, p. 16).

4.2. Base (Ground) As bases, que cobrem os suportes, serão analisados em profundidade no capítulo procedimentos técnicos. A definição das bases como um procedimento técnico e não como um simples material foi estabelecida pois elas cumprem uma função importante de

73 Dendrocronologia.: é um método científico de estabelecer a idade de uma árvore baseado nos padrões dos anéis em seu tronco. 74 Oak.: Madeira conhecida no Brasil como carvalho. 75 Poplar.: Madeira da família do salgueiro. 76 Mahogany.: Madeira conhecida no Brasil como mogno. 77 Walnut.: Madeira conhecida no Brasil como nogueira.

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estabelecer meios-tons no trabalho do artista, participando do aspecto final de suas pinturas. O tema pertence a ambas categorias, mas, como boa parte da discussão sobre as bases é o modo como sua cor influenciava naquilo que seria pintado, decidiu-se manter o tema no capítulo de procedimentos técnicos e não no capítulo sobre materiais.

4.3. Paleta Sobre a anatomia da paleta, isto é, a tabua de madeira onde as tintas são colocadas, Van de Wetering afirma que, as primeiras paletas eram pequenas e apesar de terem aumentado de tamanho no decorrer do século dezessete, elas continuaram relativamente pequenas até o começo do século dezenove, entre trinta e quarenta centímetros. Somente no século dezenove adquirem grandes formatos e muitas vezes contornando o corpo do pintor. (VAN DE WETERING, 1997, p. 142). Van de Wetering cita que em seu período inicial “[...] Rembrandt não possuía uma paleta grande. Possuía uma paleta pequena e sem dúvida mais que uma” (VAN DE WETERING, 1997, p. 134). Além disso, também afirma que, usava “[...] uma paleta (limitada) para cada estágio de pintura” (VAN DE WETERING, 1995, p. 196), isto é, um número pequeno de cores em sua paleta para cada estágio que pintava. Segundo Van de Wetering, há indícios78 de que o costume nos períodos do renascimento e do barroco era “organizar a paleta com um grupo de cores específicas para aquilo que o mestre desejaria pintar” (VAN DE WETERING, 1997, p. 140). Isto é, o pupilo preparava as tintas e a paleta com as cores específicas para a área que deveria ser pintada naquela giornata. Portanto, se o pintor estivesse planejando pintar um vestido azul, teria uma paleta organizada com tons de azuis numa escala de valores, se estivesse planejando pintar um rosto, uma escala de tons de pele.

78 A gravura de Jean Baptist Collaert (1566-1628) sobre o dia a dia do ateliê e o texto de Giovanni Battista Volpato (1633).

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Figura 4 O Artista em seu Ateliê, Rembrandt van Rijn (Museum of Fine Arts, 1630). Fonte: Nossa, 2018.

A obra Cena de Atelier (1630) do Museum of Fine Arts de Boston mostra claramente duas paletas limpas penduradas na parede e uma paleta na mão do artista. Para Van de Wetering a representação dessas paletas é mais uma evidência de que o artista de fato fazia uso de paletas pequenas e que havia uma paleta limitada específica para cada estágio ou passagem, no período inicial de sua carreira.

Figura 5 Autorretrato com Dois Círculos, Rembrandt van Rijn (Kenwood House, 1660). Fonte: Nossa, 2018.

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Figura 6 Autorretrato, Rembrandt Van Rijn (Louvre, 1660). Fonte: Nossa, 2018.

Van de Wetering acredita na probabilidade de que em seu último período, o artista já não trabalhava com paletas tão pequenas, talvez ainda compartimentalizava as cores, usando diferentes paletas para certos estágios, ou ainda, fazia uso de uma paleta mais ampla ou completa, com todas as cores que seriam usadas em todos os estágios (VAN DE WETERING, 1997, p. 222).

4.3.1. Organização A organização da paleta, isto é, o modo e a ordem na qual as cores são colocadas na paleta, é um assunto importante. Discutiu-se durante o desenvolvimento deste estudo a possibilidade de classificar a organização da paleta como um assunto mais adequado para o capítulo de técnica e não como material. No entanto, embora a organização seja um facilitador processual, a ordem das cores não se configura como um elemento fundamental que define a estética das obras do artista. O que define a estética da maneira bruta de Rembrandt são as cores que o artista escolhe para usar em determinada pintura e não a ordem ou o modo como essas cores são disponibilizadas em sua paleta. Portanto, decidiu-se incluir a organização da paleta na seção de materiais. Van de Wetering acredita que o modo de organização das paletas também deveria ser diferente, quando se compara período inicial com o período tardio. Para exemplificar a importância da configuração das cores numa paleta para os pintores, Van de Wetering faz

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uma comparação entre os trabalhos de Josef Israëls79 e de Rembrandt: embora Israëls fosse obcecado por simular uma técnica com grande afinidade à técnica de Rembrandt, Van de Wetering está convencido que as diferenças entre o trabalho de ambos se deve principalmente à configuração da paleta usada por esses artistas:

[...] podemos dizer que a unidade alcançada por Israels é caracterizada por um certo grau de enlamamento80, no qual todas as cores podem ser encontradas em todo lugar [...] [...] em contraste, é notável que o trabalho de Rembrandt é definido por grande grau de clareza na estrutura pictórica e especialmente pela importância das cores locais, que nesse sentido, surpreendentemente, seu estilo parece mais próximo ao de Raphael do que por exemplo ao de Israels (VAN DE WETERING, 1997, p. 134).

Van de Wetering aponta que a gravura publicada em Antuérpia do artista flamengo Jan Baptist Collaert (1566 – 1628), uma releitura de uma obra de Johannes Stradanus (1523 – 1605), mostra o dia a dia de um ateliê idealizado do século dezesseis, onde é possível ver uma paleta montada com somente quatro cores sendo usada pelo mestre do ateliê, a pintar uma cena histórica. O assistente, prepara a paleta do Mestre, com número limitado de cores. Segundo Van de Wetering, o Manuscrito de Volpato81, do mesmo período da gravura, leva a acreditar que, somadas ambas as evidências, o assistente prepara uma paleta limitada, arranjada somente com as cores a serem usadas em determinado estágio da obra a ser pintada, por isso “isso implica que tal paleta não inclui todos os pigmentos disponíveis, mas somente aqueles necessários para pintar aquela parte específica da pintura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 140).

79 Jozef Israëls (1824 – 1911).: pintor holandes, líder do grupo de pintura de paisagens referido como Escola de Haia. Durante vida, era conhecido como o “mais respeitado pintor holandes da segunda metade do século dezenove". Estudou de 1835 a 1842 na Minerva Academy, em Groningen, sua cidade natal e continuou seus estudos em Amsterdam, na Royal Academy for Fine Arts, que se tornou mais tarde a State Academy for Fine Arts. Foi pupilo de Jan Kruseman. Quando esteve em Paris, estudou no atelie do pintor histórico Picot e faz aulas na Ecole des Beaux-Arts. Foi muito comparado a Jean-François Millet. Sua carreira começou com temas históricos dramáticos no estilo romantico dessa época, e depois de um período doente, na cidade pesqueira de Zandvoort próximo a Haarlem, começou a se interessar pela tragédia diária da vida. Depois disso, embarcou numa nova veia artistica, sinceramente realistica, cheia de emoção e piedade. 80 Enlamear ou lamear.: termo usado pelos pintores para denotar falta de pureza de cor. 81 A passagem do Manuscrito de Volpato que se relaciona a gravura, segundo Van de Wetering: “Silvio: ‘Diga me, se puder, você monta a paleta de seu mestre? F: ‘Sem dúvida (...) é suficiente que ele me diga o que tem intenção de pintar, que então sei quais cores colocar na paleta’.

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[...] é preciso ver as pinturas do século dezessete (mas também de um pouco antes e depois) como uma imagem composta de passagens entrelaçadas, comparáveis a giornate, as ‘porções diárias’ completadas com sucesso na pintura de fresco, embora no caso da pintura a óleo, um número de passagens deveria geralmente ser completada num dia [...] [...] o método de pintura do século dezessete difere fundamentalmente das pinturas desenvolvidas como entidades tonais como as de Josef Israëls, que usava uma paleta com um alcance completo de cores e com uma área de mistura coberta com montes de tinta misturada, os quais o tom e a cor poderia ser modificados depois [...] (VAN DE WETERING, 1997, p. 140).

Portanto, a primeira diferença entre a pintura de Rembrandt e a de Israëls é a paleta: o primeiro trabalha com diferentes configurações de cores, com número limitado, o segundo trabalha com uma única paleta, com grande número de cores e amplo espaço para misturas.

[...] Rembrandt de fato compunha suas pinturas com uma unidade tonal através de uma pré-pintura82 predominantemente monocromático. A questão aqui, no entanto, é que o desenvolvimento com base numa colorização morta [gera depois] ilhas moduladas de cor local que se integram a composição do trabalho feito na pré- pintura (VAN DE WETERING, 1997, p. 140).

A segunda diferença fundamental é um pouco mais difícil de entender. Aparentemente, no caso de Rembrandt, a camada morta é um estágio finalizado que mais tarde recebe cor local em diferentes áreas que se integram à pré-pintura, isto é, áreas definidas na pré-pintura são cobertas com uma cor uniforme que depois pode receber luz e sombra, por isso, a existência de um sistema que faz uso de diferentes paletas em diferentes etapas. No caso da obra de Israëls, a pré-pintura ainda serve como fundação, mas as camadas posteriores são pintadas alla prima, sem necessariamente receber cor local nas áreas a serem coloridas. Segundo Van de Wetering “esse método de trabalho [de Rembrandt, com diferentes paletas] é determinado pelo material, técnica e limitações econômicas inerentes a tinta óleo, limitações que só desapareceriam (e subsequentemente seriam esquecidas) com a introdução

82 Pré-pintura.: Termo amplamente usado na bibliografia inglesa sobre técnicas de pintura através do termo underpainting, para descrever a primeira etapa da pintura ou sua estrutura inicial que mais tarde é geralmente coberta por outras camadas ou etapas, é comumente relacionada a termos como “esboço tonal” e outros que dão ideia de base, fundação ou início de processo.

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de uma tinta industrial, pronta para o consumo, miscível entre si, que já vem em tubos” (VAN DE WETERING, 1997, p. 141). Para Van de Wetering, “as cores para pintar a pele humana não eram sistematicamente arranjadas na paleta antes de 1600, mas parecem distribuídas aleatoriamente. Por exemplo, a posição do branco difere de caso a caso”, como é possível ver representadas em inúmeras obras do período. Uma passagem do Manuscrito de Bruxelas (1635), escrito por Le Brun, recomenda colocar o branco no centro da paleta, outras fontes, como o manuscrito De Mayerne, citam que o branco deve ser a primeira cor da paleta. Van de Wetering acredita que por volta de 1600 a organização das paletas começa a mudar: desse momento em diante, as cenas de ateliês, como gravuras e pinturas, representam as paletas com uma linha de pequenos montes de tinta espaçados uniformemente ao longo do topo da paleta (VAN DE WETERING, 1997, p. 144).

A usual organização das cores mostra desde uma usual porção um pouco maior de branco, próximo ao buraco [para o dedo], amarelo ocre, vermilion, laca vermelha, e uma progressiva serie de marrons escuros até chegar o preto. Alternativamente, o vermilion é as vezes colocado entre o branco e o buraco da paleta. Esse arranjo está de acordo com a passagem no Manuscrito De Mayerne: ‘observe que, no arranjo da paleta, as misturas claras devem sempre, sem exceção, serem colocadas no topo e as escuras embaixo’ (VAN DE WETERING, 1997, p. 145).

Segundo Kern, é seguro assumir que Rembrandt poderia organizar sua paleta de modo similar ao que é visto no quadro pintado por seu pupilo Aert de Gelder (KERN, 2012, p. 110).

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Figura 7 Autorretrato como Zeuxis83 retratando Mulher Feia e Velha; Aert de Gelder (Städelmuseum, 1685). Fonte: Nossa, 2018.

4.4. Tinta A tinta era geralmente moída e preparada quando necessário, isto é, no momento ou dia do uso. A tinta não podia ser mantida durante muito tempo, embora existissem métodos de prevenir que ela secasse muito rápido, como conservá-las debaixo da água ou em pequenas bolsas feitas de bexiga de porco, uma grande quantidade de tinta poderia secar e ser desperdiçada caso não fosse usada a tempo, perdendo-se tempo e dinheiro (VAN DE WETERING, 1997, p. 146). A seguir, analisa-se individualmente os ingredientes usados para se fazer a tinta.

83 Zeuxis.: Pintor grego, nascido na parte sudeste da “bota italiana” (Basilicata) por volta de 464 A.C.. Embora nenhuma de suas obras tem sobrado, há relatos de que eram famosas por seu alto realismo e pequena escala, as mesmas foram levadas a Roma e a Bizâncio. Há uma lenda de que Zeuxis teria morrido rindo do modo como pintara a deusa Aphrodite, pintando a cabeça da deusa com as feições da pessoa que encomendou a obra, uma mulher “feia e velha”. Segundo Plínio, o Velho, em sua História Natural, Zeuxis e seu contemporâneo, Parrhasius, fizeram uma aposta para determinar quem era o melhor pintor: quando Zeuxis revelou sua pintura de uvas, ela parecia tão real que pássatos desceram para bicá-las. Mas quando Parrhasius, que guardava sua pintura atrás de uma curtina, pediu para Zeuxis descobrir sua obra, a própria curtina era a pintura. Parrhasius venceu, mas Zeuxis disse, “eu enganei os pássaros, mas Parrhasius enganou Zeuxis”.Uma história similar diz que Zeuxis pintou um garoto segurando uvas, e quando os pássaros tentaram bicá-las, o pintor ficou chateado, dizendo que pintou o menino com menos destreza, por que os pássaros teriam medo de chegar perto das uvas caso tivesse pintado-o de modo adequado.

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4.4.1. Veículos Este estudo considera como veículo todas as substâncias que foram usadas pelo artista como meio de dar vazão ou alastramento aos pigmentos. Portanto, categoricamente, os principais veículos de Rembrandt e seu círculo, são nesse caso, os óleos vegetais e o solvente. Há de se considerar que outras substâncias como as resinas foram colocadas no veículo na esperança de mudar suas características originais, portanto não são consideradas aqui como veículos, mas adições, embora possam ser interpretados de modo diferente. Há ainda uma terceira substância, que se caracteriza como parte do veículo. Este estudo considera que o carbonato de cálcio, assim como as resinas e as proteínas, tem como função mudar o comportamento da tinta, portanto, não se trata exatamente de um veículo mas de adições ou cargas inertes. A seguir, analisa-se individualmente os veículos usados por Rembrandt em suas tintas.

4.4.1.1. Solventes Kirby e White acreditam que o uso de tais diluentes era recorrente pelos artistas desse período, para humedecer e limpar os pincéis. Destila-se fácilmente pouca quantidade de terebintina a partir do aquecimento do breu84, através de fogo brando ou até mesmo com vapor. A produção em larga escala já era feita em alambiques de cobre na Holanda, como mostra uma obra de 165885 . O manuscrito Sloane MS 2052, escrito por De Mayerne (1620- 1646), descreve o uso da terebintina86 na pintura de cavalete (KIRBY; WHITE, 1994, p. 74). Os principais indicios sobre o uso de solventes na pintura holandesa do séc. XVII são os textos dos manuais de pintura que citam o uso do material pelos artistas do período. Embora os textos sejam uma prova da existencia do material no período e local, eles não provam o uso de solvente por Rembrandt, embora seja uma possibilidade. Segundo Kirby e White, não é possível comprovar com provas físico-químicas o uso de solventes pois são substâncias

84 Breu.: do francês brai, também chamado de piche ou pez (do latim pix, grego πίσσα) é o nome para qualquer elemento pertencente ao grupo dos viscoelásticos e polímeros. Breu pode ser obtido através de derivados do petróleo ou plantas (extrato vegetal do pinho). O breu derivado do petróleo também é chamado de betume. O breu produzido através das plantas também é conhecido como resina. O breu era tradicionalmente usado para ajudar a vedar as emendas de veleiros de madeira, impermeabilizar embalagens de madeira, e em alguns casos usado para a fabricação de tochas. O breu derivado de petróleo tem a cor negra, daí a conotação "negro como o breu". 85 Livro de Willem Pekstok. 86 White e Kirby traduzem para o inglês como Spirits of Turpentine (KIRBY; WHITE, 1994, p. 74).

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voláteis que não deixam rastros de seu uso na estrutura física das pinturas (KIRBY; WHITE, 1994, p. 74).

4.4.1.2. Óleo Vegetal As tintas, de modo geral, são compostas de dois ingredientes básicos: um veículo e uma carga inerte, nesse caso, pigmento. O veículo tem função de dar alastramento a mistura, enquanto o pigmento tem a função de dar corpo pastoso e cor. No caso da aquarela, o veículo é necessariamente, água. No caso da tinta a óleo, o veículo é necessariamente algum tipo de óleo vegetal, daí o nome tinta a óleo.

4.4.1.2.1. Definição de Óleo Prensado a Frio Textos históricos e pinturas murais apresentam exemplos do uso de tinta a óleo na Europa ocidental já na idade média ou até anteriormente. Um dos exemplos, é a citação sobre o uso do óleo de linhaça como veículo nos manuscritos de Teófilo Presbyster87, aproximadamente do ano 1100 (mas provavelmente mais antigo), no manuscrito de Heraclius88 e no manuscrito de Ghiberti89, que cita o uso do óleo por Giotto90, por volta de 1290 (EASTLAKE, 1847, p. 46). A receita para produção artesanal de óleo de linhaça de Teófilo é a seguinte: [...] pegue [as sementes da] linhaça e seque numa panela sobre o fogo, sem água. Depois, coloque num porfírio e macere com um pistilo até que se torne um pó fino; coloque novamente na panela, colocando um pouco de água, até que fique bem quente. Depois, coloque num tecido e coloque numa prensa, na qual azeite, nozes ou papoula são prensados na mesma maneira” (THEOPHILUS, 1847, p. 25).

O mesmo tipo de óleo continuou a ser usado no período Gótico (Pré-Renascimento). A partir de estudos que dissecam a estrutura de pinturas a óleo de primitivos flamengos entre 1434 e 1540, assim como de primitivos alemães entre 1445 e 1510, escolas que popularizaram o uso da pintura a óleo em cavalete em toda a Europa, Billinge apresenta uma extensa pesquisa que mostra óleo de linhaça prensado a frio como o veículo mais usado nas pinturas

87 Theophilus Presbyter.: (circa 700-800 a.c.), Norte da Europa. Monge bizantino autor do manuscrito românico De Diversis Artibus, também chamado de Schedula Diversarium Artium. 88 De coloribus et artibus Romanorum escrito por Heraclius, circa 1000 – 1300 d.c. 89 O manuscrito de Ghiberti compreende a última seção do manuscrito Commentaries. (WOOD, 2007, p. 272) 90 Giotto di Bondone.: (1267 – 1337), Florença. Conhecido pela “introdução” da perspectiva nas pinturas do renascimento.

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flamengas, em segundo lugar, o óleo de linhaça prensado a frio espessado por calor (BILLINGE et al., 1997). Há de se observar que o óleo de linhaça disponível nas lojas de materiais artísticos de hoje é diferente do óleo disponível na antiguidade. O óleo do séc. XVII, e antes disso, era extraído esmagando as sementes da linhaça num moinho ou prensa, método que denominamos hoje de prensagem a frio (EASTLAKE, 1847, p. 321). O óleo de hoje, é produzido através de um processo industrial que envolve o amolecimento das sementes através de calor produzido por vapor para a máxima extração de óleo das sementes. Após a extração, uma preparação de ácido sulfúrico é misturada ao óleo para remover a mucilagem causada pela extração a calor. Há também outros processos, ainda mais modernos, como a extração com solventes e o refinamento com substâncias alcalinas91 (GOTTSEGEN, 2006, p. 75). O processo que envolve a adição de substâncias alcalinas resulta num óleo chamado hoje de óleo alkalí. É evidente que são produtos diferentes. Gottsegen cita que ainda hoje, alguns artistas preferem o óleo prensado a frio, para fazer tintas no ateliê: “[...] o óleo prensado a frio é preferível, por sua baixa viscosidade e boa habilidade de absorção” (GOTTSEGEN, 2006, p. 205).

4.4.1.2.2. Definição de Óleo Espessado e Óleo de Sol Próximo ao ano 1500, no alto Renascimento, há um grande número de receitas para tintas feitas com óleo vegetal, usadas para pinturas em painéis. A receita do Libro dell´Arte de Cennino Cennini é outra referência sobre os veículos usados em toda a Europa:

O quão bom e perfeito torna-se o óleo pelo cozimento ao sol: Quando fizer esse óleo, poderá ser cozido de outras formas além dessa; é mais perfeito para pintura, mas para mordente tem de ser cozido ao fogo. Pegue seu óleo de linhaça, e durante o verão coloque-o numa frigideira de cobre, ou vasilha, e deixe no sol até que chegue agosto. Se o deixar até que reduza seu volume pela metade, ele será perfeito para pintura. Saiba que o achei em Florença como o melhor que se pode encontrar (CENNINI, 1954, p. 59).

A receita de Cennini indica um processo de adequação ou modificação do óleo prensado a frio, resultando no que comumente chamamos hoje de “óleo de sol”. Gottsegen explica resumidamente o que acontece nesse processo e as características do material resultante: “[...]

91 Daí o nome Óleo Alkalí. A substância alcalina serve para reduzir a acidez do óleo. Baixos teores de acidez são bons para reduzir a tendência do óleo de amarelar. O mesmo é depois lavado para remover os sais precipitados pelos agentes alcalinos.

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o óleo resultante é muito viscoso, um pouco clarificado e de boa secagem. O óleo é parcialmente polimerizado92 e um pouco oxidado93; é um bom nivelador94” (ibid., p. 75, tradução nossa). White e Kirby mencionam que no séc. XVII os métodos de tratar o óleo eram comuns, expondo-o ao sol para engrossá-lo, assim como ensina a receita de Cennini, antes que o mesmo fosse usado para ser misturado à tinta, com instruções presentes em inúmeros manuscritos, como no manuscrito De Mayerne (1620-1646) (WHITE; KIRBY, 1994, p. 68). Mayer corrobora com as seguintes contribuições sobre esse processo: “[...]a ação do sol e do ar tem três aspectos: oxida parcialmente, polimeriza parcialmente e alveja efetivamente o óleo [...] aumenta sua rapidez de secagem e suas qualidades protetoras e niveladoras” (MAYER, 2006, p. 187). Este óleo espesso, alterado pelo calor, é chamado de óleo secante95 ou óleo secativo, quando espessado por exposição ao sol ou através de métodos artificiais de calor, embora o nome óleo de sol seja mais usado quando espessado através da exposição ao sol. A pesquisa de Carlyle deixa claro a razão de processar o óleo dessa maneira: “[...] a escolha do óleo dependia não somente do pigmento usado, mas também da estação. Óleos tratados somente pelo cozimento ou [cozidos] em conjunto com compostos metálicos (secantes) para acelerar sua secagem eram às vezes recomendados somente para os dias de inverno, quando úmido, o clima frio aumentava o tempo de secagem” (CARLYLE, 1995, p. 3). White e Kirby corroboram com a opinião de que a resiliência do filme formado por esse óleo é superior e ainda acrescentam outras características desejáveis provavelmente notadas pelos artistas do séc. XVII:

Em fontes documentadas, tais óleos tradados são chamados de óleos secantes. A pré-polimerização pelo calor possui vários efeitos no óleo. [...] O índice de refração é aumentado, reduzindo a refração caótica de luz na interface do veículo e então aumentando a

92 Quando o óleo oxida, ele também polimeriza, isto é, sua estrutura molecular muda de forma. Uma vez solidificado, torna-se uma substância diferente da original, nesse caso, engrossando (GOTTSEGEN, 2006, p. 75). 93 Os óleos vegetais não secam por evaporação, mas por oxidação. Isto é, aborvem oxigênio e solidificam formando um filme elástico e resistente. (GOTTSEGEN, 2006, p. 75) O que Gottsegen quer dizer por “um pouco oxidado” é que o óleo já se conserva num estado “pré-seco”, embora continue elástico e dê alastramento. 94 Nivelador por que “nivela” ou “some” com as marcas de pinceladas, ao contrário do óleo de linhaça comum, que possui tendência de conservar as marcas feitas pelas cerdas do pincel. 95 Drying Oil: Óleo que seca mais rápido do que o óleo “não tratado” ou “óleo não modificado”. Geralmente, um óleo espesso ao sol ou ao calor artificial, ou ainda tratado com adições de algum secante metálico como o chumbo.

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saturação da cor do pigmento; o filme formado pela tinta também adquire uma aparência mais brilhante. O pigmento não afunda tanto dentro do filme formado pelo veículo, o que faz diminuir o volume do filme, reduzindo a quantidade de murchamento que pode ocorrer. As tintas claras parecem menos amareladas por que, como os ácidos poli saturados presentes no filme são destruídos com a formação de ligações de carbono, há menos chance de formação de grupos auxocromicos e chromophoricos, são eles que dão a aparência amarelada no filme (KIRBY; WHITE, 1994, p. 69).

Portanto, define-se como óleo de sol ou óleo espessado, os óleos vegetais que foram modificados por ação do calor do sol ou de calor artificial para engrossá-los e torná-los pré- polimerizados, isto é, um óleo com propriedades secativas melhoradas para uso na pintura. Esse tipo de óleo é mais elástico, satura as cores depois de secas, dando maior brilho à película pictórica e ainda seca mais rápido do que o óleo não tratado. São propriedades desejáveis a qualquer veículo usado para a pintura a óleo.

4.4.1.2.3. Óleos usados por Rembrandt e seu Círculo Segundo Van de Wetering, “[...] foi na National Gallery [...] que a primeira análise sistemática do veículo de Rembrandt foi feita [...] em 1988/89” (VAN DE WETERING, 1997, p. 229), executadas pelo químico Raymond White, essas análises definiram que: “Rembrandt possuía preferência pelo óleo de linhaça como veículo de suas tintas [...] usado de modo descomplicado, isto é, sem detectar adições de outros materiais [...] somente em alguns casos ele [White] encontrou óleo de nozes ao invés da linhaça” (VAN DE WETERING, 1997, p. 229). Reproduz-se abaixo, traduzida para o português, a tabela feita por Raymond White, com os resultados das análises de obras de Rembrandt investigadas na National Gallery de Londres:

Obra Data Amostra Veículo Base, camada de cima Linhaça Base, camada de baixo Linhaça Judas e as Trinta Moedas de Prata 1629 Preto do chão Linhaça (?) Cinza-esverdeado do fundo Nozes Parte clara do fundo a esquerda Linhaça Retrato de Mulher com 83 anos 1634 Parte preta do vestido Linhaça Saskya van Uylenburch em fantasia Branco acinzentado da parte de baixo do vestido Nozes 1635 Arcadiana Preto acastanhado escuro da folhagem, parte de cima Linhaça Impasto branco, quente, da borda Alquídico Nuvem branca, perto da cruz, borda de cima a esquerda Papoula Lamentação do Cristo Morto 1635 Cor mostarda, próximo ao tecido branco Linhaça Fundo preto acastanhado, borda direita Linhaça

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Impasto branco da túnica Linhaça Impasto amarelo dos detalhas da túnica Linhaça A Ceia de Belshazzar 1636-8 Adereço da cabeça da mulher, esquerda, sombras Linhaça Vestido vermelho da mulher Linhaça Autorretrato com 34 anos 1640 Parapeito marrom claro, lado direito Nozes Impasto escuro, parte de cima da coluna do centro Linhaça Marrom-alaranjado pálido da coluna da direita Linhaça Mulher pega em Adultério 1644 Base Linhaça Fundo vermelho, borda de cima Linhaça Fundo preto Linhaça Adoração dos Pastores 1646 Base Linhaça Luz alta mostarda do telhado, borda esquerda Linhaça Roupa marrom Linhaça Monge Franciscano 1666 Tinta pálida, borda da esquerda Nozes Cinza azulado do fundo Linhaça Luz alta branca do vestido Nozes Retrato de Hendrick Stoffels 1656 Base Nozes Casado preto Nozes Homem Barbado com Chapéu 1657 Base Nozes Manga preta da roupa Linhaça Homem Velho como São Paulo Marrom avermelhado, canto de cima Linhaça Xale branco, ombro direito Nozes Retrato de Jacob Trip 1661 Lado da cadeira marrom-avermelhado Linhaça Preto, parte de baixo da bengala Linhaça Gola branca Linhaça Retrato de Margaretha de Geer 1661 Fundo marrom Óleo + Ovo? Base Linhaça Impasto branco Linhaça Busto de Margaretha de Geer 1661 Linhaça + Fundo preto resina Impasto branco dos detalhes da jaqueta Linhaça Retrato Equestre de Frererik Rihel 1663 Impasto vermelho, detalhes da manga Linhaça Marrom escuro, manga direita Linhaça Autorretrato com 63 anos 1669 Fundo marrom-oliva na borda de cima Linhaça Base Linhaça

Segundo White, a prática de Rembrandt segue o padrão da época. Uma das provas disso, são os textos sobre materiais de pintura do período, que em raras citações mencionam óleos diferentes da linhaça e o de nozes, como o óleo de papoula96, descrito no manuscrito De Mayerne (1620-1646) e no tratado De Groot, de Willem Beurs97 (1698). Portanto, os registros escritos refletem o que fora descoberto por White em sua análise: os óleos mais usados no séc. XVII foram o óleo de linhaça e o óleo de nozes. O uso de linhaça pelo artista confirma o relato dos registros escritos. Aparentemente, o óleo de nozes era recomendado para fazer tintas brancas, pois o material não se torna tão amarelado quanto o óleo de linhaça, ou pelo menos, não amarela tanto quanto a linhaça nos primeiros estágios de secagem. Pelo mesmo

96 Óleo de Papoula.: Em inglês ‘poppyseed oil”. 97 Tratado de Willem Beurs.: Chamado de “De Groot Waereld in´t kleen geschilderd” foi publicado em 1698.

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motivo, também era recomendado para azuis e para tons de pele (KIRBY; WHITE, 1994, p. 67). Segundo as análises feitas por Kirby e White em 1994, inúmeras amostras de diferentes pinturas de Rembrandt revelaram que o artista “[...] fazia maior uso de óleo de linhaça, ocasionalmente óleo de nozes, às vezes de óleo espessado com calor: análises não revelaram nenhuma mistura de veículos incompatíveis ou adições de materiais resinosos que dessem maior transparência, brilho ou aceleração de secagem” (WHITE; KIRBY, 1994, p. 64). Segundo as análises da obra Anna e o Cego Tobit (1659, Mauritshuis), “óleo de linhaça puro98 foi usado em todas as amostras, embora a possibilidade da presença de um pouco de óleo de nozes no céu não possa ser descartada” (WHITE; KIRBY, 1994, p. 67). Kirby sugere que o material usado por Rembrandt como veículo de suas tintas, na maior parte do tempo, está em conformidade com os materiais usados por outros ateliês e artistas do período. O mesmo também pode ser dito sobre seus pupilos e conhecidos mais próximos: “O óleo de linhaça também era o veículo preferido de outros artistas do círculo de Rembrandt, incluindo Lastman e Lievens” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 67). Além desses pintores, White e Kirby analisaram obras de outros artistas do círculo de Rembrandt, como , Govert Flinck, Gerbrand van der Eeckhout, Nicolas Maes e Jan Victors, todos presentes em seu ateliê por volta de 1630. O resultado das análises revelou concordância no uso de veículos:

Análises sugerem que o próprio Rembrandt tendia a fazer uso em maior extensão de óleo de linhaça do que de nozes, para cores claras e escuras, quando óleo de nozes era usado não estava necessariamente restrito a cores mais pálidas ou frias, embora isso seja verdade na maioria dos casos [...] os pintores de seu círculo aparentemente seguiam de forma ainda mais literal as recomendações de fontes escritas [...] o óleo de nozes foi geralmente encontrado [nas pinturas dos artistas de seu círculo] somente em cores claras (WHITE; KIRBY, 1994, p. 67).

Kirby e White, em 1994, voltam a fazer novas análises, dessa vez em pinturas de pupilos e conhecidos de Rembrandt. Definem o uso dos óleos espessados por calor pelos artistas do círculo de Rembrandt, sendo o uso desse óleo, mais específico, dependendo do que se pretendia pintar. Segundo os autores, o uso acontecia em “duas circunstâncias: para obter impasto (numa luz alta por exemplo) e para ajudar na secagem dos pigmentos, como das lacas e do preto, que secam de maneira muito lenta” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 69),

98 Kirby e White usam o termo “untreated linseed oil”.

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portanto, deixam a sugestão de que, para outros tipos de aplicação, um óleo não modificado era usado. Portanto, segundo essa premissa, parece correto afirmar que, nos casos dos pigmentos de secagem rápida ou de aplicações que não eram empastadas mas lisas, o óleo de linhaça comum era usado. Há também o uso de um óleo parcialmente espessado:

Ocasionalmente os resultados das análises de veículos sugerem o uso de um óleo parcialmente cozido [...] Uma explicação pode ser que os pigmentos eram de fato misturados com um óleo parcialmente cozido. Mas, uma explicação mais plausível é que os pigmentos eram misturados a óleo de linhaça comum [prensado a frio] sem modificações; o óleo cozido era adicionado enquanto se pintava [como um medium] (KIRBY; WHITE, 1994, p. 70).

White e Kirby citam inúmeras vezes a obra de John Marshal Smith, de 1687, sobre a arte de fazer tintas, como parâmetro para entender alguns hábitos comuns dos pintores e dos colourmen99 do período. Smith descreve por exemplo, como algumas cores devem ser misturadas em óleo não tratado, mas temperadas na paleta com óleo secativo, isto é, óleo espessado ao sol ou ao calor, pois sem o óleo espessado demoram muito a secar, caso das lacas e do preto, segundo o exemplo dado pelo autor. Segundo Smith, havia também a possibilidade do uso de uma mistura de óleos em diferentes proporções usada para temperar ou preparar as cores (SMITH, 1687, p. 71). Entre as pinturas de pupilos e artistas do círculo de Rembrandt, Kirby e White detectaram vários exemplos do uso de óleos pré-polimerizados misturados a pigmentos de secagem lenta (KIRBY; WHITE, 1994, p. 70). Durante o mesmo período (1994), a análise de algumas obras de Rembrandt, na National Gallery de Londres, revelou o uso de óleos modificados pelo artista. Mais importante que isso, o uso de diferentes óleos, modificado e não-modificado, numa mesma pintura. Kirby e White explicam através das análises da obra A Ceia de Belshazaar (1635, National Gallery de Londres) um exemplo, as análises que definem essa prática:

[...] em A Ceia de Belshazaar (1635, National Gallery de Londres) no manto de Belshazaar [...] um óleo de linhaça espessado a calor foi usado para o impasto de branco [de chumbo] perto do broche, enquanto o impasto amarelo, duro e quebradiço da capa não apresentou indícios de pré-polimerização [óleo espessado] (WHITE; KIRBY, 1994, p. 69).

99 Colourmen.: Profissionais que produziam tintas e materiais artísticos.

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Figura 8 Detalhes feitos com óleo espessado e com óleo prensado a frio (não modificado). Fonte: Nossa, 2018.

Segundo Van de Wetering, alguns estudiosos ainda desconfiavam que os métodos de investigação químico-físicos não captaram todas as substâncias que podiam estar no veículo usado por Rembrandt. Essa desconfiança vinha do fato de que, a diversidade de efeitos em suas pinturas era vasta, e os resultados de Kirby e White mostravam um veículo deveras simples (VAN DE WETERING, 1997, p. 232–233). Por isso, em 1997, novas análises seriam feitas. Karin Groen revelaria mais informações através de análises de outras obras do artista. “As condições para a coleta de amostras relevantes eram favoráveis. Nessa época, esse projeto começou com os do período tardio do Rijskmuseum que estavam sendo restaurados, entre eles, Isaac e Rebecca e (1665, Rijksmuseum) e Os Síndicos (1662, Rijksmuseum)” (VAN DE WETERING, 1997, p. 234). A amostra extraída da manga de Isaac, da pintura Isaac e Rebecca (1652, Rijksmuseum), analisada pelo Instituto AMOLF em Amsterdam, por Jaap Boon, revelaria que o veículo contido na tinta tratava-se de um óleo de linhaça puro que não foi pré-polimerizado pela ação de calor. Outras amostras analisadas por Groen, extraídas da bota de Van Ruytenburch, da Ronda Noturna (1642, Rijskmuseum) e da toalha de mesa de A Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis (1661, Nationalmuseum), também revelaram presença de óleo de linhaça que não foi tratado, óleo sem pré-polimerização (GROEN, 1997, p. 212). Além disso, segundo Van de Wetering “material orgânico em maior abundância do que as análises feitas pela National Gallery foi encontrado [nas análises de Groen]” (VAN DE

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WETERING, 1997, p. 238). Proteína, em pouca quantidade, sugerindo a presença de ovo foram diversas vezes encontradas nas amostras que continham branco de chumbo, nas regiões de impasto de várias obras analisadas através de HPLC (High Performance Liquid Chromatography) por Karin Groen. A substância em questão será investigada com maior detalhes no capítulo “adições”, no subcapítulo “proteína”, mais adiante.

4.4.1.2.4. Modificação do Óleo com Litargírio: Empastes Nos anos noventa White e Kirby citaram a possibilidade da modificação do óleo usado por Rembrandt e seu círculo pelo seu aquecimento com secantes metálicos. Eles citam uma fonte escrita que prova a existência do uso desse tipo de óleo manipulado: o manuscrito de Bruxelas, de 1635, escrito pelo belga Pierre Lebrun100. Em sua obra, há o registro de que um óleo cozido com litargírio101 é bom para misturar a pigmentos como as lacas e o preto. No entanto, Kirby e White observam que “não é fácil detectar os secantes, particularmente quando a tinta inclui pigmentos contendo chumbo” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 70). Uma recente pesquisa (2019) parece lançar uma nova luz acerca dos veículos usados por Rembrandt, mais especificamente sobre o cozimento do óleo com secantes metálicos. Análises conduzidas por Gonzalez e sua equipe revelaram um raro elemento presente nos impastes brancos presentes em três obras de Rembrandt. Trata-se do plumbonacrite, um composto incomum e complexo do carbonato de chumbo, de fórmula química

Pb5(CO3)3O(OH)2 (PN). A substância foi detectada nas seguintes pinturas de Rembrandt:

• Retrato de Marten Soolmans; Rijksmuseum; 1634 • Susanna; Mauritshuis; 1636 • Bathsheba; Louvre; 1654

100 Já comentado em outra nota de rodapé anterior. 101 Litargírio.: Uma das formas naturais do óxido de chumbo (PbO), é um pó que se forma devido a oxidação do chumbo, podendo variar sua coloração, o nome é na verdade usado para várias substâncias similares. O termo também era usado como um sinônimo do branco de chumbo ou do vermelho de chumbo. O óxido de chumbo amarelo, chamado Massicot, também é chamado de litargírio. Outros exemplos são o litargírio de ouro, litargírio misturado com vermelho de chumbo, que confere a cor vermelha. Litargírio de bismuto é um resultado similar da oxidação do bismuto. Litargírio de prata é litargírio originário como um subproduto da separação da prata do chumbo. Na verdade, litargírio originalmente queria dizer um resíduo mineral do refinamento da prata.

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A presença de PN102 é, segundo Gonzalez:

Extremamente rara em camadas de pinturas históricas. Sua ocorrência mais notável está ligada a degradação do pigmento mínio nas pinturas de Van Gogh. Também já foi reportado em amostras de pinturas do séc. 20, após o desenvolvimento de novos métodos de produção de branco de chumbo. No entanto, sua presença em obras mais velhas nunca havia sido reportada até então. É notável sua ausência num extenso grupo de tintas históricas a base de chumbo recentemente estudadas (GONZALEZ et al., 2019, p. 2).

Portanto, é notável a incomum presença do material, fazendo com que a substância seja útil para a área de conservação e restauro como mais uma ferramenta de autenticação de pinturas de Rembrandt. Para a área do estudo da tecnologia de materiais artísticos e das técnicas de pintura históricas, o estudo de Gonzalez revela um provável ingrediente até então desconhecido.

Figura 9 As três pinturas analisadas por Gonzalez: Rijksmuseum; Mauritshuis e Louvre. Fonte: Nossa, 2018.

Gonzalez descarta a possibilidade levantada por Kirby e White103 de que os impastos de Rembrandt poderiam ser compostos apenas por “grande quantidade de branco de chumbo e óleo não tratado104”. O estudo de Gonzalez reconstruiu e analisou impastos feitos dessa

102 PN.: Abreviação para Plumbonacrite. 103 WHITE; KIRBY. Rembrandt and his Circle: Seventeenth-Century Dutch Paint Media Re-examined. National Gallery Technical Bulletin, Vol. 15, 1994. 104 Gonzalez usa o termo “untreated linseed oil”. O autor refere-se a um óleo de linhaça não refinado, prensado a frio, sem adição de qualquer agente secante ou que fora espessado ao sol.

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forma e como os resultados não apresentam PN, como visto nos impastos de Rembrandt, a teoria do óleo não tratado foi descartada por Gonzalez (GONZALEZ et al., 2019, p. 4). Gonzalez cita que as duas primeiras hipóteses eram que o plumbonacrite poderia ter se originado acidentalmente, como uma reação química do próprio branco de chumbo, sendo possível que formara-se durante a corrosão e oxidação do chumbo, uma fase cristalina intermediária do tradicional processo de fatura do pigmento, ou a segunda hipótese, de que a substância surgiu como reação química do branco de chumbo numa fase pós-síntese. A continuidade da pesquisa descartou a possibilidade de ambas hipóteses (GONZALEZ et al., 2019, p. 3). A terceira hipótese é que a formação do PN surgiu de uma reação in situ, isto é, uma reação pós-sintese ocorrida com o pigmento quando misturado a um veículo com condições alcalinas. A teoria de Gonzalez sugere que a causa da alcalinidade do veículo é devido ao uso do litargírio misturado ao veículo usado para preparar o branco de chumbo usado nas camadas de impasto (GONZALEZ et al., 2019, p. 3).

O uso de PbO como secante durante o séc. XVII pelos pintores da Era de Ouro, notavelmente por Rembrandt e seu círculo, na preparação de um meio é reportado em alguns estudos de fontes históricas. Nesse texto, entre muitas hipóteses, os autores propõem que Rembrandt e seus seguidores usavam óleos espessados por calor105 para conseguir a textura necessária para construir impastos (GONZALEZ et al., 2019, p. 3).

Gonzalez encontrou PN numa amostra retirada da pintura Bathsheba106 (Louvre; 1654), a única do período tardio, somente na camada de impasto, localizada na parte de cima, portanto há ausência da substância nas camadas debaixo, sugerindo que o uso da receita seja específica para impastes (GONZALEZ et al., 2019, p. 2). O estudo considera que o plumbonacrite é o resultado de uma receita específica, isto é, um óleo ou veículo que fora adicionado à tinta como um agente que pretende atribuir alguma outra característica à tinta usada pelo artista, portanto não se trata de um acidente.

105 Heat-bodied Oil.: é o nome comumente usado para óleos vegetais espessados pela reação ao calor. Os óleos eram colocados sobre o sol sob longo período de tempo ou engrossados numa panela que ia ao fogo. Na Itália é chamado Olio Cotto (Óleo Cozido). 106 Bathsheba.: em português Betsabá. Esposa de Uriah e mais tarde de Davi, de acordo com a bíblia dos hebreus. Famosa na narrativa bíblica na qual foi chamada pelo rei Davi após ter sido vista por ele banhando-se num rio, desejada pelo rei. Deu luz a Salomão que sucederia seu pai ao trono.

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Segundo Gonzalez, num outro estudo107 dedicado à reconstrução de receitas históricas de veículos usados no período, os resultados mostraram que a substância resultante é um “meio com consistência pastosa” diferente do óleo original que mostra maior fluidez. O litargírio (PbO) portanto, funciona como um reagente básico para a saponificação e como um acelerador de secagem. Uma das reconstruções das receitas de época é do manuscrito De Mayerne (1620-1646), que produz um “óleo com litargírio, grosso, de secagem rápida, que não escorre ou racha”. A receita pede uma proporção de uma parte de litargírio, quatro partes de água e quatro partes de óleo (1:4:4). Esse medium foi reconstruído e usado como teste numa camada de base de uma pintura e analisada após nove anos de envelhecimento natural. O PN foi detectado de maneira uniforme em todo o veículo, de modo similar ao veículo presente no impasto de Rembrandt (GONZALEZ et al., 2019, p. 3). Embora a descoberta de Gonzalez seja excitante, é necessário lembrar que o óleo com litargírio foi detectado em apenas três pinturas do artista. Seria necessário analisar um número consideravelmente maior de obras para definir a substância como um material constante na obra do pintor. Caso somente um número ínfimo de pinturas leve a adição de litargírio no óleo, seu uso pode ser considerado somente como forma experimental. É pertinente citar que o próprio Gonzalez deixa isso claro: “... o corpo de estudo ainda não é extenso o bastante para afirmar que os impastos [de maneira geral, de outras obras] contém PN de modo sistemático” (GONZALEZ et al., 2019, p. 4).

4.4.1.3. Adições Como discutido anteriormente, este estudo considera como adição ao veículo todas as substâncias adicionadas ao óleo vegetal ou ao solvente que possuem a função de modificar o comportamento original do veículo (óleo ou solvente). São as resinas, a proteína e o carbonato de cálcio, a serem analisados de modo pormenorizado a seguir.

107 L. de Viguerie, G. Ducouret, M. Cotte, F. Lequeux, P. Walter. New insights on the glaze technique through reconstruction of old glaze medium formulations. Colloids and Surfaces; 2008, 331, 119 – 125.

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4.4.1.3.1. Resina Charles Lock Eastlake, em 1847, descreve em diversas partes de sua obra, suas impressões sobre a técnica usada por Rembrandt. Em diversos momentos108, parece atribuir o uso de resinas e mediums óleo-resinosos pelo artista, aparentemente o diagnóstico surge de uma inspeção in loco da camada pictórica.

[…] as áreas complexas dessa pintura109 foram provavelmente pintadas com um veículo como a ‘vernice liquida’110 fazendo uso de sua consistência originalmente espessa, contribuindo com [suas propriedades de] secagem [...] A quantidade usada de veículo por Rembrandt em tais efeitos é inimaginada pelos artistas modernos [...] o veículo nesse caso é um verniz-oleoso, misturado em proporções adequadas com cores feitas no óleo (EASTLAKE, 1847, p. 346).

Em outros momentos, Eastlake parece ter sido influenciado por textos que atribuíram o uso de tais veículos a Rembrandt anteriormente. Eastlake atribui a autoria da informação a Mansaert, escritor do livro Le Peintre Amateur.

Um escritor bem familiarizado aos métodos das escolas flamenga e holandesa, tratando sobre uma obra desse mestre a qual adquiriu um tom marrom, observa que, embora seja parcialmente o efeito do tempo, também é uma consequência de pintar com verniz (EASTLAKE, 1847, p. 506).

Em 1921, Max Doerner dedicou um capítulo de seu livro para as técnicas dos Velhos Mestres da pintura. No capítulo sobre os Mestres holandeses, Doerner dedicou grande parte para explicar o que pensara ser o procedimento de pintura usado por Rembrandt Van Rijn: “[...] pintada de maneira bem líquida e sem sombra de dúvida com um meio resinoso, terebintina de Veneza, óleos espessos e mastique”(DOERNER, 1984, p. 367).

108 Descreve o uso do verniz por Rembrandt em inúmeras passagens: “Até mesmo o toque distinto de Rembrandt, produzido por um verniz de secagem rápida, não possui a aparência solta dos venezianos” (EASTLAKE, 1847, p. 504). 109 Eastlake se refere a pintura Retrato de Margaretha De Geer (1661, National Gallery de Londres). 110 Vernice Liquida.: Segundo Eastlake, uma mistura de óleo e verniz de sandarac, de cor avermelhada, criando um verniz oleoso usado na antiguidade para dar acabamento a pinturas e também a móveis (EASTLAKE, 1847, p. 507)

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Em 1948, Jacques Maroger111, chefe do departamento de restauração do Louvre, em seu livro sobre técnicas históricas de pintura, atribui a Rembrandt não o uso de verniz, mas de “[...] cera, em máxima quantidade em seus impastos” (MAROGER, 1948, p. 168). Em 1994, ao analisar diferentes pinturas de Rembrandt e de artistas de seu círculo, Kirby e White concluíram em seu estudo que não há traços de nenhum tipo de resina nas obras do artista. No entanto, os autores citam a descoberta de resinas em uma série de obras de pintores do círculo do artista: “Diferente de Rembrandt, muitos pintores de seu círculo parecem ocasionalmente ter adicionado pequenas quantidades de resinas de pináceas, na forma de verniz, a seu medium ou veículo” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 71). Eles citam o manuscrito De Mayerne (1620-1646) como fonte escrita que prova o uso de vernizes misturados à tinta nesse período, assim como o livro de 1687 de John Smith (SMITH, 1687). Esses antigos textos citados por Kirby e White mencionam o uso da terebintina de Veneza, extraída do lariço112, o sandarac e o mastíque. Também há menção a terebintina, embora Kirby defina que esse material era na verdade o breu. A obra de John Smith recomenda o uso de óleo de nozes com uma pequena quantidade de verniz, uma receita de medium para velaturas. A adição do verniz é recomendada no texto de Smith para acelerar a secagem (SMITH, 1687). Kirby e Whyte, até 1994, citam que nenhuma dessas resinas (terebintina de Veneza, sandarac ou mastíque) foram encontradas nas obras dos pintores holandeses do séc. XVII, isto é, no círculo de Rembrandt, mas somente resina de pinheiro113 (coníferas) adicionada em pequenas quantidades, para velaturas, ou como adição em áreas escuras para que saturem áreas de valor escuro. O artigo de Kirby e White citam que a resina de pinho foi encontrada nas obras de Eeckhout e Pieter Lastman (WHITE; KIRBY, 1994, p. 71).

111 Jacques Maroger.: pintor e diretor técnico do laboratório do Louvre, Paris. Devotou sua vida ao estudo dos meios e veículos usados pelos velhos mestres. Imigrou para os EUA em 1939 e se tornou um influente professor. Seu livro The Secret Formulas and techniques of the Old Masters é criticado por alguns escritores modernos que dizem que a pesquisa de Maroger não é segura. 112 Lariço.: Larix decidua é o nome científico de um lariço nativo dos montes centrais da Europa, nos Alpes e nos Cárpatos, com uma população disjunta na Polónia, conhecida pelos nomes de alerce, cedro, larice- europeu ou lariço-europeu. É uma conífera caducifólia (ou decídua, como é indicado no nome científico) de tamanho médio ou grande, que chega a atingir de 25 a 45 m de altura, com um tronco de 1 m de diâmetro (excepcionalmente, atinge 55 m de altura e 2 m de diâmetro). 113 Pinheiro.: árvores do gênero Pinho ou Pinus, da família Pinaceae, nomes comuns das árvores pertencentes à divisão Pinophyta, tradicionalmente incluída no grupo das gimnospérmicas..

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4.4.1.3.2. Proteína Ao contrário de pesquisas anteriores feitas por White e Boon, as investigações sobre a presença de carbonato de cálcio nos impastos de Rembrandt feitas em 2011 por Karin Groen (GROEN, 1997, p. 223) revelaram nas obras Os Síndicos (1662, Rijksmusuem), Lição de Anatomia do Prof. Jan Deyman (1656, Amsterdam Museum), Casal como Isaac e Rebecca (1665, Rijksmusuem), Ronda Noturna (1642, Rijksmusuem) e Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis (1661, Nationalmuseum), a presença de aminoácidos que foram interpretados por Groen como um provável conteúdo de proteína animal, segundo a autora, cola animal ou ovo, possivelmente o último. Segundo Stuart, detectar traços de ovo numa amostra repleta de óleo vegetal é uma tarefa difícil, desde que ambos contêm triglicerídeos114. Para diferenciar a gordura do ovo da gordura do óleo vegetal é preciso detectar proteína (STUART, 2007, p. 128). Não foi possível averiguar se a proteína consistia em somente gema, clara ou ambos. A conclusão de Groen é de que nessas amostras, havia evidência do uso de uma emulsão com maior constituinte oleosa, nesse caso, linhaça (GROEN, 1997, p. 215). É importante notar que a presença dessas substâncias “acontece somente no [impasto de] branco de chumbo” (GROEN, 1997, p. 224). Van de Wetering, em 1997, acreditava que a descoberta de proteína nos impastos poderia compreender um “segredo de ateliê” usado por Rembrandt para conseguir sua característica expressividade nas luzes altas de suas pinturas (VAN DE WETERING, 1997, p. 240). Sendo o ovo uma substância aquosa, sua adição na tinta óleo torna a mistura uma emulsão: a proteína encapsula as pequenas gotas de água no óleo, de modo uniforme. Van de Wetering acredita que somente uma pequena quantidade de gema seria suficiente para criar a emulsão (VAN DE WETERING, 1997, p. 239). Análises feitas pelo Louvre em 1969, na obra Autorretrato com Chapéu (1633, Louvre), detectou proteína na camada pictórica do lado direito do fundo (BRUYN et al., 1989, p. 340). Há no entanto, análises que descobriram proteína em outras áreas da pintura. Segundo os arquivos do RRP, e do Rembrandt Database, as análises da obra Tronie de um Idoso (1630),

114 Triglicerídios.: Também conhecido como Triacilglicerol, é o nome genérico de qualquer tri-éster oriundo da combinação do glicerol (um triálcool) com ácidos, especialmente ácidos graxos (ácidos carboxílicos de longa cadeia alquílica), no qual as três hidroxilas (do glicerol) sofreram condensação carboxílica com os ácidos, os quais não precisam ser necessariamente iguais. Triacilgliceróis são prontamente reconhecidos como óleos ou gorduras (ver óleo vegetal e gordura), produzidos e armazenados nos organismos vivos para fins de reserva alimentar. De forma simplificada, um triacilglicerol é formado pela união de três ácidos graxos a uma molécula de glicerol, cujas três hidroxilas (grupos – OH) ligam-se aos radicais carboxílicos dos ácidos graxos.

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de uma amostra retirada da área “provavelmente da borda da pintura. Base e camada pictórica”, arquivo 0001494118 (LfNr_855_examination-report_1963.pdf), detectou-se no veículo, material aparentemente proteico animal, usado para constituir a tinta para pintar as camadas da pré-pintura: “Através da análise de FTIR, o veículo da camada da pré-pintura foi investigado. Detectou-se proteína, um teste químico para nitrogênio deu negativo, provavelmente por conta da pequena quantidade do material de amostra, portanto não foi possível determinar se o material era cola animal ou ovo”. Khun também relata presença de proteína em várias pinturas de Kassel, como por exemplo, em uma das duas camadas da base usada na obra Retrato de Homem em Pé (1639, Staatliche Kassel), de maneira similar a Tronie de um Idoso (1630) (BRUYN et al., 1989, p. 297), embora a presença aqui seja em função da preparação da própria base, como costume em toda base de pintura do período. É possível que nesse caso a proteína seja proveniente de uma cola de colágeno, um material que embora contenha proteína como no ovo, comporta-se de maneira totalmente diferente. Assim como artistas fazem uso hoje de tinta acrílica, Rembrandt provavelmente usou uma cola de proteína para criar uma tinta magra de secagem rápida. Uma tinta como essa servia para ser usada nas primeiras camadas que receberiam posteriormente outras camadas. O uso de uma tinta de secagem rápida ao invés de uma tinta à base de óleo possibilitava que as camadas subsequentes fossem colocadas poucos minutos após a camada mais magra. Se o pintor porventura tivesse usado tinta óleo na primeira camada, deveria esperar muitos dias para aplicar camadas subsequentes. Em 1997, a notícia da presença de proteína, sobretudo do ovo, na tinta de Rembrandt foi amplamente disseminada no meio artístico, tornando-se uma nova descoberta a ser usada como ingrediente para mediums que simulariam a riqueza dos impastos do artista. Hoje, uma pesquisa no google, mostra alguns websites pessoais115 que apresentam o ingrediente como um dos segredos usados por Rembrandt.

115 Como em vários posts do website Wet Canvas (http://www.wetcanvas.com/forums/archive/index.php/t- 1356488.html), no site do artista Osamu Obi (http://www.osamu-obi.com), que também disponibiliza a informação num pequeno artigo em formato PDF, no site do artista Jan McDonald (https://janmcdonald.wordpress.com/2015/11/04/karin-groen-article-about-rembrandts-paint-and-binder/), do artista Tad Spurgeon (https://www.tadspurgeon.com/) e do artista Louis Velasquez (http://www.calcitesunoil.com/VanEyckSecret.html). Também é possível encontrar a informação num vídeo de um artista brasileiro que apresenta um meio de simular a técnica de Rembrandt. Um aluno também nos informou de que um professor de pintura que estudou na Rússia ensinou seus alunos, aqui em São Paulo, sobre a adição do material como um “segredo do impasto de Rembrandt”. Todos os exemplos acima mostram que, mesmo que a

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No entanto, White em seu artigo de 2006 publicado na obra organizada por Bomford (BOMFORD et al., 2006, p. 51), apresenta uma importante atualização sobre a presença de proteína. Aparentemente, a presença do pigmento esmalte, interfere nos resultados químicos que detectam a proteína do ovo:

[...] a presença de quantidades significativas de esmalte e suas reações, sua degradação interna, no veículo de pintura pode causar problemas. Causa a redução de certos indicadores químicos usados para a distinção entre lipídios do ovo e de óleos vegetais. Isto introduz o risco de que análises químicas podem sugerir a presença de um meio de tempera [ovo] na tinta [...] Agora que as consequências da reação do esmalte no meio de pintura são compreendidas melhor, é claro que somente óleo foi usado no meio (BOMFORD et al., 2006, p. 51).

Portanto a partir de 2006, segundo Bomford, sabe-se que a presença de esmalte no veículo torna difícil distinguir entre óleo vegetal e animal, favorecendo resultados que indicam a presença do ovo na tinta. Segundo o autor, isso põem em xeque os resultados das pesquisas de White e Groen. De qualquer forma, mesmo que não haja uma resposta absolutamente assertiva para a presença de proteína animal nos impastos de Rembrandt, é interessante considerar uma recente afirmativa de Van de Wetering sobre a composição dos brancos usados pelo artista:

[...] uma das mais surpreendentes descobertas envolveu as propriedades de trabalho do pigmento branco de chumbo feito com o Velho Método Holandês. Esse pigmento difere radicalmente do branco de chumbo moderno em sua composição formal e variedade de tamanho de seus grãos, em comparação ao grão de tamanho regular das preparações modernas (VAN DE WETERING, 2016, p. 308).

Portanto, parece correto afirmar que, as características reológicas tão idiossincráticas dos impastos de Rembrandt se devem muito mais à estrutura do próprio pigmento branco de chumbo feito com o Velho Método Holandês, do que pela adição de uma proteína que modifique o corpo da tinta. É preciso lembrar que, todos os estudos anteriores mostraram que, se há adição de proteína, a quantidade é pequena. Além disso, é importante considerar a

informação tenha sido desmentida, e que Rembrandt nunca tenha usado esse material, a informação foi amplamente explorada como um novo recurso no meio artístico.

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hipótese de que, se a adição é tão mínima, ela provavelmente não é o elemento fundamental que define a aparência desses impastos.

4.4.1.3.3. Giz (Carbonato de Cálcio) Como veremos a seguir, detectou-se o uso do giz, também chamado de carbonato de cálcio, em algumas obras de Rembrandt. Embora o material seja um pó, ele não era usado como se fosse um pigmento, afinal, como veremos, ele possui poder de tingimento praticamente nulo. Como não se trata de um material de corpo líquido, também não se configura como um veículo. Portanto, se o artista não fazia uso do material nem como pigmento e nem como veículo, decidiu-se defini-lo neste estudo como um subitem do capítulo sobre tinta, sendo ele um aditivo ou carga inerte com função específica de modificar o comportamento da tinta e portanto, sendo parte constituinte da mesma. A seguir, analisa-se as propriedades químico-físicas do material e seu papel na pintura de Rembrandt. O termo original, chamado de giz no Brasil, tem como origem o termo latino creta, chamado em inglês de chalk, em alemão de kreide e em italiano de creta. O termo foi usado nos textos de Plínio e Vitruvius, embora provavelmente tivesse um significado mais amplo para esses autores da antiguidade clássica, usado para denominar vários brancos inertes incluindo argilas e terras silicadas (ROY et al., 1993, p. 204) Várias formas de carbonato de cálcio foram usadas ao longo da história como pigmento artístico. Sua forma mais natural é a calcita, encontrada nos reinos mineral, vegetal e animal. Ocorre principalmente em rochas sedimentárias como o giz116 (chalk) e o calcário117, mas

116 Giz (chalk).: Giz, cré ou greda é uma rocha sedimentar porosa, uma espécie de calcário branco constituído essencialmente por carbonato de cálcio sob a forma de calcite. O giz forma-se em condições de águas relativamente profundas a partir da acumulação gradual de minúsculas placas de calcite (cocólitos) largadas por microrganismos chamados cocolitóforos. É comum encontrar nódulos de cherte e sílex embebidos no giz. Há noventa milhões de anos, partes da atual costa norte da Europa encontravam-se abaixo do nível do mar. Protozoários como os foraminíferos viviam no fundo do mar entre os detritos que caiam das camadas superiores do oceano. As suas conchas eram formadas por calcite extraída da água do mar, e após a sua morte e por sedimentação as suas conchas formaram gradualmente leitos espessos no fundo marinho, que eventualmente se solidificaram em rocha ao longo de milhões de anos devido ao peso dos sedimentos sobrejacentes. Movimentos tectónicos posteriores relacionados com a formação dos Alpes elevaram estes depósitos marinhos acima do nível do mar. Entre as mais famosas falésias de giz estão as falésias brancas de Dover na Inglaterra e Møns Klint na Dinamarca. 117 Calcário.: (do latim calx (gen. calicis) ou calcariu, "cal") é uma rocha sedimentar que contém minerais com quantidades acima de 30% de carbonato de cálcio (aragonita ou calcita). Quando o mineral predominante é a dolomita (CaMg{CO3}2 ou CaCO3•MgCO3) a rocha calcária é denominada calcário dolomítico.

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também em rochas metamórficas como o mármore. A calcita e a aragonita são os principais constituintes das conchas de moluscos e de uma série de esqueletos marinhos, fósseis que são convertidos em depósitos de calcita com as mudanças no ambiente, particularmente com o calor. Os diferentes tipos de carbonato de cálcio usados para a pintura são a calcita, giz, giz precipitado, calcário branco, branco de concha (shell white) e o coral. A diferença entre eles é basicamente o tipo e formato de partículas (ROY et al., 1993, p. 204). Um dos tipos mais comuns de carbonato de cálcio é o giz: uma rocha macia, porosa e quebradiça encontrada em largos leitos em várias partes do mundo. Os mais famosos estão em Dover, na Inglaterra e na Europa do leste, formados no período cretáceo. É um extrato derivado das águas marinhas, composto por fósseis de plantas (algas) unicelulares, principalmente a espécie de nanofóssil chamada coccolitos, possuem geralmente de três a oito micrometros de diâmetro e são ovais, esféricos ou em forma de botão, com várias perfurações e desenhos que parecem ornamentos complexos. As coccoesferas formam a maior parte do plâncton dos mares do sul e do norte e são parte importante da cadeia alimentar marinha. Pelo fato de serem plantas, precisam de luz, portanto, crescem de forma mais abundante próximo a superfície do oceano (ROY et al., 1993, p. 204) O produto é extraído de seu leito natural, triturado debaixo da água e deixado para decantar. Após a secagem, as camadas de cima são vendidas com o nome “branco de Paris”, considerado o melhor giz de todos, por ser mais branco e mais macio. As próximas camadas são chamadas respectivamente de “branco extra” e “branco comercial”, o último, geralmente usado para produzir massa de vidraceiro. Presume-se que o giz era produzido de modo similar durante a idade média. O giz natural é usado desde a antiguidade clássica, principalmente na Inglaterra, França e Países Baixos, juntamente com cola animal para a fatura de uma base ou camada preparatória dos painéis de pintura, com objetivo de produzir uma superfície mais branca e mais adequada para pintura. Foi usado nesses países da mesma forma que o gesso era usado na Itália e Espanha. Algumas vezes, branco de chumbo, e mais tarde, branco de zinco era adicionado para tornar a mistura mais branca. Em certas telas italianas e holandesas do século dezessete,

As principais impurezas que o calcário contém são as sílicas, argilas, fosfatos, carbonato de magnésio, gipso, glauconita, fluorita, óxidos de ferro e magnésio, sulfetos, siderita, sulfato de ferro, dolomita e matéria orgânica, entre outros.

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o giz é encontrado como um extensor para bases de ocre vermelho ou marrom (ROY et al., 1993, p. 205). De Wild (1929) identificou giz em mais de trinta e seis obras dos Países Baixos datadas entre 1430 até 1816. O giz não era usado sozinho, mas misturado a outros pigmentos, devido a seu baixo índice de refração. Isto quer dizer que o giz mostra “pouca cor” com baixo poder de cobertura, sendo indicado para obter maior translucidez da mistura (ROY et al., 1993, p. 205). O carbonato de cálcio artificial, também chamado de carbonato de cálcio precipitado, é produzido como um subproduto de uma série de processos químicos industriais. O produto resultante é mais branco e pode-se controlar o tamanho de suas partículas, assim como a possibilidade de se obter um produto mais homogêneo. Esse tipo de produto não contém restos de fósseis (ROY et al., 1993, p. 206). A calcita é estável sob circunstâncias ordinárias, razão pela qual é tão abundante na natureza, também possui cor e estrutura permanente quando exposto à luz. Toda forma de carbonato de cálcio é alcalina, indo do Ph de 7.5 para calcário até 9.8 para carbonato de cálcio precipitado. Ele não é escurecido por gases de sulfetos de hidrogênio ou em contato a pigmentos à base de sulfetos. É compatível com a maioria dos pigmentos exceto aqueles sensíveis a alcalinos, como o azul da Prússia (ROY et al., 1993, p. 206).

Rembrandt fazia uso de carbonato de cálcio, CaCO3, como um extensor de sua tinta, quando o artista julgava necessitar de maior volume de tinta. Quando misturado à tinta, o carbonato de cálcio é virtualmente transparente, tornando-o perfeito para estender o corpo de tintas, sobretudo as transparentes (BOMFORD et al., 2006, p. 36). Portanto, o material não é um veículo e nem um pigmento, mas uma espécie de carga inerte que substitui em volume o pigmento usado na tinta. Karin Groen cita em seu artigo de 2011 que 25% do volume total do pigmento branco de chumbo presente no underpainting118 da capa de Willem Van Ruythenburch119, na pintura Ronda Noturna (1642) é composto por giz120. Suas análises também revelaram que na obra Isaac e Rebecca (1665-1669) “branco de chumbo misturado a giz foi usado na manga do homem [Isaac]”, dessa vez, com aproximadamente “de 13 a 45% em volume”. O mesmo

118 Algumas áreas escuras da Ronda Noturna possuem um underpainting feito de branco de chumbo, especialmente modelados com essa tinta para que a pré-pintura tivesse qualidades escultóricas (GROEN, 1997, p. 208). 119 Willem van Ruytenburch.: Figura retratada por Rembrandt na pintura Ronda Noturna (1642). É a figura central do lado direito, vestido em amarelo claro com fita branca no peito. 120 Chalk.: O artigo de Groen usa o termo chalk (giz).

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artigo confirma presença de giz na pintura Os Síndicos da Guilda dos Tecelões (1662) (GROEN, 1997, p. 211). Uma das hipóteses levantadas por Groen é que a adição de giz ao pigmento branco pode compreender uma adulteração de mercado, tornando-o um pigmento mais barato do que o carbonato de chumbo puro. Groen menciona o tratado “De Groot Waereld in´t kleen geschilderd”, escrito em 1698 pelo pintor Wilhelm Beurs, como uma fonte que cita a existência de tal procedimento como forma de criar um pigmento de qualidade inferior e portanto, de preço mais acessível. Beurs cita que o pigmento adulterado “é usado em obras menos importantes ou de grandes dimensões” (GROEN, 1997, p. 209). As análises feitas por Groen na pintura A Lição de Anatomia do Prof. Jerek Deyman (1656) revelaram a presença de uma camada de giz próximo ao branco de chumbo, mas não misturado ao pigmento. Isso pode alimentar a hipótese de que, se o artista usou giz de modo independente do branco de chumbo, é possível que o artista possuisse o material no ateliê, provavelmente fazendo uso do material como adição à sua tinta. Essa prática justifica-se pela constatação da autora de que “testes feitos com branco de chumbo e carbonato de cálcio confirmaram que a adição de calcite torna a tinta mais viscosa sem que se torne difícil de se trabalhar” (GROEN, 1997, p. 208). Karin Groen observa acerca das pinturas do período tardío121 de Rembrandt de maneira geral, que: “Nas pinturas tardías de Rembrandt, aparentemente branco de chumbo puro – conhecido no século dezessete como branco de concha (shell white) – era usado tanto nas superfícies quanto nas camadas de baixo […] a presença de um pouco de giz no branco de chumbo pode significar que provavelmente Rembrandt adicionava um pouco em sua paleta para misturar ao branco de chumbo puro para conseguir a consistencia que desejava” (GROEN, 1997, p. 211). No estudo mais recente de Viguere, revela-se as diferenças de propriedades entre branco de chumbo puro e branco de chumbo misturado com giz122: há o aumento de transparência e do comportamento reológico da tinta quando misturada ao giz. A qualidade reológica aumenta em elasticidade e viscosidade (VIGUERIE et al., 2018, p. 543). Viguere considera impossível discernir se o giz encontrado em análises foi adicionado deliberadamente pelo

121 Também compara a diferença do tamanho de partículas: “Há uma similaridade espantosa entre as amostras [...] Certamente não há indicação do intervalo de vinte anos entre a fatura dessas duas pinturas. Nas camadas de baixo (underlayers) de ambas pinturas, o branco de chumbo parece ter sido moído de modo mais fino do que aquele das camadas de cima [...] a explicação para a grande quantidade de giz pode estar na fatura de uma mistura não homogênea [...] ” (GROEN, 1997, p. 211). 122 Calcite.: O termo usado no artigo de Viguere é calcite (calcita).

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artista, pelo produtor do pigmento ou pelo vendedor do material, para baratear o custo do mesmo (VIGUERIE et al., 2018, p. 544), mas é indispensável levar em consideração a hipótese de que sua presença provavelmente “está relacionada a sua diminuição de preço, mas também a sua modificação de propriedades, seu comportamento reológico e transparência” (VIGUERIE et al., 2018, p. 551). Portanto, Viguerie conclui que:

O que parece ser sem sombra de dúvida o caso, é que os artistas sabiam das diferenças de propriedades atribuídas as tintas provocadas pela presença ou adição de calcita, e que seu uso reflete o estado financeiro do artista, sua filosofia, a natureza da área a ser pintada em relação aquelas subjacentes ou adjacentes ou ainda a importância da encomenda (VIGUERIE et al., 2018, p. 551)

4.4.1.3.4. Goma de Cerejeira Nas amostras retiradas da área da manga de Rebecca, da obra Isaac e Rebecca (1665, Rijksmuseum), Groen observou a presença de buracos na superfície da amostra, indicando que a velatura feita com uma laca vermelha (cochinilha), provavelmente causados pela presença de alguma substância aquosa na tinta, que evaporou e deixou as cavidades. Groen então, descobriu que a tinta vermelha recebeu a adição de um componente específico: uma goma, configurando portanto uma emulsão, uma mistura de óleo de linhaça e goma natural de cerejeira123 (VAN DE WETERING, 1997, p. 240). Van de Wetering define a questão central sobre o uso do material: “[...] por que para essa velatura, uma camada transparente de espessura uniforme, uma emulsão foi usada ao invés de uma mistura de óleo/pigmento?” (VAN DE WETERING, 1997, p. 240). Para Karin Groen, a escolha de uma emulsão ao invés de uma camada de tinta a óleo comum, pode estar ligada às propriedades refrativas da goma.

[...] a emulsão foi escolhida em função da grossura considerável obtida pela velatura nessa maneira [usando a goma de cerejeira]. Uma camada mais grossa contém mais pigmento, e portanto, resulta numa cor mais saturada, contando com o fato de que a luz atravessa essa camada, refratada pela camada que está embaixo e atravessa novamente a camada translúcida finalmente alcançando o olho do observador. A saturação e força da cor aumenta com a espessura da velatura (VAN DE WETERING, 1997, p. 241).

123 Do inglês “Cherry Gum”. A goma natural é um polissacarídeo de origem vegetal, capaz de causar um grande aumento de viscosidade em soluções, mesmo em pequenas concentrações. Serve como um espessante ou emulsificador natural.

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É importante notar que a cor final que se observa nessa área da pintura não se deve somente à cor da velatura de cochinilha. A cor é resultado da combinação da velatura transparente vermelha escura e de uma camada de vermilion que fica embaixo, de um vermelho-alaranjado claro (VAN DE WETERING, 1997, p. 241). Aparentemente essa é a única amostra de uma velatura com a presença de goma de cerejeira encontrada numa obra de Rembrandt, portanto, seria necessário a futura confirmação da presença do material em outras amostras para considerar seu uso como uma prática constante. Enquanto uma nova pesquisa sobre o uso da goma não é concluída e a amostra permanecer como um achado único, seria correto considerar o uso da goma um experimento feito pelo artista e não uma prática comum, portanto, não pode ser considerado como um padrão ou material fundamental em seu processo.

4.5. Cores (Pigmentos) Ao contrário do que se compreende nas obras de Max Doerner e de Jacques Maroger, não há nada de exótico ou extraordinário nos materiais usados por Rembrandt em nenhum dos períodos de sua carreira. A diversidade dos pigmentos usados por Rembrandt não envolvia nenhum conhecimento arcano ou fórmula secreta, ao invés disso, encaixa-se firmemente na prática usual de pintura holandesa do século dezessete. Sua paleta é feita inteiramente de pigmentos que eram vastamente disponíveis comercialmente e naquele tempo já bem compreendidos em suas qualidades e defeitos (BOMFORD et al., 2006, p. 35).

White e Kirby possuem a mesma opinião de Bomford: “os pigmentos usados regularmente por ele [Rembrandt] não são extraordinários; a combinação dos pigmentos, no entanto, possui um papel significante parte na translucidez das velaturas, na qualidade do impasto e certamente, na permanência do filme de pintura” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 64). É evidente que, não há uso de cores ou materiais exóticos ou formulas especiais: o que torna a tinta de Rembrant especial é a organização das camadas e as combinações inteligentes das propriedades de cada pigmento. Portanto, as cores usadas pelo artista compreendem substâncias e materiais conhecidos e usados por toda a Holanda, materiais comuns ao ofício de pintura. A Holanda de Rembrandt dispunha não somente de um largo comércio de materiais artísticos em geral como de um centro de produção e manufatura de pigmentos em escala industrial, incluindo produtos

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como o branco de chumbo de alta qualidade, vermilion manufaturado, esmalte124 e amarelo de chumbo e estanho, assim como outros produtos, que alcançaram um nível tão avançado de refinamento empírico que tornaram-se produtos holandeses famosos, sendo encontrados até no mercado exterior a Holanda. Pigmentos importados da Itália e outros lugares supriam a deficiência local de produtos minerais naturais e pigmentos terrosos assim como por matéria bruta para a produção de certas cores fabricadas na Holanda (BOMFORD et al., 2006, p. 35). Bomford lembra que muito discute-se sobre a natureza limitada, no sentido de conter poucas cores, da paleta de Rembrandt, no entanto, é pertinente notar que nessas discussões as cores terrosas são sempre consideradas como um grupo só e não separadamente. Se as cores terrosas são consideradas individualmente, é necessário considerar a complexidade de uma paleta constituída de muitas cores (BOMFORD et al., 2006, p. 35). Mais considerações são definidas a seguir no capítulo sobre cores terrosas. É necessário registrar o excelente uso dos materiais mostrando íntimo conhecimento das propriedades dos pigmentos e do modo como a estratificação das camadas deve ser composta, garantindo uma boa permanência de suas pinturas e evitando que porventura as mesmas deteriorem-se no futuro.

O modo como a paleta é usada, combinada com a complexidade das misturas de pigmento e da estrutura elaborada de camadas dava a Rembrandt acesso a um extenso alcance de efeitos, particularmente em translucidez e textura, mas também em variedade de cores empregadas...... seu método de pintura é altamente sofisticado no uso dos materiais...... sua escolha de materiais estáveis usados em combinações compatíveis e sua compreensão das maneiras nas quais os materiais se comportam sozinhos ou em combinados são responsáveis pelas boas condições de tantas pinturas (BOMFORD et al., 2006, p. 35).

Segundo Gottsegen e Mayer, para se faturar artesanalmente tinta a óleo, o pigmento deve ser primeiramente misturado com uma espátula dura e pouca quantidade de óleo, usando como área de trabalho uma peça sólida de pedra (mármore ou granito) ou vidro (liso ou jateado). O óleo deve penetrar completamente no pigmento, sem deixar nenhuma molécula seca. Deve-se atentar ao uso excessivo de óleo nesse estágio, não é necessário atingir a pastosidade de tinta ainda, mas uma pasta relativamente dura e espessa (GOTTSEGEN, 2006,

124 Pigmento azul analisado mais adiante, no capítulo sobre azuis..

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p. 209). Depois desse estágio, é necessário o uso de uma moleta125, ferramenta tradicional feita de cristal ou vidro, usada para fatura de tinta. A mesma deve ser colocada em cima da massa espessa de tinta deslizando com a mistura até que seja espalhada ou “aberta” na superfície em uma fina camada que possa ser trabalhada. A tinta estará pronta após a mistura ter adquirido consistência macia e brilhante (MAYER, 2006, p. 202). Aparentemente, as tintas usadas por Rembrandt estão em concordância com as práticas supracitadas e possivelmente apresentavam características similares. Analisa-se a seguir os pigmentos mais usados pelo artista durante o período tardio.

4.5.1. Branco de Chumbo Considerado o pigmento branco mais importante da pintura europeia desde o período romano, o uso do branco de chumbo126, também chamado na antiguidade de cerussa127, assim como o conhecimento de sua tecnologia de fatura é relatado nas mais importantes publicações da antiguidade, como nos tratados de Vitruvius128 e Plínio129, onde descreve-se seus procedimentos de síntese, conhecimento que consistiria na base tecnológica medieval e do século dezessete para produzi-lo (EASTOUGH et al., 2005, p. 239). Roy observa que um método rudimentar similar ao ocidental já era provavelmente usado na China aproximadamente em 300 A.C., tornando o branco de chumbo um dos pigmentos sintéticos mais antigos da história. O pigmento foi usado na pintura parietal, em têmperas ou sobre papel somente de modo ocasional, nos períodos de início da pintura Chinesa e Japonesa. É pertinente citar que o pigmento foi o único pigmento branco a ser usado na pintura a óleo de cavalete até o século dezenove130, quando passa a ser oferecido outro branco popular, o

125 O termo em inglês para a ferramenta é muller: literalmente moedor. No entanto, a ferramenta é usada para dispersão e não para moagem desde que o pigmento já se encontra em forma de pó. Em nenhuma fonte inglesa explica-se a a falta de precisão do termo. As obras traduzidas ou escritas em português repetem o termo inglês, usando o termo “moagem” ao invés de dispersão, mas usam o termo moleta ao invés de moedor. Nas lojas brasileiras de materiais artísticos ou para restauração é comum o uso do termo mol para identificar a moleta, mesmo não havendo quaisquer citações a esse termo nas bibliografias em português. É possível que seja uma corruptela do termo inglês muller. 126 Em inglês, Lead White e inúmeros outros sinônimos como Flake White, Silver White, Cremnitz White entre muitos outros. 127 Em latim e também em inglês, Cerussite. 128 Marcus Vitruvius Pollios, ou Vitrúvio (I a.c.). : Arquiteto romano escritor do De Architectura (Os Dez Livros da Arquitetura), extenso tratado em 10 volumes. 129 Gaius Plinius Secundus; Plínio, O Velho (23 a.c.-79 a.c.). Filósofo naturalista grego, autor de “Naturalis Historia”. 130 A partir do século dezenove, o pigmento branco de zinco, torna-se outro branco a ser usado na pintura de cavalete.

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branco de zinco, embora o branco de chumbo tenha sido definitivamente substituído pelo branco de titânio no século vinte. (ROY et al., 1993, p. 68). O pigmento era feito amplamente na Holanda, em grande escala industrial, nas áreas de Zaan, em Amsterdam e em Rotterdam (BOMFORD et al., 2006, p. 36). O método de fatura usado na Holanda ficou famoso por todo o mundo como o “método holandês” (ou “método de empilhamento 131”), que expunha barras de chumbo metálicas ao vapor de vinagre (ácido acético) em containers de barro, dentro de câmaras construídas especialmente para esse propósito. Nessa câmara, criava-se uma atmosfera rica em dióxido de carbono gerado por esterco decomposto ou casca de carvalho, a câmara ficava fechada de três a quatro meses. O método foi extensamente usado até 1880 (EASTOUGH et al., 2005, p. 239). O pigmento forma-se como uma crosta em volta das barras de chumbo, que é colhida através da raspagem do metal. Os flocos de carbonato eram recolhidos, lavados e secos para o consumo. A substância química formada na corrosão é o carbonato de chumbo básico, também conhecido como cerusite (BOMFORD et al., 2006, p. 37). O branco de chumbo também é chamado por inúmeros sinônimos históricos, como cerussa, cerusa de Veneza, cerussa, ceruse, ceruse ou cerussite132 (EASTOUGH et al., 2005, p. 97). Roy define a história da terminologia citando que além dos nomes relacionados ao termo cerusa, outros termos como flake white, Cremnitz white ou (Kremnitz white133), Krems white (ou Crems white), Vienna white, Berlin white, silver white ou slate, são sinônimos obsoletos (ROY et al., 1993, p. 67).

131 Em inglês, stack process. 132 Cerusite.: Dossie (1764) define que ceruse é ‘chumbo corroido […] pelos ácidos de uvas (vinagre)’, e que aquele comprado da Itália é melhor do que o inglês. Em 1804, Tingry cita que é inferior ao óxido de chumbo pois é misturado a argila, ou ao branco Espanhol, branco de Troia ou carbonato lavado. Também cita que o mais pesado (contendo a maior proporção de óxido de chumbo) ou que não produz efervescência na presença de ácidos é o de melhor qualidade. Salter (1869) descreve como ‘uma variedade francesa [de branco de chumbo], não necessariamente, mas frequentemente, misturado a terras calcificadas em diferentes proporções’; Watin (1785) também menciona ceruse misturado com carbonato de cálcio da Holanda, de Crems (Austria) e de Roma. Osborn (1845) cita ceruse como o menos puro dos três tipos de branco de chumbo. Também pode se referir ao ‘branco de estanho’, provavelmente óxido de estanho e o termo pode ter sido usado indiscriminadamente tanto para um quanto para outro. É provavel que durante um curto período no século XVII, o termo fora aplicado para uma mistura de carbonato de cálcio e carbonato de chumbo (Harley, 1982) (EASTOUGH et al., 2005, p. 97) 133 Cremnitz White: sinônimo de cerusite, também chamado de Branco de Kremnitz ou Crems (ou Krems) assim como de Branco de Viena, dizem que consiste num branco de chumbo de alta qualidade. Fontes como Field (1835) citam que o nome é derivado da cidade de Kremnitz na Hungria (agora Eslováquia) ou de Crems/Krems na Austria, também cita que possui menor poder de tingimento (‘corpo’) por causa de suas partículas menores [quando comparadas ao carbonato de chumbo comum]. Tingry (1804) cita que em seus experimentos o Branco de Cremnitz de vários produtores diferentes era composto de óxido de bismuto ou óxido de chumbo; no entanto, ela também aplicou o termo para uma formulação baseada em estanho disolvido em ácido nítrico, oxido de zinco e argila branca (EASTOUGH et al., 2005, p. 139).

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A definição completa de Eastough é a seguinte:

Cerussite é o carbonato de chumbo mineral e natural, com a composição PbCO3. Forma-se por cristais prismáticos, ou como agregados granulados nos quais cristais individuais não podem ser discernidos. Cerussite é um mineral secundário, comum em todo o mundo, formado pela alteração de galena, através da precipitação de anglesite. Ocorre através da oxidação parcial de depósitos de minérios de chumbo (como em Cornwall e Derbyshire, Inglaterra; Tsumeb, Namíbia; Tirol, Austria; Minas Gerais, Brasil; Toscana, Itália) e recebe seu nome do latim cerussa (Rutley, 1988). Seu análogo sintético, carbonato de chumbo, comumente conhecido como ‘branco de chumbo’ é conhecido como pigmento desde a antiguidade e encontrado amplamente em pinturas. Embora cerussite tenha sido usado como pigmento (Wallert, 1995, detectou cerusite na policromia de um vaso grecgo do séc. VI), a literature cita esse mineral de forma geral como um pigmentos a base de chumbo em sua forma sintética (EASTOUGH et al., 2005, p. 97)

Portanto, os sinônimos derivados do termo cerusite são hoje associados com a forma natural do carbonato de chumbo, enquanto o produto sintético, processado ou manufaturado, associado ao termo branco de chumbo. Eastough define o branco de chumbo como hidróxido de carbonato de chumbo, mas o termo branco de chumbo pode ser empregado para qualquer pigmento do grupo dos carbonatos de chumbo134, sulfatos de chumbo, fosfatos de chumbo e os cloretos ou óxidos de chumbo (EASTOUGH et al., 2005, p. 239). O branco de chumbo holandês, quando observado através do microscópio, contém partículas grandes e agrupadas acompanhadas de partículas menores e mais finas. Amostras frequentemente contém adições propositais de carbonato de cálcio: a literatura moderna sugere que dois tipos do material eram vendidos no mercado de materiais artísticos, um tipo puro e certamente mais caro, chamado de schulpwit ou schelpwit, claramente uma referência

134 Carbonatos de Chumbo (Grupo).: Quatro coarbonatos de chumbo e três minerais associados estão no grupo dos carbonatos de chumbo (Dunn, 1975). O primeiro, carbonato de chumbo (‘carbonato de chumbo neutro’, PbCO3) é um sintético análogo ao mineral cerusite, termo as vezes estendido ao seu composto. O segundo, hidroxido de carbonato de chumbo (‘carbonato de chumbo básico’) – 2PbCO3.Pb(OH)2 – é o mais amplamente encontrado como pigmento e denominado de branco de chumbo. É o sintético análogo ao mineral hidrocerusite, termo as vezes estendido inapropriadamente ao seu composto, desde que há pouca evidência que o mineral já foi usado como pigmento, com exceção da antiguidade. Dois outros hidroxidos de carbonato de chumbo são conhecidos e ocorrem como pigmento, de formula 3PbCO3.Pb(OH)2 e um hidroxido oxido de carbonato de chumbo de formula 4PbCO3.2Pb(OH)2.PbO conhecido como branco de chumbo perolado. O composto 3PbCO3. Pb(OH)2, somente publicado em 1957 (Mauch and Brunold, 1957), é conhecido como um componente de pigmentos históricos (Keisch, 1972); 4PbCO3.2Pb(OH)2.PbO foi o sujeito de uma patente norte Americana em 1940 (Thompson and Stewart, 1940) produzido pela National Lead Company. Um hidroxido oxido de carbonato de chumbo, plumbonacrite (Pb10(CO3)6O(OH)6), também existe (EASTOUGH et al., 2005, p. 229).

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ao formato de cada unidade do pigmento, vendido em pequenos pacotes comprimidos, como pequenos “bolos” (em holandês, schulpen), e uma versão mais barata, adulterada com carbonato de cálcio, chamado de lootwit. O schulpwit era mais empregado nas últimas camadas, geralmente quando se aplicava as luzes finais e as passagens de brancos mais intensos, devido à pureza do material dar opacidade ao pigmento. O lootwit era usado nas primeiras camadas, por possuir maior transparência devido à presença de carbonato de cálcio (BOMFORD et al., 2006, p. 36). O branco de chumbo feito através do método de empilhamento era levemente rosado ou amarelado, devido a impurezas derivadas da fermentação do material, no entanto, era de estrutura cristalina, com partículas de vários tamanhos (EASTOUGH et al., 2005, p. 239). O branco de chumbo natural (cerussite) possui formula PbC03, mas raramente é encontrado como pigmento em pinturas, pode ocorrer somente como uma impureza no branco de chumbo comum, isto é, sintético, que compreende um carbonato básico de formula 2PbC03.Pb(OH)2 (ROY et al., 1993, p. 67). Sua estrutura molecular faz com que quando usado em impastos135, não apresente rachaduras ou craqueluras excessivas como vistas em outros pigmentos, pois o filme que se forma após a secagem é duro e flexível 136 (BOMFORD et al., 2006, p. 36). O pigmento é conhecido por melhorar a secagem do óleo usado para transformá-lo em tinta, desde que a secagem dos óleos vegetais secativos é acelerada por compostos metálicos como o chumbo. A resiliência e elasticidade promovida pela catálise entre os ácidos graxos e o chumbo é atribuída à formação de sais de chumbo. O pigmento também possui a característica de um baixo nível de absorção de óleo para o processo de fatura de tinta: necessitando somente de 9 a 13 ml de óleo para a formação de uma pasta adequada com 100 g de pigmento (ROY et al., 1993, p. 67). Sobre as problemáticas de conservação e permanência do pigmento, Roy cita o seguinte:

Embora seja um carbonato e portanto reativo a ácidos, o branco de chumbo possui reputação notável de permanência. Não é afetado pela luz [...] [...] mas traços de sulfeto de hidrogênio no ar podem torná-lo escuro. Branco de chumbo dentro de um filme seco e protegido por verniz pode durar por centenas de anos sem escurecer: a prova são os colares e mangas brancos dos retratos holandeses (ROY et al., 1993, p. 72).

135 Massa grossa e generosa de tinta. 136 Uma característica comum de todos os pigmentos a base de chumbo.

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O branco de chumbo é teoricamente incompatível com pigmentos que possuem em sua composição sulfetos, devendo formar um sulfeto de chumbo negro quando em contato. No entanto, Roy cita que nenhum exemplo notável pode ser encontrado provando a teoria. Nos tons de pele onde branco de chumbo foi misturado ao sulfeto de mercúrio, pigmento vermelho denominado vermilion, Roy cita que os exemplos resistiram ao tempo sem mudança, especialmente na tinta a óleo. O mesmo acontece nas de obras pintadas com misturas de branco de chumbo e azul ultramar137 nos céus e drapeados. Branco de chumbo misturado ao sulfeto de cádmio também parece conservar a cor e o corpo da tinta sem nenhum problema de conservação. Roy cita que apesar de alguns estudiosos questionarem a permanência do branco de chumbo em interação com o pigmento orpimento, nenhum dos exemplos de pinturas feitos com essa mistura, na National Gallery de Londres apresentam qualquer tipo de problema de conservação até 1993 (ROY et al., 1993, p. 72).

4.5.2. Amarelo de Chumbo e Estanho (Tipo I)

Embora o amarelo de chumbo e estanho frequentemente ocorra nas pinturas europeias antes do século dezoito, existe pouca evidência confiável sobre seu uso na antiga literatura sobre técnicas de pintura. A receita mais antiga para um pigmento amarelo feito de chumbo e estanho foi encontrada no Manuscrito Bolognese, da primeira metade do século quinze (ROY et al., 1993, p. 83).

Merrifield aponta o uso do nome giallorino para as receitas de amarelo de chumbo e estanho no Manuscrito Bolognese, e identifica-o como “idêntico ao Massicot encontrado no manuscritos do norte [Alemanha, Holanda, Bélgica, etc.]”, chegou a essa conclusão por que “nos manuscritos italianos somente giallorino e não massicot era usado, enquanto nos manuscritos do norte somente massicot era usado e giallorino não é mencionado” (ROY et al., 1993, p. 83). Para Eastough, o massicot pode compreender uma série de pigmentos amarelos derivados do óxido de chumbo natural que recebiam o nome massicot138, apresentando algumas diferenças de cor devido a impurezas contidas em sua composição (EASTOUGH et al., 2005, p. 234). Antigos tratados de pintura do norte da Europa referiam-se a esse pigmento artístico

137 Basicamente, o pigmento azul ultramar é um sulfeto complexo, contendo principalmente silicato de alumínio entre outros (ROY et al., 1993, p. 37). 138 Também escrito com grafias diferentes, como Masticot.

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como massicots (no plural) para categorizar essa diferença de cor entre massicots de diferentes procedências, embora fossem praticamente idênticos quimicamente (BOMFORD et al., 2006, p. 38). A origem do nome está associada ao termo árabe sabb Kubti, significando alumínio egípcio ou soda, mais tarde originando o termo italiano marzachotto ou mazacote, o pigmento também é relacionado como um acabamento “amarelo cor de palha” na cerâmica conhecida como faience (EASTOUGH et al., 2005, p. 262).

O amarelo de chumbo e estanho era feito em dois tipos distintos139 ambos usados em Veneza para pintura a óleo durante o séc. XVII, mas no norte da Europa somente uma variedade, com a composição química Pb2SnO4, parece ter sido usado regularmente desde o começo do século quinze. Há evidências documentadas140 de que essa forma específica de pigmento amarelo era um produto do norte europeu, usado localmente assim como exportado para a Itália...... todos os exemplos encontrados nas obras de Rembrandt correspondem a essa particular constituição [Tipo I] (BOMFORD et al., 2006, p. 38).

Roy corrobora com a afirmação de Bomford, de que há dois tipos de amarelo de chumbo e estanho. O mais usado é o tipo I, composto de óxido de chumbo e estanho (Pb2Sn04). O tipo II é uma segunda variedade de óxido de chumbo e estanho que pode conter adição de sílica (Si), de composição PbSn03 ou Pb(Sn,Si)03 (ROY et al., 1993, p. 85). Hoje, a literatura de materiais históricos chama o massicot usado por Rembrandt de amarelo de chumbo e estanho141 tipo I, um óxido binário, isto é, uma combinação química do chumbo e do estanho. O nome massicot fora usado na antiguidade para denominar um tipo natural de pigmento, portanto, sendo o tipo usado por Rembrandt uma substância manufaturada e sintética, é definido como um massicot artificial e portanto, chamado hoje de amarelo de chumbo e estanho (BOMFORD et al., 2006, p. 38). O nome amarelo de chumbo e estanho é recente, dado por Jacobi em 1941 quando estudando a composição de certos pigmentos amarelos142 e descobrindo sua composição no Doerner Institute em Munich. Os primeiros registros do pigmento estão ligados a seu uso como agente fosqueador para vidros, o que provavelmente explica sua produção durante o séc. XVII em Veneza (EASTOUGH et al., 2005, p. 238). Roy corrobora com a Eastough: “[...] o uso de óxidos de chumbo e estanho

139 Tipo I e Tipo II. 140 O pintor Milanês Giovanni Paolo Lomazzo chamava-o de “il giallolino di fornace di Fiandra” (o amarelo de forno de Flandres). 141 Do inglês Lead Tin Yellow. 142 Pesquisa feita em pinturas no Doerner Institute, em Munique, Alemanha.

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como fosqueadores para vidro e cerâmica é conhecido desde antes de 1300. O amarelo de chumbo e estanho do tipo II foi identificado numa lasca de peça romana (séc. IV A.C.) e em vários exemplos de várias origens e datas” (ROY et al., 1993, p. 86). Roy afirma que “o amarelo de chumbo e estanho tipo II, obtido com uma das receitas para o pigmento encontradas no Manuscrito Bolognese é idêntico ao giallo de vetro (amarelo de vidro) mencionado por Merrifield, dito que vinha de Veneza” (ROY et al., 1993, p. 91). Em pinturas, os exemplos mais antigos são de trabalhos fiorentinos de Giotto e di Cione, ambos do “Tipo II” (EASTOUGH et al., 2005, p. 238). Aparentemente, o tipo I além de mais recente, substituiu o tipo II. Segundo Roy:

[...] uma análise de trinta e quatro pinturas da National Gallery de Londres, revelou que o pigmento tipo I era usado com maior frequência do que o tipo II, mas que o tipo II é geralmente um pigmento mais antigo [...] aproximadamente cem amostras de amarelo de chumbo e estanho mostraram que o tipo I substituiu o tipo II na Itália durante a segunda metade do século quinze, o tipo I pode ter sido um produto importado da Alemanha, por conta do nome inicial do pigmento, giallo tedesco (ROY et al., 1993, p. 86).

Eastough considera a problemática da terminologia mais complexa, relacionando o pigmento com outros termos em diferentes línguas e regiões da Europa:

A terminologia histórica desses compostos é complexa e não necessariamente ligada a presença de estanho na composição. No entanto, termos aos quais o amarelo de chumbo e estanho pode ser relacionado com razão estão nos seguintes grupos: o grupo do giallolino, o grupo do massicot, o grupo do general/genuli e o grupo do plygal. Esses estão largamente colocados em grupos geográficos/linguísticos, como o giallolino ocorre nas fontes italianas, massicot principalmente no norte da Europa, general ocorre nas fontes inglesas e genuli nas fontes espanholas. Enquanto plygal é encontrado em textos da língua germânica (EASTOUGH et al., 2005, p. 238)

O tipo de amarelo de chumbo e estanho usado por Rembrandt era feito através do aquecimento em alta temperatura do branco de chumbo ou do minium143 (tetróxido de

143 Em quase todos os manuscritos e tratados de pintura, desde a antiguidade até o Renascimento, há a descrição de um pigmento vermelho comumente denominado em latim de minium, minio ou miltos. Vitruvius, em seu tratado De Architectura dedica dois capítulos inteiros a esse material, mostrando sua importância nesse período. Thompson teoriza sobre duas versões sobre as origens do termo minium. A primeira teoria faz ligação direta do

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chumbo) ou ainda do chumbo puro com dióxido de estanho. Assim como outros pigmentos manipulados desse mesmo período e até mais antigos, as condições de produção do pigmento, particularmente a temperatura e a presença de impurezas nos materiais básicos (chumbo ou minium), é o que determinava o tom de amarelo no produto final, que varia entre uma cor amarelo pálido144 até um amarelo dourado profundo145 (BOMFORD et al., 2006, p. 38). Segundo Roy, a preparação do Massicot, descrita em fontes do norte europeu do século dezesseis citam a calcinação do chumbo e do estanho, seguida da adição de minium (vermelho de chumbo) e contínua exposição da mistura ao fogo, produzindo um óxido de chumbo e estanho (ROY et al., 1993, p. 83), uma mistura de óxido de chumbo amarelo (PbO) com óxido de estanho amarelo (2Pb0.Sn02) em quantidades variáveis. Há relatos de seu uso por volta de 1300 e finalmente desaparecendo por completo das paletas dos artistas no século dezoito (BOMFORD et al., 2006, p. 38). O amarelo de chumbo e estanho é opaco, denso e seca bem em veículo oleoso. Recentemente, descobriu-se que interage quimicamente com os óleos secativos no filme pictórico formando os chamados “sais de chumbo146”, normalmente detectados em amostras microscópicas como pequenas partículas ou formações cor amarelo clara147. Como é a base de chumbo, revela-se de modo claro e definido em imagens de raio-x (BOMFORD et al., 2006, p. 39). Era comumente usado por Rembrandt para pintar luzes intensas em tecidos, joias e as luzes de objetos metálicos148, o artista fazia uso desse pigmento para modificar tons de pele somente de modo ocasional. A ausência de um pigmento verde opaco na paleta do artista

pigmento com a atividade dos monges medievais iluministas: “[...] miniare significa trabalhar com minium [...] e a pessoa que trabalhava com minium era chamado miniator, e as coisas que deveria miniar eram chamadas de miniatura [...] (ibid., p. 102, tradução nossa). O tetróxido de chumbo pode ser encontrado na natureza, mas também pode ser feito artificialmente, através de um processo “barato e fácil de se fazer [...] não dependendo de nenhum mineral raro” (THOMPSON, 1956, p. 101). Laurie fala que o processo era conhecido desde o ano 320 a.c. e consistia em torrar cuidadosamente o litargírio, até que a substância caracteristicamente amarela alaranjada, mudasse de cor para um laranja mais avermelhado (LAURIE, 1910, p. 214). 144 Bomford usa o nome de uma flor britânica “a light primrose” para descrever a cor, um amarelo claro ou pálido. O nome científico dessa flor é Primula Acaulis. 145 Deep Golden Yellow. 146 Do inglês lead soaps.: a tradução literal compreende saponáceos de chumbo. Saponáceos são sais, também chamados de carboxilato de chumbo, uma cadeia de ácidos graxos (palmitato de chumbo ou esterato de chumbo). 147 É possível ver imagens de formações de sais de chumbo em fotografias de analises microscópicas das obras de Rembrandt: A Ceia de Belshazzar (National Gallery, 1640) e A Adoração dos Pastores (1660). 148 A Ceia de Belshazzar (1640, National Gallery of London); Retrato de Philips Lucasz (National Gallery of London); Saskia como Flora (1660, National Gallery); Mulher pega em Adultério (1644, National Gallery); Judas devolvendo as 30 Moedas de Prata (1629) e A Adoração dos Pastores (1660).

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tornava-o ideal para obter um verde opaco misturando-o ao azurite mineral (BOMFORD et al., 2006, p. 39). Roy corrobora mais uma vez com a afirmação de Bomford de que, embora o amarelo de chumbo e estanho fosse frequentemente usado na pintura europeia antes de 1750, aparentemente não foi usado após essa data: [...] “não é de nosso conhecimento alguma referência a um pigmento amarelo que consiste em óxido de chumbo e estanho em toda literatura sobre cores do [de 1750 até] século dezenove e vinte [1941149]” (ROY et al., 1993, p. 85).

4.5.3. Vermilion O estudo do cinabro é de alta importância para a compreensão do vermilion, pois trata-se do mesmo pigmento, apesar de pequenas diferenças em seu processo de origem. No começo do século XVIII, o químico Herman Boerhaave (Holanda, 1668-1738), em seu livro Elementa Chemiae, descreve o cinabro como: “Uma linda substância dura, pesada e metálica, rochosa avermelhada, que se quebra em pedaços brilhantes, claros e angulosos” (EASTOUGH et al., 2005, p. 111). O cinabro é um mineral geralmente semitransparente, avermelhado, constituído principalmente de mercúrio e encontrado na natureza, encontrado impregnado nas rochas vulcânicas ou na superfície de fontes termais com temperaturas regularmente próximas a 80° C. Invariavelmente apresenta traços de outras substâncias como o enxofre, calcita, quartzo, pirita, entre muitas outras. A substância química identificada como o cinabro é o sulfeto de mercúrio150, α-HgS (AGLIO; MOYA, 2003, p. 155). As pedras naturalmente avermelhadas eram achadas em rios, como cita Plínio sobre o rio Minium, ou em pedreiras, cavernas e grutas, extraídos através da mineração. Era comercializado em forma de pedras ou em pó. Era indicado para uso medicinal, geralmente para problemas cutâneos, ou como pigmento para diversos meios artísticos e funções decorativas (THOMPSON, 1956). No caso do uso artístico, o pó era misturado a um veículo (óleo, seiva, albumina, proteína ou água) gerando uma tinta vermelha.

149 Em 1941, Jacobi redescobre o amarelo de chumbo e estanho, no Doerner Institute em Munich, e faz citações ao pigmento em seu artigo (ROY et al., 1993, p. 85). 150 Também conhecido como sulfeto vermelho de mercúrio (AGLIO; MOYA, op. cit.).

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A maioria das fontes consultadas para este estudo descreve o vermilion151 como um pigmento vermelho puro, vermelho brilhante ou vermelho claro (MAYER, 2006, p. 127). Mayer, por exemplo, especificamente descreve o pigmento como um vermelho puro, embora provavelmente refira-se a sua versão feita a partir do método molhado, que será discutido adiante. Tanto Gottsegen (GOTTSEGEN, 2006, p. 173) quanto McCormack (MCCORMACK, 2000) descrevem o pigmento como um vermelho intenso152. O vermilion é um pigmento resultante da reação química entre mercúrio e enxofre, produzindo o sulfeto de mercúrio de modo artificial, com propriedades idênticas ao cinabro natural, pigmento que possui as mesmas características do vermilion mas que fora produzido de modo natural (DOERNER, 1984, p. 72). Thompson atribui o conhecimento desse processo de fatura artificial como uma tecnologia alquímica levada a Europa ocidental por volta do ano 1200 d.c. Refere-se ao período em que os árabes, chamados de mouros pelos cruzados, penetraram no ocidente europeu através da conquista da península Ibérica, um processo que teve início aproximadamente em 700 d.c. e declínio por volta de 1500 (THOMPSON, 1956, p.104). Thompson diz ser impossível identificar quando e por qual cultura esse processo foi criado: “se nos tempos helenísticos, pelos alquimistas sírios ou árabes, pelos bizantinos ou pelos europeus”, embora mais de uma fonte aponte para o oriente. Portanto, afirma-se como única certeza a disseminação desse conhecimento pelos árabes. O único fato passível de ser provado, é que a receita para se fazer cinabro artificial ainda era uma novidade nos manuscritos ocidentais do séc. XVIII, e completamente corriqueiras durante o séc. XIV (THOMPSON, 1956, p. 104). A problemática da troca dos nomes entre vermilion e cinabro foi parcialmente causada pela dificuldade em discernir suas versões naturais das sintéticas, pois “quimicamente e fisicamente, o cinabro artificial não difere do natural[...] é praticamente impossível determinar sua origem” (GETTENS; STOUT, 1942, p. 172, tradução nossa). Mais recentemente, o mesmo se confirma através da pesquisa de Walsh, Eastough, Siddal e Chaplin: “[...] à similaridade entre as versões natural e sintética levarão indubitavelmente a imprecisão de sua determinação” (EASTOUGH et al., 2005, tradução nossa). Alguns textos antigos sugerem problemas de impermanência cromática com o pigmento, assim como visto nos textos de Plínio e Vitruvius, como forma de contornar esse problema,

151 Nos países de língua portuguesa de vermelhão ou vermelho da China; chamado de vermilion (raramente vermillion, com dois eles) nos países de língua inglesa; nos de língua hispânica bermellón (vermell na Catalônia); vermellon na França e na Itália de vermiglione. 152 Em ambos os casos, usam os termos da língia inglesa deep red.

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recomendam a proteção da camada pictórica com uma “aplicação de um verniz, feito com óleo e cera”. A fonte mais antiga dentre as consultadas que relata problemas com a cor é de 1942, citando que ela tende a escurecer principalmente quando exposta a luz direta e abundante. Por outro lado, o químico Roy cita que “inúmeros exemplos em pinturas testificam sua essencial estabilidade, e amostras observadas resistiram a exposição do sol por pelo menos dez anos” (ROY et al., 1993, p. 166). Os estudos de Mayer (MAYER, 2006, p. 127), Heumann (HEUMANN, 1876), Gettens (GETTENS; STOUT, 1942, p. 172) e Gottsengen (GOTTSEGEN, 2006, p. 173) sugerem que o vermilion geralmente possui boa permanência, no entanto, nos casos de escurecimento a causa está relacionada a impurezas contidas no sulfeto de mercúrio, tornando o pigmento foto sensível, escurecendo a cor quando em contato prolongado com luz abundante, ou com gases sulfurosos presentes na atmosfera. Gettens, observa que quando o pigmento é usado com óleo, possui maior estabilidade do que quando usado em veículos de têmpera a ovo ou como aquarela (meios aquosos), além disso, cita que o vermilion feito com o método molhado “tem maior chance de escurecer do que aquele feito através do método seco” (GETTENS; STOUT, 1942, p. 172). Assim como Gettens, Roy cita que o escurecimento é observável principalmente em pinturas de têmpera a ovo, além do fato de que o fenômeno mostrou-se reversível, até certo ponto, quando o pigmento permanece longe da luz (ROY et al., 1993, p. 167). Um estudo recente, torna novamente evidente que não são em todos os casos que o pigmento mostra escurecimento. Além disso, identifica com exatidão o tipo de impureza que provoca o fenômeno:

A maioria do cinabro é de um vermelho intenso e permanece assim exposto a luz do sol. No entanto, alguns são fotossensíveis e tornam- se irreversivelmente escuros durante a exposição ao sol. Análises de cinabro com diversas ocorrências mostram que o cinabro fotossensível contém consideráveis concentrações de cloro, enquanto o cinabro não fotossensível, não contém. Evidências no experimento mostram que o cinabro não fotossensível se torna fotossensível depois do contato com cloro. O escurecimento do cinabro na luz do sol é causada pela presença de cloro e outro alógenos153 (MCCORMACK, 2000, p. 796).

153 A série química dos halógenos, halogênios ou halogéneos é o grupo 17 (7A) da tabela periódica dos elementos, formado pelos seguintes elementos: flúor, cloro, bromo, iodo, astato e Ununséptio. Esse grupo, juntamente com o grupo 18 (8A), dos gases nobres, são as únicas famílias formadas unicamente por não- metais. A palavra provém do grego e significa formador de sais. Eles são elementos representativos.

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A pesquisa mais recente de Keune154 e Boon155 (KEUNE; BOON, 2005) parece chegar na mesma conclusão: o vermilion pode apresentar problemas de permanência relacionados a foto sensibilidade quando em contato com água, principalmente quando há montantes consideráveis de cloro. Segundo McCormack, o uso do pigmento puro, num meio oleoso, como no caso da tinta a óleo, representa uma prática mais segura (MCCORMACK, 2000). Mais de uma fonte confirmam a existência de dois métodos artificiais para produção de vermilion. O método tradicional é conhecido hoje como “processo seco” (dry process), provavelmente criado pelos alquimistas do oriente e usado desde antes da civilização romana. Consiste basicamente no aquecimento do enxofre e do mercúrio num receptáculo de argila para obter o pigmento através da sublimação156 desses elementos157. O segundo método, muito mais recente, é o processo molhado (wet process), criado em 1687 pelo químico alemão Gottfried Schulz e consiste em transformar a amálgama de enxofre e mercúrio em vermilion através da mistura de ambos com uma solução de amônia e sulfeto de potássio (MELO et al., 2013, p. 211). O nome do segundo processo vem do fato de que é necessária a introdução de um reagente líquido, no caso, a solução de amônia, enquanto no processo tradicional todos ingredientes fundem-se pela sublimação a seco. A Holanda do séc. XVII era famosa por seu processo seco de fatura de vermilion158, um importante produto de exportação, o qual boa parte destinava-se a Inglaterra (BOMFORD et al., 2006, p. 39). Nöller cita que a era comum obter um vermilion mais claro através da adição de trissulfeto de antimônio159 ao sulfeto de mercúrio. O método molhado também era usado na Holanda, e continha outras substâncias misturadas ao sulfeto de mercúrio, como o antimônio, ferro, cálcio ou chumbo. Segundo Nöller, no começo do séc. 19, na Índia, era possível obter mais de dezoito vermelhos diferentes com o processo molhado (NÖLLER, 2013, p. 3). Como tratava-se de um pigmento relativamente dispendioso, não era incomum encontrar o produto adulterado com um pouco de outro pigmento vermelho, como o menos dispendioso minium160 (BOMFORD et al., 2006, p. 39).

154 Keune.: Prof. Dr. Katrien Keune, Universidade de Amsterdam. 155 Boon. Prof. Dr. Jaao Boon, AMOLF, Amsterdam. 156 Transformação de um ou mais elementos sólidos em gasosos, formando um terceiro elemento. 157 A pesquisa de (MELO et al., op. cit., 2014) põem em cheque a necessidade da sublimação. 158 Em inglês, “dutch dry-process vermilion”. 159 Sb2S3. 160 Pigmento vermelho identificado como tetróxido de chumbo, Pb3O4 (MAYER, 2006, p. 127).

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A pesquisa de Bomford sobre as pinturas de Rembrandt pertencentes a National Gallery de Londres, revelam o seguinte sobre o uso do pigmento:

Rembrandt não fez muito uso de vermilion. As pinturas discutidas aqui não necessitavam de grandes áreas de um vermelho intenso, e onde Rembrandt necessitava um vermelho opaco intenso, ele geralmente obtinha com um vermelho ocre claro, intensificado com uma mistura de uma laca vermelha...... algumas partículas de vermilion são as vezes adicionadas para intensificar o tom de pele, mas o único caso notável de seu uso é para as luzes vermelho opacas e vermelho-alaranjadas do vestido da mulher na pintura Ceia de Belshazzar. O corpete da virgem em Adoração dos Pastores também contém um pouco de vermilion, mas aqui usado somente para fortificar o vermelho óxido misturado ao branco. Mais desse pigmento foi adicionado para solidificar e colorir as profundezas do fundo marrom quente da Mulher flagrada em Adultério (BOMFORD et al., 2006, p. 19).

Portanto, parece correto afirmar que na opinião de Bomford, nas pinturas de Rembrandt pertencentes a National Gallery de Londres, Rembrandt fazia uso de vermilion somente em misturas, as vezes para aquecer tons de pele ou outros elementos que por ventura necessitam de maior intensidade de vermelho, mas seu uso de modo geral era sempre para intensificar os vermelhos ocres.

4.5.4. Pigmentos Terrosos É importante definir o fundamental papel das cores terrosas como constituintes na paleta de Rembrandt. Aparentemente, algumas publicações tratam as cores feitas de terra como cores genéricas de um mesmo grupo. Mas, assim como discute Bomford, se as “cores terrosas” fossem consideradas de modo individual e não como tintas de um mesmo grupo, o número de cores na paleta do artista passa a ser muito maior, tornando o estudo de sua paleta uma questão mais complexa (BOMFORD et al., 2006, p. 35). Na verdade, quando essa problemática é observada, temos aproximadamente nove cores considerando as terras como um único grupo, e aproximadamente dezesseis cores considerando individualmente cada uma dessas cores terrosas, talvez ainda mais, no caso do artista ter feito uso de terras exóticas e com nuances delicadas entre si: o fato dessas substâncias serem misturadas entre si e também pelo fato de compreenderem todas elas compostos genéricos de óxidos de ferro impossibilita o discernimento preciso entre terras de diferentes procedências. De qualquer forma, é notável que a paleta do artista é rica em pigmentos terrosos.

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Como um grupo, elas provem o maior alcance em toms quentes desaturados de vermelho, laranja, amarelo e marrom, todos pigmentos que ocorrem naturalmente na natureza, no caso de Rembrandt, provenientes particularmente da Itália, França e Inglaterra, parte de um mercado já estabelecido de pigmentos. Mais tarde, produtores do Chipre e onde hoje é a Turquia supriram cores e gradações especiais, particularmente de terras de sombra (BOMFORD et al., 2006, p. 40).

Para Bomford, as vantagens dos pigmentos terrosos são sua estabilidade química total em qualquer tipo veículo e o fato de que não interagem com outros pigmentos quimicamente sensíveis, são portanto miscíveis e compatíveis com qualquer pigmento. Além disso, secam perfeitamente misturados ao óleo, especialmente as sombras. Sua desvantagem, talvez, seja a falta de intensidade cromática. As terras naturais são classificadas de modo geral como ocres, sienas e sombras, mas todas contém óxido férrico natural (Fe2o3) como sua composição colorífica essencial (BOMFORD et al., 2006, p. 40). Sobre o uso de pigmentos terrosos na obra de Rembrandt, Bomford aponta:

O artista usou pigmentos terrosos com grande profusão e para muitos propósitos em suas pinturas[...] [...] A ocorrência de pigmentos terrosos nas pinturas de Rembrandt é excepcionalmente vasta. De modo geral, são usados em misturas para todos os tipos de aplicação: para os tons claros de pele e detalhes de roupas e joias, e em todo lugar como componentes modificadores dos fundos translúcidos de vermelho, marrom e preto. Ocasionalmente, toques puros de ocre vermelho opaco, laranja ou amarelo são usados para as luzes mais altas de um detalhe (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

4.5.4.1. Ocres Usados desde o período neolítico, esses naturais inorgânicos, são definidos como compostos genéricos pois formam-se a partir de uma infinidade de substâncias minerais, responsáveis por atribuir sua cor. Tratam-se de rochas ou porções de terra colorida retiradas da superfície do solo, compostos principalmente de óxidos e hidróxidos de ferro (EASTOUGH et al., 2005, p. 285). O termo ocre é derivativo do termo grego ὠχρός ou ōkhrós, seu significado é pálido, ou amarelo pálido. Apesar do termo grego estar relacionado ao amarelo, ele é usado para indicar diversas outras colorações (EASTOUGH et al., 2005, p. 285)

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As linhas que dividem os grupos de terras não são claramente definidas, mas em geral, os ocres são depósitos puros de óxidos férricos hidratados ou anídricos161, podendo ser amarelo, laranja, marrom ou vermelho. Para Bomford, o melhor tipo de vermelho ocre é composto inteiramente de óxido férrico anídrico, enquanto os amarelos e marrons contém diferentes proporções de vários tipos de óxidos férricos hidratados. Os ocres são as cores terrosas mais opacas (BOMFORD et al., 2006, p. 40). Os ocres vermelhos mais puros são formados principalmente por compostos do grupo mineral da hematita, os menos puros contém maior proporção de quartzo, argila, gesso e mica (EASTOUGH et al., 2005, p. 285). Os mesmos ocres vermelhos empregados nas pinturas parietais da pré-história foram usados em todos os períodos da história da arte e continuam sendo usados. Durante a idade média muitas terras avermelhadas receberam nomes sugestivos que geralmente descrevem o local de onde o pigmento fora extraído, muitos desses nomes ainda são usados nas tintas industriais. Entre eles, vermelho de Veneza162, vermelho indiano163, terra de colônia164 e o terra de Pozzuoli165 são os mais usuais. Atualmente, essas cores raramente são produzidas com terras naturais, fazendo uso de óxidos de ferro sintéticos como substitutos (MAYER, 2006, p. 35). Bomford relata a mesma problemática acerca da variedade de tipos e nomes para os pigmentos ocres:

Assim como há uma grande variedade de cores terrosas e de suas fontes naturais, os pigmentos recebem um grande número de nomes os quais são usualmente uma descrição de sua cor e suposto lugar de origem. Os tratados referem-se a materiais como Vermelho de Veneza [Venetian Red], Ocre Romano [Roman Ochre], Ocre da Prússia [Prussian Ochre], Vermelho Indiano [Indian Red], Vermelho Inglês [English Red] e Marrom Espanhol [Spanish Brown] (BOMFORD et al., 2006, p. 40).

161 Anídrico (ou Anidro).: termo geral utilizado para designar uma substância de qualquer natureza que não contém, ou quase não contém, água na sua composição. O termo ganha diferentes significados conforme trate-se de uma solução, de uma suspensão, de um cristal ou de um gás. 162 Vermelho Veneziano ou Vermelho de Veneza (Venetian Red). Um ocre vermelho, menos intenso e mais amarelado do que o Terra de Siena Queimada (Burnt Sienna). 163 Vermelho Indiano ou Vermelho da índia (Indian Red). Um ocre vermelho violetado e mais amarelado. 164 Terra de Colônia (Cologne Earth) também chamado de Terra de Cassel (Kassel Earth) entre outros nomes. 165 Terra de Pozzuoli (Pozzuoli Earth). Ocre vermelho que apresenta coloração entre um Vermelho Indiano (Indian Red) e Vermelho Veneza (Venetian Red), dependendo da marca. Geralmente apresenta maior quantidade de argila do que outros vermelhos ocres mencionados neste estudo.

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As tradicionais terras de Siena, apesar de pertencerem ao grupo dos ocres, são formadas por um composto levemente diferente, por isso serão analisados mais à frente. O que confere cor aos óxidos vermelhos é a proporção entre óxidos de ferro e outros minérios no composto. Desta forma, é possível encontrar na natureza, e hoje em forma de óxidos sintéticos166, as mais variadas intensidades de vermelho, embora sempre de valor terroso (BOMFORD et al., 2006, p. 40).

4.5.4.2. Sienas Durante a idade média, os termos Cor de Siena, Terra de Siena ou somente Siena, começaram a ser usados para denominar os ocres provenientes da cidade de Siena, na região da Toscana, Itália. Por volta do séc. XIX, os termos mais específicos Terra de Siena Natural167 e Terra de Siena Queimada168 foram usados para definir distinção entre os matizes, sendo a primeira (terra de Siena natural) do matiz amarelo, a segunda (terra de Siena queimada) é o resultado da tostagem ou aquecimento da primeira, até que se torne vermelha. As terras de Siena queimadas naturais, são na verdade, terras de Siena naturais que sofreram mudança de matiz naturalmente através da ação do sol e do calor, extraídas do solo já avermelhadas. Depois do séc. XIX, os termos começaram a ser usados para definir de forma genérica qualquer terra amarela ou vermelha, mesmo aquelas não produzidas na Itália e também as sintéticas. (EASTOUGH et al., 2005, p. 345). Para Bomford, a Terra de Siena, ou simplesmente Siena, é essencialmente um pigmento ocre contendo maior proporção de impurezas além do óxido de ferro, particularmente óxido de alumínio e sílica, outras impurezas são detectadas nas análises laboratoriais de ocres contendo comumente cálcio, magnésio e titânio (BOMFORD et al., 2006, p. 40). Assim como os ocres, os pigmentos de Siena apresentam diferentes intensidades e cores, entre os matizes mais comuns estão o amarelo e o vermelho. Para Eastough, o que diferencia a Siena dos ocres é uma pequena porcentagem de aproximadamente dez por centro de óxido de manganês, que recebe a formula Mn3O4 (EASTOUGH et al., 2005, p. 285), em alguns

166 A Kremer oferece uma vasta gama de ocres vermelhos. http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/iron- oxide-pigments-01:.03:..html. 167 Em inglês, Raw Sienna. 168 Siena Queimada ou Terra de Siena Queimada (Burnt Sienna). Vermelho ocre intenso, leva o nome da localidade onde é encontrada, embora a grande maioria seja feito de óxidos sintéticos. No caso específico dessa cor, há uma enorme quantidade de versões nas mais variadas tonalidades, as diferenças não estão somente no valor, mas também no croma, podendo variar entre mais escuras, mas claras, mais terrosas, mais intensas ou mais rosadas.

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casos, possuem óxidos de ferro derivados do mineral goethita, um mineral de óxido de ferro que recebe a formula FeO(OH) (EASTOUGH et al., 2005, p. 345). Sobre os usos dos ocres e sienas nas obras de Rembrant, Bomford cita:

Ocasionalmente, puros toques de vermelho opaco, laranja ou amarelo ocre são usados para as luzes mais intensas de um detalhe, como na túnica as margens do rio em Moça Banhando-se em Córrego, ou no reflexo amarelo do braço da cadeira no Retrato de Hendrickje Stoffels; aqui as cores estão no máximo de sua força e brilho (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

E ainda outro procedimento usual, citado também por outros pesquisadores é o hábito de intensificar cores terrosas com outros pigmentos mais intensos, como as lacas:

Comumente, ocres vermelhos e amarelos são intensificados pela adição de um pigmento mais forte como uma laca vermelha, para alcançar uma maior vibração. Exemplos são as luzes vermelhas que definem a borda da toalha em Hendrickje Stoffels, e o trapo quase escarlate em Retrato de Frederik Rihel Montado a Cavalo, onde quase todos os vermelhos ocres foram intensificados com uma mistura de uma laca vermelha. A técnica também é usada na Ceia de Belshazzar (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

4.5.4.3. Sombras O nome “sombra” é derivativo do latim ombra (sombra) e descreve de forma simples a cor desse grupo de pigmentos de cor escura, empregado na pintura para literalmente pintar sombras. Devido a variação da composição dessa terra, há um verdadeiro campo minado na terminologia acerca da descrição e classificação histórica dos pigmentos de sombras, em alguns casos com ampla divergência de opiniões, desde a classificação geológica do material bruto ou dos sedimentos de sombra (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). Sua composição é mais distinta do que a dos ocres e sienas pois contém, além do óxido férrico, uma variável proporção de dióxido negro de manganês169. Na sua condição natural

169 Manganês.: (do francês manganèse) ou manganésio (designação preterida pela sua semelhança com o magnésio) é um elemento químico, símbolo Mn, número atômico 25 (25 prótons e 25 elétrons) e massa atómica 55 u, sólido em temperatura ambiente. Situa-se no grupo 7 (7B) da classificação periódica dos elementos, sendo um metal de transição externa. Usado em ligas principalmente na do aço e, também, para a produção de pilhas. Foi descoberto em 1774, reduzindo o seu óxido com carbono. Sua principal aplicação é na fabricação de ligas metálicas no qual é um agente removedor de enxofre e oxigênio e outros usos de seus principais compostos incluem o dióxido de manganês na confecção de pilhas secas e o permanganato de

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demonstram uma cor marrom escura quase negra com diferentes transparências (BOMFORD et al., 2006, p. 40). Eastough classifica as sombras geologicamente como “sedimentos de rocha de grão fino, composto de hidróxidos e óxidos de manganês (primariamente os minerais manganite e pyrolusite) além de partículas de hidróxido de ferro, composto chamado goethite” (EASTOUGH et al., 2005, p. 383).

O composto de manganês deve estar presente em montantes entre 5 e 20%, o de óxido de ferro tipicamente representa entre 45 e 70% do material bruto. Como tratam-se de rochas, não são substâncias puras e devem apresentar outros minerais em quantidades variadas dependendo do modo e formação da área. Na tentativa de clarificar essa questão, a classificação baseada no óxido de manganês é adotada, colocando-o num grupo separado e distinto dos ocres, portanto a definição genérica e comumente usada de que é ‘uma variedade dos ocres’ é portanto rejeitada (EASTOUGH et al., 2005, p. 383).

Mas, Eastough aponta que a classificação baseada no conteúdo de óxido de manganês é aplicada de modo sensu lato170, isto é, de maneira ampla e genérica. A definição de sombra é usada de modo sensu stricto171, isto é, somente a compostos formados num ambiente geológico específico:

[...] são precipitados em condições de profundezas marinhas em áreas próximas a ‘centros de expansão’ do tipo dorsal172 oceânica. Por isso, as partículas de sombra podem conter sílica e micro fósseis marinhos173. A petrificação desse material, causado por uma

potássio em laboratório como agente oxidante em várias reações químicas. É o 12º elemento mais abundante da crosta terrestre e seus principais minérios são a pirolusita e a rodocrosita. 170 Sensu Lato.: Lato sensu é uma expressão em Latim que significa "em sentido amplo". É utilizada em outros idiomas e áreas como Direito, Linguística, Semiótica e outras, para referir que determinada interpretação deve ser compreendida no seu sentido lato, mais abrangente. 171 Stricto sensu.: é uma expressão latina que significa "em sentido estrito". É utilizada para referir que determinada interpretação deve ser compreendida no seu sentido estrito. É incorporada em outros idiomas e em áreas de estudo como Biologia, Direito, Linguística, Semiótica etc. 172 Dorsal oceânica.: também dorsal submarina, dorsal meso-oceânica ou crista média oceânica, é a designação dada em oceanografia física às grandes cadeias de montanhas submersas nos oceanos que resultam do lento afastamento das placas tectónicas.[1] São grandes elevações submarinas situadas na parte central dos oceanos da Terra, com uma altura média de 2000 a 3000 metros acima dos fundos oceânicos circundantes. Na sua região central apresentam um rift, cuja aparência geral é a de um sulco axial percorrendo longitudinalmente a dorsal, ao longo do qual são emitidas lavas provenientes da ascensão de magma do manto sublitosférico. 173 Radiolários.: (Radiolaria) são protozoários amebóides (são, portanto, unicelulares) que dão origem a esqueletos minerais intricados, geralmente com um cápsula central que divide a célula em porções interiores e exteriores (endoplasma e exoplasma, respectivamente). Encontram-se no plâncton oceânico. Os seus esqueletos

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silificação174, é um processo secundário que ocorre pela circulação em água marinha aquecida. A preservação da sombra na superfície terrestre depende da crosta oceânica ser levada para os continentes durante o processo de formação das montanhas. Dessa maneira, o material ocorre de forma limitada em certas regiões geográficas. Forma depósitos pequenos e localizados, indo do marrom escuro ao marrom esverdeado, distintamente em forma de lâminas finas, geralmente em depósitos desintegrados compostos de lascas diminutas. É macio e deixa um rastro forte em qualquer superfície (EASTOUGH et al., 2005, p. 383).

Possui como característica baixa densidade e embora pareça compacta, é uma rocha extremamente absorvente quando pouca silificada. A principal fonte de sombra sensu strictu é o Chipre, como no famoso depósito de Margi175, embora haja extensos depósitos em Levant e no oriente médio, especialmente na Síria. Depósitos mais limitados e menos conhecidos encontram-se no Japão e na Irlanda (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). A sombra sensu lactu (composição mais genérica) é geralmente produzida naturalmente através de processos de alteração do calcário176 magnésico, quase sempre referente aos depósitos encontrados na região central da Inglaterra177, esses depósitos geram sombras com a quantidade de óxido de manganês e óxidos de ferro suficientes para defini-las como sombras genéricas (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). Embora a sombra do tipo Chipre seja escura, é diferente da sombra tipo inglesa, a primeira tem uma cor mais oliva, enquanto a segunda tende mais ao negro. A sombra originária do Chipre é de longe o melhor pigmento, e por isso, muito popular. É derivada da região de Margi, ao oeste de Nicosia e pode incluir sílica em forma de quartzo ou micro fósseis silificados, mais uma grande variedade tanto de óxidos quanto de hidróxidos de ferro e de manganês (radiolaria). Richard e Maliotis (1998) descobriram que as sombras de Margi também podem conter ouro, embora o material esteja disseminado na substância de modo que

são fósseis importantes, datando a partir do Câmbrico. Em certos sistemas taxonómicos, os radiolários são considerados como uma subclasse dos Actinopoda, subdividindo-se nas ordens Spumellaria e Nasselaria. 174 Silificação.: é o processo no qual matéria orgânica se torna saturada com sílica. Uma fonte comum de sílica é o material vulcânico. Estudos mostram que no processo, a maior parte do material orgânico é destruído. 175 (Kaleda and Krylov, 1993; Prichard and Maliotis, 1998; Ravizza et al., 1999). 176 Do inglês limestone. 177 Fielding (1839) cita que sombras são achadas em muitas partes da Inglaterra e Wales diz que ‘entre as minas de chumbo e carvão’, enquanto Church (1901) aponta que as sombras inglesas são pobres em óxidos de ferro. Os autores referem-se a sombras associadas com a mineralização do calcário (Ford 2001; Wedgwood, 1783), particularmente em Derbyshire, mas também em Devon and North Wales.

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somente através de uma análise química é possível detectá-lo (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). O ‘tipo inglês’ de sombra proveniente de Derbyshire é famoso por conter traços de quartzo, calcite, dolomita, barita e calcario, além de uma quantidade altamente variável de óxido de manganês. Terry (1893) afirma que esse tipo de sombra são “ruins e tendem a possuir um tom escuro avermelhado, além de serem quebradiças”. Ele também cita que “as vezes são adulteradas com um pouco de negro de fumo, para produzir um tom similar ao da sombra do Chipre” (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). A confusão terminológica surge também de sua similaridade com outras cores relacionadas ao marrom Vandyke, derivado de depósitos de hidro carbono. A descrição de sombra na obra de Tinfry (1804) enquadra-se rapidamente no tipo mais barato de lignite, o pigmento chamado terra de Colônia, e ele de fato descreve esse pigmento como uma terra betuminosa. Church (1901) também cita que as sombras orgânicas eram ocasionalmente adulteradas com “carvão marrom ferruginoso” (EASTOUGH et al., 2005, p. 384). Além de conferir cor escura ao pigmento, o dióxido de manganês também interfere na secagem, tornando-a mais rápida quando em meio oleoso. Por esse motivo, as sombras são úteis não somente por suas cores, mas também como adições as camadas iniciais, pois ajudam na secagem (BOMFORD et al., 2006, p. 40). Terry (1893) cita que as sombras podiam ser compradas em pedaços178 diretamente da área de coleta do pigmento, sendo necessário triturá-la pelo comprador, ou já moído em forma de pó. O pigmento moído era preparado lavando-o, levigando e secando, embora as impurezas provavelmente permaneçam (EASTOUGH et al., 2005, p. 383). Quanto ao uso desse pigmento na obra de Rembrandt, Bomford afirma que “o primuersel fino e marrom encontrado sobre as camadas de carbonato usadas por Rembrandt em seus painéis revelaram-se em análises químicas conter um pouco de sombra, assim como algumas das camadas de cima de suas pinturas em tela” (BOMFORD et al., 2006, p. 40).

4.5.4.4. Terra de Colônia Na antiga literatura de materiais artísticos, o pigmento aparece levando o nome de seus locais de origem como terra de Colônia, ou Cologne, na Alemanha. Posteriormente, passou a ser conhecido como uma terra originária de Cassel (Kassel), outra região da Alemanha.

178 Do inglês “lump”.

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Regiões que não eram fontes exclusivas do pigmento, produtos similares eram achados em outras partes do mundo (FITZHUGH et al., 2012, p. 157). Segundo Fitzhugh: “Ao final do século dezoito, os dois nomes, Cassel e Cologne eram usados frequentemente para dar nome ao pigmento, apresentando pouca informação confiável para justificar uma opinião sobre alguma diferença significativa entre pigmentos de duas áreas diferentes da Alemanha” (FITZHUGH et al., 2012, p. 157). É possível que um dos dois pigmentos possa conter maior quantidade de ferro ou de ocre, tornando-os diferentes, mas é impossível definir se há diferenças sem amostras dos mesmos e a absoluta certeza de onde vieram. Como as fontes mais antigas referem-se a terra de Colônia, é possível que esse seja o local original ao qual popularizou-se o tipo de pigmento com essas características. Infelizmente, as fontes da região de Cologne foram todas substituídas por fontes próximas a Cassel (FITZHUGH et al., 2012, p. 157). Esses pigmentos históricos são compostos principalmente de terra húmica, turfa e carvão. As substâncias húmicas tratam-se de materiais compostos principalmente de ácidos húmicos e fúlvicos, isto é, uma substância terrosa com traços de húmus, rica em matéria orgânica vegetal. A turfa, também material de origem vegetal, é uma estratificação ou camada do solo, parcialmente decomposto, geralmente em regiões pantanosas e também sob montanhas. É formada principalmente por esfagnos (grupo de musgos) e hypnum, mas também de juncos, árvores etc. Sob condições geológicas adequadas e emanações de metano vindas das profundezas transformam-se em carvão. Por ser inflamável, era utilizada como combustível para aquecimento doméstico (EASTOUGH et al., 2005, p. 193). Segundo Fitzhugh, “quando se lê a literatura antiga, cuidado considerável deve ser dada à interpretação exata de qual tipo de pigmento refere-se o texto, pois uma variedade de substâncias estavam disponíveis com esse nome” (FITZHUGH et al., 2012, p. 157). Mayer define: “terra-de-cassel (ou terra-de-colônia): uma terra-natural contendo matéria orgânica, similar ao marrom-vandyke. Não é permanente” (MAYER, 2006, p. 64). A problemática se torna ainda mais complexa pois pigmentos de material betuminoso também foram denominados com esses mesmos termos. Materiais orgânicos chamados pelos termos betume179 (bitumen), asfalto (alsphalto), breu (pitch) e alcatrão (tar) foram usados

179 Betume (Bitumen).: do latim bitumine ou pez mineral é uma mistura líquida de alta viscosidade, cor escura e é facilmente inflamável. É formada por compostos químicos(hidrocarbonetos), e que pode tanto ocorrer na natureza como ser obtido artificialmente, em processo de destilação do petróleo. O nome betume era aplicado para designar essa forma de petróleo naturalmente encontrada, recebendo diversas denominações além das duas: asfalto, alcatrão, lama, resina, azeite, óleo de São Quirino. A Bíblia cita lagos de asfalto, usado como

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indiscriminadamente na literatura histórica de materiais artísticos e também usados para descrever material húmico e lignite180 (rocha sedimentar macia, marrom e combustível, formado pela compressão de turfa). O termo betume pode ser melhor empregado para descrever uma amplitude de materiais de alta viscosidade ou sólidos, sejam naturais ou produzidos sinteticamente. De forma genérica, o betume é fabricado desde o começo da revolução industrial como um subproduto da indústria de carvão. No século vinte é um resíduo de hidrocarbonetos depois da destilação de petróleo para combustíveis. Recentemente, o termo betume foi redefinido para ser aplicado somente a compostos de hidrocarbonetos de longa ligação sujeitos a grandes temperaturas, como o carvão betuminoso (EASTOUGH et al., 2005, p. 55). Pigmentos com essas características começaram a ser chamados mais recentemente de marrom Van Dyck, marrom Vandyck ou ainda marrom Vandyke, em alusão ao pintor flamengo181 do séc. XVII. Portanto, após o século dezenove, os três nomes, Cassel, Cologne e

impermeabilizante, para acender fogueiras e nos altares. Nabucodonosor pavimentara estradas com ele na Babilônia, os egípcios nos processos de mumificação e nas pirâmides. Romanos deram-lhe fins bélicos, como combustível em lanças incendiárias, no que foram imitados pelos árabes. O betume tem sua origem em organismos vivos. As rochas de origem orgânica forma dois tipos: as combustíveis, chamadas em geologia de caustobiólitos e as não-combustíveis (tais como o giz, calcário e diatômitos), chamados de acaustobiólitos; os betumes e os diversos tipos de carvão mineral formam os dois principais tipos de rochas que se queimam. A formação do betume natural, começa com a sedimentação de microorganismos marinhos denominados plâncton no leito oceânico. Esses microbiontes eventualmente morrem e formam um sedimento rico em matéria orgânica cujo destino deverá ser a decomposição anaeróbica. 180 Lignito.:ou linhito (em português europeu, lignite ou lenhite), é uma rocha sedimentar macia, marrom e combustível formado pela compressão de turfa. Lignito se forma com a acumulação de matéria vegetal parcialmente decomposta, ou turfa. Enterramento por outros sedimentos resulta em aquecimento, e, dependendo do gradiente geotérmico local e da configuração tectônica, aumento de pressão. É considerado um carvão baixo devido a seu baixo poder calórico. Lignito tem cor marrom escuro e seu conteúdo de carbono é de cerca de 25% a 35%, e uma umidade as vezes altas como 66%, conteúdo de cinzas de 6% a 19% comparado a 6% a 12% em carvão bituminoso. Lignito tem muita matéria volátil, o que torna fácil a converter em um gás e produtos petrolíficos do que carvões "superiores". Infelizmente, sua alta umidade e susceptibilidade a combustir espontaneamente pode causar problemas em transporte e armazenamento. Agora é sabido que processos eficientes para remover a umidade do lignito pode diminuir a possibilidade de combustão instantânea para o mesmo nível de carvão. Devido a seu baixo poder calorífico e alta umidade, lignito é ineficiente para transporte e não é comercializado extensivamente no mercado internacional comparado a outros tipos de carvão. 181 Antoon (Anthony) Van Dyck (1599 – 1641).: Retratista flamengo que se tornou o principal pintor da corte real de Carlos I da Inglaterra. nstalou-se em um estúdio próprio aos dezesseis anos, ainda na Antuérpia, tendo trabalhado com Jan Brueghel, o jovem. Ambicioso, Van Dyck tornou-se discípulo de Rubens, cujo estilo ele assimilou com uma facilidade espantosa. Rubens predominava o cenário artístico da Antuérpia, e Van Dyck, a exemplo desse, se dispôs a adotar maneiras aristocráticas e a cultivar a imagem de homem refinado. Rubens referiu-se ao jovem pintor, então com dezenove anos, como "o melhor de seus discípulos". Aos vinte e um anos, ele foi nomeado assistente-chefe de Rubens e recebeu a tarefa de pintar o teto (atualmente destruído) da Igreja Jesuíta de Antuérpia, passando a ser mais um auxiliar do que discípulo de Rubens.

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marrom Vandyke podem ser considerados sinônimos de um mesmo tipo de pigmento (FITZHUGH et al., 2012, p. 157). Em 1815, Church definiu três substâncias diferentes: “A primeira é feita pela calcinação de certas terras ferruginosas ou ocres marrons. A segunda é nada mais do que um marrom escuro (colcotar) de óxido de ferro e a terceira substância é uma terra marrom contendo além de óxido e hidrato de ferro, uma boa parte de substância orgânica na forma de matéria betuminosa ou humus” (CHURCH, 1915, p. 257). Mayer em 1950 definiu da seguinte maneira o marrom Van Dyck:

Terra natural, composta de argila, óxido de ferro, vegetação decomposta (húmus) e betume. Bastante transparente. De tonalidade intensa e menos terrosa que as sombras nas misturas. Em tintas a óleo é um dos pigmentos de pior secatividade. Algumas variedades desbotam, e nas tintas a óleo sempre escurece, provoca trincas e enrugamentos, exibindo os mesmos efeitos que o asfalto, ainda que em grau menor. Não serve para a pintura a óleo permanente. Algumas variedades resistentes a luz podem ser usadas em aquarelas e pastel. Seu uso remonta ao séc. XVII (MAYER, 2006, p. 57).

[...] à adição de materiais inerentemente ruins (como o marrom vandyke ou o betume) (MAYER, 2006, p. 521).

[...] à utilização de materiais que possuem propriedade inerente de rachar, por si sós ou quando misturados com certos outros ingredientes (asfalto, copal, a versão obsoleta do marrom vandyke, etc. (MAYER, 2006, p. 226).

Hoje o nome marrom Vandyke serve para denominar dois grupos principais de pigmentos: os pigmentos de óxidos ou ocres calcinados e os pigmentos de terra húmica. Aparentemente, o segundo grupo poderia ser chamado de terra de Cassel enquanto o primeiro de marrom Vandyke.

Em particular, os franceses consideram o Marrom Vandyke como um óxido de ferro calcinado ou um composto de ocre calcinado. Church definiu esse tipo de pigmento como Marrom Vandyke ‘A’. Para referir-se ao pigmento feito de terra húmica pode ser útil no futuro, estabelecer um termo composto como Marrom Vandyke – Marrom Cassel, ou talvez introduzir o termo de Church, Marrom Vandyke ‘B’ (FITZHUGH et al., 2012, p. 157).

Church sugeriu que aqueles que declararam o Marrom Vandyke como um pigmento permanente consideravam somente as propriedades do óxido de ferro ou dos tipos feitos de

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ocre e aqueles que consideram o pigmento como impermanente ou com tendência a sumir estavam se referindo aos seus tipos orgânicos (FITZHUGH et al., 2012, p. 158). Portanto, o marrom Van Dyck (ou terra de Cologne) de Rembrandt é hoje “identificado como um pigmento marrom orgânico, possivelmente terra de Colônia182 [também chamada de marrom Van Dyck183 ou de terra de Cassel184] ou betume185. A obra de Eastough organiza material sobre a problemática acerca da definição desses pigmentos, basicamente compreendendo substâncias muito similares (EASTOUGH et al., 2005).

Outra variedade de marrom transparente encontrado nas obras de Rembrandt, as vezes tratado como uma terra natural desde que pode ser desenterrado de depósitos no chão, é conhecido como Cassel ou Terra de Colônia, e mais tarde como Marrom Vandyke. De modo estrito, é um pigmento orgânico de turfa ou origem lignítica, mas comumente contém algum material mineral inorgânico (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

Sobre o uso do pigmento marrom Vandyke nas pinturas de Rembrandt que pertencem a National Gallery de Londres, Bomford cita que “Rembrandt faz uso para velaturas em áreas de marrom profundo nos fundos, misturado com outros pigmentos, particularmente terras e lacas, e também nas sombras de tons de pele em alguns de seus retratos, de maneira similar a pratica de Rubens e Van Dyck” (BOMFORD et al., 2006, p. 41). Rembrandt fazia uso desse pigmento, assim como de outros materiais, de forma inteligente. Aparentemente, o pintor sabia das propriedades de secagem lenta do material, e contornava o problema: “Rembrandt fazia uso do pigmento de secagem inadequada Terra de Cassel, que era obtido da lignite e de depósitos de turfa, mas sempre misturado com outros pigmentos, incluindo ocres, que possuem boa secagem” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 64). Bomford parece corroborar com a informação de Kirby e White, citando que “o pigmento seca com dificuldade no óleo, mas por estar misturado a outros materiais, esse defeito em potencial não é aparente nas obras de Rembrandt” (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

182 Terra de Colônia (Cologne Earth).: Sinônimo, variante ou nome comum. Terra escura geralmente definida como uma terra húmica, isto é, rica em material orgânico produzidos a partir da biodegradação da matéria orgânica morta, particularmente de celulose morta. É igual ou parecido ao Marrom Van Dyck, descrito abaixo. A Terra de Colônia também é chamada de Sombra Alemã (German Umber) (EASTOUGH et al., 2005, p. 126). 183 Marrom Van Dyck (Van Dyck Brown).: Sinônimo, variante ou nome comum. Bla (EASTOUGH et al., 2005, p. 388). 184 Terra de Cassel (Cassel Earth).: Sinônimo, variante ou nome comum (EASTOUGH et al., 2005, p. 93).

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4.5.5. Lacas As lacas são uma categoria especial de tintas muito transparentes. São transparentes pois as substâncias usadas para obter a tinta não são pigmentos186 mas corantes de origem animal ou vegetal (BOMFORD et al., 2006, p. 41). De acordo com Bomford, as lacas são:

[...] uma específica categoria de pigmentos feitos para velaturas, os quais possuem fontes de cor de corantes naturais de plantas ou de origem animal [...] Por causa de seu substrato ser translucido quando misturado ao meio de pintura [óleo], as lacas tradicionalmente são usadas para velaturas transparentes ricas em cor, por cima das camadas opacas. Rembrandt usou as lacas nessa exata maneira em Mulher pega em Adultério [1644], mas esse é um raro exemplo, ao invés disso, ele comumente adicionava [as lacas] para aquecer misturas escuras de velaturas com preto [bone black] e pigmentos terrosos para sombras translúcidas de fundos, e também usadas para reforçar a cor em ocres mais desaturados em passagens pintadas de modo mais opaco. As vezes partículas de laca vermelha aparecem em misturas de tom de pele, mas não como velaturas (BOMFORD et al., 2006, p. 42).

Portanto, segundo Bomford, no caso de Rembrandt, as lacas eram usadas mais como adições para saturar pigmentos terrosos do que como finas camadas de cor. Analisa-se a seguir, as lacas usadas por Rembrandt no período tardio. O processo de fatura das lacas era normalmente o seguinte: “o material corante era comumente co-precipitado num substrato amorfo de alumínio hidratado com adição de potássio [no caso da laca vermelha] para uma solução do corante num líquido alcalino. A laca forma-se como um precipitado no qual o corante se agarra ao substrato, o produto formado pode então ser colhido, lavado e seco como um pigmento colorido” (BOMFORD et al., 2006, p. 41).

4.5.5.1. Carmim (Madder Lake) O carmim pertence ao grupo das substâncias chamadas de anthraquinona, um grande grupo de corantes naturais e sintéticos baseados na estrutura da anthraquinona, podendo ser uma substância tanto de origem vegetal quanto animal187 (EASTOUGH et al., 2005, p. 21).

186 Matéria insolúvel, geralmente opaco e permanente. 187 O carmim é uma cor que durante a antiguidade era extraída de um inseto da família coccus, também chamdo pelos gregos de kermes. Existem seis espécies da família dos Coccoidea ou insetos-escama, parente próximo das cigarras, todos parasitas de diferentes tipos de plantas ou frutas europeias, esses minúsculos insetos escamados,

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Segundo Bomford, “na época de Rembrandt, as lacas vermelhas eram preparadas a partir de corantes extraídos da planta madder (Rubia tinctorum) a qual os Países Baixos era um fonte renomada” (BOMFORD et al., 2006, p. 42). Portanto, Rembrandt fazia uso de lacas do tipo madder, feitas de material vegetal, manufaturadas pela conversão das substâncias coloríficas das raízes da planta madder, Rubia tinctorum L. e várias outras plantas da família das Rubiaceae com alumínio. Aparentemente, o pigmento era muito usado na Ásia, durante o período da antiguidade clássica, segundo Fitzhugh: “na Ásia, a madder serviu desde a antiguidade como material de tingimento para têxteis. Foi descrita por Strabo, Dioscorides, Plínio o velho, e no Talmud188. Madder foi identificado em têxteis egípcios anteriores a Décima Oitava Dinastia (1567-c. 1320 A.C.) e também na Vigésima Primeira Dinastia (1085-945 A.C.)” (FITZHUGH et al., 2012, p. 111). O nome grego na antiguidade, dado por Dioscorides, descrito na De materica medica (50 d.c.) era erythrodanon, o nome latino dado por Plínio era rubia, erythrodanum e ereuthodanum. Durante a idade média, vários nomes foram usados. Rubia foi mencionado no manuscrito Mappae Clavicula189, o cultivo da warentia é recomendado em um decreto de

produzem um pigmento vermelho com fortes traços da cor magenta. Dentre eles, o mais usado no mundo antigo foi o inseto Coccus Illicis (ou Kermes Illicis) um ancestral do inseto Kermes Vermilio, entre outras espécies similares. Era encontrado no arbusto chamado na língua portuguesa de Árvore Kermes ou Carrasco (Quercus Coccifera) que crescia no oriente próximo, Espanha, sul da França, sul da Itália e em várias ilhas da Grécia, especialmente em Creta (FELLER; SCHWEPPE; ROOSEN-RUNGE, 1986, p. 254) Para produzir a cor, somente os insetos do gênero feminino eram usados, cuidadosamente retirados dos arbustos e então cozidos num grande caldeirão para precipitar um extrato vermelho, o extrato de kermes. O cozimento era feito com uma solução que servia como mordente, geralmente rica em sais metálicos, preferivelmente o sulfato ou óxido de alumínio sem traços de ferro. O alumínio era obtido em forma de minério puro (sólido) ou em forma de argila, sendo esse segundo a forma mais comum na antiguidade de obter a solução metálica (FELLER; SCHWEPPE; ROOSEN-RUNGE, 1986, p. 255). A cor resultante é um matiz magenta com alguma inclinação ao vermelho. Diferentes quantidades de matéria prima para preparar o extrato influenciam na intensidade e no poder de tingimento, enquanto a própria natureza da matéria prima, isto é, a cor dos insetos, podem apresentar diferenças de matiz. A cor dos animais naturalmente pode variar entre mais vermelho ou mais próximo ao magenta. Depois de pronto, o extrato de kermes era usado em forma ainda líquida, mergulhando tecidos e peças de vestuários diretamente no extrato para que fossem tingidos. A substância que dá cor ao extrato é conhecida hoje como ácido carmínico ou ácido kermésico transl. Talmud significa estudo) é uma coletânea de livros sagrados ,תַּלְמּוד :Talmude.: (em hebraico 188 dos judeus, um registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico. O Talmude tem dois componentes: a Mishná, o primeiro compêndio escrito da Lei Oral judaica; e o Guemará, uma discussão da Mishná e dos escritos tanaíticos que frequentemente abordam outros tópicos. 189 Mappae Clavicula.: Transcrito do grego para o latim, grande parte de seu conteúdo foi compilado em 800 d.c. provavelmente no Egito ou Grécia, com adições posteriores dos séc. XI-XII. A cópia do Mappae Clavicula em melhor condição é aproximadamente do ano 1200 (CLARKE, 2001, p. 9).

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Carlos Magno190, os termos warencia, garancia e rubea radix são mencionados em Heraclius (1000 – 1300 d.c.) e no manuscrito de Jehan le Bege (1431). Na bibliografia medieval alemã, é conhecida como rezza, retzel, retzwurz, roete e rubia tinctura. Na Itália, durante o século dezesseis, madder era conhecida pelos nomes robbia, roza, granzuolli e ciocchi. Na índia do século dezessete era conhecida pelos nomes morinda, aal, al, saranguy e chiranjee. A terminologia mais recente do nome apresenta em inglês principalmente o termo madder lake, em alemão krapplack, em francês laque de garance, em italiano lacca di robbia, em espanhol laca de rubia e em português laca vermelha (FITZHUGH et al., 2012, p. 109).

Lacas madder foram mencionadas em tratados de ateliers da idade média como componentes de misturas de pigmento, mas não como cores para serem usadas sozinhas nas pinturas. Não foram identificadas em pinturas de miniaturas nesse período. Laurie (1913) encontrou evidência de madder num livro ilustrado de 1465-1489 em Edinburgh. Na Inglaterra, madder foi identificada em têxteis de York dos séculos dez e onze. Carlyle descreve o comércio de vários tipos de madder e laca de alizarin na Grã-Bretanha no século dezenove. De acordo com Thompson, laca de madder era raramente usada nas pintura europeias da idade média, mas seu uso aumentou no século dezessete e dezoito (FITZHUGH et al., 2012, p. 109).

As substâncias que dão a cor para a raiz de madder são principalmente a alizarina (dihydroxyanthraquinone), a purpurina (trihydroxyanthraquinone) e a pseudopurpurina (trihydroxyanthraquinone). Os tons de vermelho variam entre escarlate, vermelho carmim, rosa e vermelho com subtom azulado quando misturado ao branco (FITZHUGH et al., 2012, p. 109). A planta madder é um arbusto que cresce até 180 centímetros de altura. É indígena ao oeste da Ásia mas há tempos é cultivada no sul da Europa. Os mouros introduziram seu cultivo na Espanha, seu uso se estendeu até a Holanda no século dezesseis e em 1666. Na

190 Carlos Magno.: (2 de abril de 742 — Aachen, 28 de janeiro de 814) foi o primeiro Imperador dos Romanos de 800 até sua morte, além de Rei dos Lombardos a partir de 774 e Rei dos Francos começando em 768. A denominação dinastia Carolíngia, que pelos sete séculos seguintes dominaram a Europa, no que veio a ser posteriormente chamado Sacro Império Romano-Germânico deriva do seu nome em latim "Carolus". Por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, Carlos Magno ajudou a definir a Europa Ocidental e a Idade Média na Europa. Ele é chamado de Carlos I nas listas reais da Alemanha (como Karl), na França (como Charles) e do Sacro Império Romano-Germânico. Ele era filho do rei Pepino, o Breve e de Berta de Laon, uma rainha franca. Carlos reinou primeiro em conjunto com seu irmão Carlomano, sendo a relação entre os dois o tema de um caloroso debate entre os cronistas contemporâneos e os historiadores.

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Europa a raiz da madder era colhida três anos depois de seu plantio. A área periférica das raízes de madder possuem aproximadamente 8 a 10 mm em diâmetro, a casca da raiz é removida por um processo de esmagar e vendida para produzir um corante marrom chamado mull madder (FITZHUGH et al., 2012, p. 115). Para produzir o pigmento, as raízes eram cozidas numa solução que servia como mordente191, geralmente rica em sais metálicos, preferivelmente o sulfato ou óxido de alumínio sem traços de ferro. O alumínio era obtido em forma de minério puro (sólido) ou em forma de argila, sendo esse segundo a forma mais comum na antiguidade de obter a solução metálica. Quando pronto, o extrato era usado em forma líquida, mergulhando diretamente tecidos e peças de vestuários no extrato para que fossem tingidos. Diferentes quantidades de matéria prima para preparar o extrato influenciam na intensidade e no poder de tingimento, enquanto a própria natureza da matéria prima, isto é, a cor das raízes, podem apresentar diferenças de matiz (SCHWEPPE; ROOSENRUNGE, 1986, p. 255).

Lacas madder e alizarin são lacas transparentes para velaturas com boa permanência em meios aquosos, alcoólicos e no óleo. Laca de Alizarin e madder rosa contém primariamente pseudopurpurina como componente de cor que possui excelente resistência a luz de aproximadamente sete (baseado numa escala de um para oito). Desde que as lacas de madder usualmente também contém laca de purpurina de baixa resistência a luz, são geralmente menos resistentes do que as lacas de alizarin. Lacas de madder rosa contendo ainda mais purpurina possuem ainda menos resistência a luz (Tauber, 1909;Schultz, 1931-1932) (FITZHUGH et al., 2012, p. 114).

Abaixo, um apanhado geral sobre a permanência do madder em diferentes meios de pintura e diferentes suportes, assim como uma comparação entre o madder e o alizarin:

Laca de alizarin com compostos de alumínio ou cálcio, ou fosfato sódico podem ser aplicados a giz. No entanto, laca de madder não é resistente a giz. Laca de alizarin não pode ser usada com minerais com cálcio ou calcário (fresco) embora tenha boa aderência a interior de gesso seco. Schultz indica que madder e alizarin podem ser usados em várias tintas para as artes decorativas, incluindo óleo,

191 Mordente.: Nesse contexto, o termo refere-se a uma substância adicionada a um corante para que a cor torne- se resistente a água, ou em alguns casos, resistente a luz. Em raros casos, também intensifica a cor. O mordente também é chamado de “fixador”. O termo mordente é mais comumente usado pelos artistas como referência a algum tipo de substância usada como cola, como por exemplo: no caso da aplicação de folhas de ouro numa superfície usando um “mordente”.

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aquarela e tempera. Uma característica da laca de madder é que racha rápido, especialmente num substrato branco. Adicionando uma pequena quantidade de branco de chumbo ou misturada a outras tintas essa característica é corrigida. Rupturas são as vezes observadas na laca de madder quando no meio oleoso e pode estar relacionada a aplicação inadequada ou a alteração com pigmentos sintéticos inadequados (FITZHUGH et al., 2012, p. 115).

Sobre suas características de absorção de óleo durante a fatura da tinta com o pigmento e sobre sua secagem, Fitzhugh define: “A absorção da laca de madder é aproximadamente 70% de óleo e tem secagem inadequada. Por essa razão, é misturada a óleo de linhaça com verniz durante o processo (Doerner, 1949). Artistas venezianos adicionam compostos como marrom de manganês ou sombra queimada para melhorar as qualidades de secagem no óleo (Field, 1870)” (FITZHUGH et al., 2012, p. 115).

4.5.5.2. Buckthorn (Stil de Grain) Enquanto a laca de madder compreende um pigmento transparente vermelho, o buckthorn ou stil de grain compreende um pigmento amarelo ou verde, de corpo transparente:

A popularidade dessa laca e sua vasta produção geográfica denota que o pigmento foi referido por inúmeros termos, muitos com relação ao seu lugar de origem. Buckthorn, sendo o termo inglês, pode portanto estar relacionado com frutas silvestres inglesas e frutas silvestres amarelas. É notável no entanto, que essas frutas silvestres eram comumente conhecidas como frutas silvestres francesas, Avignon, na Inglaterra (EASTOUGH et al., 2005, p. 71).

Algumas espécies de frutas silvestres192 da família das Rhamnaceae, como a Rhamnus Catharticus, Rhamnus Alaternis e a Rhamnus Infectorius, são conhecidas e comercializadas na Europa como Grãos de Avignon, frutas silvestres de Avignon ou ainda de frutas silvestres francesas (french berries), nos EUA e na Inglaterra conhecidas também como buckthorn, na França como nerprun e em latim e italiano como prugna meroli. Outras variações do nome do pigmento na língua inglesa são dutch pink, french pink, sap green ou ainda brown pink. Os termos históricos usados para o pigmento feito a partir das frutas rhamnus são giallo santo (italiano), stil de grain (francês), schuttgelb (alemão) e shitgeel (holandês) (EASTOUGH et al., 2005, p. 328).

192 Do inglês “berries”.

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[stil de grain] é um termo francês para o corante de flavinoide derivado de várias plantas da espécie Rhamnus. É também um termo para o pigmento laca amarela feito dessa planta. Watin (1785) descreve-o como ‘feito do extrato de graine d´Avignon, que vem da arvore chamada noirprun (Rhamnus catártica L.) mistura a um pouco de alun de glace, uma espécie de giz ou pó de carvonato de cálcio de Champagne (EASTOUGH et al., 2005, p. 359).

Geram um extrato vegetal que depois de seco, era triturado para produzir um corante. Esse corante era misturado a carbonato de cálcio para produzir uma laca193 e em algumas variações das receitas, alumínio (como no caso do brown pink). Quando as frutas estão maduras, resultam num corante verde e quando ainda estão verdes geram um corante amarelo. As várias espécies diferem moderadamente entre si e todos os corantes gerados por essas espécies possuem vários componentes, embora o principal seja sempre um flavonoide194 (EASTOUGH et al., 2005, p. 328). Nos antigos manuscritos de pintura, como o manuscrito De Mayerne (1620-1646) e o manuscrito de Pádua, encontram-se receitas muito específicas quanto a época do ano em que as frutas eram colhidas para produzir o corante amarelo (ainda verde) ou verde (madura, ainda escura) (EASTOUGH et al., 2005, p. 328). Segundo Church, as características de permanência do buckthorn são as seguintes:

Mesmo sendo lindas e úteis, como as lacas amarelas sem dúvida são, elas devem ser rigorosamente excluídas da paleta do artista. No óleo a maioria secam demoradamente, assim como são fugitivas, na aquarela elas geralmente perdem nove décimos de sua cor em dois anos de exposição ao sol, as manchas residuais são de um cinza azulado [...] nunca me deparei com uma espécie que depois de um ano exposta a luz do sol não sofreu completa mudança de cor tanto em água quanto em óleo (CHURCH, 1915, p. 181).

193 Receitas para produzir a laca usando esse extrato vegetal podem ser vistos no Manuscrito Bolognese, Também conhecido como Manuscrito Bolognese 165, compilação escrita por volta de 1425-1450 por autor desconhecido e que hoje se encontra no convento de São Salvatore, em Bologna, Itália (MERRIFIELD, 2010, p. 325). 194 Flavonoides (ou bioflavonoides) é a designação dada a um grande grupo de metabólitos secundários da classe dos polifenóis, componentes de baixo peso molecular encontrados em diversas espécies vegetais. Os diferentes tipos de flavonóides são encontrados em frutas, flores e vegetais em geral, assim como no mel e em alimentos processados como chá e vinho.

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4.5.6. Preto de Osso (Bone Black) “Os escuros tinham grande importancia para Rembrandt. Embora as sombras de cor escura fossem quase o suficiente para as sombras dos fundos, as roupas escuras usadas por seus modelos pedia um pigmento preto intenso” (BOMFORD et al., 2006, p. 44). Esses pigmentos eram sempre feitos de ossos de animais ou restos de marfim torrados num recipiente fechado. O produto final era um preto quente, intenso, composto de carbono e fosfato de cálcio , Ca3(P04)2, o resíduo da estrutural do material dos ossos (BOMFORD et al., 2006, p. 44). O termo preto à base de carbono é usado para categorizar um grupo de pigmentos pretos ou marrons compostos principalmente de carbono. O termo permite a distinção do preto de carbono, mais específico para as formas de carbono geradas por fogo (fuligem de substâncias inflamáveis como o gás e outros combustíveis). Os pigmentos a base de carbono são divididos em quatro grupos possuindo diferenças primariamente em seu modo de preparação: carbonos cristalinos, carbonos de casca, carbonos de fogo e coca195. O último é a subcategoria do preto usado por Rembrandt, o preto de osso (EASTOUGH et al., 2005, p. 88) A subcategoria coca, compreende pigmentos a base de carbono feitos com a queima de ossos, marfim ou chifres de animais. Segundo Eastough: “Tipicamente, o material precursor a queima é um sólido que se funde com o calor, como o colágeno ou o açúcar [...] formando a coca que é comercializada [...] o material resultante possui pouca relação morfológica com sua microestrutura original, que é perdida durante a formação” (EASTOUGH et al., 2005, p. 90). Sobre o fenômeno de transformação e a matéria prima, Eastough cita que: “[...] a coca é a transformação desse colágeno e açucares numa estrutura molecular de grafite cristalina [basicamente ossos calcinados] [...] por isso é conhecida como carbono grafitado196 [...] Há várias fontes sobre as materiais primas, com notáveis menções na literatura histórica de ossos (incluindo chifres e marfim)” (EASTOUGH et al., 2005, p. 90). Church tem pouco a dizer sobre as características do preto de osso, limitando-se a compará-lo ao preto de marfim para ilustrar sua tendência a absorver umidade, quando ainda em pó, e sua característica de descolorir quando em contato a umidade.

As sobras do marfim, em forma de pedaços, raspas e pó, quando torrados dentro de receptáculos fechados, formam um resíduo negro, no entanto, consiste essencialmente de terra de osso (fosfato de

195 Do inglês coke. 196 Do inglês “graphitisable carbons”.

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carbonato de cálcio), tingido pela presença de carbono. Quando exposto ao ar, o preto de marfim absorve uma proporção considerável de umidade. É por isso que que o preto de marfim deve estar completamente seco antes de ser mistura a óleo. Sendo que essa substância tem o poder de descolorir quando em contato com pigmentos orgânicos mais úmidos, é melhor adaptado para uso com óleo do que na aquarela. Essa propriedade descolorante também pertence aos pretos animais obtidos com a queima de chifres e lascas de ossos – produtos frequentemente substituídos pelo genuíno preto de marfim [...] Preto de marfim e de osso são pigmentos pretos perfeitamente permanentes, sendo o segundo livre do subtom azulado que caracteriza a maioria dos pretos feitos com carvão vegetal (CHURCH, 1915, p. 270).

Acerca do uso do pigmento em diferentes áreas, nas pinturas de Rembrandt, Bomford cita:

Preto de osso é encontrado em todas suas pinturas: frequentemente como componente com otros pigmentos para velaturas de cor escura para fundos e roupas, muitas vezes essa mistura inclui lacas, esmalte e cores terrosas na mais variadas proporções. É o principal pigmento de esboços iniciais para definir as principais partes de uma composição, e ocasionalmente usado para fazer sombras de pele. Estudos de varias pinturas de Rembrandt […] mostraram o extenso uso do pigmento nas camadas iniciais com técnica ‘lavada’ acima da camada de ‘ground’. Incomumente, pigmento preto de osso puro, e não misturado a outro pigmento, foi usado para pintar as partes mais escuras das roupas dos retratos de Aechje Claesdr [1634] e Philips Lucasz [1635] (BOMFORD et al., 2006, p. 44).

Quanto ao uso de um outro tipo de preto, ainda a base de carbono, mas de origem vegetal, Bomford cita o uso de preto de carvão nas seguintes obras:

O pigmento preto feito da queima de madeira ou carvão não era amplamente usado, exceto para misturar cinzas nas camadas de cima. A obra Homem Idoso como São Paulo [1659-60] é um bom exemplo disso; O tom levemente azulado do carvão quando misturado com branco enaltece os meio-tons frios do tom de pele de Mulher Banhando-se em Corrego, [1654], assim como nos cinzas azulados da pele branca e nos punhos do Retrato de Hendrickje Stoffels [1654]. Uma técnica incomum para as áreas de verdes mais escuros no bouquet de Saskia como Flora [1634] envolve pincelar a seco um pouco de preto de carvão por cima de uma camada de azurite num azul-esverdeado intenso, enquanto em Judas devolvendo as 30 Moedas de Prata [1629] Rembrandt faz uso de preto de carvão no fundo escuro (BOMFORD et al., 2006, p. 44).

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4.5.7. Azuis Rembrandt comumente não empregava a cor azul em suas obras. Um dos azuis mais populares entre os artistas, era o azul ultramar, um dos pigmentos azuis mais populares da história da pintura. Bomford afirma que:

Rembrandt não parece ter usado em nenhum lugar o azul ultramar natural, o mais valioso dos pigmentos azuis tradicionais. Como o azurite, é um azul mineral, extraído de um processo laborioso da pedra semipreciosa lápis-lazúli, a qual era importada para a Europa do Afeganistão, via Veneza. Em nenhuma amostra analisada encontrou-se ultramar natural, e nenhum exemplo de seu uso foi publicado. Embora escarço e custoso, o pigmento era certamente disponível na Holanda do século dezessete, pois fora usado extensivamente por Vermeer (BOMFORD et al., 2006, p. 47).

Segundo Kirby e White, os dois azuis mais usados por Rembrandt não eram usados por sua cor, mas por suas propriedades, para que afetassem o tempo de secagem de outros pigmentos: “Pequenas quantidades de azurite ou de esmalte, que secavam de modo adequado, eram adicionadas a pigmentos como as lacas amarelas e vermelhas ou ao preto de osso, que tinham secagem lenta, sem afetar a cor geral da camada de tinta” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 64). A seguir, analisa-se todos os pigmentos azuis usados por Rembrandt, com mais detalhes.

4.5.7.1. Vivianite Rembrandt usava de modo muito discreto, o pigmento chamado vivianite, uma argila mineral encontrada naturalmente. Bomford pensa que o artista fazia uso desse azul provavelmente por motivos de economia de recursos, o pigmento azul ultramar era muito mais caro. Além de mais barato, o pigmento vivianite era um produto produzido na Holanda. O material tem cor cinza azulada pálida e é composto de fosfato de ferro hidratado (BOMFORD et al., 2006, p. 46).

4.5.7.2. Esmalte (Smalt) O pigmento esmalte é chamado nos países de língua inglesa de smalt, na Itália de azurro di smalto ou smaltino e em alemão de smalte. Alguns dos nomes já usados para denominar o pigmento esmalte, mas que hoje são termos considerados obsoletos, compreendem: starch

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blue (nos tratados dos secs. 17 e 18); em francês: email, esmail ou bleu d'email (azul de esmalte); em alemão: Kaiserblau, Konigsblau, Azurblau, Siichsischblau, Streublau, Couleur, Esche (ROY et al., 1993, p. 113). As partículas do esmalte são moderadamente finas com algumas partículas mais rusticas, mas podem variar bastante pelo fato de que o pigmento é feito de vidro moído (ROY et al., 1993, p. 115), mais precisamente, vidro de potássio com coloração azul. A cor se deve a presença de óxido de cobalto em quantidades variadas adicionado durante o processo de fatura. As fontes principais de cobalto na Europa, desde a idade média, eram o minério smaltite ([Co, Ni]As3 _ 2)), e mais tarde, nos séculos dezessete e dezoito, o cobaltite ((Co,Fe)AsS), obtidos com o derretimento de quartzo e potássio. Quando essa mistura era adicionada ao vidro derretido, obtia-se um vidro azulado, que, quando mergulhado em água fria, desintegrava-se em partículas, mais tarde triturado em moinhos de água e separadas por processo de elutriação197, esse processo resultava em partículas de esmalte. Na Inglaterra do século dezenove várias qualidades198 de esmalte eram vendidas, variando a quantidade de cobalto do material e o tamanho do grão (ROY et al., 1993, p. 113). Bomford define que o pigmento é um vidro de potássio colorido de azul devido adição de óxido de cobalto, embora não possua uma composição única, o potássio, cobalto e a sílica são componentes essenciais, além disso, o arsênico é geralmente detectado como impureza. Outras passagens importantes de Bomford são:

[...] as fontes do século dezessete de cobalto eram minas saxônicas, mas a fatura do esmalte tornou-se uma especialidade holandesa e belga. Em sua melhor forma, esmalte é um azul profundo, transparente com um subtom levemente violetado [...] desde que se trata de vidro, sua cobertura é ruim. Às vezes, esmalte pode descolorir ou esbranquiçar no meio oleoso, particularmente se usado em velaturas. Isso acontece porque o conteúdo de potássio é descolorido pelo óleo que reage formando saponáceos, o resultado é considerável acastanhamento do meio e a perda da cor azul. A

197 Elutriação.: processo utilizado para separar partículas finas, de tamanho inferior ao que pode ser separado por peneiras, em vários tamanhos graduados (PERRY, 1966). Na geologia, é o processo de separação de areias e outros materiais soltos, utilizando correntes de água. 198 “A qualidade da cor era classificada em F (Fine), M (Medium) e O (Ordinary), respectivamente. O smalt com partículas maiores recebia gradação H (High) e era chamado na saxônia de streublau, que quer dizer literalmente ‘azul para cobrir‘. Após essas gradações, vinha a classificação C (Couleur) e a fina E (Eschel). Beckmann indica que o minério complexo Co-Ni-Fe-As da saxônia era primeiramente tostado e a maior parte do arsênico era volatizado. Os óxidos de cobalto, níquel e ferro eram então fundidos com areia de sílica e o produto resultante chamado de Zaffre ou Zaffera, em parte vendido a olarias e vidrarias. O resto do produto era fundido com potássio e areia, dessa maneira, o produto tornava-se azul. Quando soda era usada ao invés de potássio, tornava-se violeta” (ROY et al., 1993, p. 113).

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mudança de cor aconteceu em várias obras de National Gallery de Londres [...] um exemplo é Retrato de Margaretha de Geer [...] os efeitos a longo termo desse pigmento eram, é claro, desconhecidos naquela época (BOMFORD et al., 2006, p. 46),

Outras obras onde se vê a descoloração são: a área do céu cinza azulado em Retrato Equestre de Frederik Rihel, por cima de uma sólida camada de branco de chumbo, nos cinzas do fundo da Ceia de Belshazzar e no pequeno impasto azulado das penas usadas na cabeça da mulher a esquerda, em Homem Idoso como São Paulo, Retrato de Jacob Trip e Margaretha de Geer também são exemplos de esmalte usado para constituir textura em tinta translucidas escuras e transparentes também contendo lacas na mistura (BOMFORD et al., 2006, p. 47). Bomford também revela que Rembrandt usou o pigmento de forma sábia, tanto sozinho quanto em combinação com outros pigmentos: como um agente espessante para a criação de texturas na aplicação de velaturas grossas e como secante, sendo que ambas as funções estão inter-relacionados, desde que a maioria dos pigmentos de velatura secam muito devagar (BOMFORD et al., 2006, p. 47). Roy revela duas importantes propriedades do pigmento:

[...] o conteúdo de arsênico de algumas amostras de esmalte é as vezes revelada por uma análise de espectrografia e parece ser particularmente detectado mesmo em baixas concentrações [...] em pinturas que contém o pigmento [...] os vidros de potássio são quimicamente menos estáveis do que os de sódio ou lithium (Cox et al. , 1979). A estabilidade diminui com o aumento da quantidade de óxido de potássio K2O. Isso deve explicar por que tantas amostras de esmalte quando expostas a condições atmosféricas, observou-se a mudança de cor para um cinza pálido, também torna-se levemente solúvel em ácidos diluídos (ROY et al., 1993, p. 115).

A forma sintética de desenvolver o produto é provavelmente uma invenção europeia e vários especialistas atribuem sua criação, por volta de 1549 – 1560, a um vidraceiro boêmio chamado Christoph Schürer, embora o produto quase certamente estivesse disponível antes do século dezesseis, ou consideravelmente antes segundo Riederer (1968), desde que foi detectado em pelo menos duas pinturas europeias do século quinze. Seu uso em forma de minério de cobalto é bem mais antigo, muitos séculos antes do uso de sua versão sintética, usado no Egito e na antiguidade clássica para colorir vidro e provavelmente com origens no desenvolvimento de técnicas de produção de esmaltes e lacas similares ao vidro, no oriente

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próximo199 (ROY et al., 1993, p. 113). Esmalte era produzido nos países baixos durante o século dezesseis, durante o período de atividade de Rembrandt. É frequentemente mencionado no Manuscrito De Mayerne (1620-1646) (ROY et al., 1993, p. 114).

Certamente o esmalte era conhecido pelos vidraceiros venezianos no começo do século quinze (Laurie, 1914; Neumann, 1925). Parece ter sido usado pouco pelos pintores italianos do século quatorze e quinze, talvez pela disponibilidade de pigmentos melhores, como o ultramar e o azurite; quando esses pigmentos tornaram-se escassos no século dezessete, no entanto, foi empregado como substituto, particularmente nos céus e nos fundos das pinturas onde um azul intenso não era necessário. Também era usado como um pigmento mais barato para a decoração de paredes (Littmann, 1886; Neumann, 1925). É comumente encontrado junto com outros pigmentos azuis mais tradicionais na pintura veneziana do século dezesseis (ROY et al., 1993, p. 114).

Esmalte, assim como outros vidros, é considerado estável, ao menos que tenha sido produzido de maneira imprópria. Na pintura, é melhor quando usado em meios aquosos e alcalinos como no fresco com cal, no meio oleoso a cor azulada torna-se sutil devido o índice de refração do pigmento ser tão parecido ao índice de refração do óleo depois de seco. No meio oleoso também observa-se uma descoloração parcial ou completa, embora “quando misturado com branco de chumbo alguma proteção a perda de cor é conseguida [...] aponta- se que um número de fatores, individuais ou em combinação, podem implicar na descoloração do pigmento ” (ROY et al., 1993, p. 116). “Esmalte parece ter sido usado para dar volume para velaturas mais grossas contendo pigmentos de lacas para ajudar em sua secagem, que de outra forma seria de secagem extremamente lenta” (KIRBY; WHITE, 1994, p. 64). Foi identificado através de testes químicos nas seguintes áreas das seguintes pinturas de Rembrandt: Ceia de Belshazzar (fundo cinza azulado), National Gallery de Londres; Aristóteles com o Busto de Homero (na saia e no avental), Metropolitan Museum of Art, New York; Retrato Equestre (céu e lateral do cavalo), National Gallery, Londres; Tempestade na Galiléia, Isabella Stewart Gardner Museum, Boston; Jacó em Combate com o Anjo, Gemiildegalerie, Berlin.

199 “Importantes fontes de minério de cobalto próximas a Kashan, no Irã, foram usadas através de séculos por oleiros e esmaltadores persas e há motivos para se acreditar que esses minérios foram levados do centro do Irã pela rota de comércio até a China como também para o oriente próximo” (ROY et al., 1993, p. 114).

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4.5.7.3. Azurite O pigmento azurite também foi chamado pelos nomes, agora obsoletos, bergblau (azul da montanha) na Alemanha, bleu d´Allemagne em francês, azzurro dela magna em italiano e na antiguidade clássica de lápis armenius (ROY et al., 1993, p. 23).

O minério azurite é composto de principalmente carbonato básico de cobre azul 2CuC03

.Cu(OH)2 e é encontrado em muitas partes do mundo, geralmente nas áreas superiores dos depósitos naturais de minério de cobre, fornecendo um pigmento natural. O azurite mineral está geralmente associado a malaquita (em inglês malachite), CuC03.Cu(OH)2, o carbonato básico de cobre verde, substância mais abundante que o azurite (ROY et al., 1993, p. 23). O uso mais antigo de azurite como pigmento para pintura é provavelmente da quarta dinastia no Egito, no entanto, não era amplamente usado no Egito e na antiguidade clássica, aparentemente, pela disponibilidade do pigmento azul egípcio (ROY et al., 1993, p. 24).

O Azurite foi o mais importante pigmento azul na pintura europeia durante a idade média, o renascimento e também mais tarde, apesar do ultramar, mais tóxico e custoso, receber mais menções. Na pintura europeia de cavalete dos séculos quinze e dezesseis, azurite natural era comumente usado como uma pré-pintura para o azul ultramar (ROY et al., 1993, p. 25).

Há evidências de que a principal fonte de azurite na europa era a Hungria, pelo menos até o século dezessete200. Aparentemente, o azurite natural foi usado até 1800 na pintura de cavalete, com a maioria das ocorrências antes do último quarto do século dezessete. A invenção do azul da Prússia parece ter sido a razão da desaparecimento do azurite da paleta europeia (ROY et al., 1993, p. 25). A preparação do pigmento é feita através da cuidadosa seleção de pedras de azurite, que são então moídas, lavadas, levigadas201 e finalmente o pó resultante é filtrado. O azurite pouco moído gera um azul escuro, enquanto o pigmento moído fino gera um azul mais claro (ROY et al., 1993, p. 25). Bomford define o azurite da seguinte forma:

200 Substanciado pelo fato que a Hungria ainda é a principal fonte de azurite (Dana, 1951 ; Zsivny, 1948). 201 Levigação.: método de separação de misturas heterogêneas de sólidos. Quando uma mistura se forma por substâncias sólidas de densidades diferentes, pode-se utilizar uma corrente de água para separá-las. É o caso do ouro, que nos garimpos normalmente é encontrado junto a uma porção de terra ou areia. Usa-se uma rampa de madeira ou uma bacia em que se passa uma corrente de água que serve para separar essas substâncias. A parte mais leve (a areia ou a terra) é carregada pela água, enquanto a com maior densidade (o ouro) fica depositada no fundo. Esse processo de separar substâncias de maior densidade de outras de menor densidade utilizando água (ou outro líquido) corrente é a levigação.

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Azurite é um mineral natural azul, quimicamente um carbonato básico de cobre azul 2CuCO3.Cu(OH)2. Ocorre na natureza juntamente a um carbonato básico de cobre verde, malaquita, também usado como pigmento [...] Azurite é reconhecível no microscópio, geralmente como grandes partículas minerais fraturadas de um azul intenso ou azul esverdeado. A maior parte do pigmento usado na pintura europeia era da Hungria ou da Alemanha, embora fontes do Novo Mundo também fossem mencionadas no século dezessete. Em adição a sua forma mineral, um azurite sintético chamado blue verditer (aschen em holandês) estava disponível para o pintor do século dezessete e era usado de modo similar, mas diferente na forma de suas partículas, que eram mais grãos cristalinos mais arredondados de um azul pálido ou azul esverdeado (BOMFORD et al., 2006, p. 45).

Azurite é estável na luz e na atmosfera, mas é decomposta por minerais ácidos como a malaquita, a proporção dessas impurezas influencia na cor do filme formado por azurite. Apesar do azurite ser um carbonato, e por isso sensível a ácidos, possui bons registros de conservação no meio oleoso e na tempera. Torna-se escura, no entanto, em contato com gases sulfurosos, especialmente quando usado em pintura mural. Também há registros de que se torna verde devido à presença ou contato com malaquita202. De acordo com Selim Augusti, há raras igrejas medievais italianas nas quais os murais contendo azurite não mostram evidências da transformação de azurite em malaquita. Frequentemente, camadas grossas de azurite aplicadas em tela tornaram-se verdes ou muito escuras, em alguns casos quase negro, especialmente quando não misturada a outros pigmentos. Camadas grossas de azurite também mostram frequentemente encolhimento e fissuras embora abaixo da superfície o pigmento ainda mostre boas condições (ROY et al., 1993, p. 27). Segundo Bomford, há possibilidade de que Rembrandt fazia uso do azurite também como um secante, misturado a tintas que naturalmente não possuíam boa secagem no óleo:

[...] como é um pigmento que contém cobre, o azurite melhora a secagem da tinta óleo através de uma reação química com o meio. É provável que Rembrandt usou o pigmento também como um secante além de agente colorífico, misturando em pequenas quantidades de azurite sintético ou natural com tintas escuras para velaturas feito com pigmentos que do contrário não secariam particularmente bem no óleo. A secagem de filmes de tinta contendo pigmentos de laca e preto de osso são ajudados dessa forma. Nesse caso a proporção de pigmento usado é muito baixa, suficientemente para influenciar a

202 Por exemplo, nos frescos de Cimabue feitos no teto da capela de São Francisco de Assis (Augusti, 1949).

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secagem mas não o bastante para mudar a cor. Exemplo desse procedimento é encontrado nas velaturas feitas ao fundo da obra A Adoração dos Pastores, Homem Idoso como São Paulo, Um Monge Franciscano e Autorretrato com idade de 63, entre outros (BOMFORD et al., 2006, p. 45).

Azurite foi encontrada nas seguintes obras de Rembrandt da National Gallery de Londres: Adoração dos Pastores (1646), Saskia van Uylenbergh com Fantasia de Arcadia (1635), Retrato Equestre de Frederick Rihel (1663) e a Ceia de Belshazzar (1636-8). Ainda acerca sobre os usos de azurite nas obras de Rembrandt:

Os Rembrandt da National Gallery não são notáveis pelo uso de pigmentos azuis, embora nas pinturas históricas do seu começo de carreira os azuis e verdes tenham um papel mais importante. O único quadro com tonalidade fria é Saskia como Flora [1634], no qual Rembrandt fez uso de azurite em todo o tipo de mistura, conferindo uma coloração esverdeada em quase toda a composição [...] (BOMFORD et al., 2006, p. 45).

Na obra Saskia como Flora (1634), vemos o uso do azurite misturado a uma laca amarela para formar as camadas iniciais de velaturas do fundo, nesse caso, sendo intencional o uso tanto das propriedades secativas do pigmento quanto de sua cor (BOMFORD et al., 2006, p. 45).

4.6. Pincéis e Espátulas Houbraken (FORD et al., 2018, p. 101) é um dos primeiros escritores a descrever o uso de ferramentas incomuns usadas por Rembrandt para obter as texturas de suas obras. descreve que“[...] em seus últimos anos, [suas pinturas] quando vistas de perto, pareciam que a tinta havia sido aplicada com uma trincha rústica203 para pixe [...]” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 133). Nenhum dos textos analisados para este estudo confirma o uso de alguma outra ferramenta de aplicação de tinta usada por Rembrandt. Outros autores exploram essa possibilidade, principalmente acerca do uso de espátulas. Como De Vries, por exemplo: “[...] a tinta amarela do xale, parcialmente misturada a branco, é grossa e aparentemente aplicada com espátula” (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 167).

203 Segundo Bikker, o termo original usado por Houbraken é “ruwe teerkwast” (rough tar brush) (BIKKER; WEBER, 2015, p. 133).

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Ao analisar a textura construída por Rembrandt na manga de Isaac, na pintura Casal como Isaac e Rebecca (Rijksmuseum, 1660), Van de Wetering descreve que na sua opinião, “[...]é um mistério como tal estrutura na superfície foi conseguida e qual ferramenta foi usada, é impossível distinguir qualquer pincelada, também não há nenhum traço óbvio do uso de espátula” (VAN DE WETERING, 1997, p. 157). Portanto, deixa claro que não pensa ter sido feita com espátulas, ao mesmo tempo que também não pensa ter sido feito com pincéis. Van de Wetering sugere algumas pistas para uma possível pesquisa acerca das ferramentas usadas para construir essas texturas. Primeiramente, acredita que “[...] quase parece o resultado de um processo geológico; de alguma maneira elusiva o acaso parece ter desempenhado um importante papel nessa maneira de pintar”(VAN DE WETERING, 2016, p. 157). Portanto, para Van de Wetering, o resultado orgânico das marcas deixadas pela ferramenta mostra uma certa casualidade, uma intervenção do acaso, isto é, algo que não seja totalmente incontrolável mas que não mostre pistas da ação de guiar do pintor. Em segundo, Van de Wetering também sugere a teoria da aplicação de restos de tinta seca como meio de explorar a construção dessas texturas (VAN DE WETERING, 1997, p. 242). Não deve ser abandonada a possibilidade de que o artista, ao contrário de todas essas teorias, fizesse uso de pincéis absolutamente comuns. De qualquer forma, para uma investigação científica sobre o tema, seria necessário conduzir a pesquisa teórica e prática, com o uso sistemático de inúmeras ferramentas diferentes aplicadas na fatura de pinturas, registrando visualmente os processos e seus resultados, comparados as pinturas do artista. É assunto complexo e extenso suficiente para outra tese, merece atenção e sobretudo uma metodologia diferente daquela aplicada neste estudo.

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5. Processo de Pintura O capítulo a seguir apresenta os prováveis processos conceituais e físicos usados por Rembrandt em suas pinturas do período tardio, em formato de compilação das análises químico-físicas e textos históricos que mostram as possibilidades usadas pelo artista. As articulações de relevância serão discutidas ao começo de cada subcapítulo. Van de Wetering acredita que Rembrandt, ao longo de sua carreira, nunca usou uma técnica fixa. Aponta que, ao examinar a estrutura física de várias camadas pictóricas (cross- sections) de muitas pinturas, foi possível “[...] confirmar nossa teoria sobre seus procedimentos técnicos”204 (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 12). Isso explica a grande dificuldade em se provar se determinada pintura é um Rembrandt autêntico ou não: “[...] a ideia de que Rembrandt possuía um método de trabalho fixo, um único método que pode ser visto como um ponto de referência sempre que houver dilemas acerca da autenticidade, admite-se não existir – certamente não há um método que tenha usado por toda a sua carreira” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 11).

“Rembrandt em particular é considerado, com razão ou erroneamente, como um dos exemplos mais notáveis do tipo de artista que goza de grande liberdade criativa e possivelmente demonstrando uma tecnicalidade extravagante205. Não deve então soar de modo surpreendente, que nas avaliações dos resultados de pesquisa sobre o uso que fazia das técnicas e de seus materiais, aceitamos de maneira conformada e respeitosa a inconsistência dos resultados [laudos] técnicos [científicos]" (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 11)

Segundo a opinião de alguns especialistas na obra de Rembrandt, o pintor não possuía um método que era seguido de modo formal em todo trabalho. Bomford afirma que:

“Rembrandt combinava a introdução de técnicas inovativas e pouco usuais na sequência de pintura juntamente com aquelas tradicionais. Não há um só padrão que emerge, e embora alguns meios de pintura sejam recorrentes, raramente são parte de um sistema técnico controlado de modo rígido ” (BOMFORD et al., 2006, p. 35).

204 As obras analisadas para o estudo mencionado são: Pintura Histórica (1626, Stedelijk Museum Leiden); O Batismo do Eunuco (1626, Museum Catharijneconvent); Musical Allegory (1626, Rijksmuseum); Tobit e Anna (1626, Rijksmuseum); Estudo de Luz no Espelho/Autorretrato (1628, Rijksmuseum); Ceia em Emmaus (1629, Musée Jacquemart-André) e Velha Lendo (1631, Rijksmuseum). 205 Van de Wetering usa o termo inglês “whimsicality”, que significa de forma caprichosa, de forma excêntrica ou exótica. O uso da palavra parece querer ilustrar que Rembrandt “brincava” com a técnica, usando-a para “se divertir”.

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Bomford afirma que “não há um só padrão que emerge”, mas uma das hipóteses levantadas por este estudo é a de que há vários padrões identificáveis nas obras do período tardio do artista. Segue abaixo, uma organização das informações estudadas sobre os procedimentos de pintura usados por Rembrandt, organizadas de modo a se compreender se existem padrões identificáveis, no sentido conceitual e físico de seu processo. Eles serão divididos em capítulos distintos: os processos conceituais e os processos técnicos. Embora seja objetivo deste estudo compreender os processos técnicos de seu período tardio, é necessário compreender algumas características do seu processo de início de carreira, a ser abordado conforme necessário.

5.1. Processo Conceitual de Pintura A seguir, analisa-se os fundamentos conceituais mais importantes para se compreender os procedimentos técnicos de pintura usados pelo artista.

5.1.1. Visibilidade da Pincelada, “Sprezzatura” e “Pittura di Macchia”: Tiziano Analisa-se aqui os principais conceitos que inspirariam Rembrandt a migrar de um estilo de pintura liso e contido para a maneira rústica usada em seu período tardio. As informações contidas nesse capítulo são uma compilação do material desenvolvido por pesquisas anteriores. As fontes mais importantes usadas são as obras de 1997 e 2016 de Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997) e os textos históricos de Vasari (VASARI, 2008), Van Mander (MIEDEMA, 1973), Le Brun (EASTLAKE, 1847), Houbraken (FORD et al., 2018). Van de Wetering aponta que, embora hajam semelhanças entre o início de carreira de Rembrandt, chamado também de período de Leiden, e o período tardio, não é esse o caso quando se trata das pinceladas. Van de Wetering cita que “por definição, o ilusionismo na pintura, esconde o meio usado para criar a ilusão”, isto é, o conceito de ilusionismo era considerado o modo de pintar o qual enganava-se o observador pelo realismo e pela ausência de indícios que revelam ser aquilo uma pintura, diga-se as marcas dos pincéis (VAN DE WETERING, 1997, p. 169). Mas, o trabalho de Rembrandt era completamente diferente desse conceito: embora houvesse um alto grau de naturalismo, a pincelada não era removida ou disfarçada, mas revelada deliberadamente em toda a sua força.

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Ainda em sua cidade natal, Leiden, Rembrandt começara sua carreira com uma técnica relativamente fina e mais tarde, mudou seu estilo para o que ficaria conhecido como o estilo bruto206, como já era chamado no séc. XVII. Segundo Van de Wetering, essa mudança estilística era considerada, até esse século, como um desenvolvimento altamente pessoal. No entanto, Van de Wetering acredita que, além dos motivos pessoais, há outros indícios para se acreditar que essa mudança também foi guiada por decisões conscientes baseadas em ideias recorrentes desse período sobre “o sutil e o bruto”, parte da cultura dos ateliês do séc. XVII (VAN DE WETERING, 1997, p. 160). Pierre Le Brun, o autor do Manuscrito de Bruxelas, já mencionado anteriormente, contém “dicas” para como os amantes das artes devem elogiar um artista, quando em visita a algum ateliê. Le Brun diz para que o visitante elogie da seguinte forma: “É possível que o lápis possa dar tal suavidade com toques tão rústicos, e que tal aparente descuido seja tão atrativa?”. Segundo Van de Wetering, a menção do termo descuido207, um dos aspectos da maneira tardia de pintura de Rembrandt, compatível com a pincelada descuidada e amostra, e um indício de que a qualidade rustica e espontânea de um estilo alterstil também era apreciado, além do estilo macio e suave. Van de Wetering conclui que: “A admiração pelo fato de que uma representação da realidade pode ser alcançada com uma pintura rustica mostra que o critério mais desejado [pelos artistas] era o ilusionismo” (VAN DE WETERING, 1997, p. 160). O conceito de sprezzatura foi elucidado por Baldassare Castiglione208 em seu Il Libro del Cortegiano (1528), traçando um paralelo entre o comportamento do cortesão e o modo solto, aparentemente descuidado, de como um artista segura o pincel. A definição mais recente de Sprezzatura é brilhantemente resumida por Bikker: “[...] é a habilidade de efetuar tarefas difíceis com aparente facilidade, mascarando o esforço” (BIKKER; WEBER, 2015, p. 137). Na época de Rembrandt, sprezzatura fora traduzido como “soltura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 161), isto é, fazer as pinceladas aparentes, mais soltas, levemente fora do lugar. A primeira edição traduzida para o holandês de Il Libro del Cortegiano aparece em 1662, e era dedicada a Jan Six, patrício de Amsterdam pintado por Rembrandt em 1654, a teoria de Van de Wetering é que ambos conheciam as conotações de sprezzatura nessa época

206 Van de Wetering usa o termo “rough manner”. 207 Van de Wetering traduziu o texto de Le Brun usando a palavra inglesa “careleness”. 208 Baldassare Castiglione.: Conde de Casatico, era um cortesão italiano, diplomata e soldado, assim como um proeminente autor Renascentista, provavelmente mais famoso pela autoria da publicação Il Libro del Cortesano (O Livro do Cortesão). Foi pintado por Raphael, a pintura se encontra na National Gallery de Londres.

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(1654), inclusive, a pose de Jan Six no retrato pintado por Rembrandt, a mostra em Amsterdam, assim como o modo de pincelar, é notável a força de uma sprezzatura. Van de Wetering aponta no entanto, que “[...] o conceito de sprezzatura não provém uma explicação satisfatória para a conversão de Rembrandt a maneira bruta”. Para Van de Wetering, há um outro autor do século dezesseis de maior importância para entender a maneira rústica de Rembrandt, e esse é Vasari (1511 – 1574) em seu Vida de Tiziano, incluído na segunda edição da Vida dos Artistas, traduzido quase que palavra por palavra por Karel van Mander em seu Schilder-boeck de 1604 (VAN DE WETERING, 1997, p. 162).

Embora Tiziano poderia ser classificado como cortesão, as raízes de seu estilo tardio, rústico, não derivam primeiramente do conceito de sprezzatura. Embora tenha morrido somente trinta anos antes de Rembrandt nascer, Tiziano era uma figura lendária a muito tempo, não somente para artistas mas para todo europeu culto. Ele foi o pintor que se equiparou a príncipes quase de igual para igual, mas o intrigante sobre ele é que seu estilo mudou radicalmente durante o percurso de sua longa vida. Depois de começar com uma técnica sutil ele mais tarde adotou uma maneira a qual Vasari chama de ‘pittura di macchia’209, ou pintura de manchas espirradas210. Vasari atribui isso à idade avançada de Tiziano, levando Samuel van Hoogstraten a concluir que se deve a falha da visão. Faz mais sentido no entanto, considerar sua técnica como consequência de seu método, descrito por Vasari, de pintar de modo direto, sem desenhos preparatórios. Nesse procedimento, valores tonais e cromáticos precedem a forma. A natureza revolucionária dessa abordagem torna-se aparente quando comparamos uma pintura de Raphael com um Tiziano tardio. Sem exagero, pode-se dizer que o estilo tardio de Tiziano trouxe uma mudança fundamental ao curso da história da pintura (VAN DE WETERING, 1997, p. 162).

Portanto, a teoria de Van de Wetering é a de que, a maneira de Tiziano, também chamada de pittura di macchia, influenciou a obra de Rembrandt, provavelmente influência de seus professores, Lastman ou Isaacsz211.

Não há nenhuma dúvida que ele [conceito de pittura di macchia] foi passado de modo direto e com maior força pelo ‘boca a boca’

209 Literalmente, “pintura de mancha” ou numa versão mais adequada para o português, “pintura manchada”. 210 Van de Wetering usa o termo em inglês “splotches”, embora uma tradução mais audível poderia ser somente “manchas”, ela não faria justiça a estética de um “splotch”, sendo “manchas espirradas” menos elegante, no entanto, mais adequado. É importante lembrar que, isso é uma tradução para o português daquilo que Van de Wetering traduziu do italiano para o inglês. É natural que alguma perda se faça presente. 211 Embora as pinturas de ambos os Mestres apresentem textura lisa e contida.

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durante o contato dentro dos ateliês do que pela Vida dos Artistas de Vasari ou pelo Schilder-boeck de Van Mander. Para entender como ideias que circulavam entre os ateliês italianos poderiam alcançar Rembrandt, basta lembrar que seus dois professores, Jacob Isaacsz e Pieter Lastman trabalharam parte de suas vidas na Itália (VAN DE WETERING, 2016, p. 163).

Para Van de Wetering, é importante lembrar que um dos aspectos discutidos em conexão com a maneira bruta é o fato de que as pinturas executadas nessa maneira deviam ser vistas de longe. De perto, só se viam manchas, mas de longe elas se fundiam numa representação da realidade que poderia convencer mais do que aquela encontrada num pincelar sutil. Constantijn Huygens, secretário do príncipe de Orange, registrou que o próprio artista teria dito que uma de suas grandes pinturas, do período de Amsterdam, deveria ficar num lugar onde a mesma “pode ser vista a distância”. Essa afirmação de Huygens parece confirmar a história212 registrada em 1718 por Houbraken que Rembrandt “afastava as pessoas que chegavam muito perto de suas pinturas quando visitavam seu ateliê, dizendo, ‘o cheiro da tinta irá lhe incomodar’” (VAN DE WETERING, 1997, p. 163). Van de Wetering observa como a opinião de Rembrandt, sobre ver a pintura de longe, está de acordo com a descrição de Vasari sobre as pinturas do período tardio de Tiziano: “[...] não podem ser vistas em espaços apertados, mas a distância parecem perfeitas”. Van de Wetering também lembra que a ideia de se colocar a distância para admirar uma obra de arte é mencionada algumas vezes na literatura clássica, como por exemplo, por Horácio213 (VAN DE WETERING, 1997, p. 164).

Outro fato que deve ter surgido proeminentemente no debate sobre as obras de Tiziano é que suas obras do período tardio estão num estado que só podem ser consideradas como inacabadas pelo padrão contemporâneo [de Tiziano] da prática da pintura. O mesmo se aplica ao estilo tardio de Rembrandt, e também nesse caso, há uma fonte antiga que endossa uma atitude positiva ao inacabado. É Plínio que comenta por muitos motivos os últimos trabalhos inacabados de famosos pintores gregos, encontrados em seus ateliês após sua morte, mais admirados do que aqueles acabados. Uma história que Boschini conseguiu diretamente com um dos últimos pupilos de Tiziano, Jacopo Palma Giovane, que sem dúvida rondou os ateliês holandeses

212 Houbraken registrou que essa história fora contada a ele por um dos pupilos de Rembrandt, possivelmente seu professor Samuel van Hoogstraten ou seu amigo, Aert de Gelder (VAN DE WETERING, 1997, p. 163). 213 Quinto Horácio Flaco.: em latim Quintus Horatius Flaccus, (Venúsia, 8 de dezembro de 65 a.C. - Roma, 27 de novembro de 8 a.C.) foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É conhecido por ser um dos maiores poetas da Roma Antiga.

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do séc desessete, contando como o ‘o mais exigente especialista’ comprou obras inacabadas que Tiziano possuía empilhadas contra a parede com a intenção de continuar a trabalha-las depois” (VAN DE WETERING, 1997, p. 164).

Segundo Van de Wetering, Houbraken diz que Rembrandt deliberadamente omitia sua opinião sobre se uma pintura estava terminada ou não, e não permitia que ninguém decidisse quando uma pintura estava pronta. Houbraken também cita que viu pinturas de Rembrandt que “em algumas partes estava trabalhada com muitos detalhes, enquanto o restante estava esfregado como se tivesse sido feito com um trincha para asfalto, sem nenhuma consideração pelo desenho [...] ele não seria persuadido a deixar essa prática, dizendo em justificativa que o trabalho está terminado quando o mestres alcança sua intenção com ele”. Para Van de Wetering, a história de Houbraken corrobora com muitas obras do período tardio, que levam sua assinatura, indicando que Rembrandt considerava-as como finalizadas. (VAN DE WETERING, 1997, p. 164). Para Van de Wetering, um dos textos mais importantes para compreender o desenvolvimento de Rembrandt, do seu estilo inicial até seu estilo do período tardio, é a Vida de Tiziano de Vasari, onde Vasari parece compreender que, por trás do aparente procedimento ‘sem esforço’ da pittura di macchia usado por Tiziano, esconde-se um vasto conhecimento e experiência (VAN DE WETERING, 1997, p. 164). Vasari escreveu:

[...] embora acredita-se que foram executadas sem esforço, a verdade é bem diferente, [...] [...] é óbvio que suas pinturas são retrabalhadas e voltando para trás com as cores, muitas vezes, fazendo evidente seu esforço. E essa técnica, feita nessa maneira, é repleta de bom senso, linda e estupenda, por que faz as pinturas não só parecerem vivas mas executadas com grande habilidade, escondendo o esforço (VASARI, 2008, p. 504).

Van de Wetering também lembra que Vasari parece entender a maneira bruta como algo alcançável somente por pintores experientes, conceito traduzido palavra por palavra por Van Mander. Além disso, o texto de Vasari também cita a necessidade de que o estilo seja visto de longe, assim como o próprio Rembrandt teria dito: “[...] executadas com pinceladas largas e seguras, de tais contornos grosseiros, de forma que de perto pouca coisa pode-se ver, mas de certa distância parece perfeito” (VASARI, 2008, p. 504).

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Mas, Van de Wetering cita que, a ideia que “um artista da estatura de Rembrandt modelou sua biografia artística em Tiziano parece altamente suspeita, para não dizer, blasfêmia”, embora o mesmo possa ter sido influenciado por Tiziano. De acordo com o autor, essa ideia se originou com o ensaio de Gridley McKim-Smith, sobre as relações entre as técnicas de pintura e as teorias da arte na Espanha de Velásquez. O ensaio de McKim-Smith sugere que, embora o material escrito sobre pintura na Holanda e na Espanha sejam ricos, é importante lembrar que, para ambos, a Itália ainda era fonte de admiração e alta influência. Sendo Tiziano uma lenda na Itália ainda no período de Rembrandt e Velásquez, “[...] a Itália era um marco evidente para todo pintor ou conhecedor europeu [...]”. Van de Wetering conclui sobre a teoria de McKim-Smith: “[...] chama a atenção um fenômeno que pode ter feito de Tiziano normativo para pintores como Velásquez e, ao que parece, Rembrandt, e este é seu uso livre do repentir214 [sic], ou alteração feita enquanto se pinta”. O que a teoria do pentimenti215 implica é que Tiziano não planejava suas pinturas com um desenho inicial, pintava de modo direto sem uso do desenho, conceito inverso do Fiorentino, onde o disegno é o conceito principal. Se Tiziano fizesse uso do disegno e não de colore como partes centrais de seu processo, não teria tantos pentimenti em suas obras:

No corrente modo binário de pensamento do Renascimento, há um sistema governado por polaridades, o oposto do princípio fundamental de disegno era o colorito, o qual Tiziano foi o primeiro e maior expoente. Nisso, foi seguido depois por pintores como Rubens em Flandres e Rembrandt no norte dos Países Baixos (VAN DE WETERING, 2016, p. 165).

Van de Wetering cita que Karel Van Mander explica que, uma das consequências de se trabalhar de modo direto, isto é, sem desenho, seguindo o princípio do colorito, é a necessidade de se corrigir tudo aquilo que é necessário enquanto se pinta. Van de Wetering pensa que:

[o texto de Van Mander] diz que somente pintores corajosos ousavam ter liberdades com o pentimenti deve ter encorajado artistas ambiciosos como Rembrandt a melhorar sem ressalvas enquanto inventava, e até mesmo permitir que traços de suas revisões ficassem visíveis, como Tiziano (e Velásquez) fizeram. De certa forma, o pentimenti era uma manifestação da liberdade do artista e de seu poder sobre sua criação. Isso é ilustrado na fala de Houbraken que

214 Refere-se ao pentimenti. 215 Também conhecido na Alemanha e holanda como reuezug.

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cita o fato de que Rembrandt levava tão a sério seu direito de decisão as últimas consequências, que: ‘dizem que ele pintou por cima de uma linda Cleopatra com tinta marrom para dar o efeito que queria a uma única pérola (VAN DE WETERING, 1997, p. 167).

Van de Wetering cita que a história é provavelmente verdade, sendo que os raio-x feitos da obra Autorretrato (1669), da National Gallery de Londres, confirmam que “os elementos que recebem luz e que devem atrair os olhos foram pintados por cima, tonificados com tons mais escuros216 ou alterados para trazer maior força a apenas uma parte da pintura – nesse caso, o rosto com o olhar decidido”, novamente, Van de Wetering relaciona um trecho de Vasari aos resultados das análises desse autorretrato: “[...] é óbvio que suas pinturas são retrabalhadas e voltando para trás com as cores, muitas vezes, fazendo evidente seu esforço. [...] faz as pinturas não só parecerem vivas mas executadas com grande habilidade, escondendo o esforço” (VAN DE WETERING, 1997, p. 168). Finalmente, segundo Van de Wetering, o interesse em Tiziano também é evidente no fato que, dentre sua grande coleção de gravuras dos primeiros Mestres, havia “um grande livro com quase todos os trabalhos de Tiziano” além de que, naturalmente, Rembrandt viu obras de Tiziano, as quais tomou elementos emprestados, como no Autorretrato com 34 anos (1640) também da National Gallery. Segundo o autor, o ensaio de McKim-Smith cita uma carta de Tiziano a Felipe II217 da Espanha, na qual o pintor diz que, mesmo se conseguisse igualar-se a Michelangelo, Raphael, Corregio e Parmigianino, “seria considerado menor que eles, ou seu imitador” e portanto, adotou o estilo de “largas pinceladas quase como borrões descuidados”. Van de Wetering cita que Houbraken escreve em seu livro sobre Rembrandt que o pintor teve a mesma iniciativa que Tiziano: escolheu sua abordagem na pintura com intenção de evitar uma comparação com os trabalhos dos “italianos famosos”. Conclui que “[...] se há um aspecto de suas obras pintadas na qual difere radicalmente de todos os outros pintores, incluindo Tiziano, [...] é a diferenciação notável na manipulação da tinta” (VAN DE WETERING, 1997, p. 168). Portanto, como conclusão, segundo Van de Wetering, seria correto afirmar que, além dos motivos pessoais, há outros indícios para se acreditar que a mudança estilística de Rembrandt

216 Van de Wetering usa o termo inglês “toned down”. 217 Felipe II (1527 – 1598).: foi Rei da Espanha de 1556 até sua morte e também Rei de Portugal e Algarves a partir de 1581. Expandiu o domínio espanhol a Portugal, à Flórida e às Filipinas. Foi o primeiro líder mundial a estender os seus domínios sobre uma área direta "onde o sol jamais se punha", superando portanto Gengis Cã, até então o homem mais poderoso de todos os tempos.

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foi parcialmente guiada por ideias recorrentes sobre “o sutil e o bruto”, conceitos que faziam parte da cultura dos ateliês do séc. XVII (VAN DE WETERING, 1997, p. 160).

5.1.2. Pensamento Cromático Geral As fontes mais importantes usadas nesse capítulo são as obras de Thijs Weststeijn (WESTSTEIJN, 2008) (WESTSTEIJN, 2013) e Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2016). Informações complementares foram inseridas dos textos de Bomford (BOMFORD et al., 2006). Kern (KERN, 2012) e Taylor (TAYLOR, 1992). Os textos históricos usados foram os de Samuel van Hoogstraten (WESTSTEIJN, 2008), Van Mander (MIEDEMA, 1973), Le Brun (EASTLAKE, 1847), Houbraken (FORD et al., 2018) e Sandrart (FORD et al., 2018). A relevância é a apresentação de uma compilação baseada numa extensa e detalhada análise da obra de Weststeijn, Samuel Van Hoogstraten e de Van de Wetering que possibilita a compreensão dos conceitos de cor dos principais tratados do período e a apresentação da hipótese de que Rembrandt conhecia o conceito de cores complementares e fazia uso desse conhecimento como meio de neutralizar suas cores.

5.1.2.1. A Cor no Séc. XVII Segundo o historiador Thijs Weststeijn218, as teorias de cores dos manuais de pintura do começo do século XVII foram influenciadas por conceitos da antiguidade clássica e da idade média219. Tratam o assunto a partir de uma perspectiva da percepção humana, do modo como as cores afetavam o sensível, associando sensações e sentimentos aos matizes220. (WESTSTEIJN, 2008, p. 220) De uma outra perspectiva, mais dirigida aos procedimentos técnicos e processuais, pertinentes ao fazer artístico, esses manuais também orientavam sobre como a cor deveria ser usada num campo pictórico de modo a enriquecer a percepção ou fruição de uma obra, ajudando o pintor a produzir efeitos de profundidade mais eficientes, assim como a alcançar uma maior ilusão de realidade.

218 Thijs Weststeijn. Historiador e Prof. Dr. do Departamento de História da Arte da Faculdade de Amsterdam. 219 As teorias medievas são inteiramente baseadas nos mesmos conceitos usados pela antiguidade clássica, com poucas ou nenhuma mudança. Os mais notáveis conceitos e teorias cromáticas da antiguidade (no ocidente) são de: Pitágoras (570 a.c. – 490 a.c.), Demókritos (460 a.c. – 370 a.c.) e Aristóteles (384 a.c. – 322 a.c.). 220 Matiz.: Cor, Família de uma cor, ex. a matiz do amarelo.

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É necessário no entanto, pontuar que os conceitos cromáticos conhecidos pelos pintores de hoje seriam descobertos somente no final do século XVII 221, como afirma a obra de John Gage222 sobre as mudanças ocorridas nos manuais de pintura ao final do século XVII: “percebe-se um maior esforço na tentativa de definir cores mais importantes do que outras, organizando e categorizando as cores em grupos223”, criando distinção para suas qualidades e usos (GAGE, 1999, p. 34). Somente a partir da seminal obra de Newton224, publicada em 1680, define-se os conceitos de cores primárias, secundárias, terciárias, além do círculo cromático, e somente mais tarde, em 1810, a revisão e ampliação desses conceitos por Goethe225. Portanto, no período barroco, tanto Rembrandt van Rijn como seus contemporâneos desconheciam as definições científicas e as terminologias relativas as teorias cromáticas citadas acima. A única prova concreta de um livro de pintura pertencente a Rembrandt apresenta-se em seu inventário de óbito, sendo a obra em questão o tratado de perspectiva de Albert Durer226. Não há registro por escrito, relato ou quaisquer outras provas concretas que provem a posse de um outro tratado, livro ou manual pelo artista. Portanto, só é possível presumir quais obras ou manuais foram do conhecimento do artista. Desta maneira, analisa-se a seguir, as publicações holandesas sobre pintura que, segundo Weststeijn e Van de Wetering, eram provavelmente familiares ao artista.

221 Embora após 1700 a teoria de Newton tenha tornado-se popular, ocorrre o que Alan Shapiro chama de “embate entre ‘cores de Newton’ e ‘cores dos artistas’” (SHAPIRO, Alan. Artists’ Colors and Newton’s Colors. In Isis, v. 85, n. 4, p. 600–630, 1994.) 222 John Gage (1938 - 2012). Historiador e Prof. Dr. da Royal College of Art. 223 Embora a tentativa de organizá-las em grupos seja mais notável durante o séc. XVII, o mesmo pode ser observado muito anteriormente, como nas teorias de: Pitágoras (570 a.c. – 490 a.c.) e Demókritos (460 a.c. – 370 a.c.), que agrupam 4 cores “elementares”; Aristóteles (384 a.c. – 322 a.c.), que agrupa 9 cores “lineares”; Leonardo da Vinci (1452 - 1519) com seu Tratado di Pittura (1490), que define 6 cores “simples” e Leon Battista Alberti (1404 - 1472) em sua obra De Pictura (1435), definindo 4 cores “verdadeiras”. 224 Sir Isaac Newton (1642 - 1726). Cientista e escritor inglês. Em seu tratado sobre ótica (Optiks) editado em 1680, relata o uso do prisma para decompor a luz branca em “segmentos” ou “espectro”, definiu as cores entre “Luzes Homogêneas ou Primárias” e “Luzes Heterogêneas ou Compostas”. 225 Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832). Cientista e escritor alemão. Sua obra Teoria das Cores (Zur Farbenlehre) foi publicada em 1810 e traduzida por Charles Lock Eastlake em 1940. 226 Treatise on Mensuration (Tratado sobre Medidas, 1525) de Albrecht Dürer (1471-1528). Desenvolvido para ensinar geometria e perspectiva aos artistas alemães.

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5.1.2.2. Karel Van Mander, Schilder-boeck e o Grondt O manual conhecido como Schilder-boeck (Livro Sobre a Pintura, 1604), de Karel Van Mander227, é uma tradução literal da Vida dos Artistas de Vasari228, com adições feitas pelo autor, sobre a vida dos mais importantes artistas ao norte da Europa ocidental (VAN DE WETERING, 2016, p. 188). Um trecho ou capítulo dessa publicação de Van Mander foi editada por Miedema durante o século dezessete com o nome de Grondt der Edel vry Schilder-const (As Fundações da Nobre e Livre Arte da Pintura), segundo o próprio Miedema, devido aos especialistas considerarem esse trecho da publicação “a única qualidade” do livro, provavelmente pelo restante do material ter sido extraído de Vasari e não escrito pelo próprio Van Mander (MIEDEMA, 1973). Segundo Miedema, a publicação Grondt, escrita em versos rimados229, apresenta-se como um trabalho “alegórico-moralista”, apresentando um texto filosófico sobre a arte da pintura, e portanto, não indicado para iniciantes, em suas próprias palavras “útil para desempoeirar um conhecimento que alguém já tenha” (VAN DE WETERING, 2016, p. 84), ou, segundo Van de Wetering, um“[...] curso escrito para pintores ainda em treino, uma obra suplementar ao que eles aprendiam no ateliê de seu mestre” (VAN DE WETERING, 2016, p. 84), enquanto a obra Schilder-boeck apresenta um contexto mais amplo, fazendo o papel que Grondt não faz: um manual técnico para iniciantes com instruções mais diretas (VAN DE WETERING, 2016, p. 80). Mas, a opinião de Van de Wetering é contrária à de Miedema: “Diferente de Miedema, estou convencido de que o texto de Van Mander deve ser tomado como basicamente de valor. Isto é, seria melhor ler o Grondt sem tentar ler teorias codificadas em sua construção ou significados escondidos” (VAN DE WETERING, 2016, p. 89). De qualquer forma, Van de Wetering considera de maneira geral que a teoria de cor apresentada por Van Mander em Schilder-boeck e Grondt compreende os principais conceitos e normas seguidos pelos maneiristas: cores puras e intensas, usadas em combinações harmoniosas. Um breve trecho do capítulo “Sobre a Escolha e Combinação das Cores”230 exemplifica o tipo de orientação oferecido na publicação acerca das cores:

227 Karel van Mander (1548 – 1606). Pintor, crítico de arte, poeta e teórico flamengo. Residente na Holanda no período final de sua vida, trabalhou em Haarlem e em Amsterdam, se tornou o principal biografo dos artistas dos países baixos nesse período, comparado a Giorgio Vasari. Foi professor de Frans Hals e influenciou uma série de escritores e historiadores da arte. 228 Giorgio Vasari (1511 -1574). Pintor, arquiteto, escritor e historiador, fundador ideológico da história da arte. 229 Segundo descrição de Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2016, p. 84). 230 “Van het Sorteren, em byeen schicken der Verwen” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103).

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Amarelo e azul... …combinam entre si: desta forma você pode combiná-los em drapeados. Vermelho e verde também vão juntos de forma maravilhosa. Vermelho com azul, para variar um pouco, também combinam. Roxo não empalidece perto do amarelo; verde ganha vida próximo ao branco, e branco vai bem com todas as cores... (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103).

Não há nenhuma explicação do método de combinação dessas cores, nenhuma descrição do por que, somente uma breve descrição das relações que funcionam e as combinações que devem ser evitadas, quase como receitas de harmonização (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Aparentemente, essas relações foram descobertas através de um processo de tentativa e erro, um conhecimento empírico dos resultados mais harmônicos, tornando-se convenções daquilo que deveria ou não ser usado uma pintura, uma forma tímida e rudimentar do que poderia ser comparado a teoria dos contrastes simultâneos definida por Eugene Chevreul231 ou ao conceito do uso de cores complementares para criação de harmonia num campo. Segundo Wetsteijn, além das orientações de como combiná-las, a teoria de cor do Schielder-boeck de Van Mander discursa sobre o modo como elas afetam o sensível, isto é, sobre o uso das cores para enriquecer a percepção ou fruição de um campo pictórico, geralmente associando as cores com sensações e sentimentos, podendo despertar um sentimento no observador ou tornar um personagem mais convincente, levando o observador a acreditar que a figura pintada de fato está tomada de determinada sensação ou temperamento (WESTSTEIJN, 2008, p. 220). Embora não haja provas de que Rembrandt esteve em algum momento em posse de uma cópia do Schielder-boeck ou do Grondt de Van Mander enquanto aprendiz, é possível que um de seus mestres ou colegas pudessem ter uma cópia do tratado, devido sua popularidade. No ano da primeira edição dessa publicação Rembrandt ainda não havia nascido, mas a mesma já compreendia a principal publicação holandesa sobre pintura no período em que o artista começou seus estudos em pintura. Segundo Van de Wetering232 “[...] Não sabemos ao certo se o jovem Rembrandt conhecia a publicação em detalhes, mas é altamente provável que sim...

231 Michel Eugène Chevreul (1786 – 1889). Químico francês diretor da tapeçaria Gobelin. Definiu a lei do contraste simultâneo das cores. 232 Ernst Van de Wetering (1938). Historiador da Arte e maior autoridade em Rembrandt desse século. Diretor do Rembrandt Research Project. Pintor formado pela Royal Academy of Arts (The Hague), Doutor em História da Arte pela Universidade de Amsterdam.

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...graças ao tratado de Van Mander temos noção das ideias que poderiam preencher a mente de jovens e ambiciosos pintores da época de Rembrandt” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Também é importante lembrar que as atividades comerciais relacionadas a pintura na Holanda barroca eram controladas pela guilda dos pintores, instituição que prestava um serviço de organizar e fomentar o mercado, não só definia os direitos e deveres de um artista, mas regularizava e fiscalizava o modo de trabalho e as transações. A guilda promovia um intenso trafego de informações e conexões, possibilitando contato constante entre artistas, clientes e patronos, tornando perfeitamente plausível que o artista ao menos tenha ouvido falar da existência do tratado ou sobre as informações contidas nele (BOMFORD et al., 2006, p. 15). No ano de 1622, em Leiden, Rembrandt, já com 27 anos de idade, começa um aprendizado de três anos com o pintor Jacob Isaacsz233. Depois, entre 1625 e 1626, já com trinta anos, passa seis meses em aprendizado de “especialização” com Pieter Lastman234 em Amsterdam. Aproximadamente no mesmo período, regressa a sua terra natal, Leiden, para abrir seu próprio ateliê, tendo Jan Lievens235 como sócio (WHITE, 2000, p. 75). Portanto, se Rembrandt fez uso de algum dos manuais citados aqui durante seus anos de aprendizado, o único tratado que poderia ter influenciado Rembrandt ainda em seu período como estudante é a publicação Schilder-boeck de Van Mander, sendo que, o restante dos tratados, foram publicados após seu período como aprendiz.

Manual Ano Idade de Rembrandt Vida dos Artistas; Vasari 1550 Não havia nascido Schilder-boeck; Van Mander 1604

233 Jacob Isaacsz van Swanenburg (1571 – 1638). Pintor e comerciante de arte, nascido em Leiden e mais tarde estabelecendo ateliê em Utrecht. Passou parte de seu aprendizado na Itália, é oficialmente considerado o primeiro mestre do jovem Rembrandt van Rijn. Famoso por suas vistas urbanas, pinturas históricas, cenas religiosas cristãs e retratos. Era filho de Isaac Claesz van Swanenburg, pintor e gravurista, artesão produtor de janelas e vitrais artísticos além de ter sido prefeito de Leiden por diversas vezes. Seu pai foi pupilo de um famoso pintor flamengo de pinturas históricas, Frans Floris da Antuérpia. Jacob teve dois irmãos mais novos que também tornaram-se artistas: Claes (1572-1652) pintor e Willem (1580-1612) gravurista. 234 Pieter Lastman (1583 – 1633). Pintor de Amsterdam, filho de comerciantes de arte. Passou parte de seu aprendizado na Itália onde foi influenciado por Caravaggio. Foi o segundo mestre de Rembrandt. É possível que a influência tenebrista de Caravaggio na obra de Rembrandt seja através da influência de Lastman. 235 Jan Lievens (1607 – 1674). Pintor nascido em Leiden. Seu aprendizado em pintura se deu com o mestre Pieter Lastman durante dois anos, quando Jan tinha apenas dez anos de idade. Foi sócio de Rembrandt em Leiden entre 1626 e 1631. Residiu com trinta e um anos como pintor da corte Inglesa onde fora influenciado pelas pinturas de Anthony van Dyck, ao retornar, estabeleceu-se na Antuérpia.

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Segundo Van de Wetering tanto Van Mander em seu Grondt, quanto Hoogstraten em seu Inleyding dão considerável atenção a cor. Em muitos assuntos suas abordagens são parecidas: como exemplo, ambos dão extensa explicação sobre o simbolismo da cor, assim como também dedicam capítulos exclusivos para combinações de cores (atrativas e contrárias236), assim como ambos ilustram suas ideias sobre combinações de cores usando a natureza como referência. Em outros assuntos, há diferenças significantes, de particular interesse quando tratam sobre cor. “Para Van Mander, a cor pura era a norma, o que é de se esperar, desde que na pintura maneirista, a qual ele era um dos expoentes, cores vivas – em combinações bem escolhidas – são usadas [...]” (VAN DE WETERING, 2016, p. 188). Analisa-se a seguir, as publicações referentes ao período no qual o artista já havia se consolidado como pintor, com ateliê independente.

5.1.2.3. Junius e Angel De Pictura Veterum (Sobre a Pintura dos Antigos, 1637); de Franciscus Junius; foi traduzido para o holandês somente em 1641, um ano antes de Rembrandt completar a Ronda Noturna. Trata-se de uma discussão teórica sobre a arte clássica, e tornou-se uma das pedras fundamentais do movimento neoclássico.

[...] o mais sistemático dos tratados holandeses sobre pintura...... Junius, sabendo que nenhuma teoria da arte da antiguidade havia sobrevivido, aplicou as ideias sobre a oratória de Cícero e Quintiliano nas artes visuais, quase sempre simplesmente mudando a palavra ´orador´ por ´pintor´ (WESTSTEIJN, 2008, p. 17).

O tratado de Junius é então, parcialmente baseado em princípios da antiguidade clássica, conceitos e fundamentos da oratória e retórica greco-romana adaptados para a pintura. Por sua vez, esse tratado viria a influenciar uma outra obra (que não a de Angel, mencionada logo abaixo), importante para este estudo, portanto as questões do tratado de Junius serão retomadas mais adiante. Publicado um ano após o tratado de Junius, o Lof der schilder-const (Oração em Favor da Pintura, 1642), de Philips Angel237, possuía conteúdo praticamente

236 Do inglês “attractive and otherwise” (VAN DE WETERING, 2016, p. 188). 237 Philip Angel II ou Philips Angel van Leiden (1618 – 1664). Pintor, gravurista, escritor e administrador de colônia holandesa.

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similar ao do Schilder-boeck (WESTSTEIJN, 2008, p. 15), por esse motivo, essa publicação não será analisada de forma detalhada. Como citado anteriormente, Rembrandt finaliza seus estudos e monta ateliê independente em Leiden entre 1625 e 1626, representando o final de seu período como aprendiz. Portanto, se o tratado De Pictura de Junius, ou o Lof der schilder-const de Angel foram familiares ao artista, o mesmo só teve contato com essas obras após sua consolidação238 como artista. Afinal, os anos de publicação dos manuais compreendem entre 1641 e 1642, quando Rembrandt possuía trinta e cinco anos de idade, quinze anos de carreira como artista independente.

Manual Ano Idade de Rembrandt De Pictura Veterum; Junius (1591 - 1677) 1641 35 anos Lof der schilder-const; Angels (X – X) 1642 36 anos Teutsche Academie; Sandrart (1606 - 1688) 1675 6 anos após sua morte Inleyding; Hoogstraten (1627 – 1678) 1678 9 anos após sua morte

5.1.2.4. Samuel van Hoogstraten e o lnleyding Esse capítulo é um dos mais importantes para este estudo, há especial relevância no capítulo “teoria de cor em inleyding” e no subcapítulo “correlatas e conflitantes”. São tópicos fundamentais para compreender as hipóteses primárias apresentadas no capítulo de conclusão deste estudo. A publicação mais pertinente a este estudo é o manual Inleyding tot de hooge schoole der schilderkonst; anders de zichtbaere werelt (Introdução a Pintura Acadêmica: ou O Mundo Visível, 1678), de Samuel van Hoogstraten (1627-1678), o mais ambicioso dentre os manuais da assim chamada época de ouro da Holanda, tanto em escopo teórico quanto em volume, revelando uma articulação interdisciplinar entre pintura e literatura, destacando-o dentre seus contemporâneos (WESTSTEIJN, 2008, p. 27). Van de Wetering compreende a obra de Hoogstraten como “os únicos dois tratados do século dezessete que primam por serem compreensivos: um de Karel van Mander e o outro de Samuel van Hoogstraten” (VAN DE WETERING, 2016, p. IX). Novamente, volta a afirmar a importância desses dois tratados em outra passagem: “[...] a investigação dos textos de Van Mander e de Van Hoogstraten é uma tentativa (necessária), de aproximação do mundo conceitual do silencioso Rembrandt. Esses

238 É regularmente mencionado como pintor a partir de 1628. Muda-se para Amsterdam em 1631. (WHITE, 2000, p. 76)

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dois importantes textos provavelmente cobrem em grande parte o que Rembrandt possivelmente poderia ter pensado” (VAN DE WETERING, 2016, p. 100). Hoogstraten, holandês nascido em Dordrecht, além de pintor, poeta, e dramaturgo, era também estudante de retórica239. Estudou como pupilo de Rembrandt no começo dos anos 1640, logo após o término da Ronda Noturna (VAN DE WETERING, 1997, p. 181). Como analisado mais adiante com maiores detalhes, ficará clara a contrariedade das opiniões de Van de Wetering e de Weststeijn sobre a obra de Samuel van Hoogstraten como método de pesquisa sobre as ideias de Rembrandt. Para Van de Wetering “deve-se considerar o Inleyding de Samuel van Hoogstraten como uma fonte na qual um número considerável dos elementos das próprias ideias de Rembrandt sobre a arte de pintar podem ser resgatadas” (VAN DE WETERING, 2016, p. 76), mas, para Weststeijn:

[...] parece ingênuo, se não simplista, ler e analisar inleyding como nada mais do que uma versão de um ‘livro de Rembrandt’ e supor que cada ideia e conceito artístico pode ser associado sem nenhum problema com a experiencia pictórica do famoso mestre de Amsterdam. Concluindo que ‘a presença de Rembrandt é muito maior do que se assumia’ Ernst van de Wetering concede que as ideais práticas e teóricas de Rembrandt casam lado a lado com as passagens que refletem as ideias bem diferentes de Van Hoogstraten. De qualquer forma, os recentes e informativos estudos de Van de Wetering para o Rembrandt Research Project parecem ter rembranizado em excesso as ideias de Hoogstraten o qual as pinturas – especialmente as últimas produzidas durante a concepção de Inleyding – não podem ser facilmente comparadas aos trabalhos dos mais fiéis seguidores de Rembrandt (WESTSTEIJN, 2013, p. 46).

Van de Wetering rebate a crítica de Weststeijn pois acredita que“[...] as ideias de Weststeijn [...] são um produto de sua missão para elencar as maneiras nas quais as formas e temas artísticos foram inventados com legitimidade teórica. Mas a tentativa do autor em situar e elucidar a obra de Hoogstraten nesse contexto, acaba por distorcer seu propósito essencial [...]” (VAN DE WETERING, 2016, p. 95). Muito antes da publicação de Weststeijn que critica a visão de Van de Wetering sobre Inleidyng, Van de Wetering escreveu sobre a resistência de aceitação da obra de Hoogstraten como uma janela para a técnica e as ideias de Rembrandt. Sobre a obra escrita de Hoogstraten, Van de Wetering afirma que:

239 Ocupação comum entre os pintores dessa época e localidade, incluindo Frans Hals, Adriaen Brouwer, Hendrik Bloemaert, Pieter Codde e Heiman Dullaert.

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O livro de Hoogstraten foi sempre considerado uma fonte suspeita sobre as ideias de Rembrandt porque o autor foi um dos pupilos que de certa maneira ‘traiu’ o mestre quando abandonou a maneira que aprendera em seu ateliê, abraçando a maneira lisa, idealizada que dominaria a arte holandesa no final da metade do século dezessete. Para piorar as coisas, Hoogstraten cometeu o pecado imperdoável – para experts escolásticos sobre Rembrandt como F. Schimdt-Degener (1881-1941) – de criticar Rembrandt. Além disso, acadêmicos do século dezessete notaram que ele se baseava fortemente em autores anteriores, como Karel Van Mander a Franciscus Junius. Do último, tomou emprestado uma enxurrada de referências de pintores e escritores da antiguidade clássica que torna a leitura de sua obra uma empreitada. Mas, Hoogstraten sugere um número de ideais e teorias sobre as práticas de pintura que exerce alguma luz sobre as opiniões de Rembrandt (VAN DE WETERING, 1997, p. 179).

Publicado, somente nove anos após a morte de Rembrandt (1669), o manual de Hoogstraten, independente das opiniões dos especialistas, é a obra mais detalhada escrita por um artista que teve a oportunidade de trabalhar no ateliê Van Rijn de Amsterdam. (WESTSTEIJN, 2008, p. 15) Acredita-se que Hoogstraten residiu em Dordrecht até o falecimento de seu pai, quando então mudou-se para Amsterdam, por volta de 1640, conseguindo a posição de aprendiz de Rembrandt até 1644, mesmo período de Carel Fabritius240. Provavelmente Hoogstraten também ajudou Rembrandt como um supervisor de pupilos mais jovens, como no caso do pintor Drost241 (WESTSTEIJN, 2013, p. 21).

[...] para desenvolver suas teorias, Van Hoogstraten tomou emprestado o aramado racional, termos e conceitos da retórica clássica. Embora tenha treinado retórica, seguiu de perto o trabalho de Franciscus Junius242, que reconstruiu as opiniões dos autores clássicos em sua obra...... a adaptação de Van Hoogstraten dessas ideias produzem uma concepção de pintura que está predicada na teoria de que seu objetivo principal, como o da oratória, não é simplesmente criar uma mensagem visual (ou verbal) mas criar uma

240 Carel Pietersz Fabritius (1622 – 1654). Pintor holandês nascido em Middenbeemster, escola de Delft. Foi pupilo de Rembrandt por volta de 1604, em Amsterdam. Morreu muito jovem, na famosa explosão do paiol de Delft, 1654. 241 Willem Drost (1633 – 1659). Pintor e gravurista, provavelmente nascido em Amsterdam. Figura misteriosa, fortemente associada a Rembrandt, poucas obras atribuídas ao artista. 242 Franciscus Junius (1591 - 1677), também conhecido como François du Jon, nascido na alemanha e residente em Leiden, foi um colecionador de manuscritos antigos e pioneiro no estudo das antigas línguas nórdicas. Escreveu o primeiro importante tratado com uma panorâmica dos antigos escritos sobre as artes visuais.

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relação afetiva entre artista (orador) e observador (audiência) (WESTSTEIJN, 2008, p. 17). Van de Wetering cita que “70 anos depois [da publicação do livro de Van Mander] Samuel van Hoogstraten, um dos pupilos de Rembrandt, reescreveu e reorganizou o tratado de Van Mander num livro chamado Inleyding tot de Hooge Schoole der Schilderkonst. Anders de zichtbaere werelt (Introdução a Pintura Acadêmica, ou o Mundo Visível) (VAN DE WETERING, 2016, p. IX). Portanto, se Junius usou premissas contidas nos tratados romanos de oratória de Cícero e Quintilianus 243 e se Hoogstraten apoia-se racionalmente na obra de Junius, então a teoria de cor de Hoogstraten é em parte baseada em princípios apontados na antiguidade clássica, mas também possível que apresente fundamentos absorvidos durante o treinamento de Hoogstraten com Rembrandt Van Rijn em Amsterdam. (WESTSTEIJN, 2013, p. 45) Na opinião de Ernst Van de Wetering:

[...] a presença de Rembrandt na obra de Hoogstraten é muito maior do que fora levada em consideração. Consequentemente, podemos considerar a obra de Samuel van Hoogstraten como uma fonte na qual considerável número de elementos das novas ideias de Rembrandt sobre pintura podem ser recuperados (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 11).

Weststeijn pensa que a teoria de Van de Wetering “Rembranizou” as ideias de Hoogstraten excessivamente244, embora concorde com a possibilidade de que a obra possa refletir parcialmente as regras aprendidas no ateliê de Rembrandt. A opinião de Van de Wetering é a de que o texto de Hoogstraten deve ser tomada como fonte confiável sobre os métodos usados no ateliê van Rijn, como ilustra a seguinte passagem: “Van Mander, é claro, escreveu seu texto muito antes de Rembrandt começar a pintar, enquanto Hoogstraten escreveu sob forte lembrança dos ensinamentos de Rembrandt” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103) Sendo Inleyding a mais detalhada fonte sobre fundamentos de cor escrita por um de seus pupilos, segue-se a sugestão de Van de Wetering (VAN DE WETERING; HEIDELBERG,

243 Marcus Fabius Quintilianus (35 a 95 d.c.). Escritor, advogado, professor e filósofo romano. 244 Um dos argumentos de Weststeijn é que as obras de Hoogstraten produzidas durante a concepção de Inleyding não são facilmente comparadas com as de Rembrandt. Além disso, lembra que em determinada passagem, Hoogstraten descreve a possibilidade de que os pintores acabam encontrando seus ‘próprios caminhos’, isso pode significar que o autor fala dele mesmo: Weststeijn sugere que Hoogstraten pode ter seguido uma linha processual e conceitual diferentes daquelas aprendidas com Rembrandt. (WESTSTEIJN, 2013, p. 46)

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2011, p. 11) sobre o uso dessa obra como principal fonte de um possível fundamento de cor usado pelo artista. O tratado Teutsche Academie (1675 ou 1680), escrito por outro aluno de Rembrandt, Joachim von Sandrart245, é utilizado aqui para corroborar com algumas ideias abordadas em Inleyding, compreende fonte complementar a teoria de cor esboçada em Inleyding. A seguir, analisa-se em detalhes o capítulo que trata sobre cor na obra de Samuel van Hoogstraten, Inleyding.

5.1.2.4.1. Teoria de Cor em Inleyding Assim como no Schilder-boeck, de Van Mander, Hoogstraten também apresenta na sua obra Inleyding, alguns capítulos dedicados a cor. No capítulo chamado “Sobre a Assertividade, Gradação e Combinação das Cores” 246 é descrito um conceito parecido com aquele do Schilder-boeck: descreve as relações cromáticas que funcionam e as que devem ser evitadas, quase como receitas de harmonização, assim como associações a sensações e sentimentos (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). No entanto, apesar de Hoogstraten mostrar a mesma abordagem sobre cor do que seus antecessores, da perspectiva que relaciona a cor com o sensível, alguns conceitos diferentes mostram importantes mudanças. Entre as mudanças mais importantes, está o abandono das cores puras, que segundo Van de Wetering e Weststeijn, pode indicar uma possível influência de Rembrandt na escrita de Hoogstraten. Segundo Van de Wetering “...entre os anos 1624 e 1626247, [Rembrandt] ainda trabalhava cores fortes, mas pouco após isso, radicalmente muda sua abordagem cromática” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103), sugerindo que essa “mudança cromática radical”, isto é, o abandono das cores puras e fortes, acontece justamente no

245 Joaquim (ou Joachim) Sandrart (1606 – 1688). Pintor, gravurista e historiador da arte nascido em Frankfurt. Hoje, é mais conhecido como o autor de livros sobre arte, alguns em latin, especialmente sua obra Teutsche Academie. Estudou pintura com inúmeros mestres e em diversas cidades como em Praga, Veneza, Roma, Bologna, Firenze, Nápoles, Malta, Londres (fazendo cópias de Holbein), Utrecht (como pupilo de Gerrit van Honthorst, quando também conheceu Rubens, trabalhando para o pintor nas pinturas de Maria de Medici, hoje no Louvre). Mudou-se para Amsterdam em 1637, onde ficou famoso por fazer retratos e pinturas de gênero. Estudou pintura com Rembrandt. 246 “Van de Tuiling, Schakeering, of byeenschikking der verwen” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103) 247 O artista completaria 20 anos, em 1626. Nessa época já havia completado seus estudos como pupilo e abria um studio em Leiden, sua terra natal, com Jan Lievens como sócio, começava então a receber seus próprios pupilos e alunos.

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período em que se torna livre das obrigações de seguir o estilo de seus mestres, administrando sua própria carreira e seguindo seus próprios anseios artísticos. Portanto, para Van de Wetering, essa ideia difere dos princípios cromáticos do Schilder- boeck de Van Mander e todos os outros manuais holandeses anteriores ao Inleyding. Van de Wetering pensa que o abandono de Rembrandt das teorias contidas no tratado de Van Mander, é um conceito originado no realismo tenebrista dos caravaggistas de Utrecht248 e nos novos conceitos cromáticos de Haarlem (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 8), discutidos mais adiante, e portanto, possível influência dos ensinamentos que Hoogstraten recebeu enquanto aprendiz de Rembrandt. Outros conceitos igualmente importantes no manual de Hoogstraten são analisados a seguir. Alguns desses conceitos servem como comparativos entre o texto de Inleyding e o modo de pintura de Rembrandt na tentativa de identificar possíveis relações entre a obra do pupilo e seu mestre.

5.1.2.4.2. Espelho da Realidade: Mimeses Seguindo o conceito grego da mimese, conhecidos tanto através dos textos da antiguidade clássica quanto pelo manual de Junius, Hoogstraten ressalta a importância da imitação da natureza e do enganar ou convencer o observador. Segundo Weststeijn, para Hoogstraten a “...cor é associada a persuasão, descrita num senso retórico como ‘naturalidade’, associada com ‘fidelidade a natureza’, ao trabalho [observado] ‘do natural’” (WESTSTEIJN, 2008, p. 222).

248 Caravaggismo de Utrecht.: refere-se aos artistas barrocos influenciados por Caravaggio, ativos na cidade de Utrecht durante a primeira parte do sec. XVII. Pintores como Dirck van Baburen, Gerrit van Honthorst, Hendrick ter Brugghen, Jan van Bijlert e Matthias Stom que estavam em Roma por volta de 1610, quando o tenebrismo de Caravaggio era o último estilo influente. Adam Elsheimer, também em Roma nesse período, também era um pintor que influenciou outros holandeses nessa época. De volta a Utrecht esses pintores faziam obras mitológicas ou de temáticas histórico-religiosas ou ainda pinturas de gênero, como jogadores de cartas e ciganos, assim como os de Caravaggio, embora o mesmo tenha abandonado essas temáticas no final de sua carreira. Utrecht era a cidade mais católica das províncias unidas com 40% da população católica no meio do séc. XVII, e com essa porcentagem ainda maior entre os grupos de elite. Foi previamente o maior centro, depois de Haarlem, da pintura maneirista da Holanda. Abraham Bloemaert foi uma figura líder desse movimento, que ensinou os Honthursts e influenciou muitos outros artistas. O florescimento do caravaggismo de Utrecht foi breve, terminando em 1630. Nessa época a maioria dos artistas desse movimento ou haviam morrido, como o caso de Baburen e Brugghen, ou mudado de estilo, como Honthort, influenciados pelas tendências flamengas como visto nos trabalhos de Peter Paul Rubens e seus seguidores. Deixaram um legado através da influência desse estilo no chiaroscuro de Rembrandt e nas “pinturas de nicho” de Gerrit Dou, um tipo de pintura popularizado por Honthorst.

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A opinião central sobre a função da arte imitando a natureza de maneira a enganar o observador foi grandemente influenciada pelas ideias de Junius sobre a persuasão retórica. Portanto, não surpreende que a teoria de arte do séc. XVII estabeleça que a pintura possua a mesma função do que a oratória: persuadir a opinião do público em busca de mudar sua mentalidade moral e fazê-los reagirem (WESTSTEIJN, 2008, p. 18).

Portanto, seguindo do princípio de que “a pintura deve ser um espelho da realidade”, parece justo que o conceito cromático para Hoogstraten deva seguir o mesmo princípio: as cores devem ser observadas atentamente e reproduzidas de modo fiel. Essa ideia de fidelidade é contrária a um maneirismo e a invenção de cores que não são observadas naquilo que se pretende reproduzir, sugere o distanciamento do idealismo e alinha-se perfeitamente a outras ideias e conceitos do tratado de Hoogstraten, analisados mais adiante. Embora essa seja a opinião registrada por escrito de Hoogstraten, Kern249 nota que o pintor pareceu favorecer as cores mais intensas em diversas pinturas, mostrando exatamente o oposto daquilo que sugere aos leitores (KERN, 2012, p. 111). O pintor Arnold Houbraken250, aluno de Hoogstraten, disse que, “no fim da vida, seu mestre fazia uso de práticas que outrora criticou em seu tratado” (KERN, 2012, p. 113). Não se deve descartar a hipótese de que a razão desse paradoxo pode ter sido uma tentativa de Hoogstraten de facilitar a aceitação de suas pinturas no mercado, já que a linha maneirista compreendia um estilo mais universal, gerando obras com maior chance de comercialização.

5.1.2.4.3. Disegno vs. Colorito A discussão promovida tradicionalmente pela arte italiana sobre as diferentes propriedades entre disegno e colorito251 mostra a influência da obra de Vasari em Inleyding. Na opinião de Hoogstraten o colorido (ou em holandês, kolorijit252) é uma força mais efetiva do que o desenho na busca da ilusão de realidade.

O desenho é altamente estimado… mas a pintura ou a cor, que se estende a tudo, deve ser estimado acima dele [desenho]. É a cor que confere a perfeição verdadeira...... se a cor estiver errada, mesmo que as pinceladas e as linhas estejam corretos, não funcionará, isto é, mostre a natureza com precisão e sem erros, o que a verdadeira

249 Ulrike Kern. Historiadora da Arte da Universidade Goethe, Alemanha. 250 Arnold Houbraken (1660 – 1719). Pintor e escritor holandês, hoje lembrado como biógrafo de artistas da Era de Ouro holandesa. Foi aluno de Samuel von Hoogstraten durante quatro anos. 251 Desenho e Cor, ou ainda, Desenho e Colorido. 252 (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 110)

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pintura em sua forma perfeita promete de forma corajosa (WESTSTEIJN, 2008, p. 221).

O desenho seria a base da pintura, enquanto a cor, sua alma. Hoogstraten usa uma metáfora que faz referência ao conceito de fiat lux253: “[...] se o desenho é valorizado como o corpo, então a pintura [cor] deve ser a mente e a alma, como o fogo divino que acendeu a vida na imagem de Prometheus [...] é o que confere a imagem a sugestão da vida” (WESTSTEIJN, 2008, p. 221) Para Weststeijn, Hoogstraten “[...] considera a cor mais essencial do que o desenho: jogando [essa afirmação] na cara da tradição italiana, que por sua vez associa largamente o desenho como uma ‘forma’ intelectual e a cor com ‘matéria’ física” (WESTSTEIJN, 2008, p. 221). Permanece então contrário a posição da tradição italiana, a “sensualidade do colorito” é superior ao “princípio intelectual do desenho”, favorecendo então a cor. Portanto sua posição é inversa ao dos manuais holandeses anteriores a Inleyding. Se a teoria de Van de Wetering de que Inleyding é uma janela para o pensamento cromático de Rembrandt, essa postura anti-maneirista de Hoogstraten encaixa-se no esquema cromático das pinturas de Rembrandt, sobretudo aquelas produzidas após 1626, período em que já havia finalizado seu aprendizado com Pieter Lastman em Amsterdam.

5.1.2.4.4. Ornatus e Brevitas Ornatus254 é um conceito associado a habilidade de representar a realidade de modo gracioso, ou nas palavras de Hoogstraten, “de modo atrativo como o charme feminino”. Em outras palavras, a pintura deve convencer o observador de que a representação é tão atrativa quanto a realidade, enfatizando a natureza enganadora da pintura. (WESTSTEIJN, 2008, p. 226) Não se trata somente de criar algo bonito, mas torná-lo ainda melhor.

[...] aparentemente algo oposto a beleza. A beleza é vista como propriedade do objeto, seja no mundo visível ou na imaginação do artista. Ornatus, em contrapartida, é um valor adicionado pelo pintor alcançado somente no estágio do manipular [da tinta], ou o actio retórico (WESTSTEIJN, 2008, p. 223).

253 Parábola Bíblica da origem do universo. 254 Também usado, na mesmo maneira, no Schielder-boeck de Van Mander (WESTSTEIJN, 2008, p. 223)

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É possível interpretar o conceito de Ornatus como conflitante ao conceito de mimese: se o pintor deve representar fielmente a realidade, como pode então embelezá-la, ou adicionar graça? Não seria esse o caminho do maneirismo, compreendendo um distanciamento a ideia de realismo proposta pelos pintores caravaggistas e recomendada por Hoogstraten? Isso poderia ser interpretado como uma aproximação do maneirismo sugerido pelos tratados anteriores a Inleyding? Seguindo a explanação de Weststeijn, há uma perspectiva que adiciona maior dimensão a esse conceito, sendo possível entendê-lo de modo mais claro:

Cícero narra que a oratória é capaz de imitar a ‘luminosidade’ da própria vida por meio do ‘colorido’ das figuras de linguagem [metáforas] tornando possível frisar ou iluminar o que se diz com ‘estrelas de luz’. Essa questão de ‘se jogar luz’ num argumento é, diria ele, a habilidade do orador de invocar ‘coisas’ diante aos olhos, de modo tão evocativo, que o público acredita estar presente ao evento em questão. Nesse sentido, Ornatus é uma das virtudes mais importantes do orador, usado para trazer vida ao argumento (WESTSTEIJN, 2008, p. 224).

Algumas passagens de Hoogstraten quando comparadas aos textos de Cícero podem ser compreendidas em sua natureza retórica, revelando que de fato, essa adaptação pode provocar conflitos de ideias e paradoxos. Revela-se a natureza poética e muitas vezes subjetiva dos textos de Hoogstraten e também de Junius. Hoje, há uma convenção de que, na arte holandesa, o termo ornatus possui equivalência nos termos verziering255 e opsmuk, associados a cor como embelezamento ou “enfeite” adicionado a fundação do desenho (WESTSTEIJN, 2008, p. 224). Além do conceito de Ornatus, há de se considerar o conceito de Brevitas, aparentemente um complemento ao primeiro. Assim como outras ideias apresentadas em Inleyding, é possível aplicar esses conceitos na oratória e na pintura. No caso da aplicação desse conceito na área da pintura, o mesmo pode ser traduzido como economia. No caso da oratória, brevidade. Junius expande com uma frase de efeito: “[...] a teoria retórica usa o conceito brevitas [...] [...] que serve a ênfase: diz muito com poucas palavras” (WESTSTEIJN, 2008, p. 231). Isto é, quando se faz uso do ornatos, não se deve esquecer da regra de brevitas: deve-

255 Segundo Weststeijn, Hoogstraten faz uso do termo para citar Rembrandt: “O verzierlijken Rembrandt, meu segundo Mestre, depois da morte de meu pai Dirk”. O verbo holandês versieren, significa embelezar, decorar, adornar. Portanto, o termo usado associado a Rembrandt seria traduzido aproximadamente como “decorador”, no sentido de que o artista fazia bom uso do ornatos (WESTSTEIJN, 2008, p. 223),

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se embelezar ou criar maior graça com a cor, mas não em demasia, adicionar graça, enfatizar, mas de modo econômico. Embora o conceito de Brevitas seja discutido na seção de cor de Inleyding, adiante analisa-se como o conceito de cor para Hoogstraten considera outros elementos da construção pictórica como uma coisa só. É por isso que Brevitas encontrará maior eloquência na pincelada e na construção tonal e não na cor, nas pinturas de Rembrandt, é a estrutura retórica do modo sintético e econômico com o qual observa e descreve aquilo que vê. É perfeitamente claro que tanto Hoogstraten quanto Junius usam de uma linguagem figurada, ou modo poético, para tentar ilustrar a ideia de que, embora o artista observe a realidade e tente pintar de um modo mimético, ele deve usar toda sua habilidade para tornar a ilusão de realidade mais perceptível, realçando os efeitos que convencem o observador dessa ilusão, mas sem torná-los exagerados ou idealizados em demasia, ou como diria Weststeijn “que não excedam as normas da natureza” (WESTSTEIJN, 2008, p. 226). Em palavras menos poéticas e mais objetivas: um modesto exagero naquilo que dramatiza ou torna a imagem mais realística, é desejável.

5.1.2.4.5. Correlatas e Conflitantes Em mais de uma passagem em Inleyding, Hoogstraten usa os termos correlatas (relacionadas) e conflitantes para descrever certas propriedades das cores. Esses termos são importantes para compreender melhor o modo de categorização cromática no período. “A mistura de duas cores, nos casos em que elas possuem relação, não produz outra cor intermediária, que lembra ambas, como o verde de [que misturado ao] amarelo e azul, ou roxo do azul e vermelho: o mesmo pode ser visto na mistura do arco-íris” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 107). A passagem parece ser uma tentativa de categorização de hierarquia cromática em Inleyding. Para permanecer mais próximo ao termo usado originalmente por Hoogstraten, seria necessário chamá-lo de “cor com relação” ou ainda “cor relacionada”, no entanto, definiu-se a partir da interpretação da lógica de Hoogstraten, traduzir o termo como cor correlata. Hoogstraten chama de correlata as cores que misturadas não perdem a familiaridade com seus “pais” cromáticos, isto é, continuem mostrando um parentesco com as cores usadas para cria-la, como por exemplo, o verde, criado a partir do azul e do amarelo. As correlatas, como veremos a seguir, possuem propriedades contrárias as cores conflitantes,

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pois estas geram cores intermediárias (incompletas, sujas), perdendo cada vez mais o parentesco com seus pais conforme são misturadas, como descrito na seguinte passagem:

[...] cores conflitantes se destroem quase que completamente, produzindo nada além de um acinzentado morto, como é possível ser visto na mistura entre verde e vermelho. Digo um acinzentado morto, mas poderíamos chamar cinza qualquer coisa que não é vermelho, amarelo e azul (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 107).

Define-se então, dois termos importantes, as cores conflitantes e cores intermediárias ou quebradas. As cores conflitantes são aquelas que geram as intermediárias (quebradas): note que Hoogstraten fala sobre o que viria a ser chamado de complementares256. A propriedade de neutralização em misturas de cores complementares é amplamente conhecida na teoria moderna de cor e o exemplo de cores conflitantes usado por Hoogstraten (verde e vermelho) é indubitavelmente uma dupla de cores complementares. As cores intermediárias (quebradas) são o resultado da mistura entre cores conflitantes: cores que se tornam acinzentadas ou que vão se tornando tons distantes dos seus “pais cromáticos” originais, isto é, uma gradativa perda de desaturação da mistura. Segundo o conhecimento de cor moderno, pós-newtoniano, cores que não se encaixam nos grupos de primárias, secundárias ou terciárias, pela sua falta de pureza. Como veremos a seguir, Hoogstraten também chamará as cores intermediárias de cores quebradas. Portanto, parece correto afirmar que Hoogstraten sabia o que era uma cor complementar e quais eram suas propriedades numa mistura. A explanação sobre cores correlatas e cores conflitantes de Hoogstraten, é citado por Van de Wetering, revelando uma interessante hipótese:

Essa conformidade e conflito de cores nos dá a habilidade de colorir quase tudo o que é visto na natureza, administrado de modo que nada mais além de um olho com boa prática é necessário para observar a natureza com discernimento. O julgamento de cor entre os extremos dos pigmentos é o mais importante para determinar as coisas na natureza (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 107).

Hoogstraten orienta o leitor a dominar as cores correlatas e conflitantes, compreendendo um conhecimento necessário para reproduzir tudo o que se vê na natureza. O conhecimento

256 Somente em 1680, com o tratado de Isaac Newton.

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sobre o comportamento de cores correlatas em misturas serve ao pintor como um método de transformar primárias em secundárias e essas últimas em terciárias, alcançando todos os matizes possíveis sem que se perca a pureza das cores. As conflitantes servem a uma ideia inversa: a necessidade de quebrar as cores (neutralizar ou retirar a intensidade) propositalmente com intuito de criar nuances desaturados. Portanto, a passagem acima prova que Hoogstraten, e possivelmente seu mestre, Rembrandt van Rijn, faziam uso de cores complementares para neutralizar ou desaturar cores. Para o artista ou pesquisador interessado na história dos materiais ou dos métodos de pintura, é certamente visível nas pinturas de Rembrandt o vasto uso de inúmeros pigmentos terrosos. Todo pintor sabe da possibilidade de usar cores de baixa intensidade para conseguir neutralizar ou desaturar cores puras. O uso de cores naturalmente desaturadas, como os óxidos de ferro, é uma constante não somente nas obras de Rembrandt, mas como em todos os períodos da história da arte, é verificável a olho nu em qualquer obra do período. No entanto, essa última passagem de Hoogstraten é uma das mais importantes da perspectiva da técnica da pintura: é um indício de que possivelmente Rembrandt fazia uso de cores conflitantes, isto é, complementares, para desaturar o croma, diminuindo a intensidade das cores saturadas.

5.1.2.4.6. Lumen (chiaroscuro) e Cor-quebrada Como citado anteriormente, para Weststeijn, o conceito de colorito em Inleyding considera tanto os matizes257 quanto os valores258 como uma coisa só. Quando Hoogstraten menciona cor, refere-se não somente ao modo como as famílias de cores foram usadas num campo pictórico, mas também o modo como essas cores harmonizam-se ou misturam-se com o chiaroscuro, isto é, a luminosidade ou composição tonal. Portanto, o termo possui sentido mais amplo, cor e o jogo de luz e sombras estão interligados:

O chiaroscuro não pode ser automaticamente isolado como uma qualidade separada dessa mesma teoria (de cor). Nas primeiras teorias modernas de cor, não há uma distinção entre contraste tonais e cor, e o chiaroscuro é considerado virtus pingendi por excelência, parte do conceito de colorito (WESTSTEIJN, 2008, p. 226).

257 Matiz.: Segundo a definição de Albert Munsell, o nome que se dá a família de uma cor. Ex.: o matiz amarelo, o matiz vermelho, o matiz verde. Em inglês, “hue” (MUNSELL, 1907). 258 Valor.: Segundo a definição de Albert Munsell, a luminosidade ou claridade de determinada cor ou tom de cinza. Em inglês, “value” (MUNSELL, 1907).

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Portanto a teoria cromática de Inleyding considera a habilidade de construir uma pintura monocromática através da variação de valores (chiaroscuro) como uma parte intrínseca e indissolúvel do conhecimento de cor. A luz recebe um capítulo à parte em Inleyding, chamado de lumen (luz), onde sugere que os pintores “tratem a luz como a parte mais importante da pintura”. Hoogstraten define que a cor como o que dá vida a pintura, elemento mais importante do que o desenho, mas categoriza a luz (no caso, luz e sombra) como o mais importante de todos (WESTSTEIJN, 2008, p. 226). Van de Wetering pensa que essa valorização da luz fora a influência de uma nova tendência estilística259 iniciada pela escola de Haarlem:

Por volta de 1625 ou 1926, uma tendência ao monocromático desenvolve-se entre os pintores de paisagens e natureza-morta em Haarlem, favorecendo uma maior participação da luz, contribuindo para pinturas com mais atmosfera espacial. Cinzas frios e quentes, verdes terrosos, amarelos neutralizados. Como resultados, as relações tonais sustentam um efeito de luz numa maneira bem natural (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103).

Weststeijn compara os textos de Inleyding com antigos textos clássicos de retórica, tecendo associações entre pintura e oratória para explicar a importância da luz: a adaptação dos textos faz corresponder as cores (artes) com as metáforas260 (oratória), segundo a adaptação dos textos de retórica para o texto de Inleyding, é possível interpretar que as metáforas embelezam ou ornamentam o argumento assim como as cores, enquanto a luz (lumen) ilumina, revela, dá foco ao argumento ou a pintura (WESTSTEIJN, 2008, p. 226). Portanto, enquanto a cor ornamenta e enfeita, a luz ressalta e dá foco. Weststeijn aponta que Hoogstraten volta a revelar a importância da construção tonal e da luz, quando cita ser ela a responsável pela força de uma pintura: “...usa o termo kracht (força) para o efeito total de luz e massa tonal” (WESTSTEIJN, 2008, p. 227). Quando uma comparação é feita entre as teorias de cor nas obras de Hoogstraten e a de Van Mander, há uma divergência sobre o uso da luz, apontada por Weststeijn, relacionada ao modo como os dois autores veem a nova tendência do naturalismo tenebrista popularizado

259 Essa tendência (da valorização da luz) de Haarlem não era consequência da escolha de uma temática em particular (paisagem e natureza morta) que por mera coincidência levou a predominância de construções tonais. Foi na verdade uma nova abordagem, uma escolha deliberada. Pode ser vista nas obras de Pieter de Molijn e de Pieter Santvoort, nas naturezas mortas de Pieter Claesz e Willem Claesz. Também é notável nas pinturas de gênero de Adriaen Brouwer (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 104). 260 Também chamado por Cícero de “Cores Retóricas” (Colores Rhetorici).

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por Caravaggio. Aparentemente, Van Mander não aprova o estilo, enquanto Hoogstraten parece admirá-lo, como a “epítome do pintor que prefere a realidade virtual do que a beleza idealizada” (WESTSTEIJN, 2013, p. 280). Nas palavras de Weststeijn:

As críticas sobre a arte de Caravaggio261 ecoam na obra de van Hoogstraten. Ele extrai a passagem de Van Mander: ‘Michelangelo Caravaggio disse que todos os trabalhos que não foram pintados a partir do natural são brincadeiras de criança e porcarias262, não importa quem foi o artista, pois não há como fazer melhor, somente seguir a natureza. Por essa razão ele nunca deu uma pincelada que não fora para copiar aquilo que via ao natural’. Notável que então, discorde com a visão de seu predecessor [Van Mander], omitindo a passagem em que Van Mander diz aos pintores para não serem enganados por Caravaggio: desencorajando o leitor a reproduzir a natureza sem a capacidade de ‘discernir e selecionar o mais lindo do somente lindo dos elementos naturais’. Em contrapartida, van Hoogstraten adiciona [no lugar da crítica de Van Mander]: ‘o objetivo da pintura, como discutido antes, é reproduzir tudo: seu objeto é portanto toda a natureza visível, nada revela-se a nossos olhos sem sua forma ou contorno específico’ (WESTSTEIJN, 2008, p. 280).

Para Van de Wetering, a prova de que os ensinamentos de Rembrandt influenciaram Hoogstraten encontra-se naquilo que Van Mander e Hoogstraten discordam: segundo o autor “...essas diferenças [de opiniões entre os conceitos de cor apresentados por Van Mander e Hoogstraten] darão possibilidade de analisar o pensamento de Rembrandt na temática sobre cor. É particularmente o caso, quando tratamos sobre a cor quebrada e mistura de cores” (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Para compreender a teoria de cor proposta por Hoogstraten, é necessário compreender não somente a importância da luz, isto é, da construção tonal, mas também o conceito de “cor- quebrada”. Van de Wetering considera que o assunto abordado por Hoogstraten é influência dos ensinamentos que recebeu do artista no período em que viveu em Amsterdam (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Assim como brevitas é um complemento de ornatus, cor-quebrada é um complemento de luz, uma diferente face de uma mesma moeda. No tratado de Hoogstraten, os termos holandeses corruptie e ontwording são usados como adjetivos para o substantivo cor. O termo corruptie foi traduzido para o inglês literalmente como corrompido, enquanto o termo

261 Weststeijn provavelmente quer dizer que a crítica a Caravaggio feita por outros autores anteriores a Samuel von Hoogstraten ecoam em sua obra Inleyding. 262 Do termo italiano bagatelli.

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ontwording foi traduzido para o inglês como um equivalente aos termos perishing (perecer), decaying (deteriorar, decompor) ou expiring (expirar, vencer) (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Esses adjetivos dão a conotação de que essa qualidade é uma diminuição da cor, no sentido de que a mesma foi corrompida ou decomposta, da perspectiva do pintor, é a perda da intensidade ou saturação, ou o que Munsell263 chama de perda do croma264 (MUNSELL, 1907). Van de Wetering define que: “...o fato de que a mistura de azul e amarelo produz verde não significa que o azul e o amarelo foram quebrados. Quebrar uma cor significa que ela se tornou menos forte e menos saturada pela mistura a outro pigmento” (VAN DE WETERING, 2016, p. 191). Se os tratados anteriores a Inleyding, como o caso do Schilder-boeck e o Grondt de Van Mander, discutem a importância do uso de cores puras, o termo ontwording em Inleyding é usado como figura de linguagem para descrever cores impuras, referindo-se a cores terrosas ou de baixa intensidade. O termo inglês broken (quebrado) foi provavelmente aplicado na língua inglesa pois quebra-se a cor, tornando-a incompleta, disfuncional como cor pura ou intensa.

O interesse de Rembrandt no uso de cores quebradas começa bem cedo e inicialmente...... com um objetivo específico em mente, que não se relacionava nem com a cor de forma isolada ou com sua fidelidade a natureza...... em 1627 efeitos de luz convincentes assumiram a prioridade mais alta, minha tese é a de que suas cores quebraram em busca de subordiná-las ao jogo de luz e sombra (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103).

Portanto, para Van de Wetering, Rembrandt teria sido influenciado pelas tendências monocromáticas de Haarlem assim como pelo naturalismo tenebrista dos caravaggistas, estéticas responsáveis pela mudança no estilo cromático do pintor, migrando das cores puras para as cores quebradas, na esperança de dar maior ênfase ao chiaroscuro. Algo similar também foi dito, anteriormente, por Max Doerner265, em sua influente obra de 1922, “The

263 Albert Munsell (1858 – 1918). Pintor e professor de pintura nascido em Boston, EUA. Inventor do Sistema Munsell de Cores, publicado pela primeira vez em 1907. O sistema serviu como base para uma série de outros sistemas de cor, incluindo o CIELAB e ainda é usado como um confiável sistema de identificação e categorização de cores. 264 Croma.: Segundo a definição de Albert Munsell, a pureza de determinada cor, relacionado a sua saturação, em inglês, “chroma” (MUNSELL, 1907). 265 Max Doerner (1870-1939), nascido em Burghausen, Alemanha. Estudou na Academia Real da Bavária. Viajou por toda a Europa, retornando inúmeras vezes para os países baixos e principalmente a Itália para estudar e pesquisar sobre pintura antiga. Foi presidente da Sociedade Alemã da Promoção de Métodos Racionais de

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Materials of the Artist and his use on Painting”, no capítulo que trata sobre a técnica de Rembrandt:

A intensidade dura das cores locais, que opostas a um efeito único e bruto de luz, foi rejeitado [por Rembrandt] em função de seu interesse pela iluminação, e assim ele evitou o perigo que ameaça a ruína de tantas pinturas, a tendência de associar cores locais fortes com luz forte, pois luz forte e cores puras não são compatíveis, de fato, uma exclui a outra (DOERNER, 1984, p. 366).

E mais um trecho pertinente ao pensamento cromático do artista: “Unificação do efeito de luz, a sustentação das massas de luz e sombra, e a subordinação de todas as cores individuais a um único tom dominante” (DOERNER, 1984, p. 369). Quando Rembrandt finalmente estabelece seu próprio ateliê com Jan Lievens em Leiden, seu rompimento com as cores puras do maneirismo não foi apenas a postura de aderir a tendência criada em Haarlem, mas uma contribuição significativa. Segundo Wetering, a contribuição de Rembrandt e Jan Lievens foi a de“...não deixar a escolha do tema [a ser pintado] ser influenciada pela tendência do monocromático, particularmente Rembrandt”. Em suas palavras, explica a contribuição do pintor: “Poderíamos dizer que os pintores de Haarlem e Adriaen Brouwer escolheram a realidade que melhor se adaptava a seus propósitos artísticos, enquanto Rembrandt sujeitou a realidade que queria pintar a sua escolha artística”. É possível interpretar a teoria de Wetering da seguinte forma: Rembrandt e Lievens adaptaram à realidade (temática) a estética que desejavam usar, enquanto os pintores de Haarlem escolheram a realidade que melhor se adaptava a seu propósito estético (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 105). Isto é, os pintores de Haarlem “ajeitavam” a temática da melhor maneira para que fosse possível pintá-la do modo característico de Haarlem, as paisagens e naturezas mortas compreendiam uma temática que facilitava o emprego daquele tipo de técnica ou atmosfera. Rembrandt não se importou em escolher uma temática mais fácil de se encaixar ao seu método ou a estética, pois adaptava a realidade a seu modo de pintura, empregava o enaltecimento do chiaroscuro na realidade que desejava pintar, seja lá qual fosse essa

Pintura. No fim de sua vida, a Academia Real da Bavária em 1938 fundou o “Doerner Institute”. Escreveu em 1922 um dos livros mais importantes sobre a tecnologia dos materiais artísticos na língua alemã, ainda hoje amplamente usado por artistas no mundo todo, “The Materials of the Artist and their Use in Painting”, traduzido em inúmeras línguas e ainda editado.

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realidade. Portanto, parece correto afirmar que Wetering propõem que no caso de Rembrandt e Lievens, a realidade estava em função da estética visual ou processual. É possível interpretar a teoria de Van de Wetering como a indicação de que Rembrandt idealizava o que via, não se curvava a uma tendência, mas, de forma irônica, após romper com o maneirismo, seguia seu próprio maneirismo.

5.1.2.4.7. “Houding” (Espacialidade) Joachim Sandrart, no texto que publicara pouco antes de Inleyding, também aponta para a necessidade de “quebrar as cores” de uma maneira que todos os elementos de uma pintura entrem em seu lugar correto no espaço pictórico. De acordo com Sandrart, o resultado desse método é o que “chamamos em holandês de hauding266 [sic]” (VAN DE WETERING, 1997, p. 255). Sandrart cita o uso das cores quebradas por Rembrandt, que faz uso de “maestria no emprego de cores quebradas” e por sua importância e contribuição do método nesse período:

Rembrandt sabia como quebrar as cores de modo hábil e inteligente, correspondendo suas propriedades e subsequentemente graças a abundância da natureza, como representar a realidade de modo fiel e harmonioso, com uma simplicidade vivaz. Como resultado, abria os olhos daqueles que, de acordo com o hábito geral, estão mais para tintureiros do que para verdadeiros pintores, pelo fato que de modo cru combinam as cores em toda sua dureza e crueza, ficando nada em comum com a natureza, parecendo mais com a caixa de pigmentos na loja, ou com o mostruário dos tintureiros (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103).

Sandrart mantém a mesma opinião que seu mestre, Hoogstraten: quebrar as cores é um meio de aplicar cores desaturadas para a valorização da luz e sombra, um artifício para criar maior sensação de profundidade. Segundo Van de Wetering, “...apesar da perspectiva ser um importante meio de sugerir o espaço, os pintores do período, principalmente Rembrandt, descobriram que meios mais sutis poderiam criar a sugestão de espaço de um modo melhor. ”

266 O termo correto em holandês é houding e não hauding (VAN DE WETERING, 1997, p. 255). A tradução literal do termo significa conduta, postura ou atitude. Da perspectiva dos manuais de pintura do séc. XVII, o termo ganha um significado mais técnico e específico (TAYLOR, 1992, p. 211).

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A definição mais complexa de houding é relativamente recente e Van de Wetering cita o artigo de Paul Taylor267 como um trabalho seminal sobre assunto (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 103). Segundo Taylor, o termo aparece na segunda metade do sec. XVII em outros manuais de pintura além do manual de Sandrart, como nas obras de Goeree268, Hoogstraten e De Lairesse269 (TAYLOR, 1992). Abaixo, organiza-se as datas de publicação das obras citadas aqui, juntamente com a idade de Rembrandt na época de publicação.

Manual Ano Idade de Rembrandt Inleydinge tot de al-ghemeene teycken-konst, Goeree 1668 1 anos antes de sua morte Teutsche Academie; Sandrart 1675 6 anos após sua morte Inleyding; Hoogstraten 1678 9 anos após sua morte Grondlegginge der teekenkonst ; de Lairesse 1701 32 anos após sua morte Groot Schilderboek; de Lairesse 1707 38 anos após sua morte

Taylor aponta a passagem da obra de Goeree, Inleydinge tot de al-ghemeene teycken- konst, como uma das principais definições do conceito houding (texto de 1668):

Houding é uma das coisas mais essenciais para ser observada num desenho ou pintura; desde que dá a mesma sensação confortável para os olhos como quando contemplamos objetos naturais. Quando o houding não é encontrado em imagens representativas, desenhos e pinturas tornam-se sem sentido, e mais do que ‘meio mortos’. Também, com a falta de houding, as coisas parecem embaralhadas numa as outras, apertadas, ou caindo em nossa direção cambaleando, de modo que não há nada na arte que vá mais contra a razão do que inserir coisas [na pintura] do que sem houding...... é aquilo que faz tudo num desenho ou pintura avançar ou retroceder...... sem parecer mais próxima ou distante, mais clara ou mais escura...... para que permaneça em sua própria posição, respeitando seu tamanho, cor, luz e sombra (TAYLOR, 1992, p. 211).

É importante notar que tanto a cor quanto a luz e sombra no texto de Goeree são compreendidos como elementos de um mesmo conceito (houding). Isto indica que para

267 Paul Taylor. PhD pela Universidade de Cambridge e Universidade de Utrecht. Professor, historiador da arte e curador. Trabalha no Warburg Institute, School of Advanced Study University of London. 268 Willem Goeree (1635 – 1711). Pintor e escritor de Amsterdam. Entre suas obras mais seminais, o manual de pintura Inleydinge tot de al-ghemeene teycken-konst, de 1668. 269 Gerard de Lairesse (1641 – 1711). Pintor, escritor e teórico da arte, ativo durante a Era de Ouro da pintura holandesa. Suas obras Grondlegginge der teekenkonst (1701) e Groot Schilderboek (1707) foram influenciadas pelas obras de Cesare Ripa e Pierre Le Brun. Sua importância cresceu após o período da morte de Rembrandt. No começo de sua carreira como pintor foi altamente influenciado pela obra de Rembrandt, e mais tarde, pela obra de Nicholas Poussin. Rembrandt retratou o artista em 1665.

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Goeree, a valorização da luz em função da cor, discutida anteriormente, possui estreita relação com esse complexo conceito. Após a definição do termo, Taylor ressalta a passagem de Goeree que explica como o pintor deve proceder para desenvolver esse efeito ou atmosfera numa pintura. O próprio Goeree admite ser “difícil compreender [como fazer o houding] a partir de uma fonte escrita”:

[...] é preciso observar o que há a frente e atrás, ou em que ordem se dá os objetos...... a força que [o objeto] possui, se claro ou escuro, pode fazê-lo avançar ou recuar, como resultado da harmonia e relações com as quais as cores e as gradações fazem entre si (TAYLOR, 1992, p. 212).

Na obra de Hoogstraten, a descrição do conceito de houding mostra-se perfeitamente alinhado aos princípios escritos por Goeree, apesar de apresentar maior ênfase no elemento harmonia:

[...] um segredo da arte que chamamos de houding; o qual na cor significa, assim como na arte da medição, simetria, analogia, harmonia e proporção; correspondendo também na música as [notas e composições] concordantes e harmonias charmosas. O conceito contém nele mesmo uma pura reunião de poderes afinados como um todo: a composição fina de cores...... o arranjo ordenado do chiaroscuro: juntamente com o avançar, recuar, curvaturas e efeitos de perspectiva270 (TAYLOR, 1992, p. 213).

Hoogstraten considera houding como o ordenamento harmônico da luz e sombra e da cor para conferir profundidade (TAYLOR, 1992, p. 214). Portanto, a grosso modo, houding é o modo de “criar a sensação de espacialidade numa pintura” (TAYLOR, 1992, p. 212), a habilidade ou o resultado de “controlar as gradações de cor e tons, e como eles são usados em relação a uns aos outros” (VAN DE WETERING, 1997, p. 257). É curioso notar o quase frequente uso do termo relação, não somente nos textos do séc. XVII, mas também nos textos de Van de Wetering e Taylor. O termo parece muito adequado para exprimir de modo breve, a chave para a questão processual do houding: é a habilidade de

270 O termo traduzido do holandês para inglês é foreshortening: em português a tradução mais próxima é perspectiva gráfica ou escorço: o efeito visual ou ilusão de ótica que causa um objeto ou distância aparecer mais curto do que é por causa de um ângulo voltado para o observador. Como exemplo, um círculo pode parecer uma elipse e um quadrado pode parecer um trapézio dependendo do ângulo do observador ou do desenho.

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relacionar os elementos num campo pictórico capaz de criar grande profundidade e sensação de espacialidade. De forma resumida, Hoogstraten considera houding como o ordenamento harmônico da luz e sombra e da cor para conferir profundidade (TAYLOR, 1992, p. 214). Portanto, a grosso modo, houding é o modo de “criar a sensação de espacialidade numa pintura” (TAYLOR, 1992, p. 212), a habilidade ou o resultado de “controlar as gradações de cor e tons, e como eles são usados em relação a uns aos outros”.

5.1.2.4.8. Sugestão Tátil e Profundidade: “Kenlijkheyt” (Perceptibilidade) Segundo Van de Wetering, o conceito de perceptibilidade271, explorado por Hoogstraten em sua obra seminal, Inleyding, pode ajudar a entender os objetivos de Rembrandt acerca da natureza tão matérica de sua maneira rústica: ele está diretamente relacionado ao uso da sugestão tátil das superfícies ou o que Van de Wetering chama de sugestão espacial. (VAN DE WETERING, 1997, p. 183). Hoogstraten ilustra esse conceito indicando que se alguém ao ar livre tenta representar o azul do céu pintando num pedaço de papel azul, o observador sempre perceberá o papel como algo próximo a ele e nunca terá a impressão de distância, por melhor pintado que isso seja. No entanto, quando olhamos o azul do céu, ele sempre é percebido como distante. A explicação de Hoogstraten para o fenômeno é que o “[...] pedaço de papel, não importa o quão liso seja, ainda assim, terá uma certa aspereza perceptível, com a qual o olho pode notar, não importa para que ponto escolha, o que não é possível no azul uniforme do céu”. Van de Wetering explica que provavelmente Hoogstraten pretende chamar a atenção do leitor para o conceito de textura superficial, que apresenta informação visual substancial para que o olho perceba como algo próximo, enquanto o azul do céu é desprovido dessa “ancoragem ótica” (VAN DE WETERING, 1997, p. 182). Portanto, esse conceito é fundamental para que se possa entender a seguinte passagem de Inleyding:

Eu portanto sustento que [na pintura] somente a perceptibilidade faz com que os objetos pareçam perto de nós, e o reverso sendo o macio [liso] que se distancia, e portanto se desejo que aquilo pareça estar na frente, seja pintado de modo solto e rustico, e aquilo que desejo fazer receder seja pintado de um modo que, quanto mais ajeitado [liso], mais distante ficará. Nenhuma cor ou outra fará seu trabalho parecer regredir ou avançar, mas somente a perceptibilidade ou imperceptibilidade das partes (VAN DE WETERING, 1997, p. 183).

271 Hoogstraten usa o termo holandês “kenlijkheyt”.

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Embora Hoogstraten não demonstre o uso desse procedimento em suas pinturas do período no qual escrevera esse texto, as obras de Rembrandt são muito consistentes com essas ideias, particularmente na Ronda Noturna, justamente a pintura de Rembrandt que Hoogstraten conhecia muito bem. A descrição de Van de Wetering demonstra como a pintura consiste com aquilo descrito por Hoogstraten: “O pincelar enfaticamente grosseiro nas partes da frente, não só nas roupas de Ruytenburgh272, mas também no tambor à direita e no colarinho e manga de Banning Cocq, e na diminuição gradual de tinta até chegar ao fundo, forma a mais clara ilustração do método de sugestão espacial” (VAN DE WETERING, 1997, p. 185). Além da perceptibilidade, Van de Wetering também aponta que o uso do impasto alto servia para enaltecer o drama da luz e sombra, principalmente para que os brancos pudessem ter mais brilho: [...] acerca do reforçar do efeito de luz, deve ter sido descoberto algum tempo antes, fazendo com aplicação de tinta clara grossa e com relevo desnivelado, sem uniformidade. As pinturas são geralmente penduradas e vistas de tal forma que a superfície da pintura não brilha, em outras palavras, o luz que atinge a pintura não volta ao observador. Nas paredes sem uniformidade do relevo de uma passagem empastada, no entanto, a tinta sempre reflete a luz com certa extensão, realçando consideravelmente o brilho daquela passagem (VAN DE WETERING, 1997, p. 175).

Van de Wetering julga que o uso dessa técnica era algo que ambos pintores de Leiden já usavam em seu período inicial, desenvolvendo a ideia com maior dramaticidade posteriormente273. Aparentemente, é uma das características que se mostra diferente do trabalho de Pieter Lastman:

O jovem Rembrandt e Lievens devem ter aprendido isso cedo, desde que, mesmo em seu período inicial “apesar de toda similaridade a seu trabalho, o mais notável contraste é o nível de diferenciação na consistência da tinta usado para descrever superfícies e luz. Lastman aplicava sua tinta de modo muito mais uniforme do que faziam seus dois pupilos de Leiden (VAN DE WETERING, 1997, p. 175).

272 Willem van Ruytenburch (1600 - 1657) Nascido em Amsterdam, Ruytenburgh era tenente do capitão Frans Banning Cocq durante o meio do séc. XVII. Ele é mais conhecido como o tenente da pintura Ronda Noturna, vestido em roupas claras, a direita do capitão Frans Banning Cocq.

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Segundo Van de Wetering, há indícios de que o primeiro a fazer uso da técnica de impasto foi Lievens. Acredita-se nisso baseado nos fatos de que o pintor era mais prematuro que Rembrandt: além de um ano mais novo, tornou-se um Mestre independente antes que Rembrandt. Segundo Samual van Hoogstraten, que provavelmente aprendeu a informação quando ainda era pupilo no ateliê de Rembrandt: “Jan Lievens era um expert em procurar maravilhas em borrões de pigmentos, vernizes e óleos”, parecendo que Lievens tomou particular interesse na experimentação de seu meio. Van de Wetering também teoriza sobre a possibilidade de Lievens dar particular atenção a fatura de suas tintas no ateliê, como sugere uma pintura (autorretrato) e um desenho (retrato de Lievens) de Rembrandt, que mostra a pedra de dispersar pigmentos ao lado de seus cavaletes. O interesse e o cuidado com a preparação dos materiais é documentado por Joachim Sandrart274, que enfatizou o fato de que ao visitar em 1640 o ateliê de Gerard Dou275, pode testemunhar que o pintor fazia suas próprias tintas, implicando ser “incomum para um Mestre fazê-lo” (VAN DE WETERING, 1997, p. 176). O autor ainda acrescenta:

De acordo com Sandrart, a intenção de Dou era obter as cores mais puras possíveis, mas Rembrandt e Lievens devem ter manipulado a consistência e maleabilidade de suas tintas em suas pedras para obter as diferentes passagens e estruturas de superfície que aparentavam a naturalidade do material representado (VAN DE WETERING, 1997, p. 177).

Por volta de 1629, suas paletas tornam-se mais monocromáticas, mas além disso, mudam o modo como empregam o impasto: tenta-se representar a superfície das coisas de modo menos descritivo passando a usar o impasto e o relevo como forma de “prender” a luz (VAN DE WETERING, 1997, p. 178). O uso do impasto é amplamente usado pelo pintor, como na pintura Casal como Isaac e Rebecca (1667), e segundo Van de Wetering, é possível observar na mão do homem que segura o seio de Rebecca, que: “a parte do verso da mão do homem possui uma superfície rustica, conferindo a mão uma textura quase tangível. Nas falanges uma veia de tons cinzas rosados descansa por cima de uma fundação suave, e por cima está o dedo da mulher pintado com uma plasticidade na qual os fios dos pincéis desenharam

274 Artista alemão e biógrafo, citado anteriormente. 275 Pupilo de Rembrandt de 1628 em diante, por alguns anos.

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trincheiras que captam a luz” (VAN DE WETERING, 1997, p. 158). Nota-se que, a fundação foi pintada de modo liso, para que seja percebida como mais distante ou profunda, enquanto que as áreas de luz da mão foram pintadas de modo rústico, sendo percebida como mais próxima do observador. O mesmo tipo de tratamento é percebido em todas as pinturas do período tardio do artista. Mas, o uso de impasto não é o único procedimento usado para alcançar o kenlijkheyt e enaltecer a perceptibilidade. É possível encontrar uma série de outros efeitos e procedimentos em diferentes áreas de diferentes pinturas. Uma delas, é um procedimento para dramatizar ainda mais uma área de impasto que já está seca. Aparentemente, é feito com a ação de esfregar tinta escura e logo em seguida, apagar a tinta que foi esfregada para que sobre tinta somente nas áreas mais profundas de impasto (já seco), enquanto as áreas mais altas ficam claras: “A túnica cinza esverdeada forma sua natureza atmosférica de tinta marrom esfregada numa fundação desnivelada de aparência pedregosa, como tinta retirada de uma chapa litográfica depois que riscos foram feitos na tinta marrom” (VAN DE WETERING, 1997, p. 159). Outro procedimento, é o uso de um pincel seco por cima da tinta ainda fresca, deixando marcas ou rastros na superfície, caso dessa área descrita por Van de Wetering: “as transições da luz para sombra próximas ao nariz da mulher não são macias, mas o resultado do arrastar de um pincel quase seco sobre a superfície” (VAN DE WETERING, 1997, p. 159). Provavelmente o mesmo tipo de procedimento pode ser observado nos contornos ou bordas dos elementos das pinturas de Rembrandt, que Van de Wetering chama de sfumato rústico: “[...] Rembrandt desenvolveu um peculiar sfumato rústico, que era obtido com o arrastar de um pincel carregado com tinta dura sobre a superfície para produzir um rustico mas evocativo contorno ou transição tonal que desempenha um efeito atmosférico na pintura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 189). Em nenhuma das publicações lidas e organizadas para este estudo sugere-se o uso de um procedimento de esfregar sobre tinta semi-seca. É de se considerar a hipótese de que o artista tenha feito uso, em inúmeras passagens de suas pinturas, o procedimento do arrastar de pincéis secos por cima de áreas não completamente secas e nem completamente molhadas, isto é, áreas semi-secas. O uso do pincel seco por cima de tal áreas incomodaria a superfície da tinta, criando texturas rústicas e causando marcas diferentes daquelas deixadas sobre tinta ainda fresca.

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[...] conecta-se as ideias sobre “densidade do ar” do século dezessete [...] Um dos meios usados para alcançar esse efeito atmosférico pode ser visto no tufo de cabelo cinza do rosto de Rembrandt na obra da National Gallery de Washington, alguns elementos estão em foco, enquanto outras passagens possuem um grau de difusão dando ao observador a sensação de fora de foco. Essa interação de elementos duros e difusos estimula o olho a explorar a ilusão espacial ao invés de assumir que [o observador] vê, como nos trabalhos de tantos outros artistas que descrevem fielmente a realidade que é sugerida. Parte do efeito de elementos difusos e vincados é determinado pela presença de matéria concreta, como táteis, montes e cavidades na superfície da tinta que podem agir como elementos que estão em foco, em contraste as pinceladas borradas, determinando a impressão geral. Aqui, tocamos novamente no conceito do século dezessete de ‘kenlijkheyr’ [perceptibilidade] [...] (VAN DE WETERING, 1997, p. 221). . Portanto, juntamente com o conceito de houding, o conceito de kenlijkheyt, também está ligado a profundidade e espacialidade, de modo um pouco diferente. No entanto, ambos são conceitos que promovem a criação de artifícios técnicos que dão maior sensação de tridimensionalidade no campo pictórico.

5.1.2.4.9. Conclusão Pensamento Cromático O manual holandês que possivelmente exerceu influência na educação cromática do artista ainda em seu período como aprendiz é o Schilder-boeck (1604) de Karel Van Mander, fortemente baseado em conceitos da antiguidade clássica. Após 1626, quando o artista estabelece ateliê próprio, e se afasta da estética do maneirismo e do uso das cores intensas, nenhum tratado ou manual do período mostra conteúdo intelectual com possível relação ou influência direta ao trabalho do artista. O tratado Inleyding tot de hooge schoole der schilderkonst (1678), de seu pupilo Samuel von Hoogstraten, publicado nove anos após a morte de Rembrandt, mostra fortes relações a estética cromática de seu período como artista independente em Leiden (com Jan Lievens) e em Amsterdam, isso possivelmente compreende a influência de Rembrandt sobre a escrita de Hoogstraten. O manual Inleyding, portanto, é o melhor representante do que o artista possivelmente definia como uma teoria sobre cor. O conhecimento que torna possível prever o resultado de misturas entre as cores que hoje chamamos de primárias e secundárias era de conhecimento dos pintores desse período, embora seja certo que Rembrandt não categorizava essas cores em grupos de primárias, secundárias e terciárias ou num círculo cromático em ordem de familiaridade cromática. Sabia como neutralizar, ou nos termos do período “quebrar”, uma cor com sua complementar (também chamada por Hoogstraten de cores conflitantes), conhecimento empírico adquirido

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através de sua vivência prática ou através dos ensinamentos de seus mestres. Não é somente a teoria de conflitantes escrita por Hoogstraten que confere indício de um conhecimento de neutralização através de complementares, mas o também o uso de pré-pintura verde por baixo das camadas de pele (avermelhadas), como citado por Van de Wetering:

[...] a pré-pintura uniforme em verde no qual as cores claras276 de tinta são aplicadas [por cima] [...] [...] é normalmente um cinza frio, as vezes um cinza esverdeado, que funciona como um contraponto frio para os tons de pele quentes e contribuem para a frieza dos tons escuros aplicados transparentes do tom de pele (VAN DE WETERING, 1997, p. 215).

O conteúdo das teorias cromáticas apresentadas por Sandrart, Van Mander e principalmente por Hoogstraten revela um dos mais importantes argumentos que se alinha a mais fundamental característica da obra de Rembrandt: a recomendação do abandono das cores intensas do maneirismo em favor de cores quebradas, de baixa saturação. Van de Wetering acredita que a razão principal dessa recomendação seja a intenção de aumentar a sensação de profundidade deixando a luz e sombra mais dramática, ficando então a cor em função do chiaroscuro. Nota-se que, nesse conceito, cor e valor são elementos indissolúveis de uma mesma teoria cromática. Van de Wetering toca num ponto importante sobre a questão da cor quebrada: “não é somente uma questão de misturar cores [...] quebrar a cor significa que ela se tornou menos forte e menos saturada pela mistura de outro pigmento. Mais importante, no entanto, é que torna-se a sombra dessa mesma cor [...]” (VAN DE WETERING, 2016, p. 191). Portanto, o conceito é fundamental em nível conceitual e técnico: é o conceito de cor quebrada que torna possível um processo de mistura que atinge a atmosfera tão dramática usada pelo artista, um modo prático e natural de se obter tons de sombra. Em último lugar, também parece correto afirmar que, o conceito de cores quebradas tem relação com o que Hoogstraten e Goeree chamam de houding: a habilidade do pintor em estruturar um ordenamento harmônico tanto da luz e sombra quanto da cor, para conferir profundidade numa obra e a sensação tátil e espacialidade do kenlijkheyt. Todas as ideias e pensamentos desenvolvidos aqui sobre cores correlatas e conflitantes e cores quebradas são fundamentais para as hipóteses primárias apresentadas no capítulo de conclusão deste estudo.

276 Van de Wetering usa o termo “tint”.

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5.2. Processo Físico de Pintura Nesse capítulo, analisa-se todos os procedimentos físicos que formam os elementos formais e visuais das pinturas tardias Rembrandt. Isto é, tudo aquilo ligado diretamente aos procedimentos que materializam suas obras como objeto físico. As fontes e a relevância serão apresentadas no começo de cada subcapítulo.

5.2.1. Doerner e o Mito das Velaturas As principais fontes usadas nesse capítulo são as obras de Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997) e de Doerner (DOERNER, 1984). As elucidações técnicas são fundamentadas pelas obras de Laurie (LAURIE, 1910), Mayer (MAYER, 2006) e Gottsengen (GOTTSEGEN, 2006). O capítulo resume de forma direta e resumida o que se discute na bibliografia, sem sugerir uma nova perspectiva sobre o assunto. Van de Wetering aponta especialmente a obra de Max Doerner277, “The Materials of the Artist and Their Use in Painting”278 publicada originalmente em alemão no ano de 1922, como uma das mais influentes obras intelectuais a povoar o imaginário dos pintores com os segredos da técnica de Rembrandt. Segundo Wetering, o livro de Doerner “...não apenas ainda serve, após muitas edições, como um indispensável livro de receitas nos ateliês de artistas por todo o mundo, mas sua influência também se estende aos historiadores da arte e restauradores”(VAN DE WETERING, 1997, p. 193), a obra apresenta uma descrição convincente dos métodos de pintura do artista, mostrando argumentos de forma tão segura que passa a impressão de que se trata de uma pesquisa que não é meramente baseada na observação visual das obras do artista mas uma afirmação científica. Van de Wetering aponta que além da observação in loco da superfície das pinturas de Rembrant, Doerner fazia uso da “reconstrução técnica” para estudar o método de pintura do artista, isto é, por meio de cópias das obras originais pretendia através da verossimilhança dos resultados encontrar pistas de seus métodos. Mas, para Van de Wetering, as suas teorias não podem ser levadas em consideração por não compreender um método inteiramente científico:

[...] .a pesquisa de reconstrução só é significativa no caso da existência de um corpo prévio de informações, obtido ou através de fontes históricas ou por investigação científica. Através da prática de

278 “O Material do Artista e seu Uso na Pintura”. Nunca traduzido para o português.

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métodos hipotéticos, as lacunas perdidas em nosso conhecimento podem as vezes serem preenchidas. Na época de Doerner [1920], no entanto, as técnicas científicas ainda eram pouco desenvolvidas para identificar materiais – especialmente os orgânicos – em detalhes. Também, as análises de radiografias sobre as fundações de pinturas estava apenas em sua infância na época, enquanto o estudo das fontes do século dezessete não apresentavam informações diretas sobre o método de trabalho de Rembrandt (VAN DE WETERING, 1997, p. 194).

Segundo Doerner, Rembrandt trabalhava a partir de uma pintura monocromática, isto é, o primeiro estágio de suas pinturas não possuía cor, mas apenas um jogo de valores ou chiaroscuro. Van de Wetering aponta que essa parte da teoria de Doerner está de acordo com o que fora descoberto nas primeiras pinturas do artista, refere-se ao período de Leiden. (VAN DE WETERING, 1997, p. 194). Sobre a pintura chamada “De Staalmeesters”279, pintada em 1662 por Rembrandt, Doerner relata a questão da fundação monocromática e das camadas transparentes ou semi-opacas: “Tecnicamente, foi possível alcançar esse efeito [visto nessa pintura] somente com uma preparação uniforme modelando o branco e os cinzas por todas as partes da pintura. É possível observar facilmente essa preparação clara em certas pequenas áreas das cabeças e mãos [das figuras retratadas]” (DOERNER, 1984, p. 368). Doerner parece sugerir nesse trecho, que Rembrandt preparou uma fundação monocromática em tons de cinza, uma primeira etapa, também chamada por alguns autores de camada morta280 (dead layer). Fica incerto nessa passagem se Doerner quis dizer que Rembrandt alcançou esse efeito ou se foi alcançado por ele em uma de suas “reconstruções técnicas”. Doerner segue sua descrição do que pensa ser a sequência de trabalho do artista: “Através de velaturas finas, vibrantes e semi-opacas as cores locais foram aplicadas sobre o corpo cinza da pré-pintura, mas de modo que o tom de fundo continua a exercer seu efeito por toda a pintura, e nessas velaturas, preparações com verniz e óleos espessados” (DOERNER, 1984, p. 369). Essa é uma das partes da teoria de Doerner sobre a técnica de Rembrandt que será questionada pelas descobertas científicas mais recentes. Van de Wetering interpreta que Doerner considera essa fundação281 monocromática, a camada morta, como “um esqueleto no qual o resultado final, de maneira óptica, era

279 Conhecida em português como “Os Síndicos” ou ainda “Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam”. 280 (VAN DE WETERING, 1997, p. 197).

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baseado...... o esquema cromático que encarnava [por cima do] o esqueleto tonal consistia principalmente de camadas transparentes de tinta”. Isto é, as cores transparentes permitiam colorir a pintura monocromática que ficava por baixo das camadas transparentes, criando uma combinação ótica, portanto, segundo Doerner, a camada morta não é alterada pelas camadas subsequentes, mas apenas colorida de maneira transparente, permanecendo visível até a completude da obra. Outras passagens relatam que essa transparência ou translucidez era resultado de um veículo rico em matéria resinosa. Na pintura, é possível fazer uso de inúmeras resinas naturais, extratos resinosos provenientes de arbustos ou árvores, usadas como verniz, cola (mordente) ou como adição a algum tipo de veículo para se fazer tinta ou para modificar o comportamento de determinadas tintas. Entre as mais comuns, encontram-se as várias resinas vegetais provenientes de diferentes árvores pináceas como a terebintina de Veneza282 e o bálsamo do Canadá. Entre as mais raras, o mastique, copal e âmbar, todas resinas vegetais mais raras do que aquelas provenientes das pináceas. A resina damar é a mais popular entre as resinas usadas pelos pintores hoje, mas só começou a ser usada popularmente após o século XIX (MAYER, 2006, p. 242). Uma passagem da obra de Doerner, descreve suas impressões sobre a pintura de Rembrandt que retrata o então prefeito de Amsterdam, Jan Six283. Essa é a opinião de Doerner sobre o modo como a pintura fora executada e sobre os materiais supostamente usados por Rembrandt nessa pintura:

[...] o enaltecimento com branco é indescritivelmente charmoso em suas gradações, que partem da cor local. Os cinzas óticos são especialmente bons nesse Rembrandt que é um dos melhores preservados. Seria um absurdo tentar pintar cinzas assim de modo direto. Essa imagem foi pintada de maneira bem líquida e sem sombra de dúvida com um meio resinoso, terebintina de Veneza, óleos espessos e mastique (DOERNER, 1984, p. 367).

Ainda em outra passagem, Doerner resume sua teoria sobre o modo de trabalho do artista: “Junto com sua maneira de tratar a luz, ele enriquecia a expressão por meio de sua

282 Terebintina de Veneza (Venice Turpentine). Resina vegetal, macia, retirado do lariço europeu. O nome “terebintina” costuma confundir o artista: embora o nome seja esse, o material não se trata de um solvente, mas uma resina líquida. 283 A pintura foi executada em 1650 e encontra-se hoje no Six Collection, Amsterdam. É um retrato pintado por Rembrandt mediante encomenda do prefeito de Amsterdam, Jan Six.

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charmosa técnica de cor, na qual alternava a aplicação dos tons mais opacos com semi- opacos e velaturas finíssimas”(DOERNER, 1984, p. 369). Isto é, segundo essa teoria, Rembrandt pintava de maneira indireta, usando diversas camadas ou etapas, hora com camadas de tinta opaca, hora com camadas de tintas transparentes. Em outra passagem, aponta mais uma vez o uso de um veículo óleo-resinoso: “seu veículo [Rembrandt] é de qualidade fortemente resinosa; neste aspecto assemelha-se a Rubens. Com tintas feitas no momento do uso, ricas em pigmento, talvez preparadas com terebintina de Veneza, mastique e óleo de linhaça espessado ao sol, que seca de modo rígido em poucas horas, é possível alcançar efeitos similares” (DOERNER, 1984, p. 370). Mas, segundo o químico especialista em materiais artísticos Ralph Mayer284, o assunto analisado da perspectiva das análises químicas prova que a teoria de Doerner não procede. Aparentemente, o uso de materiais resinosos pelos velhos mestres era feito ocasionalmente e as quantidades, quando usadas, moderadas:

[...] a documentação e evidência apontam para o fato de que a maioria das obras do passado foram pintadas com pigmentos puros moídos somente em óleo de linhaça prensado a frio...... nota-se também, o uso ocasional e moderado de um médium óleo-resinoso simples para velaturas, quando algum efeito especial era desejado – este médium continha um óleo encorpado mais uma pequena quantidade de verniz simples (MAYER, 2006, p. 276).

Mayer, uso os termos ocasional e moderado, para salientar que, quando se faz necessário o uso de materiais resinosos, é necessário parcimônia. Em outra passagem, conclui que, há poucos efeitos que não possam ser feitos somente com tinta comum e portanto, praticamente incentiva o desuso das resinas:

[...] os mediums complexos quase sempre contêm materiais que mais tarde foram condenados por químicos e técnicos, e quase todos estes materiais ‘ancestrais’ datam do final do século XVIII...... minha crença é a de que os maiores mestres não utilizavam mediums complexos, sobretudo nas obras que chegaram até nós em boas

284 Ralph Mayer (1895-1979), New York, EUA. Engenheiro químico, pintor e restaurador. Trabalhou na indústria de tintas e como professor na Arts Student League of New York e na Columbia University. Escreveu dois livros sobre a tecnologia dos materiais artísticos, incluindo em 1940 a obra que ainda compreende um dos manuais de tecnologia dos materiais mais importantes da história, o Manual do Artista. Suas principais publicações são: The Artist's Handbook of Materials and Techniques (1940), The Painter's Craft (1948) e A Dictionary of Art Terms and Techniques (1969). Somente o Manual do Artista for a traduzido para o português. O famoso químico e pioneiro em análise de obras de arte Maximilliam Toch era seu tio.

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condições...... qualquer restaurador e curador sabe que a limpeza e a reabilitação da pintura comum é questão de rotina, e que os problemas surgem com as pinturas não convencionais e que contém, geralmente, grande quantidade de resina (dura ou macia) em sua feitura...... Nas pinturas a óleo dos grandes mestres do passado existem muito poucos efeitos técnicos que não possam ser reproduzidos com tintas comuns...... não me lembro de nenhum caso em que os resultados obtidos com mediums mais complexos tenham sido melhores que os obtidos com mediums simples utilizados com perícia (MAYER, 2006, p. 278).

Ainda outro grande especialista em materiais artísticos, Mark Gottsegen, sobre os efeitos e o uso das resinas e materiais resinosos em mediums para pintura:

Verniz pode ser usado [misturado] na tinta ou num medium de velatura...... se uma solução de verniz é usada nessas misturas, existe a chance de produzir um filme de pintura que é facilmente dissolvido por uma nova passagem [de tinta], ou toda a pintura pode ficar sujeita a uma fragilização, ou a pintura pode ser danificada durante a limpeza. O uso de um óleo cozido juntamente com o verniz como medium pode prevenir a dissolvimento do filme de pintura, mas pode também levar ao amarelamento e fragilização (GOTTSEGEN, 2006, p. 114).

É por isso que, os filmes com presença de resina acabam com uma coloração marrom a longo prazo. A questão da popularização do uso resina como ingrediente de mediums, para Van de Wetering, pode ter suas origens no modo como as pinturas dos velhos mestres aparentavam cobertas de vernizes velhos e acastanhados.

Na época de Doerner, especialmente durante o século XVIII, havia uma relutância na limpeza de pinturas antigas, por causa do valor agregado ao chamado ‘tom de galeria’, a patina que parecia estar em pinturas antigas...... de fato, essas camadas velhas de verniz podem ter contribuído para a ideia de Doerner de que o uso de velaturas era uma constituinte essencial na técnica de Rembrandt (VAN DE WETERING, 1997, p. 194).

Além disso, Van de Wetering acredita que um outro fato pode ter influenciado Doerner. A transparência da tinta a óleo aumenta com o tempo, uma teoria desenvolvida a partir dos

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estudos de A.P. Laurie285, publicada em 1926, ainda aceita hoje. O fenômeno é consequência da mudança do índice refrativo de luz durante a polimerização286 da tinta, causando uma penetração mais profunda da luz na camada de tinta. Isto é, o observador, assim como Doerner, pode perceber a pintura como algo mais transparente do que realmente fora pintado, levando o pesquisador a acreditar que a técnica do artista era um sistemático uso de tintas transparentes. Van de Wetering finaliza: “seria possível dizer que Doerner, acerca de Rembrandt, deu luz ao mito da velatura, que até o dia de hoje persiste obstinadamente em muitos círculos” (VAN DE WETERING, 1997, p. 194). Durante os anos setenta, muito fora descoberto sobre o procedimento usado na pintura Ronda Noturna (1647), inclusive a confirmação da invalidez das teorias das muitas camadas e do medium óleo-resinoso, sugeridas por Doerner, ocasião de restauração da pintura após o dano que sofrera em 1975 287. Segundo Van de Wetering, a equipe de restauração decidiu de antemão remover totalmente o verniz devido à grande perda de transparência do material, além das microfissuras que ocorreram dentro e entre as camadas de verniz, comprometendo seriamente a visualização da obra, sobretudo nas partes escuras. A remoção do verniz era um procedimento controverso pelo fato da pintura ter permanecido por longos períodos de sua existência nessa condição e também por causa do mito de Doerner: a remoção do verniz poderia agredir as delicadas velaturas óleo-resinosas sugeridas no mito de Doerner. Através da pesquisa sobre o histórico de restauração da obra feita por Van Schendel e Mertens (1947), tornou-se aparente que a pintura foi tratada pelo menos vinte e cinco vezes no passado, na maioria dessas intervenções, a superfície foi limpa em excesso desnecessário, com áreas que sofreram severa abrasão (VAN DE WETERING, 1997, p. 195).

285 Arthur Pillans Laurie (1861-1949), Escócia. Engenheiro químico formado pela Universidade de Edinburgh e depois pela King´s College. O pintor Pré-Rafaelita William Hulman Hunt despertou em Laurie o interesse pelos estudos químicos de pigmentos e Laurie se tornou um pioneiro na análise científica de pinturas. Professor de química da Royal Academy of Arts assim como de várias universidades inglesas. Escreveu mais vários livros ainda influentes sobre a tecnologia dos materiais artísticos sendo: The Food of Plants, (1893); Facts About Processes, Pigments, and Vehicles - a Manual for Art Students, (1895); Greek and Roman Methods of Painting, (1910); The Materials of the Painter's Craft in Europe and Egypt, from the Earliest Times to the End of the XVIIth Century, (1910); The Pigments and Mediums of the Old Masters, (1914); The Painter's Methods and Materials, (1926); A Study of Rembrandt and the Painting of his School, (1929); The Brush Work of Rembrandt and his School, (1932); Pictures and Politics, (1934); New Light on Old Masters, (1935); The Case for Germany, (1939). Esse ultimo trata-se de um livro de conteúdo politico simpatizante do partido nazista. 286 Fenômeno físico que faz com que os óleos vegetais engrossem conforme envelhecem. 287 A obra foi atacada com uma faca de pão por um professor desempregado em 14 de Dezembro de 1975, resultando em grandes rasgos em zigue e zague. Foi totalmente restaurada, demorando quatro anos. Alguma evidência do dano ainda é visível de perto. O homem nunca foi acusado ou condenado, cometeu suicídio em abril de 1976. Esse não foi o único ataque a tela, sendo o primeiro em 1911 com uma faca de sapateiro e o último em 1990, com um jato de ácido.

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Para analisar o meio ou veículo usado, o setor da Ronda Noturna onde fora pintada a faixa vermelha do capitão Banning Cocq, o capitão vestido de negro, foi submetido a análise, local onde as velaturas de pigmento orgânico estavam intactas e bem preservadas mesmo com o histórico de tratamentos restaurativos drásticos288. Um teste similar para detectar constituintes dos veículos usados em velaturas foi efetuado no setor do vestido da moça representada na obra conhecida como Casal como Isaac e Rebecca (1665). As análises químicas feitas por Karin Groen289 demonstraram que, ao contrário da teoria de Doerner, em ambos os casos as velaturas não continham meios resinosos, mas são constituídas principalmente de óleo de linhaça. Além desses testes, analisou-se outros setores da Ronda Noturna, como “inúmeros cross-sections290 extraídos de rostos da Ronda Noturna...... eles consistem em apenas uma única camada de tinta opaca” portanto é possível refutar a ideia de que as velaturas de tintas transparentes são a essência da técnica de Rembrant. O mesmo pode ser dito sobre o uso de resinas como a terebintina de Veneza e outros materiais similares (VAN DE WETERING, 1997, p. 196). A teoria de Doerner também dá a entender que a pintura era executada em mais ou menos dois estágios: um monocromático e um segundo, que “colore” o primeiro através dessas velaturas. Fica implícito que o artista tem um trabalho mais fácil, pois apenas colore por cima do primeiro estágio usando tintas coloridas e transparentes. No entanto, esse primeiro estágio monocromático, como veremos mais adiante, chamado de camada morta ou pré-pintura, segundo Van de Wetering, “funcionava de maneira diferente àquela sugerida por Doerner. ”

288 A obra foi submetida a pelo menos 25 tratamentos de restauração anteriores a intervenção de 1974. Muitas partes da obra foram limpas em demasia, resultando em áreas com alguma perda da superfície pictórica original. 289 Karin M. Groen (1941 –2013).: Holanda. Engenheira química e pesquisadora técnica. Trabalhou no Instituut Collectie Nederland (ICN) a pedido do Rembrandt Research Project, em conjunto com o chairman Ernst Van de Wetering por mais de trinta anos realizando e investigando análises químicas, pigmentação e estratificação de camadas pictóricas em todas as obras primas de Rembrandt, assim como de outros velhos mestres. Consultora e colaboradora de pesquisas nas instituições e museus mais respeitados do mundo como a National Gallery, Rijskmuseum, Mauristhuis e outros. Escreveu e publicou mais de sessenta ensaios e artigos científicos sobre a tecnologia dos materiais de pintura e suas análises físico-químicas. Um livro póstumo reúne uma coleção de artigos científicos de toda sua carreira, Paintings on the Laboratory (2014). 290 Cross-section.: Método de análise de estratificação de camadas de uma película pictórica. Retira-se uma minúscula lasca da camada pictórica, geralmente durante intervenções de limpeza, remoção de verniz ou restauração de uma tela, mural ou painel. Essa pequena lasca é então "banhada" em uma resina sintética transparente. Com a lasca “presa” e suspensa dentro da resina totalmente transparente e sólida, é possível cortar a peça de modo que a "lasca" de tinta seja cortada num viés que torne possível sua observação num microscópio eletrônico (de varredura), que ilumina a peça de resina e o "filme" preso dentro dela. Com o corte da lasca nesse viés específico, é possível discernir sua estratificação. Cada camada é analisada separadamente através de spectrometria ou outro sistema de análise química, para que se conclua com precisão as substâncias contidas em cada camada.

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Investigações não somente na A Ronda Noturna mas em muitas outras pinturas de Rembrandt, inclusive nas pinturas históricas do período de Leiden, mostraram uma discrepância entre a pré-pintura e a pintura finalizada, “aparentemente, [Rembrandt] usou o estágio de camada morta como base291 enquanto desenvolvia a pintura de trás para frente292. Durante esse processo ele poderia felizmente modificar o plano original” (VAN DE WETERING, 1997, p. 197). Van de Wetering aponta que no estágio da pré-pintura, a Ronda Noturna (1642) provavelmente era similar a pintura de Rubens, Henrique IV na Batalha de Paris, exposta em Rubenshuis293, Antuérpia. Relata que essa pré-pintura foi executada livremente como um “esboço desenhado sobre uma base de cinza frio...... com tinta escura parcialmente usada de maneira semitransparente. Aumentos de luminosidade colocados de modo local...... [assim como Rembrandt na A Ronda Noturna] Rubens aplicou alguns tons de pele aqui e ali, aparentemente na tentativa de isolar uma mão ou rosto entre a confusão de linhas e tons tão soltos” (VAN DE WETERING et al., 1982). No entanto, Van de Wetering aponta que, apesar das provas e evidências:

Nenhum dos fatos deve levar à conclusão de que as velaturas da Ronda Noturna sumiram [retiradas pela limpeza] ou que em outras obras ele não tenha usado velaturas. Ocasionalmente, é encontrado velaturas azuladas aplicada as figuras dos fundos nas pinturas do início de carreira, ou velaturas acinzentadas e rosadas usadas em certas passagens dos rostos. No entanto, essas velaturas parecem ser tão resistentes a ação de solventes quanto o resto da pintura. Podemos de qualquer forma descartar a ideia de que o uso de velaturas constituía a essência da técnica de Rembrandt como coloração diferenciada como sugerido por Doerner (VAN DE WETERING, 1997, p. 197).

Portanto, sugere que seu procedimento não tinha nada em comum com o “grey core” proposto por Doerner e sua teoria das velaturas (VAN DE WETERING, 1997, p. 197), portanto, possivelmente fazendo uso de uma pintura mais direta recorrendo a velaturas e camadas transparentes somente em pequenas áreas para correção.

291 Sketch, esboço ou base que poderá ser modificada, sem planos de conservar o desenho original ao final da pintura. 292 Primeiro pintando os elementos do fundo, em seguida os elementos do meio e finalmente as figuras mais próximas do observador, desta maneira, seguindouma ordem de “trás para frente”. 293 Rubenshuis.: Literalmente a “Casa de Rubens”, museu localizado em Antuérpia, Bélgica, originalmente o palácio construído pelo pintor Peter Paul Rubens, que funcionava como sua residência e ateliê.

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5.2.2. Estágios da Técnica de Pintura Tardia de Rembrandt van Rijn A relevância deste capítulo são as interpretações dos textos técnicos que investigam a anatomia das pinturas de Rembrandt, servindo de material analítico para organizar e explicar de modo mais compreensivo os estágios do procedimento técnico usado por Rembrandt em seu período tardio. As fontes usadas neste capítulo compreendem as obras de Van de Wetering de 1982 (VAN DE WETERING et al., 1982), de 1997 (VAN DE WETERING, 1997) e a mais atualizada, de 2016 (VAN DE WETERING, 2016). Outros textos complementares são Bomford (BOMFORD et al., 2006), Pierre le Brun (EASTLAKE, 1847), Eastough (EASTOUGH et al., 2005) e De Lairesse (DE LAIRESSE, 1817). Embora o foco deste estudo sejam os procedimentos de pintura usados por Rembrandt em seu período tardio, é imprescindível compreender a ordem e a natureza dos estágios de seu processo do período inicial, pois a comparação entre ambos levará a um entendimento mais seguro do processo usado no período tardio. Como foi provado através de análises físico-químicas, Rembrandt trabalhava com determinada ordem e número de estágios em seu período inicial. Van de Wetering lembra que esse procedimento em etapas era necessário em função da natureza de certos pigmentos: alguns pigmentos não podiam ser usados com óleo, outros não podiam se misturar com um ou mais pigmentos, alguns só podiam ser usados de forma transparente e outros somente de forma opaca. A grande maioria dos pigmentos desse período, provavelmente com ressalvas as terras, possuíam algum tipo de problema de permanência acionado quando essas regras eram subvertidas. Portanto, algumas características como permanência da cor, maleabilidade, qualidades secativas, regulamentavam a ordem e o modo como os materiais deveriam interagir no processo de pintura (VAN DE WETERING, 1997, p. 148).

Essa é a explicação para o fato de que nos trabalhos de pintores como Van Eyck ou Lucas van Leyden as cores são entrelaçadas como pedaços de um quebra cabeças e cada passagem possui uma característica individual, especialmente acerca da transparência, textura de superfície e espessura da camada de pintura [...] ficará claro como o método aditivo descrito aqui pode levar a formas de divisão do trabalho no ateliê (VAN DE WETERING, 1997, p. 148). A seguir, definem-se os estágios usados na técnica do pintor em seu período inicial e no final de cada capítulo, as mudanças processuais de seu período tardio.

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5.2.2.1. Base e Primuersel Após a construção do painel de madeira, ou da tela de pintura, o suporte ainda não está preparado para a pintura. É necessário preparar o painel de madeira ou a tela com uma camada especial que possui funções específicas (VAN DE WETERING, 1997, p. 17). Essa camada é chamada na língua portuguesa de base, fundo ou imprimação de pintura (em inglês, ground) (MAYER, 2006, p. 315). É um procedimento tradicional e amplamente usado na pintura a óleo, principalmente ao norte da Europa, vindo de tempos anteriores aos irmãos Van Eyck (BOMFORD et al., 2006, p. 28). Segundo Van de Wetering, “uma técnica para aplicar a base em painéis recorrente nos séculos dezesseis e dezessete era primeiro pincelar o painel com cola de proteína e depois uma camada fina de uma mistura de carbonato de cálcio e cola” (VAN DE WETERING, 1997, p. 20) As receitas de base apresentam diferentes combinações294, sendo mais comum no período de Leiden295 a presença de carbonato de cálcio296 e cola de proteína297, com diferentes adições de pigmentos, como ocres e branco de chumbo. Os ingredientes encontrados nas bases para painéis do período de Amsterdam são parecidos, com a única diferença de conter óleo vegetal em alguns casos. As bases do período tardio possuem geralmente giz, branco de chumbo e uma sombra. (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 17) Além da composição tradicional para dar cor à base de pintura, o tipo de acabamento tátil podia variar: “Idealmente, a camada base recebe acabamento para tornar-se bem lisa, possivelmente através da raspagem ou ação de esfregar [com alguma ferramenta: faca, lixa ou tecido], mas o tipo particular encontrado nas telas de Rembrandt a superfície está longe de lisa, e possuía notável textura298” (BOMFORD et al., 2006, p. 29).

294 A pesquisa publicada nos anos 60, feita por Kühn294, investigou mais de setenta e cinco bases de pinturas atribuídas294 ao artista, de todos os períodos, encontrando quatro principais ingredientes que compõem as bases do artista: carbonato de cálcio, branco de chumbo, ocre e quartzo294. Richard Buck294 opina sobre o resultado de Kuhn: cada receita de base para cada pintura pode ser única, isto é, não existe uma receita padrão “todas as bases possuem composição diferente”. 295 Quase todas as obras do período de Leiden são pintadas sob madeira de carvalho, portanto, são painéis rígidos de madeira. Sobre a composição da base usada nos trabalhos desse período, Van de Wetering aponta: “... a base corresponde incrivelmente bem com uma receita contemporânea [de Rembrandt] que de Mayerne295 tirou dos lábios do pintor de Amsterdam Abraham Latombe: ‘Para uma base em madeira, primeiro cubra com uma demão de cola e carbonato de cálcio, depois de seco raspe e nivele com uma faca, depois aplique uma fina camada de branco de chumbo e sombra295’” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 19) 296 Carbonato de Cálcio.: Carga inerte sem poder de pigmentação (MAYER, 2006, p. 334) 297 Cola de Proteína.: Cola feita de proteína animal, geralmente de gelatina (MAYER, 2006, p. 337) 298 Na verdade, o termo original usado na frase é “dente” (tooth), nesse contexto, significa um acabamento de superfície rustica o suficiente para que a pintura consiga se “agarrar” a superfície sem problemas de adesão. Uma base “lisa” é o contrário de uma base “com dente”.

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A pesquisa de Roy, de 2006 confirma novamente a composição das bases usadas nas telas: “...existem poucos resultados claros da análise de veículo usado nas bases, mas parece provável que para as bases das telas, o veículo é um óleo vegetal secativo299” (BOMFORD et al., 2006, p. 28).

As bases usadas nas telas de Rembrandt possuem maior variação em sua estrutura, contudo, há basicamente dois tipos. Consiste da chamada imprimação dupla, na qual a primeira camada aplicada diretamente sobre a tela [tecido] é feita [com óleo vegetal e] de pigmentos terrosos como o ocre, usualmente vermelho, amarelo alaranjado, amarelo ou amarelo acastanhado300. Depois uma camada de cinza, marrom claro ou um amarelo acinzentado [desaturado] com branco de chumbo como componente principal e geralmente um pouco de preto para escurecer essa segunda imprimação. A camada de baixo [primeira] geralmente contém uma maior quantidade de carbonato de cálcio ou sílica, ou a mistura de ambos (BOMFORD et al., 2006, p. 28).

Autorretrato com idade de 34 anos (1630, National Gallery de Londres) é uma pintura do período inicial com essas características. Duas pinturas do período tardio possuem essa imprimação dupla descrita acima: Saskia van Uylenburgh como Flora (1659, Museu) e A Ceia de Belshazzar (1650, National Gallery de Londres). Além da base aplicada no suporte, havia o primuersel. Rembrandt (ou o marceneiro que lhe vendeu301 os painéis) usava uma mistura composta de óleo vegetal, branco de chumbo e algum outro pigmento terroso, aplicado geralmente numa demão fina302 como modo de colorir sua base com uma cor que serve como um meio-tom. Esta camada que dá cor ao suporte era conhecida na Holanda como Primuersel e possui de maneira geral duas funções importantes: ”tornar a base menos absorvente303 e conferir um tom mais apropriado

299 Óleo vegetal secativo são os óleos usados na pintura a óleo, somente os que secam transformando-se num filme sólido são usados na pintura, portanto, os óleo não-secativos não podem ser usados. Entre os óleos secativos mais usados estão o óleo de linhaça, nozes, papoula e cártamo. 300 Neste estudo, usa-se o termo acastanhado para denominar a matiz de cores que mostram algum traço do marrom. 301 O Manuscrito De Mayerne (1620-1646), cita que entre 1620 e 1633, o autor do manuscrito recebeu uma receita para preparação de tela de um imprimador que vivia em Londres. Há evidência então de que, além dos profissionais que faziam painéis, haviam profissionais com qualificações de especialistas, executando etapas específicas na fatura dos materiais como uma ocupação separada, embora seja necessário levar em consideração que a aplicação do Primuersel ou da base possa ser de autoria do próprio artista. 302 “… a primuersel é muito fina” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 19). 303 Alguns pintores não gostam que o tecido do suporte ou da base absorva todo o veículo da tinta óleo, portanto, aplicar uma demão de tinta óleo ou uma cola, por cima do tecido ou da base, cria uma camada de isolamento que

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(usualmente, como pode ser observado a olho nu, amarelado ou como em Rubens304, acinzentado)” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 19).

Existe uma fundamental diferença entre pintar numa base branca e numa base colorida. Enquanto numa base branca todos os valores305 [escuros] tonais devem ser aplicados deliberadamente, na base colorida a própria cor funciona como um meio-tom. Abre-se a possibilidade de selecionar a posição e a intensidade das luzes com grande precisão. Com a base branca toda parte da base insuficientemente coberta funciona como luz (VAN DE WETERING, 1997, p. 22).

O uso de um primuersel colorido continuou a ser usado por Rembrandt em seu período tardio, fazendo uso de alguma cor que funcionasse como um meio-tom inicial. Esse primuersel variava suas cores entre cinza306, cinza acastanhado307 e algumas vezes, ocre acastanhado308, sendo a única diferença o fato de que as cores do período tardio eram geralmente mais escuras do que comparados aos do período inicial (VAN DE WETERING, 1997, p. 203). A pesquisa de Noble identifica como as cores de primuersel mais usadas por Rembrandt em seu período tardio a mistura básica de branco de chumbo e a sombra, sobretudo entre1650 e 1660 (NOBLE et al., 2010, p. 6). Inúmeras análises de diferentes fontes, que dissecaram obras do período tardio, foram organizadas para definir qual a composição exata das camadas de base e primuersel, editando numa tabela as informações pertinentes as pinturas estudadas in loco. No entanto, encontrou- se algumas complicações. Em primeiro lugar, Van de Wetering alerta que o limiar entre a base e o primuersel pode ser confundido durante o colhimento de matéria para análise, portanto as análises não são absolutamente confiáveis. Em segundo lugar, foi observado durante a organização deste estudo que aparentemente, em algumas análises das obras observadas in loco, na tabela a

impede que a o veículo da tinta seja absorvido pelo suporte, pelos menos em parte, tornando o suporte menos absorvente. 304 Peter Paul Rubens (Siegen, 1577 – Antuérpia, 1640) foi um pintor flamengo do estilo barroco, proponente de um estilo extravagante que enfatizava movimento, cor e sensualidade. Ele é conhecido por suas obras contrarreformistas, retratos e pinturas históricas de assuntos mitológicos e alegóricos. Provavelmente o pintor mais bem sucedido de seu tempo. 305 Faz uso do termo “tonal shades”, significando que trata-se especificamente de valores escuros. 306 Provavelmente Van de Wetering refere-se a um cinza frio, sem adição de terras vermelhas, somente preto e branco. 307 Provavelmente uma mistura de branco, preto e alguma terra marrom, que confere a cor castanha ao cinza. 308 Provavelmente um cinza quente amarelado ou bege acinzentado.

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seguir, há uma falta de clareza quanto ao uso dos termos base e primuersel nessas análises. Se o primuersel define-se como uma fina camada de tinta para colorir a base, que são geralmente duplas, a anatomia das análises deveria sempre apresentar duas camadas iniciais de base e uma terceira camada fina de primuersel. A problemática se dá ao passo que algumas análises não indicam qual camada é a base, simplesmente mostram uma ordem de camadas e sua composição, sem definir o que é o que. Outras, mostram uma camada base enquanto outras definem duas camadas base. Os textos definem que as bases usadas no período são duplas e portanto, a falta de indicação dá margem para que se interprete de maneiras diferentes os resultados apresentados nessas análises. Para tornar o problema ainda pior, a grande maioria das análises não faz uso do termo primuersel, portanto, novamente é preciso interpretar de qual camada se trata, pela cor, espessura, composição e ordem. Portanto, é possível que algum resultado não seja absolutamente correto, trocando a ordem das camadas ou faltando alguma etapa, possivelmente trocando a base pelo primuersel ou primuersel com stelsel (ou doodverf). De qualquer forma, isso acontece somente com algumas análises. É possível notar que em grande parte dessas obras há um padrão na ordem das camadas e na sua composição.

Base e Primuersel das Obras Analisadas In Loco

Obra Base 1 Base 2 Primuersel ou Stelsel Titus como São Giz e sombra Camada cinza: branco de Vários* (Vermelho orgânico, branco Francisco (1660) chumbo, giz e sombra de chumbo e preto de carbono) (Sombra e vermelho ocre) Autorretrato como Giz e ocres amarelos e Giz e ocres amarelos e Vários* (Branco de Chumbo, Apóstolo Paulo (1661) vermelhos vermelhos. vermelho orgânico e preto de carbono) Os Síndicos (1662) Castanho: branco de Branco de chumbo, giz, ocre Vários*(Vermelho ocre, vermelho chumbo, giz e sombra. marrom e sombra orgânico, preto de carbono) Casal como Isaac e Várias* (Castanho: Várias* (Castanho: branco Vários* (Vermilion, pouco branco de Rebecca (1665) branco de chumbo, ocre, de chumbo, ocre, pouco chumbo e preto) pouco preto) preto) Homero (1663) Giz, ocres amarelo e Branco de chumbo, giz, Sombra e branco de chumbo? vermelho ocres amarelos e vermelhos, sombra (esmalte) Saul e David (1652) Castanho escuro: Branco Castanho claro: Mais branco Vários* (Branco de chumbo, sombra, de chumbo, sombra e de chumbo, sombra e esmalte e vários outros pigmentos esmalte esmalte (pinceliere) Dois Homens Negros Branco de chumbo, Castanho: Branco de ? (1661) sombra, giz, ocres chumbo, sombra, giz, ocre vermelhos e amarelos vermelho Retrato de um Idoso Ocres marrons e Castanho: Giz, sombra, ? (1667) vermelhos, giz, sombra, branco de chumbo, ocre pouco de branco de marrom e pouco ocre chumbo e preto vermelho e pouco preto Autorretrato (1669) Cinza-acastanhado: Preto-acastanhado: preto de Vários* (Marrom) (Preto de osso terra Branco de chumbo, osso terra de Colônia, pouco de Colônia, pouco de ocre amarelo) sombra, preto ocres de ocre amarelo vermelhos e amarelos Titus numa Mesa (1655) Castanho: branco de Castanho “mais escuro” ? chumbo, sombra, pouco ocre amarelo e vermelho, pouco preto

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* Análises mostram diferentes tipos de cores nas camadas que vem depois da segunda camada de base em diferentes amostras da mesma pintura, podendo revelar que não há um primuersel mas vários (primuersel local) Fonte: (Nossa, 2019).

Além da tabela com as análises físico-químicas das obras analisadas in loco, a tabela faz complemento ao estudo, apresentando as análises de base e primuersel das obras tardias da National Gallery de Londres, organizada por Bomford (BOMFORD et al., 2006, p. 224). Ela dispõe a ordem e o conteúdo das bases e do primuersel. Diferente da tabela anterior, as informações possuíam maior organização e definição dos termos base e primuersel, sendo mais segura quanto a assertividade das informações.

Base e Primuersel das Obras de Período Tardio na National Gallery de Londres Obra Base Primuersel Woman Bathing in a Stream (1654) Base única: Giz Branco de chumbo, terra amarela e marrom, sombra Retrato de Hendrickje Stoeffels (1654) Base única: Quartzo, ocre - marrom, branco de chumbo Um Monge Franciscano (1655) Base dupla: Terra laranja- Branco “sujo”: branco de chumbo e avermelhada esmalte Homem Barbado com Chapéu (1657) Base dupla: Terra laranja- Amarelo acastanhado: branco de avermelhada chumbo, ocre marrom e sombra Idoso como São Paulo (1659) Base dupla: branco de Cinza acastanhado: branco de chumbo, sombra, preto chumbo, preto e sombra Retrato de Jacob Trip (1661) Base dupla: Terra laranja- Cinza oliva: branco de chumbo, giz, avermelhada amarelo ocre, sombra, preto Retrato de Margaretha de Geer (1661) Base dupla: Terra laranja- Cinza oliva: branco de chumbo, giz, avermelhada amarelo ocre, sombra, preto Retrato de Busto de Margaretha de Geer (1661) Base dupla: giz Marrom amarelado claro: branco de chumbo, giz, ocre amarelo e vermelho, preto Retrato Equestre de Frederik Rihel (1663) Base única: Quartzo e - ocre marrom Autorretrato com 63 anos (1669) Base única: Quartzo e - ocre marrom Jovem e Garota Jogando Cartas (circa 1640-50) Base única: Quartzo e - ocre marrom, alumina (giz) e branco de chumbo Idoso numa Cadeira (circa 1650) Base dupla: Terra laranja- Oliva acastanhado: branco de avermelhada chumbo, amarelo ocre, preto Homem Sentado com Bengala (circa 1550-60) Base única: Ocres - marrons e amarelos, quartzo, branco de chumbo e esmalte Estudo de Velho com Chapéu (circa 1550-60) Base única: Ocre marrom - e alumina (giz) Fonte: (BOMFORD, 2006).

A longa tabela abaixo foi organizada por Van de Wetering para o volume IV do A Corpus of Rembrandt Paintings (VAN DE WETERING, 2005). Traduzida para o português e editada para este estudo para apresentar somente as bases do período tardio após 1650. A tabela original é clara em definir as cores encontradas na primeira e na segunda camada da bases.

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Aparentemente, Van de Wetering considera as segundas camadas de bases como o primuersel, inclusive dedicando uma coluna com uma descrição da cor final da segunda camada, além de sua composição pigmentária. É importante observar que, na tabela abaixo, as vezes os pigmentos terrosos chamados de sombras são chamados de ocres marrons. Uma grande quantidade de resultados contém “ocre marrom”, levando a questionar a possibilidade desses pigmentos serem na verdade uma sombra.

Base e Primuersel das Obras de Período Tardio em Corpus IV Obra Base Base 2 (Primuersel) Amarelado: branco de chumbo, giz Retrato de um Guerreiro (Cambridge, 1650) Giz ocre (amarelo?) Amarelado: branco de chumbo, giz, Rabino (Dresden, 1654) Giz pouco de ocre (amarelo?) Marrom quente: branco de chumbo, Mulher Banhando-se (Calisto) (Londres, 1654) Giz terra marrom e amarela, sombra O Boi Abatido (Paris, 1654) Giz Marrom Claro Amarelado: branco de chumbo, Coppenol (New York,1658) Giz pouco ocre (amarelo?) e sombra Branco de chumbo, óxido Idoso (Washington, 1660) Cinza (granulado) de ferro Branco de chumbo, preto, Busto de Idoso com Chapéu (Milwaukee, 1661) pouco ocre marrom e Cinza vermelho Autorretrato (Lisboa, ?) Branco de chumbo, preto Marrom Ocre marrom e amarelo, Homem Sentado (London, 1648-50) pouca terra vermelha, Cor de terra quartzo, sombra Cinza escuro: Branco de chumbo, Base dupla: vermelho preto de osso, pouco de sombra, Autorretrato (Washington, 1650) ocre, pouco quartzo, giz muito pouco ocre marrom e vermelho Vermelho ocre, sombra Cinza escuro acastanhado: branco Homem com Cabelo Castanho Encaracolado giz, pouco branco de de chumbo, amarelo ocre, sombra, (The Hague, 1650) chumbo pouco vermelho ocre e preto Marrom acinzentado: branco de Vermelho ocre, giz, pouca Figura Oriental (Coleção par, 1650) chumbo, giz, preto, pouco ocre e sombra, muito pouco preto sombra Quartzo, kaolinite, mica, Idoso com Chapéu Vermelho (Baltimore, 1650) vermelho ocre, pouco de Amarelo-acastanhado giz Vermelho (hematita), Sacrifício de Mannah (Dresden, 1650) pouco de silicato de ferro, Branco de chumbo, giz, preto esmalte e calcite Branco de chumbo, Descida da Cruz (Washington, 1650-52) sombra, pouco de amarelo Cinza ocre Quartzo, minerais de argila, pouco de sombra, O Centurião Cornelius (Wallace Coll, 1650) Marrom vermelho ocre, pouco de giz Quartzo, minerais de argila, ocre marrom, Homem em Armadura (New York, 1650) Cinza acastanhado pouco de ocre vermelho, giz Marrom: branco de chumbo, giz, Kitchenmaid (Stockholm, 1651) Terra vermelha, sombra preto e ocre marrom Ocre marrom, sombra, Garota com Vassoura (Washington, 1651) quartzo, preto de osso, Marrom branco de chumbo, giz Cristo surgindo a Maria Madalena Quartzo Marrom (Braunschweig, 1651) Vermelho ocre, pouco de Marrom acinzentado: branco de Autorretrato (Viena, 1652) sombra chumbo, sombra, pouco preto Marrom: ocre marrom ou sombra, Idoso numa Cadeira (Londres, 1652) Terra amarelo-alaranjada preto, giz, pouco branco de chumbo

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Terra vermelha, pouco Cinza acastanhado: branco de Nicolas Bruyning (Kassel, 1652) ocre marrom chumbo, sombra, preto Ocre claro: branco de chumbo, Aristóteles (New York, 1653) Terra vermelha pouco preto, preto de chumbo, ocre marrom e amarelo, sombra Cinza: branco de chumbo, preto, Estandarte (New York, 1654) Terra vermelha pouco ocre marrom Quartzo, pouco ocre Jovem em Vestido (Sybil) (New York, 1654) marrom, branco de Marrom amarelado claro chumbo e calcita (giz?) Quartzo, pouco de ocre Homem em Armadura (Glasgow, 1654-55) marrom, branco de Marrom acinzentado chumbo e calcita (giz?) Amarelado: branco de chumbo, Jovem com Pérolas (New York, 1654) Terra vermelha pouco ocre marrom Autorretrato com Caderno (Dresden, 1655) Giz Branco amarelado Branco de chumbo, sombra, pouco de terra *Titus (Rotterdam, 1655) Marrom vermelha e amarela, quartzo Cinza: branco de chumbo, ocre Titus (New York, 1655) Terra vermelha e giz marrom, preto de osso Bolo armênio, pouco Homem com Elmo Dourado (Berlin, 1655) quartzo e branco de Cinza: branco de chumbo, preto chumbo Quartzo, pouco ocre Idoso com chapéu Vermelho (Berlin, 1655) Amarelo acastanhado (amarelo?) Cinza: branco de chumbo, giz, Retrato de um Homem (New York, 1655) Terra vermelha pouco preto, amarelo ocre Marrom: branco de chumbo, ocre Retrato de um Homem (Stockholm, 1655) Terra vermelha, sombra marrom, preto Terra vermelha, sombra, Cinza: branco de chumbo, sombra, Homem Barbado (Berlin, 1655) silicatos, giz preto de osso Branco de chumbo, esmalte Um Monge Franciscano (Londres, 1655) Terra vermelho-alaranjada (transparente) Marrom claro: branco de chumbo, Retrato de Mulher (Stockholm, 1655) Ocre vermelho e sombra ocre marrom, preto de carbono Quartzo, minerais de José acusado pela Esposa de Potiphar argila, óxidos de ferro, Marrom amarelado (Washington, 1655) pouco giz José acusado pela Esposa de Potiphar (Berlin, Quartzo, pouco de ocre Amarelo acastanhado 1655) (amarelo?) *David tocando Harpa para Saul (The Hague, Branco de chumbo, Marrom acinzentado: branco de 1655-60-65) sombra, pouco de esmalte chumbo e sombra Quartzo, ocre marrom, Hendrickje Stoffels (Londres, 1656) pouco de branco de Marrom escuro chumbo Quartzo, minerais de Mulher segurando Flor (Washington, 1656) argila, pouco ocre Amarelado marrom, giz Quartzo, minerais de argila, ocre marrom, *Deyman (Amsterdam Museum, 1656) Marrom amarelado pouco ocre vermelho e amarelo, preto e pouco giz A Benção de Jacó (Kassel, 1656) Ocre vermelho, pouco giz Cinza: branco de chumbo e preto Giz, pouco branco de Titus (Wallace Coll, 1657) Marrom (veículo descolorido) chumbo e sombra Amarelo acastanhado: branco de Homem Barbado com Chapéu (Londres, 1657) Terra laranja-avermelhada chumbo, ocre marrom e sombra Quartzo, minérios de O Apóstolo Paulo (Washington, 1657) argila, pouco amarelo Marrom (translúcido) ocre, giz Quartzo, pouco de ocre Autorretrato (Frick, 165) Branco amarelado (amarelo?) Cinza: branco de chumbo, preto Retrato de Garoto Jovem (Paris, 1658) Terra vermelha pouca terra (?) Ocre vermelho, pouco de Cinza: branco de chumbo, preto, Jovem com Gargantilha (New York, 1658) sombra (camada dupla, pouca sombra e amarelo ocre fina) Quartzo, pouco amarelo O Leiloeiro (New York, 1658) Marrom amarelado claro ocre, preto, pouco giz Quartzo, minérios de Cavalheiro com Chapéu Alto e Luvas argila, pouco ocre Marrom amarelado (Washington, 1658-60) marrom, muito pouco

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preto, giz Terra vermelha, pouco Cinza claro: branco de chumbo, Autorretrato (Washington, 1659) preto (duas acamadas pouca sombra e preto de osso ricas em silicato) Branco de chumbo, Marrom acinzentado: branco de Idoso como São Paulo (Londres, 1659) sombra e preto chumbo, preto, pouca sombra Moisés com as Tabuas (Berlin, 1659) Giz, muito pouca sombra Amarelado Quartzo, minérios de *Noiva Judia (Amsterdam, 1665) argila, ocre marrom, Marrom pouco de giz Quartzo, minérios de Retrato de Família (Braunschweig, 1665) argila pouco ocre Cinza acastanhado (amarelo?) Quartzo, minérios de Evangelista Escrevendo (Rotterdam, 1665) argila, pouco ocre Marrom amarelado claro marrom, giz Terra marrom- Marrom: Branco de chumbo, preto Retrato de um Jovem (Kansas City, 1666) avermelhada, giz, pouco de osso, ocre marrom, pouco de de branco de chumbo vermelho, pouco giz Branco de chumbo, giz, Retrato de um Homem de Cabelos Brancos Cinza: Idêntico a 1º camada, sombra, terra, pouco de (Melbourne, 1667) somente mais escuro quartzo Homem de Chapéu com Pérolas (Dresden, Quartzo, minérios de Marrom amarelado 1667) argila, giz Ocre vermelho e marrom, Marrom amarelado: Ocre marrom, *Retrato de um Idoso (The Hague, 1669) giz, pouco de branco de pouco vermelho, branco de chumbo chumbo, giz, pouco de preto Autorretrato (Londres, 1669) Quartzo, ocre marrom Marrom Branco de chumbo, *Autorretrato (The Hague, 1669) sombra, vermelho ocre, Cinza acastanhado preto Rembrandt reclinado em Janela (Cincinatti, Branco de chumbo, pouca Cinza claro 1693) sombra e giz * Obra observada in loco. Fonte:(VAN DE WETERING, 2005).

A tabela abaixo contém uma descrição das cores encontradas nas bases e no primuersel de todas as pinturas do período tardio analisadas in loco para este estudo:

Base e Primuersel das Obras Analisadas Base Primuersel Homem Sorrindo (Tronie) * Branco esverdeado (oxidação Cinza-claro: preto, sombra (?), do cobre): giz e branco de branco de chumbo, vermelho chumbo ocre (?), esmalte (?). Concórdia do Estado * Castanho alaranjado: ocre Castanho: giz e marrom escuro Intenso (?): branco de chumbo, um pouco de ocre ou ou Castanho amarelado: branco, pigmento laranja fino, amarelo Castanho escuro, e vermelho ocre ocre.

Saul e David Cinza acastanhado: branco de chumbo e sombra, esmalte, marrom orgânico, preto de Cinza acastanhado (2 camadas) osso, terra amarela, laca orgânico, uma única partícula de vermilion (possivelmente mistura feita de sobras de tinta) Titus numa Mesa Castanho: branco de chumbo, sombra, um pouco de amarelo Castanho “mais escuro” ocre e vermelho, preto.

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Lição de Anatomia do Dr. Deijman Castanho: Giz e marrom escuro Ocre Intenso (?): branco de chumbo, um pouco de ocre, Castanho amarelado: castanho escuro, e vermelho Branco, pigmento laranja fino, ocre. amarelo ocre Tobit e Anna Cinza: giz e preto

Branco: giz (por cima de pintura ou já seca, reuso) Marrom-avermelhado: (laca orgânica). Cinza acastanhado: branco de Titus como São Francisco Cinza acastanhado: carbonato chumbo, giz e sombra de cálcio e sombra queimada Homem com Boina Vermelha Inconclusivo Inconclusivo Autorretrato como o Apóstolo Paulo Castanho amarelado (?): Giz, Cinza acastanhado: Branco de pouco vermelho ocre, branco de chumbo, pouco giz, pouco chumbo ou Giz com ocre vermelho ocre e preto de (amarelo) carbono

Dois Homens Africanos Vermelho pálido: branco de Cinza acastanhado: giz, branco chumbo, giz, ocres amarelos e de chumbo, ocre vermelho, vermelhos. sombra, preto de carbono. Cinza acastanhado: Branco de Os Síndicos Castanho amarelado: Giz, chumbo, pouco giz, pouco pouco vermelho ocre, branco de vermelho ocre e preto de chumbo ou Giz com ocre carbono (amarelo)

Homero Castanho amarelado: Giz, ocre Primuersel geral: giz, ocres (amarelo) e sombra, pouco amarelo e vermelho, sombra e branco de chumbo um pouco de branco. Em outra análise: “camada fina avermelhada”. Primuersel local na figura: branco de chumbo e sombra Casal como Isaac e Rebecca Cinza acastanhado: Quartzo, minérios de argila, ocre marrom, Marrom pouco de giz Retrato de um Velho Idoso Castanho: ocre marrom e Cinza-acastanhado (Escuro): vermelho, sombra (?), giz, um vermelho ocre, branco de pouco de branco de chumbo, chumbo, giz, sombra, preto de um pouco de preto de osso. carbono. Autorretrato Amarelo acastanhado: Branco Castanho escuro: preto de de chumbo, sombra, vermelho e osso, terra de Colônia e um amarelo ocre, preto. pouco de ocre (amarelo).

ou ou

Castanho: ocre vermelho, Castanho escura: pigmentos laranja, preto e branco de preto e vermelho. chumbo. Fonte: (Nossa, 2019).

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5.2.2.2. Doodverf (Camada Morta) A relevância desse capítulo é a elucidação de que os estágios primuersel, stelsel e accenten não são independentes, mas partes que constituem a camada morta (doodverf), informação que não é totalmente clara nos textos de Bomford e Van de Wetering. No período inicial, após a execução da invenção, estabelecendo as primeiras linhas dos elementos principais, o pintor continuava com essa tinta marrom, estabelecendo o que Van de Wetering chama de etapa castanha monocromática, encontrada em alguns textos do século XVII como doodverf309 ou doodverk310 em holandês, comumente tratado pelo termo dead colour ou dead colouring em inglês. A tradução para o português seria cor morta ou ainda camada morta (VAN DE WETERING, 1997, p. 25), Segundo o autor “possivelmente o nome foi dado em conexão a falta de cor nessa etapa da pintura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 30). Esses traços acastanhados ou acinzentados não são vistos nas pinturas do período de Leiden, embora seja possível notar nessas pinturas, áreas de craquelado que provavelmente se tratam de cores terrosas por baixo das cores posteriores: isto denota o uso de um sistema de pré-pintura parecido, mas que fora sistematicamente coberto pelas cores posteriores. O craquelado pequeno e fino nessas áreas possivelmente foi causado pela presença de uma pré- pintura monocromático e terroso executado com generoso uso de óleo (VAN DE WETERING, 1997, p. 24). Segundo Van de Wetering, o estágio da camada morta (311, em holandês) não é um estágio transitório, mas um estágio provisoriamente completo de um todo (VAN DE WETERING, 1997, p. 30). Essa definição é de extrema importância, pois é um dos elementos chaves para se entender a diferença entre os procedimentos usados pelo artista em seus períodos inicial e tardio. A camada morta, no período inicial, é um estágio que alcança um momento de finalização, não se mistura a camadas posteriores. O artista sempre esperava que a mesma ficasse seca por inteiro ou pelo menos parcialmente, pois desta forma tinha certeza de que o próximo estágio não iria se misturar ao anterior. Portanto, é uma execução molhado sobre seco312. O texto a seguir de Van de Wetering também reforça a ideia de que a camada morta deve estar seca antes de que se continue com o próximo estágio:

309 Grafia encontrada na obra de Gerard de Larisse (DE LARISSE, 1817, p. 7). 310 Doodverf.: termo usado nos vídeos The Rembrandt Tutorials, produzidos pela ING e pelo Rijksmuseum. É uma versão da grafia doodverk (moderna) em holandês antigo (old dutch). 311 Stelsel.: do holandês “esquema” 312 Molhado sobre seco.: termo popular usado pelos pintores quando se espera um estágio secar para continuar com o próximo estágio, também usado para descrever uma pintura executada em camadas. Portanto, pinta-se por cima do primeiro estágio (camada) de tinta seca com um novo estágio (camada) de tinta molhada.

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Não era incomum no séc. XVII deixar uma pintura no estágio da camada morta para que fosse subsequentemente finalizada por outra pessoa. Documentos italianos sugerem que pintores possuíam um estoque de pinturas em camada morta para serem mostradas a potenciais clientes que seriam trabalhadas somente quando ordenados [...] [...] Essa prática é o motivo do grande número de pinturas em camada morta no estúdio de Pieter Lastman. É possível que Rembrandt seguisse o mesmo procedimento (VAN DE WETERING, 1997, p. 30).

De modo relativamente similar, salvas algumas variantes, Rembrandt pareceu conservar um mesmo tipo de procedimento em seu período tardio. Há alguns estágios para se concluir a camada morta, definidos a seguir. É importante observar que a definição do stelsel como parte da camada morta não é sugerida na obra de Van de Wetering, é portanto uma sugestão deste estudo. Afinal, embora a camada morta seja um estágio independente, ela é formada por tudo aquilo que se construiu anteriormente pelo stelsel.

5.2.2.2.1. Stelsel (Esquema) Von Sonnenburg313 sugeriu que Rembrandt começava suas pinturas desenhando com giz branco por cima da base (ground) ou do primuersel. A teoria é reforçada pela evidência encontrada na pintura de Aert de Gelder onde é possível ver o que parece ser um pedaço de giz branco entre os materiais de pintura do seu atelier representado em uma de suas pinturas. Compreendendo somente um indício, ela não prova o uso do material pelo artista.

313 Hubert von Sonnenburg.: Importante restaurador e historiador, nascido em Colônia, Alemanha. Estudou história de arte, arqueologia e paleontologia na Universidade de Munique. Em 1952 obteve o título de PhD. Após a titulação, estudou por quatro anos como restaurador no Bavarian State Galleries e trabalhou como assistente de restauração no Doerner Institute. Em 1974, tornou-se diretor dessa instituição e em 1991 da Bavarian State Galleries e do departamento de restauração do The Met. Faleceu em 2004. Escreveu diversos artigos científicos e o livro Rembrandt/ Not Rembrandt: In The Metropolitan Museum of Art - Aspects of Connoisseurship (1995), catálogo da célebre exposição.

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Figura 10 Aert de Gelder, Autorretrato como Zeuxis (1685, Städel Museum). Fonte: Nossa, 2018.

É sabido que esboços preliminares em giz branco durante a primeira metade do séc. XVII eram comuns, assim como é possível observar na pintura de Johannes Vermeer, Artista em seu Atelier, pintura exposta em Vienna, onde o pintor representou um esboço de pintura executado em giz branco. No entanto, hoje sabemos que Rembrandt não fazia uso desse procedimento, devido as evidências científicas encontradas em suas obras (VAN DE WETERING, 1997, p. 203). Essas evidências mostram que o desenho inicial, feito por cima do primuersel (base colorida de pintura), é de natureza esquemática314 e nunca feito com materiais secos, mas sempre diretamente com tinta. Esse desenho inicial não era detalhado, mas feito a grosso modo, delineando as formas somente dos elementos principais, usando somente linhas315 (VAN DE WETERING, 1997, p. 25). Essas linhas eram feitas com uma tinta translúcida, marrom avermelhada ou cinza acastanhada, pincelada de modo rápido, diretamente sobre o primuersel amarelado (VAN DE WETERING, 1997, p. 25). Nos casos das pinturas de seu início de carreira em que uma análise química foi possível, a tinta usada para os traços iniciais desse estágio monocromático foi “identificada como um pigmento marrom orgânico, possivelmente terra de Colônia316 [também chamada de marrom

314 Stelsel.: termo holandês traduzido como “esquema” e comumente usado nos textos do séc. XVII para descrever esse estágio da pintura (VAN DE WETERING, 1997, p. 30). 315 O procedimento é visível por exemplo, no desenho de Munich e na obra Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis (1661, Nationalmuseum). 316 Terra de Colônia (Cologne Earth).: Sinônimo, variante ou nome comum. Terra escura geralmente definida como uma terra húmica, isto é, rica em material orgânico produzidos a partir da biodegradação da matéria orgânica morta, particularmente de celulose morta. É igual ou parecido ao Marrom Van Dyck, descrito abaixo. A Terra de Colônia também é chamada de Sombra Alemã (German Umber) (EASTOUGH et al., 2005, p. 126).

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Van Dyck317 ou de terra de Cassel318] ou betume. A obra de Eastough organiza material sobre a problemática acerca da categorização desses pigmentos. Basicamente, compreendem substâncias muito similares, que serão analisadas no capítulo deste estudo que trata sobre os pigmentos usados por Rembrandt (EASTOUGH et al., 2005). Em outro exemplo, Van de Wetering cita que “durante o exame de uma de suas obras mais soltas, Concórdia do Estado, de Rotterdam, traços do que parece ser uma primeira composição foram achados. Eram linhas aplicadas de modo leve, tanto escuras quanto claras, as quais mostraram-se após análises químicas, feitas com um meio aquoso” (VAN DE WETERING, 1997, p. 27). Portanto, Van de Wetering tem a teoria de que o processo inicial de pintura de Rembrandt possui relação com seu processo de desenho feitos com pincéis e tinta aguada sobre papel319, por conta não somente da similaridade estética, mas dos indícios químicos como citado acima. O autor também cita uma passagem da obra de Hoogstraten que pode justificar, em sua opinião, de que a intenção do artista nesse estágio inicial do desenho é exatamente a mesma do que quando pinta: dar ênfase às formas gerais e não as especificidades das formas, esse desenho é no processo de pintura apenas um guia inicial ou descrição a grosso modo, portanto, não é feito através de uma execução planejada e laboriosa, mas de forma livre e solta:

Primeiro, esboçe aquilo que desejar com um varrer de maneira solta em seu papel onde um estudo solto é necessário, esse é o primeiro princípio para desenhar bem, de tamanha importância que se esse primeiro esquema aparece de maneira plena, correta e de forma inteligente, alcançará mais com isso do que com muito esforço posterior (VAN DE WETERING, 1997, p. 25).

Esses indícios levam a crer que Rembrandt não fazia uso de desenhos preliminares que eram transferidos para o suporte, mas esboçava diretamente com tinta sobre a tela ou suporte a ser usado. Segundo Van de Wetering, a obra de Lairesse320 chama essa etapa de “invenção” (VAN DE WETERING, 1997, p. 27).

317 Marrom Van Dyck (Van Dyck Brown).: Sinônimo, variante ou nome comum. Pigmento marrom orgânico. Similar ao terra de Colônia (EASTOUGH et al., 2005, p. 388). 318 Terra de Cassel (Cassel Earth).: Sinônimo, variante ou nome comum. Pigmento marrom orgânico. Mesmo pigmento do que a terra de Colônia (EASTOUGH et al., 2005, p. 93). 319 O autor usa como exemplo a obra Judas Arrependido (x). 320 O livro de 1707, Groot Schilderboek; de Lairesse.

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Van de Wetering cita que a pesquisa de Von Sonnenburg feita em 1969 não encontrou traços de desenho a carvão nas obras de Rembrandt no período de Leiden. Os traços de carvão são encontrados nas obras de muitos artistas do período, como nos painéis de Rubens e também em pelo menos uma das obras do professor de Rembrandt, Pieter Lastman. O restaurador Johannes Hell sugeriu, como regra, que Rembrandt fazia seus primeiros traços usando diretamente o pincel, não somente para desenhar as linhas principais mas também para aplicar um meio-tom em grandes áreas (VAN DE WETERING, 1997, p. 23). Entre as obras que apresentam provas científicas do uso de linhas preliminares para o desenho, há a pintura Concordia do Estado (1640), que exibiu um esboço preliminar precedendo o estágio monocromático (coloração morta), feito com tinta escura aplicada com pincel e ocasionalmente clareado com tinta clara. Ernst Van de Wetering sugere que várias outras obras possuem o mesmo tipo de procedimento. É necessário considerar a hipótese de que embora o estágio inicial da pintura possa ter sido executado sem o auxílio da transferência de um desenho, isso não quer dizer que Rembrandt não tenha realizado um estudo anterior em um outro suporte, convenientemente colocado ao lado da tela a ser pintada, para que pudesse ser observado e “seguido” como um guia. Em seu período tardio, Rembrandt também procedia para o estágio de invenção após a secagem do primuersel. Como visto anteriormente, a invenção servia para desenhar os traços principais dos elementos e para preencher com meio-tom as grandes áreas mais escuras (VAN DE WETERING, 1997, p. 23) Segundo Van De Wetering, nas obras de “1630 em diante” o pigmento usado em ambos estágios (stelsel e camada morta), é sempre um marrom com certa translucidez, apresentando certa generosidade de veículo oleoso. O maior ingrediente da tinta é um pigmento orgânico marrom, possivelmente betume ou terra de colônia. A análise de outros cross-sections mostrou que, ocasionalmente o artista também fazia uso nesse estágio acastanhado de uma mistura de cores feitas com vários pigmentos: amarelos, vermelhos, terras e às vezes branco de chumbo. Como parece improvável que qualquer pintor faria uma mistura tão complexa ao invés de usar uma tinta acastanhada como a terra de colônia, Van de Wetering sugere que essa mistura é provavelmente tinta aproveitada da sobra ou descarte de pinturas anteriores, literalmente a tinta que se acumula no jarro dos pincéis, pois “não é um hábito peculiar de Rembrandt, mas parte de uma tradição dos ateliês” (VAN DE WETERING, 1997, p. 24).

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Van de Wetering cita o texto do pintor Pierre Le Brun321, publicação conhecida como Manuscrito de Bruxelas322, com a passagem que exemplifica o recorrente uso da prática nesse período: “O pinceliere é um vaso no qual os pincéis são limpos com óleo, e uma mistura [de óleo e tintas] é feita em cinza, útil para certos propósitos, como para as primeiras passagens, ou para a imprimatura da tela. O pinceliere é um vaso contendo óleo, no qual os pincéis são colocados de modo que não sequem”. Para Van de Wetering, é possível que às vezes, o pintor misturasse os restos de tinta com o pigmento orgânico que geralmente predominava nas misturas usadas para as primeiras passagens (VAN DE WETERING, 1997, p. 25). Van de Wetering cita que o procedimento é visível em inúmeras obras do período tardio. Um dos exemplos é Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis (1661, Nationalmuseum) (VAN DE WETERING, 1997, p. 25). O mesmo tipo de pincelada e procedimento é observado no torso e nos braços da figura de Retrato de Menino323 (1655/60 – Pasadena, EUA), no braço de Jacó e no contorno do lençol de Jacó Abençoando os Filhos de José (1656 – Cassel, Alemanha) (VAN DE WETERING, 1997, p. 203). Finalmente, os mesmos tipos de linhas de invenção são vistas na célebre obra Autorretrato com Dois Círculos (1665 – Londres, Inglaterra) (VAN DE WETERING, 1997, p. 205). Após a completude do esquema (stelsel), o pintor poderia esperar que essa camada secasse ou proceder diretamente (molhado sobre molhado) para o próximo estágio, descrito e analisado a seguir.

321 Pierre Le Brun.: Van de Wetering usa o nome separado (Le Brun), enquanto Merrifield usa junto (Lebrun). Lebrun é o escritor do Manuscrito de Bruxelas (“Recueuil des Essaies des Merveilles de la Peinture” - 1635), que trata sobre pintura, escultura, arquitetura e perspectiva. As únicas informações sobre Le Brun é que fora contemporâneo de Rubens e que vivia em Paris quando escreveu o manuscrito. Não deve ser confundido com outros pintores ou artistas de sobrenome LeBrun ou Le Brun. Nenhuma outra obra, além desse manuscrito, desse autor foi identificada (MERRIFIELD, 2010, p. 759). 322 Manuscrito de Bruxelas (Brussels Manuscript).: Manuscrito belga, escrito em 1635 por Pierre Le Brun. 323 Segundo Van de Wetering: “Esse documento único [a pintura Retrato de Menino] da técnica tardia de Rembrandt no Norton Simon Museum em Pasadena (Ca), intrigou os estudantes de Rembrandt até que alguns não podiam acreditar que Rembrandt pintou-o. A incerteza de atribuição preveniu que a pintura fosse usada como fonte de entendimento de seu método de trabalho tardio. Não vejo motivo para rejeitar essa pintura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 203).

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5.2.2.2.2. Accenten O próximo estágio, chamado de accenten, feito após o primuersel e o stelsel, conclui o estágio da camada morta. Ele é feito de meios-tons e luzes, geralmente de modo mais opaco. Essa etapa corrige e suprime algumas áreas do stelsel e do primuersel, estabelecendo uma base de meios-tons e luzes. É importante que o leitor compreenda no entanto, que o stelsel e o primuersel não são cobertos pelo estágio em questão e portanto não desaparecem, mas servem como fundação para que a camada morta seja concluída, grande parte daquilo que se constrói pelo primuersel e pelo stelsel podem permanecem visíveis após a finalização do accenten e dos estágios subsequentes. Ao analisar o modo como Rembrandt executa os fundos de suas pinturas no período tardio, Van de Wetering trata principalmente de duas pinturas, Moisés com as Tábuas dos Mandamentos em Berlin (1659) e O Cavaleiro Polonês (Frick Collection, 1655). Embora seja necessário considerar que ambas pinturas possam ter sido finalizadas por outros artistas, Van de Wetering considera que as mesmas são esboços inacabados e não estão em conformidade com as intenções de uma obra final (VAN DE WETERING, 1997, p. 209). Essas obras são peças fundamentais para o estudo d técnica tardia de Rembrandt, pois aparentemente mostram a camada morta completa, sem outros estágios por cima. Em ambas pinturas citadas por Van de Wetering é possível observar a camada morta completa: primuersel terroso quente, stelsel feito de marrons quentes transparentes, provavelmente contendo pigmentos orgânicos como a terra de Cassel ou Colônia (VAN DE WETERING, 1997, p. 209) e o accenten, nos fundos e nas figuras.

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Figura 11 Detalhe do fundo "inacabado" do O Cavaleiro Polonês (Frick Collection, 1655). Fonte: Nossa, 2018.

Figura 12 Detalhe do fundo “inacabado” de Moisés Destruindo as Tábuas (Gemäldegalerie, 1659). Fonte: Nossa, 2018.

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Van de Wetering faz uso, mais de uma vez, da frase desenvolvimento extra das luzes324, para descrever o accenten. É uma explicação sintética do que aparentemente compreende uma extensão do pensamento desenvolvido no stelsel e que finalmente se conclui no accenten. O termo foi retirado de tratados holandeses325 e literalmente descrevem um modo de acentuar ou exagerar os contrastes, através da blocagem de luzes finais, na fase da pré-pintura (camada morta). Segundo Van de Wetering, o accenten é característico do período tardio: “[...] o uso do aumento ou maior desenvolvimento das luzes mais altas tornar-se-ia o método de camada morta de Rembrandt” (VAN DE WETERING, 1997, p. 32). O autor descreve como um exemplo de uso do accenten no estágio da pré-pintura da obra Mulher tomando Banho (1650), da National Gallery de Londres,:

[...] na obra Mulher tomando Banho (1650) da National Gallery de Londres, a mão [a direita] esboçada em tons rebaixados [...] serve- nos de exemplo. Partes do vestido branco, onde a tinta mostra muito mais impasto do que a mão, também parece inacabado. Parece que tal luz alta foi provisoriamente colocado durante um estado relativamente inicial do trabalho, procurando as propriedades de refração de luz da tinta causada pelo impasto volumoso, E as vezes, esses aumentos eram deixados dessa forma (VAN DE WETERING, 1997, p. 220).

Figura 13 Mulher tomando Banho (1650, da National Gallery de Londres).

324 Van de Wetering usa o termo inglês “heightenings”. O texto é contraditório. Apesar de Van de Wetering citar que o accenten era usado como um desenvolvimento extra das luzes na fase da pré-pintura, em outra passagem cita que:“[...] é típico da abordagem tardia de Rembrandt esperar pela aplicação das luzes mais altas até o final” (VAN DE WETERING, 1997, p. 211). 325 Accenten.: Do Holandês, também visto nos vídeos de 2019 produzidos pelo grupo ING e pelo Rijksmuseum.

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É importante lembrar que, como visto anteriormente, a aplicação das luzes mais altas no período inicial do artista acontecia somente no último estágio, chamado por Van de Wetering de build up. Em outro exemplo, o autor descreve uma segunda maneira de aplicar o accenten no período tardio:

[...] Tinta mais magra era aplicada à pré-pintura na qual mais uma vez, executada em impasto, desenvolvimentos adicionais das luzes eram adicionados, os quais eventualmente eram cobertos parcialmente ou totalmente com tinta magra. O refinamento de cor tão característico, o trabalho de luz e sombra e a definição da forma eram ‘desenvolvidos’ todos dessa maneira (VAN DE WETERING, 1997, p. 220).

A descrição mostra uma aplicação de accenten que ocorre no estágio de camada morta mas que é alternado entre aplicações de tinta fina (velaturas) e impastos (accenten), mostrando a complexidade da técnica do artista, sobretudo nos tons de pele. Portanto, parece correto afirmar que a técnica de accenten era usada de modos variados durante o período tardio e o próprio Van de Wetering admite que “[...] nos retratos e autorretratos tardios, as faces comumente possuem uma estrutura de camadas mais complicada” (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). É por isso que os tons de pele serão analisados adiante, separadamente. Portanto, fica claro que o artista não trabalhava de uma única maneira. Van de Wetering cita ainda outra maneira de aplicação das luzes do período tardio, que mostra um procedimento onde se “[...] espera até o final para a aplicação das luzes mais altas”, dessa vez, Rembrandt parece, no período tardio, voltar atrás e usar um procedimento de accenten parecido aquele usado em seu período inicial.

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Figura 14 Retrato de Menino (1655, Norton Simon Museum). Fonte: Nossa, 2018.

Um dos exemplos dado pelo autor é Retrato de Menino (1655, Norton Simon Museum), onde é possível ver “[...] o momento anterior a completude das luzes mais altas finais”. O mesmo processo, onde segundo o autor é possível ver o “estágio anterior ao lay in das luzes mais altas” pode ser observado na obra Autorretrato (1669, National Gallery de Londres) (VAN DE WETERING, 1997, p. 211).

Figura 15 Autorretrato (1669, National Gallery de Londres). Fonte: Nossa, 2018.

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5.2.2.2.3. Cor Local Embora Rembrandt tivesse continuado a usar a camada morta com tons terrosos em seu período tardio, há uma mudança processual nesse período. Segundo Van de Wetering, em algumas pinturas tardias, é possível encontrar em alguns elementos, como por exemplo na área dos rostos, uma cor uniforme que serve de base com valor ou cor diferente daquela usada no primuersel ou na camada morta. É possível detectar essa “cor” ou “camada” através de algumas áreas de meio-tom ou sombras das figuras. (VAN DE WETERING, 1997, p. 211). Van de Wetering também explica que o termo dead colouring também fora empregado para pré-pinturas que foram executadas não apenas em um tom monocromático, mas também em cores, embora a passagem do texto histórico pareça descrever um procedimento de colorização posterior, usando velaturas, de um estágio monocromático. No manuscrito inglês Commonplace-book326 de 1640, uma passagem em holandês descreve um método chamado de dead-colouring no qual cada área é pintada individualmente com a sua cor “final” aproximada. A passagem é a seguinte: “Dead-colouring é chamada a maniera lavata, isso é, a maneira lavada; por que se preenche uma área delineada com uma única cor”. Uma anotação nas bordas das páginas do manuscrito, com o título dead-colouring, cita que: “[...] deve se temperar bem a tinta para esse procedimento, dando ao esquema [local de aplicação] – quando suficientemente seco – uma cor aplicada levemente”. Van de Wetering segue explicando: “descreve um método de dead colouring no qual, para cada área individual, consegue-se aproximadamente a cor final [aplicando] com uma mistura escura uniforme327” (VAN DE WETERING, 1997, p. 30) Essa passagem de Van de Wetering deixa algumas dúvidas quanto a interpretação desse procedimento: trata-se do preenchimento opaco de uma área de cor, ou trata-se do preenchimento transparente de uma área de cor. A diferença do uso da tintas transparentes ou opacas para isso gera uma diferença enorme. O texto do manuscrito parece descrever de modo mais efusivo o uso de tintas transparentes como meio de se “tingir” uma área. Trata-se, segundo a interpretação sugerida neste estudo, da descrição de um modo de conferir cor a uma pré-pintura fazendo uso de camadas transparentes, assim aproveitando a pintura monocromática ou pré-pintura que transparece por baixo da veladura. Isso é particularmente notável quando o autor do manuscrito usa os termos “uma cor aplicada levemente” e ainda pela instrução de “temperar bem”, isto é, colocar quantidade de óleo adequada a tinta para ter

326 Aparentemente, o manuscrito inglês tem alguma relação com Anthony Van Dyck. 327 Van de Wetering faz uso do termo “flat tint” (VAN DE WETERING, 1997, p. 30).

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certeza de que não fique opaca demasiadamente. Além disso, o nome do procedimento, “maneira lavada” já descreve perfeita alusão acerca do uso das transparências. Portanto, quando Van de Wetering afirma que “nas pinturas do começo de carreira de Rembrandt, as vezes (somente de maneira local) há áreas preenchidas com uma cor uniforme parecida com a cor final, aplicado por cima da pré-pintura”, levaremos em consideração de que se trata do uso de um procedimento de colorização local de pré-pinturas monocromáticos, onde as cores estão transparentes, ou pelo menos, semitransparentes (VAN DE WETERING, 1997, p. 30). Seria possível chamar esse procedimento de colorização de pré-pintura de “aplicação de cor local”, pois ela preenche uma área específica com uma cor diferente daquela que vemos na imprimtura original do trabalho, um outro nome que pode descrever ainda melhor esse procedimento seria a “aplicação de cor primuersel local” ou “pré-pintura local”. Em todo o caso, esse procedimento será visto com mais detalhes no capítulo sobre “cor local”. É natural que o observador as vezes confunda essa área de cor local com a cor do primuersel, como relata Van de Wetering: “[...] naturalmente, o primeiro impulso é imaginar que esse tom uniforme é uma exposição da cor da base [primuersel], mas pode também ser uma camada separada [aplicada somente naquela área específica]”. Esse é exatamente o caso do Autorretrato (1652, Viena), que mostra uma camada cinza esverdeada exposta no soquete dos olhos e nas sombras do bigode. Embora a área possa parecer com a cor do primuersel, ela é na verdade uma área de cor local (VAN DE WETERING, 1997, p. 211).

Figura 16 Autorretrato (1652, Viena). Fonte: Nossa, 2018.

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Embora a cor não seja muito diferente da base (primuersel), que pode ser observada nas bordas da pintura, análises microscópicas mostraram que a distribuição de partículas de pigmento branco e preto é diferente da base (VAN DE WETERING, 1997, p. 211), portanto, não se trata da mesma mistura, consequentemente, não se trata da mesma cor.

Figura 17 Retrato de Jacob Trip (1661, National Gallery de Londres). Fonte: Nossa, 2018.

Uma camada feita de modo similar foi encontrada por Bomford por baixo das luzes do rosto da figura, na obra Retrato de Jacob Trip (1661, National Gallery de Londres). Algo similar, também foi achado na pintura Lição de Anatomia do Dr. Deijman (1656, Amsterdam Museum).

Figura 18 Detalhe da Lição de Anatomia do Dr. Deijman (1656, Amsterdam Museum). Fonte: Nossa, 2018.

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Portanto, Rembrandt poderia escolher uma cor e valor específicos pra o primuersel da pintura, que tonificaria a composição como um todo, mas poderia aplicar uma base uniforme com cor e valor diferentes para outros elementos da pintura. Após receber essa camada, as luzes e sombras poderiam ser trabalhadas de modo molhado sobre molhado. Van de Wetering não deixa claro se essa cor local é aplicada somente nas áreas de luzes deixadas pelo pela camada morta, ou se por cima das sombras, mas parece correto afirmar que, cobrir com cor local as sombras das figuras significaria perder o mapeamento e a construção da luz e sombra estabelecidos nesses primeiros estágios. Portanto, presume-se que a cor local é aplicada nas áreas de meio-tom e luzes, tomando cuidado para que ela não cubra as sombras cuidadosamente estabelecidas anteriormente, embora isso não tenha sido confirmado.

Figura 19 A Lição de Anatomia do Prof. Deijman (1656, Amsterdam Museum) Fonte: Nossa, 2018.

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Martin Bijl, restaurador chefe do Rijskmuseum em Amsterdam, encontrou o mesmo procedimento na pintura A Lição de Anatomia do Prof. Deijman (1656, Amsterdam Museum). Ele teoriza:

[...] camadas uniformes foram achadas por debaixo da tinta preta das roupas e outros elementos da imagem [...] [...] na figura da esquerda, traços de uma camada vermelho e amarela foi achado. Por baixo da roupa negra que se pendura do braço [da figura da esquerda], Bijl notou a cor marrom por cima da base cinza, por debaixo das roupas da figura da qual uma das mãos ainda é visível encontrou cinza, e por baixo do tecido branco do cadáver há uma camada escura. A explicação mais óbvia para esse fenômeno técnico é que estamos lidando aqui com uma imprimatura local, de modo que um fundo colorido local foi usado como fundo na preparação de certas partes da pintura. Como essa forma de imprimatura local relaciona-se com os diferentes estágios do desenvolvimento da pintura, ainda não é claro (VAN DE WETERING, 1997, p. 214).

Van de Wetering acredita que “as camadas uniformes por baixo das faces das pinturas tardias de Rembrandt podem ter uma função similar” a técnica italiana chamada de verdaccio (VAN DE WETERING, 1997, p. 215):

[...] um revival da técnica verdaccio [...] [...]empregada pelos italianos e ainda usada por Michelangelo em suas pinturas – a pré- pintura uniforme em verde no qual as cores escuras328 de tinta são aplicadas [...] [...] é normalmente um cinza frio, as vezes um cinza esverdeado, que funciona como um contraponto frio para os tons de pele quentes e contribuem para a frieza dos tons escuros aplicados transparentes do tom de pele. A investigação desse aspecto das pinturas de Rembrandt está somente começando. É necessário um projeto separado para continuar nesse caminho e descobrir como a imprimatura pode influir nas ideias de Rembrandt (VAN DE WETERING, 1997, p. 215).

De qualquer forma, parece correto dizer que a cor local funciona como um primuersel local para colorir um elemento com uma cor geral diferente da cor de outros elementos ou da cor original do primuersel.

328 Van de Wetering usa o termo “tint”.

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5.2.2.2.4. Maniera Lavata (Velaturas) No período tardio o pintor aparentemente não deixou de usar as velaturas que já eram usadas em seu período inicial de trabalho. De acordo com as análises de Van de Wetering, no período tardio, é possível encontrar exemplos de seu uso de pelo menos duas maneiras, em diferentes estágios de seu processo. Primeiramente, como aplicações molhado sobre seco no que aparentemente parece ser um modo de finalizar algumas cores de modo superficial em algumas pinturas. Há muitos exemplos de aplicação de velaturas finais nas últimas camadas, como Homem com Boina Vermelha (1660; Mauritshuis); Os Síndicos (1662; Rijksmuseum); Casal como Isaac e Rebecca (1665, Rijksmuseum) e Saul e David (1652, Mauritshuis). .

Figura 20 Semelhanças no efeito de tecido e no uso de velaturas vermelhas, da esq. para dir.: Homem com Boina Vermelha (1660; Mauritshuis); Os Síndicos (1662; Rijksmuseum); Casal como Isaac e Rebecca (1665, Rijksmuseum) e Saul e David (1652, Mauritshuis). Fonte: Nossa, 2018.

Outro caso é a pintura Benção de Jacó (1656, Gemäldegalerie Alte Meister), uma pintura do período tardio que mostra o estágio de camada morta tingida por uma camada de velatura, ou como os manuais do período de Rembrandt chamavam, maniera lavata329 (VAN DE WETERING, 1997, p. 214).

329 Maniera Lavata.: velaturas transparentes, nesse caso, com cores quentes.

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Figura 21 Benção de Jacó (1656, Gemäldegalerie Alte Meister). Fonte: Nossa, 2018.

Aparentemente, a descrição desse procedimento está em conformidade com a descrição dada no Commonplace-book compilado por Thomas Marshall em 1640, sobre os estágios de pintura usados por Anthony Van Dyck. O azul serviria para transparecer através dos tons mais quentes de pele que são executados por cima (VAN DE WETERING, 1997, p. 214). Portanto, aparentemente Rembrandt fez a aplicação de uma velatura azulada por cima da camada morta como meio de tonificá-la inteiramente com um tom azulado. É preciso questionar no entanto, se Rembrandt escolheu essa abordagem por ela ser o modo mais adequado de obter a atmosfera azulada ou se esse tipo de aplicação era o único método possível para contornar um problema: esfriar uma passagem que o pintor já deveria ter pintado originalmente com cores frias, portanto, um método de correção, isto é, uma maneira rápida e prática de contornar um problema que não estava nos planos do pintor.

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Portanto, o pintor fazia uso de aplicações de velaturas, molhado sobre seco, para tonificar o doodverf, e como será visto mais adiante, também nos estágios de finalização de suas obras de seu período tardio, aparentemente alternando com outros tipos de aplicação, conforme desejava.

5.2.2.2.5. Camada Morta “Direta” em Cores Há ainda uma terceira possível forma de trabalhar a camada morta usada por Rembrandt. Em autorretrato de 1669, Van de Wetering aponta que: “[...] algumas áreas do Autorretrato com Dois Círculos (1665 – Londres, Inglaterra) mostram um estágio de tom quebrado330, mas não estritamente monocromático” (VAN DE WETERING, 1997, p. 205). O autor é breve e não descreve com mais detalhes o modo como Rembrandt procedeu nessa pintura. No entanto, é possível compreender que, nesse estágio, ao invés do uso de uma camada monocromática, pintou-se diretamente por cima do stelsel com cores que já descrevessem a cor local daquilo que se pretendia representar. Isto é, Rembrandt fundiu numa só etapa o que normalmente faria em dois estágios: a camada morta e a cor local, criando uma economia processual e optando por um caminho mais direto. Infelizmente, não foi possível encontrar outros exemplos na bibliografia usada para este estudo que confirmassem o uso do mesmo tipo de procedimento em outras pinturas do período tardio. De qualquer forma, embora não haja textos científicos que provem a hipótese, não é difícil observar nas pinturas do período tardio áreas onde um procedimento direto como esse poderia facilmente ter sido usado.

5.2.2.3. Opverken (Camadas de Cima) Durante o período inicial de Leiden, Rembrandt deixava que o estágio de coloração morta estivesse completamente seca para continuar num estágio subsequente, chamado de “build up”331 por Van de Wetering. Nas palavras de Van de Wetering, Rembrandt, no período de Leiden:

[...] seguia um método mais ou menos padrão de sobreposição de cor sobre a composição monocromática [...] [...] trabalhava basicamente em planos – das partes de trás [fundo] para a frente, começando com

330 Cor quebrada.: Provavelmente se refere a uma cor neutra, de baixo croma. 331 Build Up.: nesse contexto, poderia ser traduzido como desenvolvimento ou ainda, finalização.

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o céu em cenas exteriores ou a parte do fundo das paredes em interiores, terminando com as figuras que estão à frente. A possibilidade de um procedimento tão esquemático estava tão longe da obviedade que, sequer havia-se formulado essa questão. Somente quando evidências começaram a se acumular durante a análise das pinturas do começo de carreira de Rembrandt a possibilidade foi colocada em consideração (VAN DE WETERING, 1997, p. 32).

No método de pintura tardia de Rembrandt, após a camada morta, havia alguns procedimentos usados posteriormente à camada morta, e portanto, uma segunda etapa na construção de suas pinturas, ou ainda camadas superiores. Van de Wetering não define esse termo específico, embora seja possível interpretá-las dessa maneira. Em alguma parte da obra de Van de Wetering usa-se o termo finalização para alguns desses estágios posteriores à camada morta. Embora esse seja um termo aceitável, pois define a segunda e última parte do processo, como veremos, elas possuem uma estrutura quase sempre mais complexa do que a da camada morta, portanto, não necessariamente correspondem a um estágio de finalização per se. Por isso, definir como “finalização” não é exatamente apropriado, portanto, decidiu-se definir neste estudo como “opverken”. A seguir, analisa-se quais eram os possíveis procedimentos usados pelo artista nesses estágios posteriores à camada morta.

5.2.2.3.1. Fundos Para Van de Wetering, durante o processo de pintura do artista, as principais preocupações durante as duas primeiras etapas, invenção e coloração morta, eram “[...] a composição, as formas e a relação entre luz e sombra, julgados como um só”. Mas durante a terceira fase, a de desenvolvimento, a principal preocupação do artista é “dar a tudo sua cor correta, descrever adequadamente os materiais [texturas], e consertar os contornos finais das formas. Como veremos, haviam motivos artísticos e práticos para fazer as coisas numa determinada ordem” (VAN DE WETERING, 1997, p. 33). Para compreender como se dá esse processo proposto por Van de Wetering, observou-se os contornos das formas procurando por evidências de sobreposição. No trabalho do jovem Rembrandt, os vários elementos, como roupas, pele, objetos, fundo, área do chão, etc, não eram usualmente pintados molhado sobre

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molhado332. Isto é, não se pintava com a tinta ainda fresca por cima de uma camada que ainda não havia secado, mas pintava-se com tinta fresca por cima de uma camada já seca. Van de Wetering explica que a teoria é comprovada observando o fato que a tinta de uma área quase sempre sobrepõem ligeiramente uma outra, em muitos casos, é possível ver com uma lente de aumento qual camada está sobreposta e qual está por cima: “a superfície da pincelada da camada mais abaixo tem seu relevo quase sempre visível por baixo da camada sobreposta. Comumente (por causa da abrasão das camadas superiores) áreas de sobreposição mostram a cor da camada de baixo em alguns pontos da superfície” (VAN DE WETERING, 1997, p. 33). Através da observação dessa anatomia, é possível discernir que como uma regra, o procedimento de pintura de Rembrandt sempre obedece a ordem na qual as áreas que estão à frente da cena sobrepõem as áreas de trás, e consequentemente, as áreas da frente são pintadas após as de trás. Isto é, as figuras sobrepõem o fundo da cena, portanto, o fundo foi pintado antes, e as figuras, depois. Além das evidências encontradas visíveis a olho nu nas sobreposições de pinceladas, confirmou-se o método de trabalho “de trás pra frente” também através das radiografias333 das obras (VAN DE WETERING, 1997, p. 37). Dá-se uma razão prática para adotar o método de trabalho de trás para frente no tratado de Gerard de Lairesse, Groot Schilderboeck. Em várias passagens, o autor recomenda sempre seguir uma sequência fixa. A seguir, o que de Lairesse escreve sobre a colorização morta:

Aqui, me parece que o meio mais certo e seguro é começar por trás, especialmente quando a paisagem [fundo] contribui mais [do que as figuras]. Por que tudo deve harmonizar com a luz ou a escuridão do céu, e as misturas claras334 dos elementos; por que a luz da parte da

332 Molhado sobre molhado.: termo popular usado pelos pintores quando se pinta de modo alla prima, isto é, de uma vez só, aplicando novos estágios por cima de um estágio que ainda não está seco, portanto, as tintas são usadas “molhadas sobre molhadas”, patinando uma sobre a outra. 333 Segundo Van de Wetering: “[...] as áreas escuras da imagem radiográfica quase desempenham um papel mais importante do que as áreas claras, as quais normalmente recebem mais atenção. As figuras que estão na frente comumente aparecem na imagem radiográfica como espaços escuros deixados reservados, ao menos nos casos onde o artista usou tinta raio-absorvente no fundo ou no meio. De fato, essas reservas correspondem a áreas do estágio monocromático de coloração morta que ficara visível nesse estágio do trabalho. O motivo pelo qual ele geralmente é visto no raio-x é que essas formas não são, ou são parcialmente, preenchidas com tinta raio-absorvente quando chega finalmente sua vez de serem trabalhadas [...] [...] Uma comparação meticulosa dos contornos das formas deixados reservados no background claro, visível no raio-x, com suas formas vistas na superfície, mostra que a última é um tanto mais larga que os contornos da reserva. Portanto, deve ter sido pintada num estágio posterior” (VAN DE WETERING, 1997, p. 36). 334 Do inglês tints.

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frente, e da das figuras, deve coincidir com isso [...] (VAN DE WETERING, 1997, p. 42).

Van de Wetering sugere a possibilidade de que o argumento de Lairesse seja exatamente o caso de Rembrandt, exemplificando que, em certo número de suas gravuras mais ambiciosas, o fundo é trabalhado decididamente enquanto as figuras estão ainda num estado de esboço. Lairesse ainda complementa, sobre o estágio de desenvolvimento da pintura, e sobre começar do fundo: “deve-se adotar a melhor maneira, começando de trás, isto é, pelo céu, e gradualmente até que se chegue na frente... assim, assegura-se de modo fácil um fundo molhado por trás das figuras de modo que sua circunferência de fora [bordas] funde-se a isso [as figuras]”. Embora o procedimento descrito faça sentido no trabalho de Rembrandt, Van de Wetering acredita que no caso de Lairesse, ele seja usado também para alcançar um efeito de sfumato, embora isso não seja o caso de Rembrandt. Van de Wetering afirma: “Certamente com o jovem Rembrandt, não há evidências de que tenha tentado mesclar os contornos das formas [das figuras] na tinta molhada das áreas de trás. O Rembrandt tardio usa outros métodos para alcançar linhas borradas”. Van de Wetering lembra que a teoria de Lairesse, não pode provar que Rembrandt baseou-se em seu texto como um método a ser seguido, mas:

[...] uma decisão significativa não pode ser ligada a Lairesse, Rembrandt era 34 anos mais jovem [do que Lairesse], como fonte direta para seu procedimento de desenvolver uma pintura, embora os dois devem ter se conhecido. No entanto, mantenha em mente a natureza invariável das práticas de ateliers do século dezessete. Um motivo detalhado para um procedimento particular pode seguramente jogar luz no método de trabalho de Rembrandt [...] Outro motivo para sua maneira sistemática de trabalhar [...] tem conexão com o conceito do século dezessete de houding335 (VAN DE WETERING, 1997, p. 43).

O autor analisa duas pinturas do período tardio, Autorretrato com Dois Círculos (Kenwood House, 1667) e Retrato de Um Velho (Mauritshuis, 1665) acerca do modo como Rembrandt executou os fundos dessas obras: “ambas pinturas [...] possuem em comum o fato de que o fundo foi trazido a um estado de finalização com uma sutil modulação de valores tonais feita com tinta opaca [...] poderíamos concluir que Rembrandt aparentemente

335 Discutido mais adiante neste estudo (Cap. 5.5.10).

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continuou a seguir o costume de completar os fundos antes do resto da pintura” (VAN DE WETERING, 1997, p. 205).

Figura 22 Detalhes dos fundos concluídos antes das figuras. Fonte: Nossa, 2018.

O autor inclui as análises de duas outras obras do período tardio que mostram o contrário: o fundo parece inacabado, enquanto as figuras mostram um grau maior de finalização: “[...] Moisés com as Tábuas dos Mandamentos em Berlin, datada de 1659 e o Cavaleiro Polonês, na Frick Collection, de aproximadamente 1655, desenvolvidas de modo diferente” (VAN DE WETERING, 1997, p. 207). No entanto, Van de Wetering parece convencido de que as duas obras foram deixadas inacabadas por Rembrandt e tiveram partes desenvolvidas provavelmente por outro pintor: “Em minha opinião, baseado em argumentos de estilo, essas duas pinturas podem ter sido acabadas por mãos que vieram depois [...]” (VAN DE WETERING, 1997, p. 207) e portanto, não podem ser consideradas como um procedimento padrão do pintor. Portanto, os fundos ou eram finalizados ao final do estágio da camada morta, apresentando a estética da camada morta, como O Cavaleiro Polonês (Frick Collection, 1655), ou por cima da camada morta antes do desenvolvimento das figuras. Portanto, seja lá qual a forma escolhida por Rembrandt, o fundo sempre era terminado antes do que as figuras. Van de Wetering conclui que: “[...] nesse aspecto, Rembrandt não mudou seu procedimento básico de trabalhar de trás para a frente” (VAN DE WETERING, 1997, p. 211).

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5.2.2.3.2. Nat op Nat (Alla Prima) e Molhado sobre Seco Os textos de Van De Wetering nem sempre definem as condições de secagem das camadas, na maioria das vezes não se menciona se os estágios em questão eram feitos pelo método molhado sobre molhado ou molhado sobre seco. Nenhuma das obras consultadas para este estudo definem um padrão sobre o modo de secagem e aplicação de tintas entre as camadas no período tardio do artista. Rembrandt, no início de sua carreira, fazia recorrente uso de velaturas, ou o que também pode-se chamar de aplicação molhado sobre seco. O pintor finalizava a camada morta, esperando que a mesma secasse, e depois aplicava a cor local que desejava através de velaturas transparentes (VAN DE WETERING, 1997, p. 148). Van de Wetering aponta como certos sistema de camadas estão diretamente relacionados com a natureza dos pigmentos e esses sempre obedecem a receitas específicas do período:

Os pigmentos mais fáceis de se trabalhar eram as terras, que iam desde o amarelo ocre passando por vermelhos ocres até marrons escuros que variavam de tom pela mistura desses pigmentos com branco ou preto. Passagens pintadas com misturas desses pigmentos são sutis em seu valor tonal e gradações. Sempre que necessário alcançar cores brilhantes e fortes (para elementos como roupas vermelhas, amarelas ou azuis), a passagem em questão era executada dentro de um contorno claramente delineado de acordo com uma receita fixa, envolvendo um sistema específico de camadas ou um tipo específico de pré-pintura (VAN DE WETERING, 1997, p. 148).

Ao descrever os processos de pintura do período tardio de Rembrandt, Van de Wetering cita pelo menos uma pintura na qual o pintor usou uma aplicação de molhado sobre seco: A Benção de Jacó (Schloss Wilhelmshöhe, 1655). Mas, em outras passagens, tem-se uma impressão diferente: “[...] desenvolvimentos adicionais das luzes eram adicionados, os quais eventualmente eram cobertos parcialmente ou totalmente com tinta magra” (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). Para conseguir a aplicação de tinta magra sobre o impasto seria necessário esperar que a camada empastada estivesse seca, caso contrário a camada anterior seria incomodada e destruída pelas pinceladas subsequentes. Portanto, é possível que Rembrandt esperasse que as camadas empastadas secassem para cobri-las com velaturas, nesse caso, trabalhando com o método molhado sobre seco. Outro exemplo do período tardio mostra evidências de que certas passagens foram feitas de modo molhado sobre molhado, isto é, alla prima.

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[...] uma amostra de um estágio de cor quebrada [...] no qual o pintor elaborou subsequentemente com luzes fortes e escuros mais profundos, ao mesmo tempo, definindo e corrigindo as formas onde necessário (VAN DE WETERING, 1997, p. 205).

O uso do termo “subsequentemente” parece querer dizer que Rembrandt, nessa obra, esperou a camada morta secar completamente, ou pelo menos esperou que a mesma atingisse um estado semi-seco, para então aplicar as “luzes fortes e escuros mais profundos”. O uso do termo “ao mesmo tempo” parece indicar que as tintas claras das luzes e as tintas escuras das sombras foram trabalhadas juntas, isto é, alla prima, ou em holandês, nat op nat336. A aplicação alla prima também é particularmente notável no lado direito do chapéu e na face do pintor. Van de Wetering descreve como o pintor estabelece a cor local do chapéu e depois, com a aplicação ainda molhada, aplica as luzes por cima, alla prima: “[...] Sobre a camada de base cinza, que permaneceu parcialmente coberta, a forma do chapéu de linho é provisoriamente indicada com movimentos muito livres da mão, a tinta aplicada molhado sobre molhado” (VAN DE WETERING, 1997, p. 205). A passagem de Van de Wetering parece confirmar que em Autorretrato com Dois Círculos (Kenwood House, 1655), o chapéu foi feito alla prima.

Figura 23 Detalhe do boné de Autorretrato com Dois Círculos (Kenwood House, 1655). Fonte: Nossa, 2018.

336 Nat op nat.: do holandês molhado sobre molhado, ou alla prima.

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Aparentemente, após o estágio da camada morta já seco, Rembrandt esboçou a massa do chapéu com tinta escura e, na sequência, usou tintas mais claras, enquanto as escuras ainda não estavam secas, ou pelo menos semi-secas337, mesclando as cores entre elas. O mesmo tipo de procedimento teria sido usado para aplicar os meios-tons do chapéu e suas luzes. O método também mostra uma construção simples e de modo direto das luzes do rosto, aparentemente alla prima, com uma estrutura de camadas muito simples, provavelmente molhado sobre molhado (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). Segundo o autor, o mesmo procedimento é observado numa pintura raramente mostrada ao público, Retrato de um Velho (Mauritshuis, 1667). Van de Wetering traça um paralelo entre as duas pinturas do período tardio:

Na roupa do homem, especialmente nas mangas, e nas mãos, a base descoberta de ocre acastanhado na qual uma cor base desaturada (lay-in338) foi pintada, seguido pelas primeiras luzes que correspondem somente de modo parcial com ele, são claramente legíveis (VAN DE WETERING, 1997, p. 205).

As obras dos museus holandeses confirmam o que os textos apontam como aplicações de cor transparente por cima de áreas de empastes já secas, uma aplicação molhado sobre seco. Entre algumas das obras analisadas in loco nas quais esse tipo de aplicação é facilmente detectável estão Titus como São Francisco (Rijksmuseum, 1660), Homem com Boina Vermelha (Mauritshuis, 1660), Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (Rijksmuseum, 1662), Casal como Isaac e Rebecca (A Noiva Judia) (Mauritshuis, 1665), Titus numa Mesa (1655, Boijmans), Saul e David (1652, Mauritshuis), Homero (Mauritshuis, 1663) e Autorretrato como Apóstolo Paulo (Rijksmuseum, 1661). Portanto, é possível concluir, de maneira geral, que as pinturas do período tardio eram desenvolvidas com ambos os tipos de aplicações: molhado sobre seco e molhado sobre molhado. No capítulo final da conclusão deste estudo, uma outra hipótese é sugerida.

337 Semi-seco.: Também descrito nos ateliês como “seco ao toque”, condição na qual a camada pictórica solidifica na superfície mas continua oxidando por dentro, não está totalmente seca, apenas uma fina casca na superfície. 338 Lay-in.: Literalmente “deitar”, isto é, colocar uma tinta que cobrirá a área para servir de “fundo”.

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5.2.2.3.3. Tom de Pele Van de Wetering aponta uma passagem do tratado do pintor holandês Willem Beurs, escrito em 1698, que ilustra a importância do tom de pele na pintura do século dezessete:

Assim como nós humanos nos consideramos o mais importante entre os animais, também somos o tema mais importante da pintura, e é na pintura da pele humana que as maiores façanhas devem ser vistas, sempre que um pintor conseguir reproduzir a diversidade de cores e as fortes cores da pele humana e particularmente do rosto, adequadamente representando a complexa diversidade das pessoas e das suas diferentes emoções (VAN DE WETERING, 1997, p. 146).

O mesmo manuscrito descreve nove pigmentos usados para representar o tom de pele de diferentes emoções, etnias e idades humanas: branco de chumbo, schijtgeel (amarelo orgânico), vermilion, laca vermelha, vermelho ocre, terre verte, sombra e preto de carvão. Van de Wetering observa que uma paleta com cores similares é visível em inúmeras pinturas desse período (VAN DE WETERING, 1997, p. 147), portanto, o texto do manual é uma das muitas evidências, além dos testes químicos de suas obras, que apresentam a configuração de cores usadas por Rembrandt para a fatura dos tons de pele. Mas há uma diferença substancial entre os tons de pele do período inicial e do tardio: “[...] nos autorretratos e retratos do período tardio [...] os rostos possuem uma estrutura quase sempre mais complicada” (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). O autor usa o termo estrutura aparentemente com o intuito de descrever uma hierarquia de etapas, isto é, a configuração de mais de um estágio, ou mais de uma camada para compor as áreas de pele. Portanto, parece correto afirmar que o autor diferencia o modo como o artista construía os tons de pele em seus diferentes períodos: quando jovem usando um procedimento mais simples para o tom de pele, no período tardio, procedimento mais complexo com maior quantidade de estágios. Segundo o autor “[...] a técnica de pintura das partes de pele, especialmente a dos rostos [...] são representativas da abordagem do período tardio de Rembrandt e comumente as partes mais complicadas de seus trabalhos [...]” (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). Para compreender melhor a técnica de construção do tom de pele do período tardio, Van de Wetering diz que “é preciso, novamente, voltar a pré-pintura, em particular ao método de

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desenvolvimento [extra das luzes]”, assim como citado anteriormente339 no capítulo sobre a colorização morta ou stelsel. Esse desenvolvimento extra das luzes, ainda na fase da pré- pintura (camada morta), segundo Van de Wetering é característico do período tardio (VAN DE WETERING, 1997, p. 221). Para explicar o suposto processo de desenvolvimento extra das luzes, Van de Wetering descreve: Tinta mais magra era aplicada a pré-pintura na qual mais uma vez, executada em impasto, desenvolvimentos adicionais das luzes eram adicionados, os quais eventualmente eram cobertos parcialmente ou totalmente com tinta magra. O refinamento de cor tão característico, o trabalho de luz e sombra e a definição da forma eram ‘desenvolvidos’ todos dessa maneira (VAN DE WETERING, 1997, p. 220).

Segundo Van de Wetering o pintor em seu período tardio construía os tons de pele desenvolvendo uma estrutura mais complexa de camadas, isto é, o uso de etapas intercaladas, alternando entre aplicações empastadas e magras, ou grossas e finas. Como um exemplo ilustrativo do procedimento, Van de Wetering aponta que a obra Autorretrato (1659) da National Gallery de Washington é um exemplo de como o artista decidiu que num estágio inicial a obra já estava pronta, mostrando “a maneira rústica na qual o impasto é aplicado na parte iluminada do rosto” e como a tinta parece ter sido aplicada com “um pincel de barba; o movimento do pincel remotamente ligado a forma representada” (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). Já a obra Autorretrato (1658) da Frick Collection, mostra um procedimento de construção de tom de pele mais completo (VAN DE WETERING, 1997, p. 220). É necessário lembrar que as diferenças levantadas pelo autor são de difícil entendimento através de imagens impressas ou digitais, tornando-se mais detectáveis mediante as obras originais.

339 “[...] o uso do aumento ou maior desenvolvimento das luzes mais altas tornaria-se o método de camada morta de Rembrandt” (VAN DE WETERING, 1997, p. 32)

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Figura 24 Autorretrato (1659; National Gallery de Washington) e Autorretrato (1658; Frick Collection)

Finalmente, Van de Wetering aponta que o jovem Rembrandt trabalhava “completando passagem após passagem de acordo com fórmulas particulares”, em etapas ou espaços temporais de trabalho que os italianos chamavam de giornate340. Mas em seu período tardio, o artista fazia uso de um processo mais contínuo (VAN DE WETERING, 1997, p. 222). De qualquer forma, segundo as palavras do autor, Rembrandt em seu período tardio, “assim como Cézanne, trabalhava o todo da pintura de uma só vez [...] [...] Temos que entender, no entanto, que o processo descrito acima não parece ter sido contínuo. A compartimentalização dos diferentes elementos da pintura proíbe uma imagem do Rembrandt tardio trabalhando assim” (VAN DE WETERING, 1997, p. 222). Nestas passagens, ao seguir a lógica de Van de Wetering, parece que o autor trata do modo como o tom de pele é executado, embora a passagem possa confundir o leitor, parecendo que se trata do método de pintura como um todo e não somente dos tons de pele (VAN DE WETERING, 1997, p. 222). Mas, em realidade, Van de Wetering quer dizer que embora o pensamento e o planejamento de construção das pinturas do período tardio seja um método mais direto, a compartimentalização dos elementos, isto é, o modo de pintar cada elemento contido na pintura numa etapa distinta, de modo independente, impede que o método seja absolutamente direto, portanto, é certamente mais parecido com o método de Cézanne do que com o modo de pintura de inúmeras camadas proposto por Doerner. Portanto, parece correto afirmar que, o pintor fazia maior uso de um método direto, de forma geral, com algumas ressalvas em

340 Giornata.: termo italiano usado nas artes para descrever “um dia de trabalho”. Amplamente usado pelos pintores do Renascimento para descrever o tamanho de parede possível de se cobrir num dia de trabalho.

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áreas que recebiam uma abordagem menos direta. Mais simples do que a famosa técnica de inúmeras camadas e velaturas proposta por Doerner, por outro lado, provavelmente mais complexo, ou mais indireto, do que as pinturas alla prima feitas nos ateliês de hoje.

5.2.2.4. Resumo dos Estágios No período inicial de sua carreira, Rembrandt segue a cartilha da pintura de seus professores, Jacob van Swanenburgh e Pieter Lastman, com estágios e ordem definidas. Essa sequência compreende, em primeiro lugar, a coloração da base de pintura, também chamada primuersel, com cores de tons terrosos amarelados ou alaranjados. Após a secagem do primuersel, estabelecia as primeiras linhas dos elementos (invenção) com tinta marrom341 e executava a coloração morta (pré-pintura) monocromática. Após a secagem total da camada morta, colorir os elementos com velaturas de cores locais transparentes ou semi-opacas. O build up finaliza o processo, estabelecendo as sombras e as luzes finais de cada elemento, cada estágio pontuado por sua completa secagem para que o estágio subsequente possa ser executado. O processo do período tardio é mais complexo. Abaixo, tenta-se resumir, de maneira geral, cada uma das etapas usadas pelo pintor. Primeiramente, Rembrandt faria uma base para ser aplicada ao seu suporte, ou compraria um painel já pronto para uso, com uma base já seca. Essa base possui geralmente uma mistura de cor creme acinzentada ou marrom amarelado, feita geralmente de cola, giz e pigmento. O primuersel é uma camada aplicada por cima da base, para torná-la menos absorvente e tonificar o suporte com uma cor de meio tom. A cor aplicada no período tardio era geralmente o castanho, castanho acinzentado ou castanho amarelado. Em seguida, estabelecia-se as linhas do stelsel (invenção), desenhando as linhas principais de todos os elementos e sugerindo as sombras e meio tons com tinta acastanhada semitransparente, geralmente um pigmento marrom orgânico, como o terra de Colônia ou Cassel, também chamado hoje de marrom Van Dyck. Após as linhas do desenho, blocava-se os valores da composição, preenchendo com luz e sombra todos os elementos, usando maior quantidade de tinta marrom as áreas mais escuras e menos tinta, a transparência, as áreas mais claras. O método de pensamento desse estágio é similar ao da aquarela: o artista deve deixar as áreas de luz com menos tinta para que as áreas claras do suporte (primuersel)

341 Como visto anteriormente, uma mistura da sobra do pinceliere com terra de Cassel (marrom Van Dyck).

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apareçam por trás. O final desse estágio apresentaria uma pintura monocromática, marrom transparente, de temperatura quente. Esse é o final do primeiro estágio do doodverf. O pintor procedia então para o segundo estágio do doodverf (camada morta), sendo que Rembrandt poderia agir de algumas maneiras. A primeira, seria começar a aplicar meios-tons, luzes medianas e luzes altas com tinta opaca, ainda de modo monocromático, desenvolvendo ainda mais o chiaroscuro da composição já estabelecida, corrigindo e melhorando a profundidade e as formas do todo, esse é o segundo estágio da camada morta, chamada accenten. Ao somar os meios-tons e luzes opacas claras por cima das sombras quentes, completava-se o doodverf. O accenten é fundamental pois faz com que a composição venha “para a frente”. Depois de completar a camada morta monocromática, ou pré-pintura, começava então a aplicar as camadas de cima (opverken), com cores ou misturas mais cromáticas, de modo molhado sobre seco ou por cima do doodverf ainda molhado. Uma outra maneira de concluir o doodverf, seria começar a aplicar os meios-tons, luzes medianas e luzes altas (accenten) com tinta opaca, por cima das sombras quentes, só que ao invés de misturas monocromáticas, usava-se misturas já com as cores finais dos elementos, finalizando de forma nat op nat. Esse é o tipo de procedimento mais direto usado pelo artista em seu período tardio. Uma outra maneira de desenvolver o opverken por cima do doodverf já finalizado, era aplicar velaturas transparentes de modo molhado sobre seco sobre o doodverf, ou de modo semi-seco, como veremos na conclusão das hipóteses sugeridas neste estudo. Em seguida finalizava-se com cores. Ainda existia a possibilidade de aplicar cores locais, ou primuersel local, em diferentes elementos somente em áreas necessárias. A cor local era provavelmente aplicada nas áreas de luz, evitando sujar as sombras e conservando todo o trabalho feito nas partes escuras do estágio de doodverf. Após a secagem da cor local ou do doodverf, ou com eles ainda molhados, finalizava-se (opverken) as áreas desejadas, escurecendo e iluminando tudo o que era necessário. É de suma importância compreender que, em certas áreas o pintor trabalhava em maior quantidade de camadas ou estágios, alternando aplicações molhadas sobre seco e molhado sobre molhado, isto é, alternando aplicações de velaturas ou nat op nat conforme sentia necessidade. Esse tipo de execução mais complexa não ocorre em todos os rostos ou áreas de

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tom de pele pintados por Rembrandt342, mas é quase sempre esse o caso nos tons de pele do período tardio. Áreas como os fundos, objetos cenográficos e alguns tipos de vestimentas eram comumente executados de forma mais simples e com menor quantidade de estágios. Próximo a conclusão deste estudo, no começo de 2019, ano em que se homenageou Rembrandt em ocasião do aniversário de 350 anos de sua morte, uma longa lista de eventos foi realizada em inúmeras instituições holandesas. Por conta disso, um grande número de material educacional sobre o pintor tornou-se disponível. Com patrocínio do ING343, o Rijksmuseum lançou uma série de vídeos, chamados Os Tutoriais de Rembrandt344, disponíveis em várias plataformas digitais345 que analisam os materiais e a técnica de Rembrandt. Os vídeos, em seis partes, mostram o processo de reconstrução do Autorretrato como São Paulo (1560, Rijksmuseum) feito pelo artista Jan Bustin346. A reconstrução dos estágios mostrada neste documentário está, de maneira geral, em concordância com as conclusões alcançadas neste estudo após a análise in loco das obras de Rembrandt e do material bibliográfico.

Figura 25 O colega Jan Bustin no documentário Rembrandt Tutorials. Fonte: Nossa, 2018.

342 Pois em certos rostos ou tom de pele, o pintor trabalhou de maneira direta com poucas camadas. Embora Ronda Noturna (Rijksmuseum, X) não seja uma pintura do período tardio, é exatamente esse seu caso: os rostos foram concluídos alla prima, nat op nat, num simples estágio direto. 343 ING.: grupo multinacional holandês de serviços financeiros corporativos com centro principal em Amsterdam. ING é abreviação de Internationale Nerdelanden Groep. 344 Do inglês, “The Rembrandt Tutorials”. 345 Entre elas nos próprios sites das instituições em questão e no Youtube. 346 Jan Bustin correspondeu-se inúmeras vezes conosco durante o desenvolvimento deste estudo, antes de sua participação no documentário.

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É importante lembrar que o processo não era absolutamente o mesmo em cada pintura do período tardio, variações na natureza e na quantidade desses estágios foram encontrados em diferentes pinturas. No entanto, este estudo sugere como hipótese, refutar a afirmação de Bomford de que não havia padrões definidos na técnica do artista, hipótese abordada na conclusão.

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6. Análises das Obras nos Museus Holandeses A relevância do capítulo é a apresentação das observações feitas após análise in loco das obras do período tardio na Holanda e a organização de material analítico com os resultados das investigações físico-químicas que funcionam como informação complementar para a análise dessas obras. A intenção é que ambos os dados possam ser usados para traçar comparativos entre ambas as fontes. As fontes usadas nesse capítulo compreendem as publicações de Van de Wetering de 1997 (VAN DE WETERING, 1997), de 2005 (VAN DE WETERING, 2005) e a mais atualizada, de 2016 (VAN DE WETERING, 2016). Outros textos que forneceram material analítico são White (WHITE, 2000), De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978), Gordenker e Noble (GORDENKER; NOBLE, 2013), De Witt (DEWITT, 2011), Bruyn (BRUYN et al., 1989). Parte das análises contidas neste estudo, sumarizadas pelo Rembrandt Research Project foram extraídas do website Rembrandt Database347 (“http://rembrandtdatabase.org/”, 2018). Foram examinadas ao vivo quinze obras de Rembrandt em quatro museus holandeses: Rijskmuseum, Mauritshuis, Boijmans e Hermitage Amsterdam. Dentre essas quinze obras, foram analisados dois autorretratos, dez retratos e cinco pinturas históricas organizadas na tabela abaixo. É importante salientar que, a distinção entre retrato e pintura histórica deve ser definida de modo mais detalhado para que não confunda o leitor. A pintura Casal como Isaac e Rebecca trata-se de uma pintura histórica sendo a pintura a representação de um momento particular de uma narrativa e não um retrato de um casal. A definição de pintura histórica, nesse período, é que essas pinturas procuravam representar um momento dentro de uma narrativa, um momento de ação, ao invés de um tema estático como no retrato. A maioria das pinturas desse gênero não são cenas da história, especialmente aquelas anteriores a 1850, mas representam comumente cenas bíblicas, mitológicas ou contos populares (RUSKIN, 1854, p. 172).

Retratos Titus como São Francisco 1660 Rijskmuseum Homem com Boina Vermelha 1660 Mauritshuis Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam 1662 Rijskmuseum Casal como Isaac e Rebecca (A Noiva Judia) 1665 Rijskmuseum

347 http://rembrandtdatabase.org/.

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Dois Homens Africanos (Dois Mouros) 1661 Mauritshuis Retrato de um Velho Idoso 1667 Mauritshuis Lição de Anatomia do Dr. Deijman 1656 Hermitage Amsterdam Titus numa Mesa 1655 Boijmans Van Beuningen Homem Sorrindo (Tronie) * 1629 Mauritshuis Pinturas Históricas Saul e David 1652 Mauritshuis Homero 1663 Mauritshuis Tobit e Anna 1659 Boijmans Van Beuningen Concórdia do Estado * 1637 Boijmans Van Beuningen Autorretratos Autorretrato como o Apóstolo Paulo 1661 Rijskmuseum Autorretrato 1669 Mauritshuis *Obras executadas anteriormente ao que se considera “período tardio” (1650). Fonte: Nossa, 2018.

Abaixo, apresenta-se uma tabela com uma conveniente lista que organiza as pinturas estudadas na Holanda numa ordem cronológica:

Pinturas em Ordem Cronológica Homem Sorrindo (Tronie) * 1629 Mauritshuis Concórdia do Estado * 1637 Boijmans Van Beuningen Saul e David 1652 Mauritshuis Titus numa Mesa 1655 Boijmans Van Beuningen Lição de Anatomia do Dr. Deijman 1656 Hermitage Amsterdam Tobit e Anna 1659 Boijmans Van Beuningen Titus como São Francisco 1660 Rijskmuseum Homem com Boina Vermelha 1660 Mauritshuis Autorretrato como o Apóstolo Paulo 1661 Rijskmuseum Dois Homens Africanos (Dois Mouros) 1661 Mauritshuis Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam 1662 Rijskmuseum Homero 1663 Mauritshuis Casal como Isaac e Rebecca (A Noiva Judia) 1665 Rijskmuseum Retrato de um Idoso 1667 Mauritshuis Autorretrato 1669 Mauritshuis *Obras executadas anteriormente ao que se considera “período tardio” (1650). Fonte: Nossa, 2018.

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6.1. Problemáticas de Atribuição Nesse capítulo, apresenta-se como forma de contextualização, informações pertinentes a problemática de atribuição as obras de Rembrandt. Não é foco deste estudo desenvolver hipóteses ou análises sobre esse tema, no entanto, o mesmo se mostra necessário para compreender a extensão de outros assuntos. A fonte usada para desenvolver esse capítulo é o artigo de Bruyn (BRUYN et al., 1986). O artigo de Van de Wetering, publicado na compilação A Corpus of Rembrandt Painting v. II de 1986 e organizado por Bruyn, cita que a catalogação das obras de Rembrandt feita por Abraham Bredius348 em 1935, reduziu drasticamente as pinturas atribuídas ao pintor. Ao mesmo tempo, obras que mostravam características Rembranescas mas pintadas por pupilos, seguidores e até por falsários (provavelmente apenas uma pequena parcela) também foram atribuídas ao pintor. Segundo Van de Wetering, o número de pinturas atribuídas a seguidores e a falsários aumentou depois das análises do RRP (BRUYN et al., 1986, p. 45). Portanto, determinadas pinturas podem ter sido executadas parcialmente pelo artista enquanto outra parte fora pintada por um de seus muitos pupilos, em outros casos, pode se tratar de um pintor holandês contemporâneo ou posterior do artista que imitava seu estilo ou até de um falsário. (BRUYN et al., 1986). Caso uma obra não ofereça prova científica, como uma autêntica assinatura do artista, ou outras provas que levem a crer tratar-se de um seguidor posterior ou de um falsário, assume-se como “produzida no círculo do pintor” (BRUYN et al., 1986, p. 45). No entanto esse tipo de atribuição gera uma problemática, analisada por Van de Wetering:

Se tomarmos seriamente o princípio formulado durante discussões no simpósio do tricentenário de Rembrandt em 1969, de que nenhuma pintura deve ser rejeitada ao menos que uma nova atribuição seja possível, então muitas das rejeições de Bauch, Gerson e do RRP não podem ser justificadas. Por exemplo, além de Flinck, há poucos pintores na literatura sobre Rembrandt que poderiam ser sugeridos como o autor de obras rejeitadas do começo do período de Amsterdam (BRUYN et al., 1986, p. 45).

348 Dr. Abraham Bredius (1855 - 1946). Historiador da arte holandês, curador e colecionador de arte. Diretor do Mauritshuis entre 1889 e 1909, especialista em Rembrandt, de opiniões diferentes do outro especialista em Rembrandt, Cornelis Hofstede de Groot. Contribuiu regularmente com as famosas publicações de historia da arte Oud Holland e a Künstler-Inventare. Em 1935, publicou um catalogo sobre as pinturas de Rembrandt, regularmente citado em pubicações como "Bredius 1935". Sua coleção particular de obras de arte tornou-se o Museu Bredius, em Rotterdam, Holanda.

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Indo mais além, Van de Wetering questiona não só o método de atribuição das obras, mas também certos dados encontrados na literatura sobre Rembrandt que podem dificultar a tarefa de se atribuir artistas para obras do círculo do pintor:

A exigência de que uma atribuição alternativa deve ser produzida quando se rejeita uma obra parece, a priori, justificável. Quando se olha a longa lista de cinquenta nomes encontradas na literatura de Rembrandt dos jovens pupilos que trabalharam em seu ateliê durante sua carreira, parece de fato uma grande amplitude de escolhas. No entanto, metade desses cinquenta nomes será, como Broos mostrou, retirado da lista de pupilos de Rembrandt quando [analisamos] criticamente sobre a forma como essas listas foram copiladas (BRUYN et al., 1986, p. 45).

Aparentemente, há diversos motivos para duvidar da lista de pintores aceitos hoje como pupilos de Rembrandt. Segundo Van de Wetering, não há nenhuma lista contemporânea a época de Rembrandt, que copila os nomes de seus alunos e que tenha sobrevivido aos dias de hoje. Portanto, tudo é possível. É possível que houvesse uma quantidade muito maior do que se estima e que esses nomes foram esquecidos ao longo dos anos. Há muitas razões para que esses artistas caíssem no esquecimento: morte prematura, mudança de ocupação, não ter alcançado êxito profissional, entre outras. Além disso, Van de Wetering cita o caso do pupilo Govaert Flinck, que após ter estudado com Rembrandt e finalmente conseguido êxito com seu próprio ateliê, possuiu pelo menos um pupilo citado em registros do período, mencionados no texto de Houbraken, mas um outro documento do período não somente cita a existência de vários pupilos como apresenta um desenho de seu ateliê, sendo possível discernir um número muito maior de pupilos e colaboradores, os quais ainda não se sabem a identidade (BRUYN et al., 1986, p. 46).

A estimativa mais otimista é que houve nove pupilos de Rembrandt na primeira metade desse período [Amsterdam], os quais cinco sobreviveram a análise crítica de Broos. E do segundo período, temos nomes de nove possíveis pupilos, os quais não mais do que seis provavelmente de fato trabalharam com Rembrandt. Portanto, enquanto as fontes mostram não mais do que cinco ou seis jovens pintores ao mesmo tempo em seu ateliê, Joachim von Sandrart [cita em seu texto] lembra-se deles como ‘quase incontáveis’. A maior soma que Sandrart menciona como proveniente das vendas anuais de pinturas e gravuras feitas por pupilos é de 2000 a 2500 guilders, o que de fato torna muito provável que nessa época haviam mais pupilos que trabalhavam com Rembrandt do que são conhecidos pelas fontes (BRUYN et al., 1986, p. 47).

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Mas, a exata identificação do número e de quem foram esses artistas é um trabalho virtualmente impossível. Há evidências diretas e indiretas da estadia de apenas nove pessoas no ateliê van Rijn, citados em documentos do período, com boas chances de assertividade: Leendert van Beyeren, Heijman Dullaere, Jan van Glabbeeck , Isack, Jouderville, Jacob or Philips Koninck, Jacobus Levecqll, Constantijn van Renessel e Ferdinand Bol. Com menor segurança, os seguinte nomes são possíveis discípulos ou assistentes, encontrados em documentos similares aos primeiros: Jacob van Dorsten, Hendrick Heerschopl, Dirck Santvood e J. G. van Vliet. Através de publicações do séc. XVII, sabemos que Orlers em 1641 cita como pupilo Gerard Dou. Samuel Hoogstraten em 1678 cita Carel Fabritius, Abraham Fuenerius e ele mesmo. Joachim von Sandrart cita em 1675, Govaert Flinck, Johann Ulrich Mayr, Christoph Paudiss e Gerard Dou. Baldinucci em 1686, cita Bernhard Govaert, Flinck e Gerard Dou. Houbraken em 1718 cita dezessete artistas que “estudaram com Rembrandt”, mas, quando comparados com a lista feita acima, a dos nomes citados em documentos do período, dez dos artistas não estão na lista de Houbraken, enquanto nove dos artistas citados por ele não estão em nenhuma fonte anterior. Van de Wetering cita que “a maior parte dos mais de vinte nomes de possíveis alunos de Rembrandt adicionados a literatura após 1850 em diante são assim considerados baseado em similaridades estilísticas” (BRUYN et al., 1986, p. 45).

Pela desproporcionalidade entre o pequeno conhecido número de pupilos e colaboradores de seus primeiros anos em Amsterdam e o grande número de obras rejeitadas como Rembrandts legítimos, mas que se assemelham fortemente em estilo, suspeita-se que um número relativamente grande de colaboradores desses anos é ainda desconhecido por nós. Um exame dos trabalhos rejeitados dá a impressão que mais mãos do que conhecemos por nome estavam envolvidas nessa produção. O único jovem pintor que sabemos com certeza ter trabalhado com Rembrandt nessa época, como dito anteriormente, foi Govaert Flinck (BRUYN et al., 1986, p. 46).

Portanto, se para descartar uma atribuição de pintura a Rembrandt é necessário produzir uma nova atribuição, seria necessário também uma lista mais segura e confiável sobre seus colaboradores e pupilos, em diversos períodos, mas claramente, não é o caso. Portanto, na opinião de Van de Wetering: [...] a noção de que obras presumivelmente de Rembrandt podem ser rejeitadas somente no caso de uma nova e convincente atribuição não se sustenta. Nós temos de aceitar que os autores de trabalhos que, por causa de certo estilo e qualidade, não podem ser considerados

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como um autografo de Rembrandt, incluem um número apreciativo de pintores anônimos (BRUYN et al., 1986, p. 48).

Isto quer dizer que, primeiramente, não há uma lista confiável com a qual seja possível montar sugestões de pupilos e colaboradores, em segundo, há um grande número de artistas de seu círculo que permanecem impossíveis de se identificar e que mostram características estilísticas diferentes das de Rembrandt, portanto, não é necessário criar uma nova atribuição para descartar uma anterior. Van de Wetering ainda acrescenta a problemática das cópias. Segundo suas palavras, é “quase certo” que : “[…] muito cedo [no período de Amsterdam] haviam inúmeras pinturas em circulação com o nome de Rembrandt mas feitas por outros mãos agora desconhecidas a nós” (BRUYN et al., 1986, p. 48). Fica incerto se essas cópias foram feitas no próprio ateliê do artista, por ele mesmo, por pupilos ou fora do ateliê do artista, por concorrentes. Em inventários e listas de bens a serem leiloados durante o séc. XVII há incontáveis menções de pinturas que são cópias349. Segundo o autor, um estudo de fontes como essa, no qual aparece o nome Rembrandt traz luz a uma problemática acerca de pinturas vistas agora como legítimas: “[…] é impressionante, primeiramente, o aumento através dos anos do número de pinturas listadas incondicionalmente como obras de Rembrandt, comparado ao número que vem diminuindo das obras descritas como copias (near) de Rembrandt” (BRUYN et al., 1986, p. 48). Em documentos holandeses datados entre 1630 e 1640, encontrou-se citações de nove pinturas documentadas como “originais de Rembrandt” e quinze que tratavam-se de “cópias (naer) de Rembrandt”, nas palavras do autor: “uma pergunta difícil é se isso [cópia] significa somente cópias fieis, ou se tratam-se de pinturas no estilo de Rembrandt” (BRUYN et al., 1986, p. 48).

Nos anos de 1640 -1650, há uma considerável mudança na relação entre pinturas “de (van) Rembrandt” e cópias (naer). Nesse período 27 pinturas são listadas como obras de Rembrandt e somente 5 como cópias. De 1650 em diante, quase não há menção de cópias

Portanto, é devido a essa complicada problemática que este estudo pretende investigar pinturas de “Rembrandt e seu círculo” nos museus holandeses e não apenas pinturas de “Rembrandt”. Desse modo, evita-se analisar apenas pinturas que apresentaram provas científicas irrefutáveis e gozam do status de pintadas pela mão do Mestre, tornando possível

349 Cópias.: Na Holanda do séc. XVII, essas pinturas traziam o termo “naer” (after).

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analisar também as pinturas que são provavelmente legítimas mas que não produzem provas contundentes. Note que, algumas das pinturas analisadas neste estudo já foram consideradas como do “círculo” do artista, assim como algumas já foram atribuídas a Rembrandt e depois tiveram seu status revogado. No entanto, se essas pinturas já foram consideradas como autênticas ou do “círculo” do artista algum dia, alternando seu status, é provável que Bredius e outros especialistas tivessem alguma razão para se confundir. Certamente há algo nessas obras que lhes confere uma unidade estilística, e seja lá quem fora o responsável pela fatura delas, conhecia muito bem a técnica, os materiais e o modus operandis de Rembrandt. Portanto, isso não as torna menos impressionantes do que as obras feitas inteiramente pelo artista, afinal são pinturas de tamanha excelência que conseguiram se passar por um Rembrandt. Para finalizar esse argumento, seguem as palavras do próprio Van de Wetering: “[…] técnica e materialmente, tais pinturas não diferem significantemente daquelas aceitas como Rembrandts autênticos” (BRUYN et al., 1986, p. 45).

6.2. Rijskmuseum O Rijksmuseum (literalmente Museu Nacional) é dedicado as artes e a história de Amsterdam. Está localizado na Praça do Museu (Museumplain) e fica no bairro Amsterdam South, em Amsterdam. Originalmente fundado em Haia (Den Haag) em 1800, mudou-se para Amsterdam em 1808, primeiramente para o Palácio Real e depois para o Trippenhuis350. O edifício definitivo do Rijskmuseum foi criado pelo arquiteto Pierre Cuypers e inaugurado em 1885, compreende o maior museu dos Países Baixos.

350 Trippenhuis.: é uma mansão neoclassica localizada num canal no centro de Amsterdam. Construída por volta de 1660–1662 para os comerciantes de armas Louis and Hendrick Trip. Muitas referências ao comércio de armas podem ser observadas na faixada da mansão. Desde 1887 é a Academia Real das Artes e das Ciências dos Países Baixos (Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences - KNAW).

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6.2.1. Titus van Rijn como São Francisco (1660)

Figura 26 Rembrandt Van Rijn, Titus como São Francisco, Rijskmuseum, 1660. Fonte: Nossa, 2018.

Ao vivo, a obra Titus como São Francisco, é mais lisa e contida do que quando vista em livros ou em imagens digitais. Numa primeira investigação pode parecer de execução simples e rústica, mas quando analisada com maior atenção, revela ser, menos sintética da

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perspectiva das pinceladas e da construção tátil das texturas. De perto, a construção dos valores é laboriosa e cuidadosa, mostrando um planejamento e acabamento mais desenvolvido do que muitas pinturas do período, mostrando o que parece ser uma maior preocupação do artista em efetuar uma descrição com menor grau de omissão e maior quantidade de informação tonal para representar as formas. Esse tratamento é visto principalmente no rosto de Titus, surpreendente pois ele quase nunca é tão cuidadoso em outras obras do período tardio, com exceção de seus autorretratos e talvez de Retrato de Velho Idoso (1660, Mauristhuis). Enquanto em outras obras nota-se a construção a partir de grandes porções de pinceladas, nessa obra vê-se a blocagem de pinceladas menores, uma forma mais delicada e compacta de descrever grandes grupos de formas que compõem os elementos do rosto. Embora essas diferenças sejam notáveis, as características de um Rembrandt tardio estão por toda a parte: a execução solta, despreocupada e sintética, a rudeza das pinceladas e a aparente resolução despojada. Não há áreas de empastes generosos e altos. As áreas de pinceladas rústicas se devem mais ao efeito do arrastar do que ao efeito de volume. A pintura é consideravelmente lisa em todas as áreas, particularmente nos meios- tons e sombras, mostrando maior corpo de tinta somente nas luzes mais altas. As roupas são pintadas com um marrom avermelhado, aparentemente com um pouco de preto, ou, possível se tratar de uma mistura de ocre vermelho, ou melhor ainda, um Siena queimada, neutralizado com alguma terra esverdeada. Uma análise físico-química extraída da área da manga confirmou, mais tarde, a primeira hipótese formulada in loco, tratando-se de uma mistura de vermelho ocre351 com preto de carbono. Foi de extrema dificuldade discernir a olho nu a ordem das camadas, assim como a cor do primuersel, usados nessa pintura. Nas primeiras visitas, não se chegou a uma conclusão clara sobre a natureza do primuersel. Em visitas posteriores, foi possível ter outras interpretações sobre tons terrosos levemente alaranjados do hábito: aparentemente, eles estariam abaixo dos tons mais esverdeados, parecendo uma cor local ou um desenvolvimento por cima de um primuersel, embora nas visitas anteriores o contrário parecia mais provável (verdes por baixo). É possível que o tom mais baixo, o primuersel, seja um cinza acastanhado ou castanho esverdeado, enquanto as terras mais quentes compreendam na verdade um overpainting, essa teoria é provavelmente válida para a construção do vestuário de Titus.

351 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, extraído da pincelada da manga. Camada “3” do cross-section, última camada antes do verniz.

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Consultas as análises físico-químicas confirmaram, pelo menos nas áreas em que uma dissecação da anatomia da pintura foi possível, que o primuersel é um cinza quente, portanto, um cinza acastanhado de fato. Nas análises consultadas, constatou-se que esse primuersel é uma camada de branco de chumbo, carbonato de cálcio (giz) e sombra352. Uma outra análise353, somente carbonato de cálcio e sombra, portanto, de qualquer forma um cinza acastanhado. Na última análise, carbonato de cálcio e sombra354. A comparação entre os resultados das análises e aquilo que se identificou in loco, leva a quer que a sombra usada nessas misturas só pode ser o pigmento sombra queimada. Baseado nessas análises, define-se:

Base Primuersel Provavelmente Cinza acastanhado: branco de carbonato de cálcio e chumbo, giz e sombra sombra queimada

Uma mistura quente similar a essa do hábito foi observada no rosto: terras alaranjadas mais cromáticas usadas para aquecer as refrações, identificáveis principalmente nas áreas escuras (como próximo a boca). Foi possível averiguar que essas misturas não estão embaixo, portanto não podem ser o primuersel, mas o contrário: estão presentes num overpainting, isto é, por cima. Infelizmente não há análises dessa área para confirmar o que se observou in loco. Nas áreas mais escuras da mandíbula é possível observar o que aparentemente é o primuersel usado no tom de pele, um marrom escuro alaranjado, isto é, um marrom quente alaranjado. A cor geral das áreas mais escuras do tom de pele são castanhos quentes. Portanto, é possível que essas mistura seja similar àquela usada no primuersel: branco de chumbo, giz e sombra queimada. Próximo as sombras do rosto, cumprindo a função de transição, há meios-tons aparentemente esverdeados, um verde terroso, levemente acinzentados. As áreas de luz do rosto são praticamente monocromáticas, em tons de cinza, aparentemente mais frios do que os meio tons e sombras. Isso pode apontar a menor presença de sombra nas luzes. Portanto, se o primuersel da figura é um cinza quente, e as terras alaranjadas estão por cima, sé possível que o hábito tenha sido pintado com misturas quentes para as sombras (por

352 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, extraído da folhagem no fundo, á direita. Camada “2” do cross-section. 353 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, carnatura da mão, embaixo. Camada “1” do cross-section. Provavelmente um dos únicos cross-sections extraídos do tom de pele examinado neste estudo. 354 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, extraído da mão, embaixo. Camada “2 e 1” do cross-section.

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cima do primuersel cinza) e uma segunda camada posterior de amarelo ocre com preto, mais uma pequena adição de branco de chumbo. para as luzes mais esverdeadas que iriam numa camada subsequente. Infelizmente nenhuma análise físico-química das áreas de tom de pele, foi encontrada para confirmar as hipóteses cromáticas das misturas de tom de pele do rosto, área onde é possível observar os contrastes entre verdes e vermelhos. A única área de tom de pele investigada em nível químico foi extraída da área da mão355, que se encontra na borda da pintura, na parte de baixo, feita de uma mistura muito mais escura do que o rosto. Portanto, não foi possível confirmar adequadamente se aquilo que se observou in loco tem alguma relação com os pigmentos encontrados em testes laboratoriais, particularmente o que se observou no rosto. As análises da mistura de tom de pele usada na mão revela, após a base acinzentada (primuersel), duas camadas coloridas, uma primeira composta de preto de carbono, amarelo ocre fino e veículo. Uma segunda camada, que cobre a camada anterior, é composta de vermelho ocre, um pouco de amarelo ocre, vermelho orgânico, branco de chumbo e preto de carbono. Essa segunda camada é provavelmente a cor final que se vê na pele. As análises físico-químicas das amostras revelaram a seguinte composição das misturas de tom de pele: Tom de Pele Sem análise de tom de pele extraída do rosto. Análise extraída da “mão”: Ocres amarelo e vermelho, vermelho orgânico, branco de chumbo e preto de carbono.

A mistura do tom de pele possui todas os pigmentos necessários para confirmar a possibilidade de que o pintor neutralizou a mistura a partir de cores complementares como o verde e vermelho. Provavelmente um bege feito com os ocres amarelos e vermelhos mais adição de branco de chumbo, posteriormente adicionando verde, feito de amarelo ocre e preto de osso, ou adicionando diretamente preto na mistura bege. Embora não haja amostras retiradas de outras áreas importantes da pintura, as amostras consultadas e o exame in loco mostram que há, por de trás de Titus como São Francisco (1660), uma simplicidade processual que se esconde num resultado tão elaborado. Uma seleção absolutamente econômica de pigmentos, usados de modo inteligente.

355 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, extraído da parte vermelha do triangulo da mão, embaixo. Camada “2” do cross-section.

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6.2.2. Análises Físico-químicas Análise de uma amostra retirada da área “folhagem a direita do fundo, onde um amarelo intenso e uma tinta esverdeada lisa pode ser vista no fundo esverdeado com a pre- pintura marrom”, arquivo 0001515592 do Rembrandt Database:

Figura 27 Cross-section Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Amarelo ocre fino 4) Amarelo ocre bem fino, vidro triturado bem fino, um pouco de ocre marrom e vermelho 3) “Sombra” e vermelho ocre fino 2) Base: camada cinza rica em veículo, branco de chumbo (em pedras), giz e “sombra” 1) Base: giz e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “carnatura original da mão que acompanha a borda inferior”, arquivo 0001515592 do Rembrandt Database:

Figura 28 Cross-section Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

1) Base: carbonato de cálcio e “sombra” 2) Vermelho orgânico (laca vermelha), preto de carbono e branco de chumbo: Al, Pb, (K), (Ca), Fe 3) Branco de chumbo, amarelo ocre bem fino, um pouco de vermelho ocre e preto de carbono: (Si), Pb, (K), (Ca), Fe 4) Verniz

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Análise de uma amostra retirada da área “parte vermelha no ‘triângulo’ da mão”, arquivo 0001515592 do Rembrandt Database:

Figura 29 Cross-section Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Traço de verniz 4) Vermelho ocre, um pouco de amarelo ocre, vermelho orgânico (laca), branco de chumbo e preto de carbono 3) Preto de carbono, amarelo ocre bem fino e veículo marrom 2) e 1) Base: acinzentada, semi-transparente, carbonato e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “pincelada escura da manga”, arquivo 0001515592 do Rembrandt Database:

Figura 30 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4) Traço de verniz 3) Preto de carbono e um pouco de vermelho ocre bem fino 2) Base: carbonato de cálcio, um pouco de branco de chumbo, “sombra” 1) Base: carbonato de cálcio e ‘sombra”

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6.2.3. Autorretrato como o Apóstolo Paulo (1661)

Figura 31 Rembrandt Van Rijn, Autorretrato como São Paulo, Rijskmuseum, 1661. Fonte: Nossa, 2018.

Autorretrato como São o Apostolo Paulo (1661), possui uma fatura tão laboriosa quanto Titus como São Francisco (1660). A obra, numa primeira análise pode parecer mais solta quando comparada a Titus, apresentando pinceladas mais largas e agressivas, mas, essa

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impressão pode se dar provavelmente por conta do turbante, que de fato, é executado de modo absolutamente arrastado. O fato de ter sido construído com tonalidades claras também faz com que o elemento se destaque e chame mais a atenção do que os elementos escuros de Titus como São Francisco (1660). Uma análise mais próxima revela as sutilezas e sua complexidade cromática e tonal. Esse autorretrato apresenta poucas diferenças formais quando comparado a Titus como São Francisco (1660), fazendo dessa dupla de pinturas uma das obras mais impressionantes disponíveis ao público na Holanda. Além de mais cromático, apresenta maior volume de tinta nas luzes e maior quantidade de pinceladas rústicas, arrastadas. É importante lembrar que, apesar de suas diferenças, ambas compartilham do mesmo tipo de descrição laboriosa das formas. Não é nenhuma surpresa que elas possuam apenas um ano de diferença. A análise in loco revelou que o primuersel é de difícil discernimento, mostrando que provavelmente deve haver um primuersel local por trás do rosto, pois não é possível que a coloração por trás da figura e do fundo sejam as mesmas. Não há nenhum tom alaranjado ou quente como primuersel nessa pintura, como visto em suas obras de início de carreira. Aparentemente, o primuersel predominante é um cinza esverdeado, ou um marrom acastanhado misturado a um cinza esverdeado, cor predominante ao “fundo” de toda a pintura. As análises-químico físicas disponíveis mostram coleta de material em diferentes áreas da pintura e os resultados mostram conflitos na composição da base. Aparentemente, o primuersel local é um cinza acastanhado e não esverdeado, embora um maior número de análises dessa área seja necessário para eliminar totalmente a hipótese dos cinzas- esverdeados.

Base Primuersel Giz, pouco vermelho Cinza acastanhado: Branco de ocre, branco de chumbo, pouco giz, pouco chumbo ou Giz com vermelho ocre e preto de ocre (amarelo) carbono

Outras análises organizadas por Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2005, p. 541), que dissecam a base e o primuersel apontam: “a camada de cima da base é cinza, a camada de baixo contem vermelho ocre com grande quantidade de giz e veículo, depois, uma camada de branco de chumbo com ocre marrom, preto e um pouco de giz”. Há certas discrepâncias com as informações publicadas na tabela (reproduzida aqui, acima), mas os pigmentos são praticamente os mesmos, salvo a diferença no primuersel entre vermelho ocre (tabela) e ocre

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marrom (última citação). De qualquer forma, ambos confirmam uma base final de cor cinza acastanhada. As análises físico-químicas mostram que, se o primuersel predominante do fundo é um cinza acastanhado, então há uma camada de verde transparente por cima do primuersel do fundo ou de um cinza esverdeado opaco. Se esse é o primuersel predominante, provavelmente há um primuersel local no rosto, provavelmente um “verde abacate”, ou marrom esverdeado, evidente nas partes mais escuras das sombras do rosto. Uma análise retirada do fundo esverdeado356 revela um cross-section com duas camadas, uma composta de amarelo ocre fino e outra composta de cinza (preto de carbono e branco de chumbo), pouco vermelho ocre e amarelo ocre. A análise confirma a hipótese de que o artista construiu o fundo em dois estágios: primeiro uma camada cinza acastanhada e mais tarde com uma segunda camada transparente de amarelo ocre. A análise retirada do “fundo do lado esquerdo para determinar composição da base”357, mostra duas camadas intermediárias. A primeira, composta de giz, um pouco de vermelho ocre e branco de chumbo, resultando numa mistura de um cinza acastanhado. A segunda, composta de branco de chumbo, pouco de giz, pouco de vermelho e preto de carbono. É possível que essas camadas sejam as misturas usadas para o doodverf, confirmando uma construção monocromática de um cinza acastanhado. É possível que haja um outro primuersel local, alaranjado, como se nota abaixo da roupa, onde o pintor suprimiu áreas alaranjadas de primuersel no lado escuro do rosto e tenha “voltado” a aquecer essas áreas cobrindo com tinta. O texto de Van de Wetering confirma parcialmente a hipótese: “[...] outras partes da pintura parecem ter sido pintadas com uma imprimatura local” (VAN DE WETERING, 2005, p. 541) e novamente na passagem: “[...] uma camada cinza rosada pode ser vista por cima de uma das amostras tiradas da veste marrom. Provavelmente sua função é a de uma pré-pintura para a roupa” (VAN DE WETERING, 2005, p. 541). Portanto, é possível interpretar que por cima do primuersel cinza acastanhado, Rembrandt aplicou uma outra camada de primuersel local, de um cinza rosado, para servir como base. Van de Wetering oferece mais informações complementares sobre a veste: “[...] a grande variedade de cores também se estende as roupas. Em algumas áreas, o marrom do robe tende a um verde, ou misturas escuras violetas, como por exemplo na manga, ou até misturas escuras com tons de cinza” (VAN DE WETERING, 2005, p. 544).

356 Arquivo 0001515571 do Rembrandt Database. 357 Arquivo 0001515571 do Rembrandt Database.

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Há algumas refrações mais quentes no lado escuro do rosto que parecem ser uma mistura escura, provavelmente um verde, aquecido com um pouco de uma terra alaranjada. Essas pinceladas parecem ser uma adição posterior e não um laranja pertencente ao fundo, como se o mesmo fosse um primuersel. A análise posterior dos textos de Van de Wetering confirmam a complexidade observada nessa área: “As áreas escuras do rosto exibem uma variedade tonal notável. O modelado é conseguido com tons escuros avermelhados, amarelados e acinzentados, sugerindo um complexo jogo de refrações” (VAN DE WETERING, 2005, p. 544). Nas áreas mais iluminadas do tom de pele é notável o uso de alguma terra amarela e uma laca vermelha para rosar o tom de pele, criando um contraste cromático com os meios-tons que parecem marrons neutros e marrons mais frios (esverdeados) do rosto. Esses, parecem estar por trás das refrações alaranjadas, como se fossem um primuersel local, mas não foi possível confirmar. Há também a presença de tons de pele na parte mais iluminada do rosto levemente esverdeados, não foi possível discernir se os mesmos foram aplicados por cima ou se estavam por baixo dos mais quentes. A análise posterior do texto de Van de Wetering ajuda a compreender a anatomia da área:

[…] as cores claras, e mais frias, normalmente encontradas na parte iluminada do rosto, perto da linha da mandíbula e abaixo, é uma surpreendente mistura de verdes, cinzas azulados e violetas alternados com tons de pele castanhos e até mesmo laranjas [...] A diversidade do esquema cromático e do manuseio da tinta parece infinita e desafia classificação (VAN DE WETERING, 2005, p. 544).

A única análise físico-química de tom de pele que define a composição pigmentária da camada, foi extraída da parte inferior da mão358, relata uma camada de “vermelho acastanhado” sobre base cinza. Embora a descrição seja superficial e vaga, confirma um doodverf monocromático acinzentado e uma camada de finalização usando algo que soa como um tom de pele. O texto de Van de Wetering confirma a finalização de overpainting das luzes do rosto: “[…] os acentos escuros [assim como as] luzes rosadas das bochechas, no nariz e na pálpebra” (VAN DE WETERING, 2005, p. 541).

358 Arquivo 0001504015 do Rembrandt Database.

241

As análises físico-químicas das amostras revelaram a seguinte composição das misturas de tom de pele: Tom de Pele (Conteúdo das Misturas) Sem análise de amostra extraída do rosto. Camada da “mão” definida como “camada de castanho-avermelhado sobre base cinza”. Sem definição de pigmentos.

A análise in loco de Autorretrato como Apóstolo Paulo (1661) provou ser a mais difícil para detectar pistas do processo do artista, devido à complexidade do plano cromático, da ordem e quantidade de camadas e da quantidade de primuersels locais. Mas, algumas reflexões processuais importantes foram estabelecidas. Ao contrário do que dizem alguns especialistas, a soma da investigação in loco e das análises posteriores dos resultados físico-químicos de Autorretrato como Apóstolo Paulo (1661), tornou possível compreender que o primuersel dado no suporte antes do início da obra, que é geralmente aquele que tem predominância, pode no fim das contas, não ser tão importante para a composição. Graças a possibilidade de estabelecer quantos primuersel locais fossem necessários, o primuersel original é um ponto de partida, que pode ou não ser mantido. Análise de uma amostra retirada da área “mão da parte inferior”, arquivo 0001504015 do Rembrandt Database (análise não contém imagen esquemática de estratificação): a. Cor: vermelho acastanhado sobre base acinzentada b. Base: giz com ocre Resultado completo da análise: Ca, Mg, Al, Mn, Pb, Si (Fe)

Análise de uma amostra retirada da área “amarelo e cinza esverdeado do fundo”, arquivo 0001515571 do Rembrandt Database:

Figura 32 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2) Amarelo ocre ‘brilhante’, fino: Al, Si, Pb, (K), (Ca), (Ti), Fe 1) Preto de carbono, branco de chumbo, um pouco de vermelho ocre e amarelo ocre: (Mg), Al, Si, P, Pb, (K), Ca, Fe

242

Análise de uma amostra retirada da área “fundo do lado esquerdo para determinar composição da base”, arquivo 0001515571 do Rembrandt Database:

Figura 33 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

1) Primeira camada de base 2) Segunda camada de base: giz com um pouco de vermelho ocre e branco de chumbo em veículo marrom amarelado: (Si), (Pb), Ca, (Fe) 3) Branco de chumbo, possivelmente um pouco de giz, um pouco de vermelho, preto de carbono 4) Branco de chumbo, giz, “sombra”, preto de carbono: (Si), Pb, (K), Ca, Mn, Fe 5) Branco de cumbo, giz, preto de carvão (presença de branco de zinco, retoque): Pb, Ca, Zn

Análise de uma amostra retirada da área “manchas brancas no fundo preto”, arquivo 0001515571 do Rembrandt Database:

Figura 34 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

1) Base 1: giz, ocre amarelo e vermelho 2) Base 2: giz, ocre amarelo e vermelho 3) Camada cinza rosada: branco de chumbo, vermelho orgánico e preto de carbono 4) Preto de carbono, amarelo ocre, um pouco de branco de chumbo

Análise de uma amostra retirada da área “pincelada amarela do turbante”, arquivo 0001515571 do Rembrandt Database:

243

Figura 35 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

1) Branco de chumbo: Pb 2) Mesma mistura que 3), mas um pouco mais clara 3) Branco de chumbo, amarelo ocre fino: (Al), Si, Pb, (K), Fe

Análise de uma amostra retirada da área “pinceladas de pretos mais profundos das roupas”, arquivo 0001515571 do Rembrandt Database (análise não contém imagen esquemática de estratificação):: “O preto é preto de osso, disperso num veículo marrom escuro com um pouco de branco de chumbo ou um pouco de secante de chumbo. Talvez haja presença de giz: (Al), (Si), P, Pb, K, Ca, (Fe)”.

244

6.2.4. Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (1662)

Figura 36 Rembrandt Van Rijn, Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam, Rijskmuseum, 1662. Fonte: Nossa, 2018.

Ao investigar a obra no Rijskmuseum, foi possível observar que as características da maneira rústica são mais notáveis do que se imaginava. A obra, ao vivo, é mais solta e rústica do que se percebe nos livros ou em imagens digitais. Essa característica só se torna aparente quando próximo a pintura, com aproximadamente um metro ou menos de distância. É possível que o fato aconteça devido a sua dimensão. Com quase três metros de largura e quase dois de altura, a obra comprime informação quando visualizada num livro, computador ou celular, as texturas e marcas do gesto somem, dando um aspecto mais contido. A construção feita de pinceladas largas e soltas, provavelmente com o uso de grandes trinchas, é notável por toda a pintura. Nota-se a óbvia conexão de procedimento entre o tapete mostrado em Síndicos (1662), a roupa de Rebecca em Casal como Isaac e Rebecca (1665) e outras obras do período que fazem uso dessa textura avermelhada. Nas primeiras visitas ao museu, uma análise cuidadosa revelou que o primuersel da pintura é provavelmente uma cor marrom neutra presente nas áreas da mesa e no fundo, particularmente notável na parte de cima da composição, portanto, não parece ser o tradicional alaranjado do início de sua carreira.

245

O Staalmasters parece possuir primuersel mais neutro, um marrom ou castanho levemente avermelhado, enquanto em outras partes, é possível observar um primuersel castanho mais acinzentado. É possível que essas diferenças sejam devidas a um primuersel local aplicado somente em áreas desejadas. As análises físico-químicas da obra revelam um primuersel cinza-acastanhado mas não revela onde, nem se há outras áreas com diferentes primuersel locais.

Base Primuersel Cinza acastanhado: Branco de Giz, pouco vermelho chumbo, pouco giz, pouco ocre, branco de vermelho ocre e preto de chumbo ou Giz com carbono ocre (amarelo)

Nas figuras, nota-se claramente a cor terrosa esverdeada nos lados escuros, aparentemente resultado de uma terra verde de baixa intensidade ou uma mistura de terras que surta um efeito neutro, levemente esverdeado, possivelmente da mistura das complementares, verde-vermelho. As luzes que compõem os tons de pele parecem ser compostas de uma mistura genérica que leva um pouco de amarelo, Siena e alguma laca para rosar a cor, enquanto algumas áreas de tom de pele são menos rosadas ou menos amareladas, revelando um tom de pele mais acinzentado, como o criado, figura central ao fundo. As análises físico-químicas das amostras revelaram a seguinte composição das misturas de tom de pele:

Tom de Pele (Composição de Mistura) Não há amostra do rosto das figuras. Amostra da “mão sobre a mesa”: Camada de cima: Preto de osso, pouco amarelo ocre e vermelho Camada de baixo: Branco de chumbo, pouco de preto, sombra, vermelho ocre

As áreas escuras da pintura são lisas e não empastadas, como grande parte do fundo e a cadeira a esquerda, que seria absolutamente lisa se não fosse pelas franjas do estofado. As áreas de impastes possuem maior quantidade de tinta nas áreas de luz dos rostos, colarinho e nas mãos das figuras. É possível observar impastes, em menor quantidade, também na algibeira vermelha a esquerda, nas luvas e no tecido do tapete que está na mesa.

246

Van de Wetering cita que “[...] na área mais iluminada do tapete do Os Síndicos, a camada de baixo é branca, o que explica a forte luminosidade dessa passagem” (VAN DE WETERING, 1997, p. 240). Portanto, Rembrandt usou aqui um primuersel branco para aproveitar as propriedades de refrações de uma camada inferior clara para iluminar através das camadas de vermelho que ficariam por cima, recorrendo a uma velatura. A obra parece mais simples no plano cromático do que a maioria das obras menores do período tardio. Parece claro que Rembrandt preferiu se concentrar inteiramente na expressão da textura e do jogo de luz e sombras, deixando que o plano cromático fosse mais simples para se concentrar em elementos que deveriam ser mais importantes do que a cor.

Análise de uma amostra retirada da área “mão sobre a mesa’”, arquivo 0001515594 (3046_5261_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 37 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Preto de osso, pouco amarelo ocre e vermelho 4) Branco de chumbo, pouco de preto, sombra, vermelho ocre 3) Giz, pouco de sombra e preto 2) Branco de chumbo 1) Base: giz, sombra, pouco de preto, vermelho ocre.

Análise de uma amostra retirada da área “área marrom ‘do retoque’”, arquivo 0001515604 (3046_5263_001.pdf) do Rembrandt Database: “a primeira camada é a base, feita de branco de chumbo em grandes partículas [coarse] misturado a giz e ‘sombra’, depois, uma camada fina de verniz com uma camada marrom-avermelhada de tinta por cima, que contem branco de chumbo, um vermelho fino e opaco, preto e pigmento marrom”

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Figura 38 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3)Marrom-avermelhado fino, branco de chumbo, preto, vermelho e amarelo ocre 2)Marrom transparente (verniz?) 1)Camada castanha com branco de chumbo [coarse] misturado a giz e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “o vermelho sobre a borda amarela que acompanha a toalha da mesa”, arquivo 0001515604 (3046_5263_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 39 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Camada marrom transparente com um pouco de vermelho opaco 5) Camada transparente com vermelho orgânico 4) Camada marrom-avermelhada com branco de chumbo, vermelho opaco, marrom e preto 3) Camada fina de isolamento [verniz?] 2) Segunda camada de base: branco de chumbo, giz, pigmento marrom em pedaços grandes 1) Primeira camada de base: giz com um pouco de branco de chumbo e ‘sombra’ castanha

248

Análise de uma amostra retirada da área “toalha”, arquivo 0001515604 (3046_5263_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 40 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2) Branco de chumbo [coarse], esmalte, em veículo 1) Vermelho ocre, um pouco de vermelho orgánico, preto de carbono (duas camadas?)

Análise de uma amostra retirada da área “toalha”, arquivo 0001515599 (3046_5262_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 41 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Esmalte, vermilion, Camada transparente com vermelho orgânico 4) Vermelho ocre fino 3) Preto de carbono 2) Mistura de vermelho ocre fino, “sombra”, vermelho orgánico, muito pouco preto de carbono 1) Base: branco de chumbo [coarse], giz e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “base que acompanha a borda direita”, arquivo 0001515609 (3046_5264_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 42 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

249

3) Branco de chumbo [coarse] e “sombra” 2) Branco de chumbo e “sombra” 1) Giz e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “ondulações da toalha”, arquivo 0001515614 (3046_5265_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 43 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

7) Verniz 6) - 3) Camada castanha: preto de carbono, vermelho ocre, vermelho orgánico em veículo: Al, Si, P, S/Pb, K, Ca, Fe 2) Branco de chumbo [course], “sombra”, um pouco de vermelho: Si, Pb, Ca, Fe 1) Giz e “sombra”

Análise de uma amostra retirada da área “toalha, acima da assinatura”, arquivo 0001515619 (3046_5266_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 44 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Esmalte e vermelho orgánico: Al, Si, S, K, Ca, Fe, Co 4) Castanho-avermelhado: vermelho orgánico, um pouco de vermelho ocre intenso e amarelo ocre, um pouco de preto de carbono (giz?): Al (P), S, K, Ca 3) Vermelho intenso, vermelho orgânico 2) Vermelho intenso 1) Branco de chumbo e “sombra”

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Análise de uma amostra retirada da área “borda da direita”, arquivo 0001515629 (3046_5268_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 45 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019. 4) Verniz 3) Branco de chumbo, giz, “sombra” 2) Giz, “sombra”, um pouco de vermelho intenso 1) Giz e sombra

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6.2.5. Casal como Isaac e Rebecca (ou A Noiva Judia; 1665)

Figura 46 Casal como Isaac e Rebecca. Fonte: Nossa, 2018.

A análise da obra, feita in loco, é possível imaginar que a cor mais clara, observável no fundo, trata-se do primuersel geral usado em Casal como Isaac e Rebecca, notável principalmente na parte de cima do lado esquerdo, um marrom levemente avermelhado com subtom violetado, uma terra neutra mas de tom vermelho frio, cor que se assemelha a tinta denominada caput mortuum, embora provavelmente trata-se de uma mistura e não de uma cor pura. Por cima desse primuersel mais claro há a aplicação de tons mais escuros que formam as áreas mais profundas do fundo. Van de Wetering cita que as análises definem o primuersel como uma cor marrom (VAN DE WETERING, 2005), sem descrever de forma objetiva o pigmento ou os pigmentos usados nessa área. Não há nenhuma informação sobre a presença de outros primuersel locais. As análises organizadas por Van de Wetering em A Corpus IV (VAN DE WETERING, 2005) mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

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Base Primuersel Quartzo, minérios de argila, ocre marrom, Marrom pouco de giz

As áreas iluminadas dos tons de pele são relativamente neutras, mas possuem claramente a presença de um amarelo possivelmente terroso e alguma laca vermelha para rosar. As áreas escuras dos tons de pele, notáveis principalmente nos rostos, possuem uma cor terrosa castanho-esverdeada, possivelmente uma mistura de complementares. As análises físico-químicas das amostras revelaram a seguinte composição das misturas de tom de pele: Tom de Pele (Composição de Mistura) Não há amostra de nenhuma área de pele. A área com cor mais próxima ao tom de pele é “parte de baixo da jaqueta amarela”: Camada de baixo: marrom transparente de ocres amarelos e marrom, possivelmente preto de osso. Camada de cima: amarelo de chumbo e estanho.

É particularmente notável o uso de uma laca vermelha e possivelmente um pouco de vermilion para realçar a carnatura das bochechas e da ponta dos narizes das figuras, uma óbvia evidência do uso de velaturas transparentes. Uma aplicação similar, embora mais generosa, é aplicada na maior parte do vestido de Rebecca, com provavelmente maior quantidade de vermilion e laca orgânica. Na manga de Isaac, é possível discernir algum amarelo que só poderia compreender um pigmento amarelo mais cromático e mais quente do que quaisquer uma das terras disponíveis para o artista, e portanto, é possível tratar-se de uma laca amarela como o buckthorn ou o amarelo de chumbo e estanho, talvez ambos. Casal como Isaac e Rebecca mostra vários padrões processuais do período tardio: a inconfundível lucidez cromática tão usual nos trabalhos de Rembrandt, incluindo a tradicional falta dos azuis, o uso das complementares verde-vermelho nas luzes e sombras do tom de pele, o modo translúcido do uso de lacas vermelhas nas vestimentas. Mas, a obra é um dos mais magníficos exemplos da maestria do pintor na aplicação do conceito de percepção tátil, ou espacialidade, chamado pelos holandeses de Khenlijkheit: a qualidade expressiva das texturas e da topografia dessa obra, principalmente na área das roupas das figuras, é absolutamente hipnotizante. No vestido de Rebecca, é possível discernir uma infinidade de marcas, que variam grandemente o modo como foram aplicadas, do arrastar de pincéis duros, espátulas e provavelmente outros objetos usados como ferramentas para aplicação da tinta. Essa atenção e cuidado com a qualidade da textura traduz-se em informação tátil cobrindo áreas que, do contrário, seriam lisas e monótonas, mas graças a essa

253

profusão de texturas, o observador pode se perder durante horas em cada centímetro da obra. As análises físico-químicas da obra revelariam mais tarde, a grande complexidade da estratificação das camadas da região do vestido de Rebecca e das vestes de Isaac. Embora a textura arrastada e rústica do tom de pele seja uma aplicação de impasto típica de Rembrandt, apresentando considerável informação tátil, em Casal do Isaac e Rebecca o procedimento de aplicação de tinta nas roupas é tão impressionante que há um contraste tátil incomum: faz parecer as aplicações de impasto dos tons de pele tímidos, embora os mesmos não sejam.

Análise de uma amostra retirada da área “vestido da mulher”, arquivo 0001516057 (3068_5084_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 47 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Vermilion 4) Verniz 3) e 2) Glacis [Velatura] de vermelho orgânico 1) Vermilion

Análise de uma amostra retirada da área “tecido amarelo”, arquivo 0001516059 (3068_5087_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 48 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

254

8) Verniz 7) Vermilion, um pouco de branco de chumbo e preto de carbono 6) Verniz 5) Vermilion [?] 4) Glacis [Velatura] de vermelho orgânico 3) Branco de chumbo 2) Vermilion, um pouco de branco de chumbo 1) Vermilion, um pouco de branco de chumbo e preto

Análise de uma amostra retirada da área “24 cm da margem inferior da direita”, arquivo 0001516059 (3068_5087_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 49 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Verniz 4) Camada transparente 3) Amarelo, um pouco de vermelho e preto 2) e 1) Base

Análise de uma amostra retirada da área “vestido da mulher”, arquivo 0001516063 (3068_40.10_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 50 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

8) Glacis [Velatura] de vermelho orgânico 7) Vermilion, branco de chumbo

255

6) Camada castanha [talvez a debaixo?]: um pouco de branco de chumbo, vermelho orgânico, vermilion 5) Vermilion, preto de osso, ocre [amarelo?] 4) Um pouco de vermilion e preto de osso 3) Vermilion 2) e 1) Base castanha: Al, Si, K, (Ca), (Ti), Fe

Análise de uma amostra retirada da área “fundo marrom: 12.5 cm do topo, 51.5 cm a partir da esquerda”, arquivo 0001516065 (3068_5093_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 51 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4) Preto de carbono com um pouco de vermelho ocre intenso 3) Esmalte e um pouco de ocre [preto?] 2) Preto de carbono, um pouco de preto de carbono e branco de chumbo 1) Branco de cumbo, amarelo ocre, um pouco de preto

Análise de uma amostra retirada da área “fundo verde: 30 cm a partir de cima e 49 cm a partir da direita”, arquivo 0001516068 (3068_5096_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 52 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019. 3) Esmalte, um pouco de amarelo ocre, veículo 2) Preto de carbono, pigmento vermelho e esmalte 1) Base

Análise de uma amostra retirada da área “ombro do homem”, arquivo 0001516069 (3068_5091_001.pdf) do Rembrandt Database:

256

Figura 53 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Vermelho e preto de osso 4) Preto de osso 3) Vermelho 2) Marrom transparente e esmalte 1) Marrom transparente claro e esmalte: Al, Si, K, Ca, Fe, Co

Análise de uma amostra retirada da área “chapéu do homem: 40 cm a partir do topo e 66 cm a partir da direita”, arquivo 0001516066 (3068_5094_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 54 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Preto de carbono 2) Preto de carbono 1) Preto de carbono Análise de uma amostra retirada da área “cinto do homem: 80 cm a partir do topo, 105 cm a partir da direita”, arquivo 0001516070 (3068_5097_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 55 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Mistura preta (Preto de osso e veículo) 2) Ocre marrom, preto de osso, esmalte

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1) Ocre amarelo e marrom, branco de chumbo, preto de osso em veículo castanho, esmalte

Análise de uma amostra retirada da área “chapéu do homem (tecido marrom): 6.5 do topo, 65 cm da esquerda”, arquivo 0001516072 (3068_5099_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 56 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Camada de preto 5) Veículo marrom com pigmento vermelho intenso (ocre vermelho), esmalte 4) Camada de veículo escuro 3) Ocre vermelho, um pouco de preto, em camada de veículo 2) Camada de veículo castanho, branco de chumbo e ocre [amarelo?] 1) Base castanha amarelada clara: preto de osso, giz, um pouco de amarelo ocre

Análise de uma amostra retirada da área “vestido vermelho da ‘noiva judia’”, arquivo 0001526169 do Rembrandt Database:

Figura 57 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

9) Verniz 8) Camada vermelho-acastanhada, branco de chumbo, ocre vermelho-acastanhado e um pouco de pigmento preto 7) Camada de verniz

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6) Camada de verniz 5) Camada fina amarelo-alaranjada opaca 4) Camada vermelho-acastanhada transparente (vermelho orgânico: brazilwood) 3) Camada fina castanha transparente 2) Camada vermelho-alaranjada opaca, vermilion 1) Castanho-avermelhado transparente com pigmento vermelho-alaranjado opaco (vermilion)

Um texto mais detalhado acompanha o resultado dessas análises no arquivo do Rembrandt Database. Ela descreve e exemplifica perfeitamente a complexidade da fatura do vestido de Rebecca:

[…] a amostra demonstra uma estructura de camadas complexa, com pelo menos um overpainting e duas camadas de verniz. Esse overpainting não é transparente, mas opaco, portanto não é uma velatura. A primeira camada é um vermelho-acastanhado levemente transparente com pigmento amararelo-avermelhado. Em cima disso, há uma camada opaca de um amarelo-alaranjado, consistindo de vermilion em óleo. Há uma camada fina marrom, seguida de uma camada grossa de marrom-avermelhado transparente [4], que consiste num pigmento orgánico, presumidamente brazilwood, o veículo dessa camada não contem óleo ou proteína. A última camada consiste num vermelho-alaranjado opaco, camada fina (Rembrandt Database, 2018).

Análise de uma amostra retirada da área “parte de baixo da jaqueta amarela’”, arquivo 0001526169 do Rembrandt Database:

Figura 58 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Camada de verniz 2) Camada de mistura marrom levemente transparente: feita de ocres marrom e amarelo e possivelmente preto de osso, com veículo de óleo

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1) Camada amarela composta de amarelo de chumbo e estanho, com veículo de óleo

Análise de uma amostra retirada da área “ombro do homem”, arquivo 0001526171 do Rembrandt Database:

Figura 59 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2) Pigmentos finos, vermelho e preto, em veículo de óleo 1) Base de esmalte descolorido e presumidamente quartzo, o veículo é óleo, baixo índice de carbohidratos e um pouco de proteína

Análise de uma amostra retirada da área “preto entre o braço do homem”, arquivo 0001526171 do Rembrandt Database:

Figura 60 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Verniz 4) Camada uniforme de preto com pigmento vermelho 3) Camada de verniz 2) Camada fina de com pigmento vermelho 1) Base de esmalte e presumidamente quartzo, um pouco de carbohidratos e proteína

Análise de uma amostra retirada da área “vermelho da saia”, arquivo 0001526171 do Rembrandt Database (não há desenho de estrutura de camadas): “[...] o vermelho do vestido é carmim, feito de cochinilha” (Rembrandt Database, 2018).

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Análise de uma amostra retirada da área “não definida359”, arquivo 0001526171 do Rembrandt Database:

Figura 61 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2) Verniz 1) Branco de chumbo e giz, o veículo é carbohidrato

Análise de uma amostra retirada da área “chapéu preto do homem”, arquivo 0001526170 do Rembrandt Database:

Figura 62 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4) Camada de pigmento preto 3) Camada ausente de pigmento 2c ) + 2b ) + 2a ) Essa camada relativamente espessa é de um marrom transparente com finas particulas de pigmento vermelho que não estão presentes em todo o filme em mesmas quantidades, há uma zona na seção 2b com quase absência do pigmento. Há pedaços de pigmento preto, não identificado como carvão e muito coarse para ser fuligem. Há diversas partículas de vidro na camada, pelo menos uma delas é azul, portanto é esmalte (Rembrandt Database, 2018) 1) Provavelmente parte da base

359 O texto é de difícil compreensão, parecendo relacionar a área analisada com o que se chama “stopsel”, uma espécie de receita de veículo ou pasta de cobertura usada no período, feita de branco de chumbo, giz e alguma liga de carbo-hidrato.

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Análise de uma amostra retirada da área “preto entre o braço do homem”, arquivo 0001526170 do Rembrandt Database:

Figura 63 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Partículas de preto com muito esmalte 5) Camada de preto e vermelho. Não contém esmalte360 4) Muitas partículas finas de vermelho, partículas grandes de preto, amarelo de chumbo e estanho, partículas grandes de branco de chumbo, algumas partículas de esmalte 3) Mesclada na camada 4, com menos vermelho, a camada é mais marrom que a 4 (particulas de pigmento marrom são visíveis) 2) Camada transparente, parte de cima da camada 1 1) Largos pedaços transparente, há esmalte presente. É possível a presença de giz, o que faria dessa camada a base

Análise de uma amostra retirada da área “canto inferior direito, tecido vermelho”, arquivo 0001525849 do Rembrandt Database:

360 As camadas 5 e 6 mostram como de fato o pintor conhecia as propriedades de seus pigmentos: a camada preta que possui vermelho não leva esmalte por que o vermelho seca rápido, enquanto a camada de preto puro leva “muito esmalte”, agente secante.

262

Figura 64 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Velatura de vermelho orgânico e preto de osso 4) Velatura de vermelho orgânico361 3) Vermilion 2) Vermilion e um pouco de preto de osso 1) Preto de osso com particulas de vermelho

361 Camadas 3 e 4 mostra o popular uso de uma camada opaca de vermilion com uma velatura de vermelho orgânico por cima. O uso dessa técnica para alcançar um vermelho carmim ótico é encontrada em vários trabalhos de inúmeros pintores diferentes, como Caravaggio e Rubens.

263

6.3. Mauritshuis O museu Mauritshuis (literalmente Casa de Maurice) é um museu localizado em Haia (Den Haag), Holanda. Foi construído entre 1636362 e 1641 como a residência de John Maurice de Nassau (1604 – 1679), conde e mais tarde príncipe do principado Nassau-Siegen, primo do stadtholder Frederik Henry363. Maurice foi apontado como o governador das posses e da colônia de Nova Holanda em 1636, território que compreendia o Recife, João Pessoa, Natal, São Luis, Fortaleza e Olinda, onde os holandeses conduziram inúmeras expedições e assentaram colônias. Por esse motivo, Maurice era chamado pelos holandeses de “O Brasileiro” por seu frutífero período de governo na colônia. O edifício de dois andares é extremamente simétrico e contém quatro apartamentos com um grande salão. Cada apartamento foi desenhado com uma antessala, aposento, gabinete e chapelaria (quarto de vestimentas). Originalmente, o edifício possuía uma cúpula, destruída num incêndio em 1704. A base dessa coleção consiste em duzentas pinturas que pertenceram ao último stadtholder da república holandesa, William V, Príncipe de Orange, doada ao estado holandês por seu filho, Rei William I, coleção que viria a formar o que se chama hoje de coleção do Gabinete Real de Pinturas (Royal Cabinet of Paintings), hoje com cerca de oitocentas obras, focadas em artistas holandeses e flamengos, como Pieter Brueghel, Paulus Potter, Peter Paul Rubens, Rembrandt van Rijn, Jacob van Ruisdael, Johannes Vermeer, Rogier van der Weyden e também de Hans Holbein.

362 Rembrandt possuía nessa época trinta anos e já havia estabelecido ateliê em Amsterdam com Jan Lievens. 363 Frederick Henry ou Frederik Hendrik (1584 – 1647).: foi o soberano príncipe de Orange e stadtholder da Holanda de 1625 a 1647. Foi o soldado que liderou as guerras contra os espanhóis, sendo sua maior proeza o cerco de Hertogenbosch em 1629, maior cidade fortificada pelos espanhóis com defesas marítimas.

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6.3.1. Homero (1663)

Figura 65 Rembrandt Van Rijn, Homero (Mauritshuis, 1663). Fonte: Nossa, 2018.

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Homero (1663) é a famosa obra devolvida a Rembrandt por seu cliente italiano Don Antônio Ruffo364. Homero é uma das pinturas do período tardio analisada in loco com maior aparência monocromática. A primeira impressão, provavelmente causada pela iluminação baixa, é que a pintura necessita de uma troca de verniz, pois aparenta estar coberta de verniz velho, comprometendo a pintura. A obra se encontra numa parede com fraca iluminação, essa iluminação torna difícil enxergar a cor e os valores corretos da imagem. Há ainda uma mistura de luz artificial e natural proveniente de uma janela próxima a obra, quando a luz natural muda, a temperatura das cores são influenciadas e a percepção da obra é alterada. Uma inspeção mais detalhada, mostra que ela apresenta áreas mais avermelhadas do que amareladas, assim como luzes mais acinzentadas em outras áreas e em outras, principalmente no fundo e no rosto da figura, é possível notar tons marrons esverdeados, embora isso dependa da variação de temperatura da luz do ambiente. Aparentemente, segundo De Vries, as áreas mais iluminadas do ombro foram feitas com uma mistura creme amarelada, composta de “[...] amarelo de chumbo e estanho e branco de chumbo, mas também amarelo ocre” os meio tons são “marrom, vermelho e amarelo”.

364 De Vries relata o histórico da pintura Homero (1663), que apresenta informações pertinentes a essa discussão. De acordo com uma carta repleta de detalhes sobre a transação de encomenda dessa obra, a pintura foi despachada para Messina, na Itália, para o cliente Don Antônio Ruffo, embora não tenha sido a obra que fora encomendada, o cliente fizera a encomenda de uma obra que representasse Alexandre o Grande, compreendendo a obra Alexandre364 (1663). Aparentemente, o cliente não aprovou o estado de ambas as obras e as enviou em 1662 de volta a Amsterdam para serem terminadas. O cliente não aprovou completamente a pintura que havia encomendado, Alexandre, e se dispôs a aceitar Homero contanto que o pintor cobrasse um preço menor, como uma compensação pela incompletude da obra Alexandre. O pintor não aceitou a oferta, teimando nos preços originais. No entanto, declarou-se pronto a terminar Homero se informado das dimensões necessárias para a obra364, o pintor completou a pintura em 1663 (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 171).

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Figura 66 Luz da área do ombro. Fonte: Nossa, 2018.

Segundo análise feita por De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 169), há um primuersel local feito por trás da figura de cor cinza acastanhado feito de “branco de chumbo e sombra”.

Base Primuersel Duas camadas Primuersel geral: giz, ocres marrom-amareladas: amarelo e vermelho, sombra e Giz, ocre (amarelo) e um pouco de branco. sombra, pouco branco Em outra análise: “camada fina de chumbo avermelhada”. Primuersel local na figura: branco de chumbo e sombra

É possível ver, principalmente nas vestes, que os meios-tons e partes escuras do fundo são mais avermelhados, aparentemente uma cor acastanhada provavelmente com laca orgânica, e conforme procedeu para outros estágios, o artista começou a aplicar luzes, tornando as novas misturas cada vez mais neutras, aproximando-se de temperaturas mais frias. Nas áreas do fundo, De Vries identificou que os meios-tons são compostos de “giz, ocres [amarelo e vermelho] e sombra com pouco branco e chumbo365” (DE VRIES; TÓTH-UBBENS;

365 Em outra passagem, identifca como “[...] camadas vermelho-acastanhadas (branco de chumbo, giz, ocres amarelo e vermelho, sombra)”.

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FROENTJES, 1978, p. 169). É provavelmente a sombra que funciona como agente neutralizador nesse caso. Com os poucos resultados disponíveis sobre essa pintura, nao foi possível encontrar análises extraídas de áreas de tons de pele ou camadas compostas de uma mistura neutralizadora ou outros tons de pele da figura. É uma das poucas obras analisadas aquí que não demonstra esse tipo de mistura. Análises de diferentes áreas do rosto seriam fundamentais para comprender a composição das misturas e comprovar a presença da mistura neutralizadora.

Tom de Pele (Composição de Mistura) Não há amostra de nenhuma área de pele.

Figura 67 Primuersel local cinza acastanhado. Fonte: Nossa, 2018.

Não se deve descartar a possíbilidade de que Homero é uma obra inacabada e que sua aparência monocromática é condição da ausência de camadas que teriam como finalidade descrever de modo mais natural as cores da figura e do resto dos elementos.

Análise de uma amostra retirada da área “não definida”, número 0001494112 arquivo 853_examination-report_1963.pdf, do Rembrandt Database (análise não contém imagem esquemática de estratificação):: “Uma camada amarelo-acastanhada de giz e ocre (‘sombra’)

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seguida de um base de giz, com forte cor amarelo-esbranquiçada [...] depois segue uma camada de tinta marrom”.

Análise de uma amostra retirada da área “não definida”, número 0001490415 arquivo RKD003000066_001.pdf, do Rembrandt Database (análise não contém imagen esquemática de estratificação):: Base: consiste em duas camadas marrom-amareladas, na qual uma terceira camada avermelhada, mais fina, foi colocada. Uma camada cinza foi colocada por baixo da figura. Camada de cima: consiste em camadas bem grossas. As pinceladas feitas pelo novo tratamento não batem. Além das camadas de cima, a pintura foi, particularmente na parte de baixo, danificada por fogo. Nas camadas com mais veículo, um efeito de craquelura ‘pele de jacaré’ pode ser visto, como na faixa [do retratado]. A tinta amarela do colarinho foi aplicada com espátula. A adesão entre as camadas é satisfatória. Há grande perda de superfície pictórica na parte de baixo. As falhas foram coloridas com tinta escura. O contraste sugere que a superfície original foi consertada localmente (como exemplo, na parte escura da manga), provavelmente a área a esquerda, embaixo, foi repintada por cima.

Segundo as análises de Vries: “[...] a tinta amarela do xale, parcialmente misturada a branco, é grossa e aparentemente aplicada com espátula”. Muitas partes da capa foram restauradas, especialmente nas regiões de baixo e a esquerda. Em alguns lugares ainda é possível ver “o que restou da velha camada, que parece ter sido queimada“ (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 167). De Vries segue categorizando as análises da obra:

A primeira camada da base é de um amarelo rosado claro, composta de giz e um pouco de ocre. Uma ou duas camadas seguem essa camada preparatória, num tom mais escuro de um marrom a avermelhado, composto de giz, ocres e ‘sombra’ misturado a um pouco de branco de chumbo. Acima dessas camadas avermelhadas camadas de pré-pinturas cinza-acastanhadas foram detectadas em vários lugares no fundo, capa, cabeça e barba, na qual ‘sombra’ e bastante branco de chumbo foram usados. Abaixo, do lado direito, embaixo da camada mais alta, uma camada fina de marrom escuro feita de preto de carbono e ‘sombra’ foi encontrada. Na áreas escuras da cabeça, no chapéu e na barba, a pré-pintura cinza- acastanhada mencionada antes foi coberta parcialmente por uma camada mais clara de modo que o tom das áreas escuras também é determinado por essa pré-pintura. O branco na pintura é branco de chumbo, com traços de cobre, prata e estanho detectados. O pigmento marrom, vermelho e amarelo da capa, face e barba são ocres, mas a faixa amarela da testa consiste em amarelo de chumbo e estanho misturado com branco de chumbo. O amarelo do ombro

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direito e da manga é composto principalmente por amarelo de chumbo e estanho e branco de chumbo, mas também amarelo ocre se encontra presente. Não foi detectado pigmento de laca, no tom de pele ou nas áreas de sombra (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 169).

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

Homero (1663) Textura na superficie da tinta indica exposição local ao calor; tinta amarela na Observações Especiais manga direita aplicada com espátula Exame de Raio-X Sem pentimenti Outros elementos no Prata, cobre e estanho Branco Branco de chumbo, amarelo de chumbo e estanho, ocres marrom, amarelo e Pigmentos da Camada final vermelho, preto de osso Camada cinza-acastanhada por baixo da figura (branco de chumbo e sombra): Pré-pintura das figuras veja camadas intermediárias Camadas vermelho-acastanhadas (branco de chumbo, giz, ocres amarelo e vermelho, sombra); em alguns lugares camada cinza-acastanhada (sombra e Camadas Intermediárias branco de chumbo); em alguns lugares camada marrom escura (sombra e preto de osso) Primeira camada Base (rosa) giz, ocres amarelo e vermelho Suporte Linho

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6.3.2. Saul e David (1652)

Figura 68 Rembrandt Van Rijn, Saul e David, Mauritshuis, 1652. Fonte: Nossa, 2018.

Saul e David mostra duas figuras num ambiente escuro, “[...] a esquerda Saul, sentado, segurando uma lança e limpando seu olho na cortina. David agachado em frente a ele, tocando sua harpa. A temática de Saul e David é geralmente considerada como o momento anterior a fúria do Rei Saul, que por duas vezes ataque David com sua lança” (GORDENKER; NOBLE, 2013, p. 2). A obra possui uma curiosidade em particular: segundo Noble, “em alguma época, as duas figuras foram cortadas e reunidas novamente”. A obra foi comprada por Bredius em 1946 e mais tarde, pelo Mauritshuis. O historiador Horst Gerson recusou a obra como um verdadeiro Rembrandt em 1969. Noble acredita que a pintura não possui mais seu tamanho original366, faltando pelo menos dezoito centímetros entre as duas figuras e aproximadamente a mesma

366 Segundo Noble, o tamanho original era de aproximadamente 145 x 180 cm (NOBLE et al., 2010, p. 4)

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distância na parte inferior, portanto, mais larga e mais alta originalmente (NOBLE et al., 2010). Quanto à área da cortina representada na pintura, Noble certifica que “[...] O exame com o stereomicroscópio revelou que as pinceladas marrom-avermelhadas usadas para representar as dobras da cortina não são originais, desde que a tinta alastra por cima de áreas danificadas. A parte mais intensa da cortina, próxima a figura de Saul, parece ser original” (NOBLE et al., 2010, p. 4). Sobre as características da base e da estratificação da pintura, Noble acrescenta:

A base é feita de duas camadas: uma mais abaixo, mais escura, consistindo de branco de chumbo largo [coarse] e fino com ‘sombra’ e um pouco de esmalte, seguido por uma camada mais clara cinza- acastanhada contendo proporcionalmente mais branco de chumbo e ‘sombra’. Karin Groen classifica esse tipo de base entre o grupo de pinturas do ateliê de Rembrandt entre 1650 e 1660 compostos principalmente de branco de chumbo e sombra (Groen 2005, 674– 675). Na camada superior da base, a análise de dois cross-sections identificaram, em adição ao branco de chumbo, ‘sombra’ e um pouco de esmalte e um número de outros pigmentos, incluindo um marrom orgânico (possivelmente terra de Cassel), preto de osso, terra amarela, laca orgânica, e uma única partícula de vermilion sugerindo o uso/mistura de resíduos de tinta, possivelmente da paleta367. Notável desde que resíduos similares foram encontrados em outras pinturas de Rembrandt que datam entre 1660368, incluindo Autorretrato no Cavalete (1660) (Louvre) e possivelmente outras três pinturas do Rijksmusuem, Autorretrato como São Paulo, Jovem Monge Capuchinho e Negação de São Pedro. Além disso, esse tipo de base implica que fora feito em seu ateliê (NOBLE et al., 2010, p. 6).

Base Primuersel Camada 1: Branco de chumbo, Marrom acinzentado: branco de sombra, pouco de chumbo e sombra, esmalte, esmalte marrom orgânico, preto de osso, terra amarela, laca Camada 2 (mais clara): orgânico, uma única partícula Mais branco de de vermilion (possivelmente chumbo, sombra, mistura feita de sobras de tinta) pouco de esmalte

367 Van de Wetering sugere que o artista usava deliberadamente a sobra de tinta do pinceliere. 368 Refutando a hipótese de que a obra não pertence ao ateliê do artista, proposta por Horst Gerson.

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Camadas de um estágio preparatório, possivelmente o stelsel e o doodverf, em tons terrosos acastanhados também foram detectadas nas análises feitas por Noble. A análise confirma presença de terra de Colônia (marrom orgânico) nas misturas desse estágio. O autor relata as seguintes características:

Tinta preta e marrom pintadas como camadas de pré-pintura/esboço foram identificadas em todas as amostras de áreas originais da pintura. Essas camadas são notavelmente grossas (50-100 µm). Nas áreas de luz da cortina, próximo a figura de Saul, e na parte superior esquerda do fundo, a primeira camada marrom contém marrom orgânico (terra de Kassel?) e pigmentos terrosos finos foram identificados, enquanto na áreas da cortina ao fundo próximas a David, uma mistura mais escura contendo preto de osso, giz e um pouco de laca vermelha foi encontrado. Em algumas áreas somente a base parece presente. Essas camadas de esboço são na maior parte cobertas por uma grossa superfície de tinta, mas são vistos nas partes danificadas que sofreram perda de camada pictórica (NOBLE et al., 2010, p. 6).

Sobre as análises das amostras extraídas das áreas da cortina e do fundo da pintura, Noble relata os resultados e descobertas feitas em sua pesquisa:

[...] as amostras da cortina e do fundo original revelam uma ou duas camadas compactas de tinta marrom por cima de camadas grossas de um marrom escuro. A cor e a composição das camadas de cima variam levemente dependendo do local: marrom quente na área da parte de cima do fundo, enquanto na área da cortina entre as figuras a tinta é um vermelho ou violeta acastanhado. Nessas áreas, uma mistura de preto de osso, terra de Kassel, terra amarela e vermelha, giz e adições de esmalte e laca vermelha foram identificadas. A mistura de lacas e esmalte nas camadas de tinta escura são características do ateliê de Rembrandt. Nas amostras extraídas da área entre as duas figuras, a presença de esmalte nas camadas de cima indica uma velatura de um vermelho violetado que parece agora perdido. Há traços do elemento arsênico, ferro, níquel e alumínio presente nas partículas de esmalte consistentes com os elementos normalmente detectados no esmalte do século dezessete. As camadas de build-up e a composição dessas camadas escuras possui incrível similaridades por exemplo, com o fundo escuro de Retrato de Margaretha de Geer (1661) na National Gallery de Londres (Bomford et al. 2006, 176–77). É notável que em todos os cross- sections das áreas originais da cortina, pelo menos um, e as vezes duas camadas finas fluorescentes (verniz?) são discerníveis, sugerindo sessões diferentes de trabalho. Camadas fluorescentes visualmente similares foram identificadas, por exemplo, na obra Homero, no Mauritshuis (NOBLE et al., 2010, p. 7).

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Noble, em seu estudo de 2010, discute a descoberta de camadas corretivas feitas por cima das originais na área da cortina, provavelmente produzidas durante os tratamentos de restauração da pintura:

A distinção entre a cobertura e a camada original de tinta provou ser desafiadora, desde que contém elementos similares. A interpretação foi facilitada pela comparação de cross-sections da área da cortina próximo a Saul, considerada autêntica, assim como uma comparação com cross-sections da área restaurada da borda superior da pintura, onde a cobertura se estende para além do limite de uma área danificada [buraco]. Um cross-section da área restaurada da cortina revela que pigmentos como preto de osso, giz, terra vermelha e vermilion foram usados na camada de cima, junto com traços de cádmio, possivelmente por causa de um pigmento moderno ou secante. Por cima da base, traços de tinta marrom avermelhada contém esmalte e terra vermelha podem ser interpretados como o restante da camada original. A composição da camada vermelha de cima é similar aquele retirado da restauração, e completamente diferente daquele retirado de parte da cortina considerado autêntico, onde é mais compacto e feito de laca vermelha, terra vermelha e esmalte

Gordenker e Noble, numa análise posterior (2013) a pesquisa de 2010 de Noble, considera que: “A base e o desenvolvimento da área da cortina, que contem pigmentos como esmalte, laca vermelha e terra vermelha são considerados característicos das pinturas de Rembrandt” (GORDENKER; NOBLE, 2013, p. 7). Além disso, revela que “[...] uma investigação da área da cortina [...] revelou que a cortina é parte original do esboço da composição e mais, que está praticamente intacta, exceto por uma fina tripa ao longo da junção vertical e alguns danos espalhados no topo e embaixo” (GORDENKER; NOBLE, 2013, p. 8). Nenhuma amostra extraída das áreas do tom de pele foram encontradas para definir a estratificação e o conteúdo das misturas usadas nessas áreas. Há somente a descrição do primuersel local usado por baixo dos rostos das figuras e da camada final, confirmado por De Vries. Além dessa amostra de De Vries, há também uma análise de Noble (NOBLE et al., 2010) extraída de uma “camada superior a base”, contendo: “preto de osso, terra amarela, laca e uma partícula de vermilion”. É possível que a mistura seja na verdade restos de tinta da paleta. No entanto, a mistura forma um castanho neutro que pode ser a mesma cor da base para o doodverf ou o tom de pele básico.

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Tom de Pele (Composição de Mistura) De Vries: Pré-pintura (primuersel) das figuras: camada cinza-escura, contém branco de chumbo, preto de carbono e sombra.

Pigmentos da “Camada Final” (não define de qual área): branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, amarelo de chumbo e estanho, laca vermelha, azurite, esmalte e preto de osso.

Noble: “Camada superior a base”: preto de osso, terra amarela, laca e uma particula de vermilion”.

Análise de uma amostra retirada da área “canto de baixo, 0.5 cm da parte inferior, 42 cm da direita”, arquivo 0001516143 (2912_4655_001.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de imagem da estratificação de camadas): 4) Vermilion: C, O, (Al), Si, S, (Ca), (Fe), Hg vermilion 3) Camada escura: preto de osso e um pouco de ocre: C, O, (Mg), (Al), Si, P, Pb, (K), Ca, (Ti), Fe 2) Segunda camada de base: branco de chumbo e ‘sombra’: C, O, (Mg), (Al), Si, Pb, (K),(Ca), Mn, Fe, omber 1) Primeira camada de base: branco de chumbo, ‘sombra’ e um pouco de esmalte: C, O, (Na), (Mg), (Al), Si, (Pb), K, (Ca), (Fe), (Co) smalt

Análise de uma amostra retirada da área “borda inferior, 0.5 cm a partir da parte de baixo e 42 cm da direita”, arquivo 0001516143 (filename: 2912_4655_001.pdf) do Rembrandt Database (análise não possui ilustração esquemática das camadas):

4) Vermilion 3) Camada castanha: preto de osso e um pouco de ocre 2) Base (2° demão): branco de chumbo e sombra 1) Base (1° demão): branco de chumbo, sombra e esmalte

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

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Saul e David (1652) Raspagem com ponta seca na tinta molhada (barba de Saul). Pintura cortada em Observações Especiais dois pedaços e reunida mais tarde, fragmento de uma terceira pintura antiga inserida Exame de Raio-X Sem pentimenti Outros elementos no Prata, cobre e estanho Branco Branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, amarelo de chumbo e Pigmentos da Camada final estanho, laca vermelha, azurite, esmalte, preto de osso Camada cinza escura por baixo da cabeça e turbante de Saul e de David; Pré-pintura das figuras parcialmente por baixo da túnica e do manto de Saul (sombra, preto de carbono, branco de chumbo); camada preta por baixo do colarinho de David Segunda demão cinza-acastanhada de base (ver primeira camada); camada Camadas Intermediárias preta (preto de osso) em quase toda a área (cinza acastanhado) giz, branco de chumbo, amarelo ocre, sombra, preto de Primeira camada Base osso Suporte Linho, duas telas recosturadas

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6.3.3. Dois Homens Negros (ou Dois Mouros; 1661)

Figura 69 Rembrandt Van Rijn, Dois Mouros, Mauritshuis, 1661. Fonte: Nossa, 2018.

In loco a pintura Dois Homens Negros difere dramaticamente das imagens impressas e digitais sobretudo pela sua falta de luz: a pintura é consideravelmente escura. Tem-se a

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impressão que a pintura sofreu com a ação do tempo, fazendo com que os pigmentos perdessem sua eficácia. No entanto, também é possível que os estágios de luz mais fortes não foi concluída. De qualquer forma, a obra também exibe um certo aspecto de estudo, ou obra inacabada. Seja lá qual foi a verdadeira intenção do artista, é preciso olhar de perto Dois Homens Negros para compreender melhor o que Rembrandt tentou descrever nos rostos e nas roupas das figuras, a falta de contraste compromete sua fruição, a iluminação do Mauritshuis também não parece ajudar. O plano cromático é absolutamente simples, praticamente monocromático, sem contrastes fortes de temperatura e sem nenhum plano de variação. Dois Homens Negros aparenta ter sido pintada com uma escala tonal que usa como base um marrom esverdeado e uma outra escala tonal que usa de base um marrom mais quente. A escala de valores feita com a base marrom esverdeada parece presente nas vestes das figuras e em algumas áreas do fundo, enquanto a escala de valores de marrom mais quente parece presente no tom de pele das figuras. Sendo a pintura em seu estado natural praticamente monocromática, mostrando apenas uma leve diferença entre marrons quentes e marrons esverdeados, seria possível considerar a hipótese de que ou se trata de uma pintura abandonada no estágio de doodverf ou Rembrandt considerou a obra pronta já na camada morta. Em nenhuma das análises do material científico que investiga a pintura há indicações de haver um estágio de stelsel usando cores marrons, embora seja possível que De Vries simplesmente não tenha conseguido definir tal estágio. Também não se define uma camada morta acinzentada, embora seja possível que essa pintura seja o próprio estágio de doodverf ou a camada intermediária que De Vries define como cinza-acastanhada. In loco, aparentemente a imprimatura, ou primuersel geral, é a cor que se observa no fundo: um marrom esverdeado. Segundo as análises físico-químicas, a base é composta de branco de chumbo, giz, ocres amarelo e vermelho. De Vries descreve que é uma cor “vermelho pálida”, portanto, presume-se que alguma outra cor está presente no fundo, cobrindo a cor original. Descreve também uma camada subsequente de giz, branco de chumbo, ocre vermelho, sombra e preto de carbono. A descrição de De Vries não parece sugerir uma mistura esverdeada, mas de um castanho quente, no entanto, é possível que a quantidade de branco de chumbo contida nessa mistura, faça com que essa camada subsequente esfrie a camada vermelho-pálida de baixo, dando a impressão do marrom esverdeado que se vê na pintura. Esse fenômeno é chamado de efeito túrbido por Van de Wetering. Ele não define se essa camada é o primuersel. Sendo a camada “vermelho pálida” a

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base, presume-se que essa cor, compreendendo a cor da base e da “camada subsequente” de De Vries, seja o primuersel.

Base Primuersel Vermelho pálido: Camada cinza acastanhada: branco de chumbo, giz, giz, branco de chumbo, ocre ocres amarelos e vermelho, sombra, preto de vermelhos. carbono.

A análise ainda relata que a “última camada” é composta de branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, terra de Colônia e preto de osso. É possível supor que as cores dessa mistura resultaria num marrom quente portanto supõem-se que ela é a composição do tom de pele das figuras, enquanto as vestes podem ser a mesma mistura com menor quantidade de vermelhos, tornando-a mais fria.

Tom de Pele (Composição de Mistura) Amostra da “última camada”: branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, terra de Colônia e preto de osso (marrom esverdeado?).

Aparentemente pouca tinta foi usada na fatura dessa pintura. Há inúmeras áreas difusas que dão a impressão de uma contínua ação do esfregar do pincel, provavelmente espalhando a tinta numa camada fina e sem volume. Não há áreas altas de impasto e nem áreas de mezzotinti que mostrem volume, é uma das obras mais lisas do período tardio.

Análise de uma amostra retirada da área “provavelmente da borda da pintura. Base e camada pictórica”, arquivo 0001494121 (56_examination-report_1963.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de imagem da estratificação de camadas): “Análise espectral: Fe, Mn, Ca, Pb, Al, Mg, Si, Ba (Cu, Ag, Ti) (Provavelmente da

‘sombra’). Presença de: Branco de chumbo e giz (CaCO3). Cross-sections: base de 0.2 mm composta de vermelho ocre, ‘sombra’, branco de chumbo, giz, seguida de vários outras camadas marrom-avermelhadas”

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

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Dois Mouros (1661) Observações Especiais - Exame de Raio-X Faixa usada pelo mouro da frente originalmente pendurada cruzando o peito Outros elementos no Prata, cobre e estanho Branco Branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, terra de Colônia, preto Pigmentos da Camada final de osso Pré-pintura das figuras - Camada cinza-acastanhada (giz, branco de chumbo, ocre vermelho, sombra, Camadas Intermediárias preto de carbono) Primeira camada Base (Vermelho pálido) Branco de Chumbo, giz, ocres amarelo e vermelho Suporte Linho

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6.3.4. Retrato de um Idoso (1667)

Figura 70 Rembrandt Van Rijn, Retrato de um Idoso, Mauritshuis, 1667. Fonte: Nossa, 2018.

A análise in loco da obra Retrato de um Idoso, revelou o uso de misturas marrom esverdeadas nas sombras dos tons de pele. É possível que essa cor seja uma terra pura, naturalmente um marrom esverdeado como uma sombra natural ou uma mistura de uma terra

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vermelha neutralizada com alguma terra amarela (como o amarelo ocre ou o Siena natural). Os meio tons e as luzes não possuem um valor muito alto, fazendo com que as luzes mais intensas não sejam misturas com branco em excesso, mas luzes mais cromáticas. A parte iluminada do rosto não possui o rosa as vezes característico de tons de pele mais delicados, mas inclinados para um tom de pele laranja neutro, com algumas áreas mais avermelhadas mas não rosadas. A falta de rosa nesse tom de pele se torna mais óbvio quando comparado a outras obras, como por exemplo, ao tom de pele usado Autorretrato (1669), presente na mesma sala do Mauritshuis. É possível que esse tom de pele possua mais vermelho ocre do que laca vermelha, embora com certeza haja uma parte de laca vermelha nesses vermelhos. As áreas de sombra do tom de pele, tanto do rosto quanto das mãos, poderiam ser considerados praticamente meio tons, pois os mesmos não são tão escuros. A cor geral dessas partes escuras parece ser um verde neutro, isto é, uma terra esverdeada de baixa intensidade, embora até pareça um verde consideravelmente mais intenso em algumas áreas do que os verdes tradicionalmente usados nas sombras de suas pinturas tardias. Essa cor verde mais intensa, talvez até mais quente, que aparece somente em algumas áreas se parece, a grosso modo, com as terras italianas esverdeadas. As análises físico-químicas não definem de qual área do rosto foi extraída a amostra que revela o conteúdo pigmentário do cross-section, no entanto, parece correto afirmar que provavelmente, o mesmo foi extraído de uma área de luz do tom de pele. É possível que as áreas de sombra sejam a mesma mistura com menor quantidade de vermelhos, ou ausência total dos mesmos. A pintura não dispõe de amostras definidas de modo objetivo como “extraídas do tom de pele”. No entanto, embora De Vries seja vago ao citar o conteúdo da “camada superior da pintura”, supõem-se que essa compreende uma amostra retirada do tom de pele, pois é a única área observável da pintura onde uma combinação como essa pode estar presente.

Tom de Pele (Composição de Mistura) “Camada Final”: branco de chumbo, ocres marrons,amarelos e vermelhos, laca orgânica, vermilion e preto de osso.

É possível discernir uma cor marrom quente por baixo da roupa da figura, ao que tudo indica, uma camada anterior, provavelmente o primuersel geral da pintura ou primuersel local da figura. Não foi possível identificar parte de um primuersel da mesma cor no rosto da figura, indicando que, eles não são o mesmo: o artista provavelmente suprimiu o primuersel geral (marrom quente) pintando alguma outra cor de modo direto na área da figura.

282

As análises organizadas por De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214) mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

Base Primuersel Ocre marrom e vermelho, sombra (?), Cinza-acastanhado (Escuro): giz, um pouco de vermelho ocre, branco de branco de chumbo, um chumbo, giz, sombra, preto de pouco de preto de carbono. osso.

De Vries não define exatamente qual é o primuersel, portanto, aquilo que chama de “camada intermediária”, contendo vermelho ocre, branco de chumbo, giz, sombra, preto de carbono, pode ser ou o primuersel ou o doodverf.

Análise de uma amostra retirada da área “área marrom abaixo da mão esquerda, próxima a borda da composição”, arquivo 0001496582 (MHManCoudray_Groen_x4504_sampleform_ 1999.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de imagem da estratificação de camadas):

Figura 71 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Verniz 2) Base castanha: ocre marrom e um pouco de ocre vermelho, ‘sombra’ (?), branco de chumbo, giz, um pouco de preto de osso. 1) Base vermelha-acastanhada: ocre marrom e vermelho, ‘sombra’ (?), giz, um pouco de branco de chumbo, um pouco de preto de osso.

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

283

Retrato de um Idoso (1667) Observações Especiais - Exame de Raio-X Sem pentimenti Outros elementos no Prata, cobre e estanho Branco Branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, laca vermelha, Pigmentos da Camada final vermilion, preto de osso Camada escura por baixo da cabeça como descrito na linha 3 (Intermediárias); Pré-pintura das figuras camada preta por baixo do branco do colarinho Segunda demão de base cinza-acastanhada escura (Vermelho ocre, branco de Camadas Intermediárias chumbo, giz, sombra, preto de carbono) Primeira camada Base Vermelho pálido (ocres vermelho e amarelo, giz) Suporte Linho

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6.3.5. Autorretrato (1669)

Figura 72 Rembrandt Van Rijn, Autorretrato, Mauritshuis, 1669. Fonte: Nossa, 2018.

Ao vivo, o autorretrato do Mauritshuis mostra o uso de uma terra vermelha levemente violetada, que se assemelha à cor vista no pigmento moderno chamado de Caput Mortuum. Não é uma terra tão violetada quanto o Caput Mortuum da marca Lukas, possuindo maior inclinação para um marrom com um toque de carmim violetado. Seria essa cor a Terra de Colônia pura, ou esse pigmento misturado a algum outro?

285

A imagem observada em livros ou em imagens digitais na internet, seguindo a fama dos procedimentos de Rembrandt, aparenta ser generosamente empastada, principalmente na área do chapéu. In loco a área mostra ter sido construída com boa quantidade de tinta, mas não é tão empastada quanto se espera. A surpresa ajudou a demonstrar que a maneira rústica também é construída de efeitos secos e arrastados, estes, às vezes parecem ser resultado apenas da quantidade de tinta, mas a verdade é que nem sempre o volume é necessário para conseguir uma forma rústica expressiva, na realidade, o efeito pode às vezes ser conseguido com menor quantidade de tinta. O mesmo pode ser dito dos cabelos: nessa área, a aplicação é surpreendentemente lisa, de fato tão lisa que se nota perfeitamente a textura do tecido por detrás da camada pictórica. O tom de pele nas áreas claras parece conter uma pequena quantidade de pigmento amarelo, sendo de maneira geral um tom de pele mais rosado do que amarelado, é evidente o uso, de certo modo abundante, de uma laca vermelha para rosar as luzes do rosto. Nas áreas de sombra dos rosto é possível discernir tons de cinzas esverdeados.

Tom de Pele (Composição de Mistura) De Vries não define de quais partes do tom de pele a amostra foi extraída: “[...] particulas de laca vermelha também foram achadas misturadas ao branco de chumbo no tom de pele, também com presença de ocres.

A mistura usada na camisa parece ter sido feita com os pigmentos ocres vermelho e amarelo misturados a diferentes quantidades de preto de carbono. Sobre as análises feitas com radiografia, principalmente nas áreas do chapéu, De Vries cita:

A radiografia mostra que a base consiste numa fina camada de branco de chumbo. Nas áreas onde a base é de fato muito fina é possível observar áreas escuras na radiografia [...] conclui-se que primeiramente o artista pintou um chapéu rígido369 mas mudou de ideia depois. Para o resto [da pintura, sem contar a área do chapéu], as radiografias [que mostram a pré-pintura] coincidem com a superfície, um retrato pintado de modo direto, sem uma pré-pintura com branco de chumbo de forma que as pinceladas das áreas de luz são visíveis na radiografia (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 179).

De modo geral, De Vries considera a pintura como lisa e em varias áreas é possível ver a tela crua, particularmente no fundo e no cabelo. Uma pré-pintura (ou primuersel local) escura

369 Faz uso do termo inglês “flat cap”.

286

pode ser vista em varias áreas do colarinho branco, na testa e também nos cinzas e marrons da boina, nesta área, foi aplicado por cima da camada grossa de branco de chumbo da boina original. De Vries também observa que uma pré-pintura ou camada de baixo escura pode ser vista no lado direito do rosto, onde encontra-se uma mistura acinzentada sobre o branco, “tudo isso pode ser o resultado de abrasão da superficie da camada original”. Segundo o autor, uma camada superior contendo muito vermelho ocre foi encontrada na áreas mais altas do casaco. Uma faixa escura de mais ou menos dois cm de espessura passa por toda extensão da borda superior da pintura, tinta de um “preto-acastanhado”, parecendo original, ou pelo menos “antiga”. Abaixo dessa faixa, De Vries observou que a tinta escura foi parcialmente re-pintada com a cor cinza-esverdeada do fundo, “dando a impressão de ser uma adição posterior (restauração)” (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 181). Em varias áreas acima da boina a tinta escura aparece por detrás do cinza esverdeado e segundo De Vries, o mesmo pode ser visto ao longo de toda a borda esquerda da pintura (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 182). O exame de pigmentos, segundo o autor, revelou que:

[…] a primeira camada [base] cinza-acastanhada370 consiste de branco de chumbo (coarse), sombra, preto de chumbo, vermelho e amarelo ocre. Essa base foi coberta com uma segunda camada de base preto-acastanhada feita de preto de osso, terra de Colônia e um pouco de ocre [amarelo]. Em alguns lugares, uma terceira camada foi encontrada composta da mesma maneira que a camada mais baixa [primeira] e seguida de outra camada marrom. É nessa camada escura que o retrato foi pintado. A faixa escura ao longo do topo recebeu uma velatura de laca vermelha. Em algunas áreas do fundo, é possível observar particulas mais grossas de pigmento (sombra, branco de chumbo, vermelho ocre) próximo e abaixo de coberturas posteriores com pigmentos mais finos – acima da cabeça por exemplo, margeando a faixa escura mencionada anteriormente. O amarelo e o marrom na cabeça e na boina são compostos de ocres e possivelmente vermilion, em algumas áreas foi usado como pigmento vermelho, nos olhos, nariz e boca, generosamente cobertos com uma velatura de laca vermelha nas áreas mais escuras. Particulas de laca vermelha também foram achadas misturadas a branco de chumbo no tom de pele, também com presença de ocres. Presença de prata e cobre foram encontradas no branco de chumbo (DE VRIES; TÓTH- UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 182).

370 Do termo inglês “greyish-brown”.

287

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

Auto-retrato (1669) Observações Especiais Ainda com tela (tecido) original Exame de Raio-X Chapeu originalmente mais baixo, cobertura com boina Outros elementos no Prata e cobre Branco Branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, laca vermelha, preto de Pigmentos da Camada final osso Preto acastanhado por baixo da cabeça e boina; camada branca em alguns Pré-pintura das figuras lugares por baixo do cabelo Segunda demão preta-acastanhada de base (vermelho ocre, terra de Colônia, Camadas Intermediárias preto de carbono); camada preto-acastanhada mais escura (veja linha 2 – primeira camada); em alguns lugares: camada preta acastanhada (cinza acastanhado) Branco de Chumbo, ocres amarelo e vermelho, sombra, Primeira camada Base preto de osso Suporte Linho

As análises organizadas por Van de Wetering em A Corpus IV (VAN DE WETERING, 2005) mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

Base Primuersel De Vries: Branco de chumbo, sombra, De Vries: Castanho escuro: vermelho e amarelo preto de osso, terra de Colônia ocre, preto. e um pouco de ocre (amarelo).

Rembrandt Database Rembrandt Database (borda (borda parte de baixo, parte de baixo, a direita): a direita): camada Camada castanha escura: acastanhada: ocre pigmentos preto e vermelho. vermelho, laranja, preto e branco de chumbo.

Análise de uma amostra retirada da área “borda lado esquerdo superior”, arquivo 0001492442 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-3.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 73 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Verniz 2) Camada preto-acastanhada, pigmento preto em veículo castanho 1) Mistura castanha com pigmento vermelho, laranja, com branco de chumbo fino e grosso

Análise de uma amostra retirada da área “borda superior direita, 2 cm a partir de cima”, arquivo 0001492443 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-4.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 74 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Verniz 2) Camada preto-acastanhada, pigmento preto e vermelho em veículo castanho 1) Mistura castanha, com branco de cumbo e pigmento vermelho

Análise de uma amostra retirada da área “borda da parte de baixo a direita”, arquivo 0001492444 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-5.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 75 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

8) Verniz 7) Óleo 6) Verniz 5) Verniz 4) Camada preta-acastanhada: pigmentos laranja, vermelho e preto 3) Camada de veículo amarela 2) Camada preto-acastanhada: pigmentos preto e vermelho 1) Mistura acastanhada: com pigmentos vermelho, preto, laranja e branco de chumbo

Análise de uma amostra retirada da área “parte de baixo, 17 cm do canto direito”, arquivo 0001492445 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-6.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 76 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Verniz de retoque 4) Verniz 3a) Verniz

290

3) Camada preta-acastanhada 2) Camada vermelha: pigmentos vermelho ocre, branco e castanho 1) Mistura castanha: um pouco de vermelho (coarse) no pigmento branco

Análise de uma amostra retirada da área “borda 20 cm a partir do canto inferior esquerdo”, arquivo 0001492446 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-8.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 77 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

7) Verniz 6) Verniz 5) Verniz 4) Camada preta-acastanhada: com pigmentos preto, vermelho e laranja 3) Camada preta-acastanhada: com pigmentos preto, vermelho e laranja 2) Camada preta-acastanhada: com pigmento vermelho em veículo castanho 1) Mistura castanha: com pigmentos vermelho, preto, laranja e branco

Análise de uma amostra retirada da área “preto entre o braço do homem”, arquivo 0001490416 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-1.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 78 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

9) Óleo 8) Verniz 7) Óleo 6) Verniz 5) Óleo 4) Verniz 3) Mistura com os pigmentos vermelho, laranja, castanho, branco, amarelo, e preto 2) Camada preta-acastanhada: com um pouco de pigmento vermelho, preto e branco 1) Mistura com pigmentos vermelho e branco, essa camada é mais castanha que a 3

Análise de uma amostra retirada da área “borda, 14 cm a partir do canto superior direito”, arquivo 0001492447 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-9.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 79 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

7) Verniz 6) Verniz 5) Camada preta-acastanhada: com os pigmentos vermelho e preto

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4) Camada preta-acastanhada: com os pigmentos castanho, laranja, amarelo e preto 3) Mistura com os pigmentos vermelho, laranja, castanho, branco, amarelo e um pouco de preto e branco 2) Mistura castanha com os pigmentos vermelho, amarelo, laranja, castanho, branco e preto 1) Tecido

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6.3.6. Homem Sorrindo (1629)

Figura 80 Rembrandt Van Rijn, Homem Sorrindo, Mauritshuis, 1659. Fonte: Nossa, 2018.

A obra Homem Sorrindo (Mauritshuis, 1659) é anterior ao período considerado como o Alterstill de Rembrandt, sendo segundo Dewitt, o ano de 1950, a data que inaugura seu período tardio (DEWITT, 2011, p. 118). No entanto, a obra demonstra um tipo de fatura aparentemente similar àquela encontrada nas pinturas do alterstil, podendo ser útil para este estudo. A mesma estética também foi observada por Dewitt em outras pinturas anteriores a

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1650, como Rembrandt Sorrindo (1628; Getty Museum; California. EUA) e Retrato de Jovem Judeu (1648; Staatliche Museum Preussischer Kulturbesitz; Berlim; Alemanha).

Figura 81 Rembrandt Sorrindo(1628; Getty Museum) e Retrato de Jovem Judeu (1648; Staaliche Museum). Fonte: Nossa, 2018.

Até os anos oitenta, Homem Sorrindo, do Mauritshuis, não era julgada como legítima, embora Dewitt cita que nesse período os especialistas também julgavam que a obra não podia “ser rejeitada com certeza como um não original”. Van de Wetering observa que nas gravuras dos holandeses, J.G. van Vliet e Wencelas Hollar, ativos entre 1600 e 1677 e, mais tarde, a gravura do francês François Langlois, é possível observar o uso da imagem da pintura de Homem Sorrindo como fonte para essas gravuras, usadas para representar o filósofo Demócrito. A gravura de Vliet, que mostra claramente a mesma figura do Homem Sorrindo só que de modo espelhado, apresenta juntamente uma legenda atribuindo autoria da imagem original a Rembrandt: qualquer pessoa pode notar que de fato trata-se obviamente da mesma imagem e portanto, esses gravuristas atribuem a autoria da obra ao artista (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 429). Outra gravura de Vliet mostra outra figura de outra obra Rembrandt, a cabeça de Judas. Para de Vries, as reproduções de Vliet mostram como as figuras de Rembrandt “...por virtude de suas expressões, provavam-se como modelos altamente adequados para representar certos tipos” (DE VRIES; TÓTH-UBBENS;

295

FROENTJES, 1978, p. 52). Em 1864 especulou-se a possibilidade de tratar-se de um autorretrato do artista, baseado no fato de que o homem possui feições parecidas a alguns de seus autorretratos371. Mas em 1895, Bredius observou que a fisionomia do retratado, embora mostrasse alguma semelhança, não correspondia a idade que Rembrant possuía nessa época (1629). Se a obra de fato foi pintada nesse ano, Homem Sorrindo é claramente um homem mais velho que o artista. Bredius considerou a possibilidade do retratado ser o irmão mais velho de Rembrandt, Adriaen. Depois de 1935, os especialistas passaram a chamar a obra de “Estudo de Homem Sorrindo” (Study of Laughing Man) (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 52). Homem Sorrindo foi pintada numa placa de cobre com 0.1 cm (1 mm) de espessura montada num chassis de madeira e sua superfície foi coberta com folha de ouro para douração (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 427)

A base aplicada no suporte consiste numa fina camada de branco acinzentado, que claramente tornou-se verde, devido a contaminação do cobre. A base consiste em branco de chumbo misturado a uma pequena quantidade de carbonato de cálcio. Sobre toda a superfície dessa base, uma camada extremamente fina de ouro, em forma de folha, foi aplicada (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 427).

Assim como o artista fazia uso de diferentes cores no primuersel, para que o colorido fosse usado como um meio tom que aparece em algumas áreas da pintura, segundo De Vries, Rembrandt usa o acabamento metálico do ouro com o mesmo intuito: aproveitar a cor e as propriedades refrativas do metal para compor um meio tom a ser aproveitado. Portanto, em certas partes dessa pintura, numa inspeção minuciosa, foi possível observar a folha de ouro por baixo ou através da tinta.

Acima da orelha direita e próximo a tempora direita, ou onde uma tinta marrom ou vermelha foi usada (cabelo e orelha), é possível, usando uma lente de aumento e luz especial, ver a folha de ouro claramente aparecer através da tinta. A base de ouro também é vista em alguns fios de cabelo do bigode, onde o pintor trabalhou as camadas de cima com a tinta molhada usando o cabo do pincel. Nessas áreas, as últimas camadas foram removidas dessa maneira para que os cabelos amarelos fossem compostos pelo ouro abaixo. No entanto, isso não é visto a olho nu (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 49).

371 De Vries compara essa obra a gravura “Retrato do Artista com Chapéu”, 1630, Gravura B. 316.

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É importante frisar que De Vries observa não ser possível ver o efeito a olho nu. O resultado seria provavelmente diferente caso o suporte fosse composto de outras cores ou de uma superfície não refrativa. Para De Vries, O mesmo efeito parece observável não somente no cabelo e próximo da orelha, mas em outras partes da pintura:

A gorjeira 372 [gargantilha] é feita [pintada], em algumas partes, de maneira fina e transparente, com um marrom escuro, deixando aparecer a base dourada através [da tinta marrom]...... acima dos ombros o fundo foi aplicado com um cinza, de maneira opaca, seguindo um pouco a direção do contorno. Um pouco mais acima, há um cinza escuro pincelado de modo fino em paralelo as pinceladas, o ouro do fundo é visto através disso (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 427).

De Vries indica que outras duas obras atribuídas a Rembrandt compartilham das mesmas características e provavelmente todas do período de Leiden, sendo as outras duas, Autorretrato373 (1629; Rijskmuseum) e Mãe de Rembrandt374 (1629; Residenzmuseum), Salzburg, Alemanha). As três obras possuem dimensões similares e foram pintadas em cobre com acabamento de folha de ouro. O uso do mesmo tipo de suporte em três pinturas diferentes é importante pois para De Vries, um indício de que foram pintadas pelo mesmo artista. Van de Wetering apoia a opinião de De Vries, definindo que o fato é “forte evidência que no. B 6 [Homem Sorrindo] foi provavelmente produzido no círculo imediato a Rembrandt ou até mesmo pelas suas próprias mãos” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 429).

372 Gorjeira ou Gorjal.: do francês gorget (garganta), era originalmente uma tira de linho enrolada em volta do pescoço e cabeça do vestuário feminino no período medieval. O termo em português também parece ser usado para outras peças, como as jóias usadas em torno da região da garganta em uma série de outras culturas, como exemplo, os colares de ouro estreitos encontrados na Irlandada Idade do Bronze. O nome também é dado para a peça de armadura que envolve a garganta nos trajes de combate. O termo mais próximo na língua portuguesa do Brasil, é gargantilha. 373 Nationalmuseum de Estocolmo, Suécia. 374 Residenzmuseum (Czernim Collection), Salzburg, Alemanha.

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Figura 82 Autorretrato (1629; Rijskmuseum) e Mãe de Rembrandt (1629; Residenzmuseum). Fonte: Nossa, 2018.

A pintura em cobre foi muito usada ao norte dos Países Baixos como resultado da influência da pintura flamenga, sobretudo com a imigração dos pintores flamengos durante o último quarto do século XVI. No entanto, De Vries observa que “...pintar sobre folha de ouro, parece até então, algo altamente excepcional, sendo encontrado [no caso de Rembrandt] somente nessas três pequenas obras mencionadas acima”. Apesar da similaridade das características dos suportes, De Vries aponta que foram executadas de modos diferentes, sendo a Homem Sorrindo a única na qual parece ter sido executada de modo rápido, enquanto as outras foram pintadas, segundo suas palavras, de modo mais trabalhado com maior atenção a detalhes e com maior delicadeza. Sua explicação para essa diferença de execução é o desejo de experimentação do artista. (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 53). Ainda sobre o modo de pintura, De Vries destaca:

Por causa de uma vasta diferença nos valores tonais, muitas pinceladas ficam isoladas, especialmente as do nariz, abaixo do olho a esquerda e na maçã do rosto a esquerda. As pinceladas muitas vezes sobrepõem-se, embora não haja uma construção sistemática da camada pictórica. Algumas pinceladas contribuem para a modelagem da cabeça, mas em outras partes dificilmente relacionam- se a ela de fato, algumas pinceladas colocadas de maneira que parecem conflitar com o modelado (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 52).

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Van de Wetering, em 1982, define suas conclusões sobre a plasticidade da pintura: “Na cabeça e na gorjeira o modelado da tinta mostra um notável grau de liberdade, e até mesmo um descuido em sua abordagem plástica das formas representadas; na roupa e no fundo [a pintura] é lisa e desprovida de qualquer plasticidade ou efeito tridimensional. A cor e a luz apresentam uma qualidade estranha” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 428). Observada ao vivo, Homem Sorrindo do Mauritshuis surpreende primeiramente por seu tamanho deveras minúsculo. É a menor pintura de Rembrandt, sendo ainda menor do que a já pequena obra Autorretrato (1630; Rijksmuseum), da Holanda. Na verdade, pode-se dizer que poucas são as pinturas executadas num tamanho tão pequeno por qualquer artista de qualquer época em quaisquer um desses museus. Sua composição sintética e rústica faz jus as descrições de De Vries. Não há intenção de aplicação generosa de tinta, principalmente na roupa e no fundo, restando apenas um corpo mezzotinti no tom de pele da figura, sendo de certa forma, uma pintura relativamente lisa para um Rembrandt tardio. Embora a pintura tenha sido executada por cima de uma chapa com acabamento de folha de ouro, assim como observado por De Vries, não há como notar a presença da mesma quando a obra é observada de perto. Qualquer inspeção a olho nu não revelará nenhum tipo de efeito notável do suporte atípico, sendo uma pintura com refração e opacidade absolutamente normais. De Vries e sua equipe apontam uma semelhança do estilo usado nessa obra com o estilo do pintor flamengo Adriaen Brouwer375.

Não há dúvida de que Rembrandt conhecia a obra de Frans Hals e Adriaen Brouwer ainda em sua juventude. No manejar da tinta e na caracterização do modelo estamos de acordo que se nota certa similaridade a obra Remédio Amargo376 (Bitter Medicine) de Brouwer. Sabemos que Rembrandt possuiu seis pinturas (entre elas um tronie e duas meia-figuras) e um volume com desenhos de Adriaen Brouwer (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 54).

375 Adriaen Brouwer (1605 - 1638 ). Pintor flamengo ativo em Flandres. Importante inovador da pintura de gênero, famoso por suas representações de camponeses, soldados e do homem das “baixas classes sociais” em suas atividades triviais do dia a dia. Também contribuiu para o desenvolvimento para a pintura de tronies, que investiga as expressões faciais. Houbraken atribui erroneamente seu local de nascimento como Haarlem. 376 Stadelsches Kunstinstitut; Frankfurt; Alemanha.

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Figura 83 Remédio Amargo; Brouwer (1636/1638; Städel Museum) e Homem Sorrindo; Rembrandt (1628; Mauritshuis). Fonte: Nossa, 2018.

De Vries tem razão em evocar similaridades formais entre as obras, embora haja duas diferenças fundamentais entre ambas. Observado no Mauritshuis, a obra Remédio Amargo (1636/1638; Städel Museum, Frankfurt, Alemanha) é mais do que o dobro em tamanho, possuindo 47 x 35 cm, enquanto Homem Sorrindo possui 15 x 12 cm. Além disso, Remédio Amargo mostra claramente a cor do primuersel, enquanto Homem Sorrindo não revela facilmente suas camadas. In loco a pintura produz um impacto que gera questionamentos relacionados tanto ao modo como foi executada quanto a sua dimensão: seria a pintura um estudo preliminar para uma pintura maior, ou seria ainda um estudo rápido feito num pequeno suporte com o intuito de servir como treino, um esboço descompromissado? Quando observada ao vivo, as marcas de pinceladas podem sugerir que a obra foi pintada alla prima, isto é, de uma vez só, com o método molhado sobre molhado. A ausência de uma cor que indique a existência de uma pré-pintura, como visto em Remédio Amargo, pode ser um indício da inexistência de estágios “separados” ou anteriores, portanto, pode denotar uma execução mais direta, embora provavelmente nenhuma outra obra do período tardio de

300

Rembrandt estudada aqui tenha sido executada dessa maneira, totalmente alla prima377. Não há traços de um arrastar de tinta que revele o esfregar de uma cor molhada por cima de uma seca, mas marcas de tinta que se espalham e se mesclam sem esforço, de modo uniforme e suave. Embora Homem Sorrindo possua alguma semelhança formal com as outras obras do período tardio, sua dimensão consideravelmente menor aliada aos indícios de que a obra se trata de um estudo rápido, tornam quaisquer comparações menos seguras, do que as comparações feitas com obras tardias de dimensões compatíveis. O estudo de outros aspectos processuais dessa obra podem no entanto contribuir para o entendimento, como por exemplo, da paleta do artista. De Vries aponta as seguintes características encontradas nas cores usadas por Rembrandt em Homem Sorrindo:

O branco na pintura é branco de chumbo, misturado no tom de pele com ocres amarelos e vermelhos e um pouco de laca vermelha. Além dos ocres e da laca, um pouco de vermilion foi usado como tinta vermelha, como exemplo o lóbulo da orelha, coberto com uma velatura de laca vermelha. Uma fina pincelada de pigmento azul foi detectada na parte de fora do contorno da orelha direita consistindo de pequenas partículas de um azul profundo, provavelmente azurite. O marrom avermelhado e o preto acastanhado [brownish-black] são ambos compostos de ocres, sombras e preto [bone black], enquanto Terra de Colônia [Cologne Earth] foi encontrado nas áreas de marrons mais transparentes (contornos/bordas) [edges]. De maneira geral, os pigmentos tinham grão relativamente fino, embora em várias áreas haja presença de grãos maiores (DE VRIES; TÓTH- UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 51).

Segundo a pesquisa de De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a seguinte tabela sumariza os pigmentos, assim como as camadas, encontradas na pintura:

Homem Sorrindo (1629) Raspagem com ponta seca na tinta molhada (bigode e barba); folha de ouro Observações Especiais visível nessa área Exame de Raio-X Sem pentimenti Outros elementos no - Branco Branco de chumbo, ocres marrom, amarelo e vermelho, vermilion, laca Pigmentos da Camada final vermelha, azurite, sombra (terra de Colônia) e preto de osso Pré-pintura das figuras -

377 Como visto na análise das outras obras, há sempre mais de um estágio. Stelsel, doodverf, primuersels locais ou geral e finalmente um estágio de acabamento.

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Camadas Intermediárias Folha de ouro Primeira camada Base Branco esverdeado (giz e branco de chumbo) Suporte Cobre vermelho (1 mm)

As análises organizadas por De Vries (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214) mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

Base Primuersel Cinza-claro: preto, sombra (?), Branco esverdeado: giz branco de chumbo, vermelho e branco de chumbo ocre (?), esmalte (?).

Análise de uma amostra retirada da área “4.8 da direita, 0 cm do topo”, arquivo 0001493006 (mh0598_x05.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

8) Verniz 7) Retoque cinza 6) Verniz 5) Camada da superfície cinza translúcida: esmalte (?), giz (?), sem pigmento preto 4) Camada intermediária cinza: preto de partículas grandes, sombra (?), vermelho ocre (?), partículas transparentes (esmalte?), parecida com camada 3 mas sem branco 3) Camada preparatoria [primuersel] cinza clara: preto de partículas grandes, sombra (?), branco de chumbo, vermelho ocre (?), partículas transparentes grandes (esmalte?) 2) Folha de ouro 1) Base cor creme: branco de chumbo, um pouco de amarelo ocre, sombra, um pouco de preto de osso (analizado em otras amostras).

Análise de uma amostra retirada da área “1 cm do topo, 2 cm da direita”, arquivo 0001493007 (mh0598_x06.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

4) Resto de verniz 3) Camada de esmalte (?), giz (?) e velatura de vermelho orgánico (?)

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2) Camada intermediária cinza: grandes partículas de branco de chumbo, particulas grandes e irregulares de preto de osso, um pouco de vermelho ocre (?), sombra (?), esmalte (?) 1) Camada preparatoria [primuersel] cor cinza: grandes partículas de branco de chumbo, preto de osso, um pouco de vermelho ocre (?), sombra (?), esmalte (?) [base e folha de ouro estão ausentes nessa amostra]

Análise de uma amostra retirada da área “Fundo cinza, área superior direita, 14.4 cm do fundo, 1 cm da direita ”, arquivo 0001492987 (mh0598_x01.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

9) Cobertura de retoque 8) Verniz 7) Camada da superfície cinza escura: um pouco de branco de chumbo, preto de carbono, partículas de um marrom translucido, laca amarela (?), esmalte (?), vermelho ocre (?) 6) Camada preparatória [primuersel] cinza: branco de chumbo, preto de carbono, um pouco de ocre vermelho, amarelo e marrom, esmalte (?) 5) Folha de ouro 4) Base cor creme: branco de chumbo, um pouco de vermelho ocre, sombra, um pouco de preto de osso 3) Camada de pigmento orgânico (?) 2) Camada preta-acastanhada: preto de osso, pigmento vermelho fino 1) Camada verde de alteração entre o cobre e o óleo

Análise de uma amostra retirada da área “0.5 cm da parte de baixo, 4.7 cm da esquerda, túnica castanha-amarelada (marrom)”, arquivo 0001494614 (mh0598_x08.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

6) Restos de verniz 5) Camada da superfície marrom translúcido: velatura (?) original (?), marrom translúcido; giz (?), algumas partículas preto e brancas na superfície 4) Camada intermediária marrom claro: amarelo ocre; vermelho intenso; pigmento preto, carvão, vermelho translúcido/ partículas marrons; laca orgânica (?); algumas partículas incolores

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3) Camada preparatoria cinza escuro acastanhado: pigmento preto, carvão; vermelho intenso (terra?); giz (?) 2) Camada preparatória cinza escura: pigmento preto, carvão 1) Folha de Ouro

Análise de uma amostra retirada da área “túnica amarela/marrom, tinta marrom, velatura, 0.1 cm da parte de baixo, 6.8 cm da esquerda”, arquivo 0001494622 (mh0598_x09.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

4) Camada marrom: laca vermelha e pigmento preto 3) Camada preparatoria marrom claro: terra amarela; vermelho intenso; pigmento preto, carvão; laca rosa 2) Camada preparatória cinza escura acastanhada: pigmento preto, carvão; giz (?) 1) Folha de Ouro

304

6.4. Boijmans Van Beuningen O museu era conhecido somente como Museu Boijmans quando foi fundado em 1849, em Rotterdam, Holanda, e ainda localiza-se no Museumpark, no distrito de Rotterdam Centrum. Abrigava a coleção do grande empreendedor Frans Jacob Otto Boijmans (1767– 1847). Em 1958, recebeu como adição à coleção do grande homem de negócios e figura icônica em Rotterdam, Daniël George van Beuningen (1877–1955) passando a se chamar Museum Boijmand Van Beuningen. A coleção hoje possui obras que vão desde pinturas medievais até peças de arte contemporânea com certo foque na arte holandesa. Entre as pinturas, trabalhos de Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel o Velho, Rembrandt, Claude Monet, Wassily Kandinsky, Vincent van Gogh, Maurizio Cattelan, Paul Cézanne, René Magritte, Salvador Dalí, Mark Rothko, Edvard Munch, Willem de Kooning, Yayoi Kusama entre outros nomes famosos.

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6.4.1. Titus numa Mesa (1655)

Figura 84 Rembrandt Van Rijn, Titus numa Mesa, Boijmans, 1655. Fonte: Nossa, 2018.

A análise da obra, feita in loco, revelou que as sombras aplicadas no rosto de Titus são de uma mistura terrosa esverdeada, deveras neutra, com algumas áreas levemente mais

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esverdeadas ou intensas, embora ainda pareçam verdes neutros só que mais quentes. Titus numa Mesa (Boijmans, 1655) revela novamente, um sutil uso dos contrastes de complementares. Em algumas áreas das partes escuras do tom de pele, as sombras mudam de verdes para marrons, tornando-se mais quentes e desempenhando um incrível papel de contrastes que lembram o modo como o artista procedeu com seus contrastes em Titus como São Francisco (Rijksmuseum, 1660) e em seu Autorretrato (Rijksmuseum, 1669). Nota-se claramente o uso de ambas as cores (verde e marrom) para preencher as áreas escuras com cores de um valor parecido mas que apresentam diferença de temperatura, criando unidade e diversidade. Abaixo dos meio tons usados no rosto é possível enxergar o que aparentemente é uma camada bem escura, portanto, aparentemente há uma superimposição de cores mais claras por cima de um estágio escuro, pelo menos na área do rosto. A observação pode indicar que o artista utilizou de um primuersel escuro no tom de pele, e de um overpainting de misturas mais claras para abrir luzes nessa área. Não há nenhuma amostra extraída de áreas de tom de pele. Na realidade, apenas três amostras retiradas de áreas do fundo, próximas as bordas da pintura foram encontradas para analisar o conteúdo pigmentário dessa obra. As análises organizadas por Van de Wetering em A Corpus IV (VAN DE WETERING, 2005) mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

Base Primuersel Rembrandt Database: Rembrandt Database: Castanho: branco de chumbo, sombra, um Camada castanha “mais pouco de amarelo ocre escura” e vermelho, preto.

A mistura básica para as partes iluminadas do rosto de Titus aparenta levar um pouco de branco de chumbo, provavelmente preto ou uma sombra para neutralizar (talvez uma mistura de complementares) e um pouco de amarelo ocre e laca vermelha para conseguir um tom de pele levemente amarelado e rosado, portanto não é absolutamente neutro. A aplicação de tinta empastada no cabelo e principalmente na mesa, sugerem que o efeito de textura causado pela aplicação foi possivelmente feito com pincel seco: isto é, através do uso de uma trincha arrastada por cima de uma camada previamente seca.

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Segundo análises feitas pelo Rembrandt Research Project, a análise de uma amostra retirada da área “34 cm do fundo, 0 cm da esquerda”, arquivo 0001513503 (2953_4245_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 85 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Preto numa camada de verniz (sobreposição posterior?) 4) Camada mais escura que a 3 3) Camada mais clara que a 2 2) Camada preta e veículo 1) Base castanha: branco de chumbo, sombra, um pouco de ocres amarelo e vermelho e preto

Análise de uma amostra retirada da área “13.9 cm do fundo, 0 cm da direita”, arquivo 0001513524 (2953_4241_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 86 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Camada de preto com veículo 4) Camada vermelha: vermelho ocre com veículo 3) Camada mais escura 2) Camada castanha mais escura 1) Base castanha: branco de chumbo, ocres amarelo e marrom e preto

Análise de uma amostra retirada da área “4.2 cm do fundo, 0 cm da direita”, arquivo 0001513539 (2953_4238_001.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 87 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4) Camada bagunçada de verniz 3) Velatura vermelha (vermelho óxido?) 2) Mistura castanha: amarelo acastanhado com branco de chumbo 1) Ocre marrom fino com um pouco de branco de chumbo 0) Base castanha

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6.4.2. Tobit e Anna (1659)

Figura 88 Rembrandt Van Rijn, Tobit e Anna, Boijmans, 1659. Fonte: Nossa, 2018.

A análise da obra, feita in loco, revelou uma pintura consideravelmente mais escura do que as imagens impressas em livros ou imagens encontradas na internet. É escura a ponto de dificultar a identificação das cores observadas a olho nu, tornando menos assertivas as considerações sobre essa pintura em particular. O primuersel parece ser de uma cor laranja ou de um cinza acastanhado, embora seja mais provável a primeira hipótese, observável principalmente na área da janela, onde inclusive parece apresentar traços de um pigmento vermelho transparente, provavelmente um vermelho orgânico. Por cima do primuersel laranja, a composição é praticamente construída a partir de marrons quentes, condizentes com as cores terrosas orgânicas como a terra de colônia escurecida em certas áreas com preto. Esses marrons mostram-se aparentemente mais líquidos e fluidos do que as misturas usadas nas luzes e meio tons, condizendo com o comportamento de tintas betuminosas.

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O build up dos meio tons e luzes por cima da estrutura inicial marrom aparenta ser de cinzas acastanhados, com exceção de uma mistura de temperatura mais fria somente nas luzes mais altas, podendo ser no primeiro caso, branco e preto misturados a qualquer tipo de terra com temperatura quente, como o Siena queimada, vermelho ocre ou até mesmo a terra de colônia. Há de se observar que essa pintura parece ter sido executada com uma paleta ainda mais restrita do que de costume para esse período, sendo observável somente o branco, preto, terra de colônia, alguma terra quente para neutralizar, possivelmente vermelho ocre ou Siena, amarelo ocre (primuersel) e laca de madder. É possível ter a impressão de tratar-se de um estudo praticamente monocromático, parecido com a obra A Concórdia do Estado, embora essa mostre maior ênfase dos laranjas e vermelhos, ao contrário de Tobit e Ana, que mostra maior ênfase dos marrons e dos cinzas. A aplicação de tinta empastada, com riqueza de informação tátil em cada elemento é absolutamente compatível com outras obras do mesmo período observadas na Holanda. A pintura ilustra a parábola do livro apócrifo378 de Tobit379 no qual o casal Tobit, um homem cego, e Anna, aguardam ansiosamente o retorno de seu filho. Tobias, acompanhado do arcanjo Raphael que fora enviado por deus, chega de viagem de Rages, onde fora buscar dinheiro que Tobit havia confiado a outro membro da família, Gabael. A espera ansiosa se dá por conta de que Tobias se ausentou por muito mais tempo do que combinaram e durante quando o prazo de retorno havia passado, Tobit imaginara que ambos foram detidos ou que alguém havia morrido, deixando-o com consciência pesada e triste. É importante entender que Tobit, outrora muito rico, após fugir da ira do Rei Nineveh, ao retornar para sua casa, descobriu que todas suas posses foram pilhadas e que agora a única coisa que possuía era Anna e Tobias. Na pintura de Rembrandt, é possível ver na janela, uma figura arcada de boné, que provavelmente se trata de Tobias, aproximando-se da casa de seus pais (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 621).

378 Apócrifo ((grego: απόκρυφος; latim: apócryphus).: os livros apócrifos também conhecidos como Livros Pseudocanônicos, são os livros escritos por comunidades cristãs e pré-cristãs (ou seja, há livros apócrifos do Antigo Testamento) nos quais os pastores e a primeira comunidade cristã não reconheceram a Pessoa e os ensinamentos de Jesus Cristo por serem escritos após o I século e, portanto, não foram incluídos no cânon bíblico. O termo "apócrifo" foi criado por Jerônimo, no quinto século, para designar basicamente antigos documentos judaicos escritos no período entre o último livro das escrituras judaicas, Malaquias e a vinda de Jesus Cristo. São livros que, segundo a religião em questão, não foram inspirados por Deus e que não fazem parte de nenhum cânon. São também considerados apócrifos os livros que não fazem parte do cânon da religião que se professa. A consideração de um livro como apócrifo varia de acordo com a religião. 379 Livro de Tobit; cap. 10; versos 1-7.

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Segundo Van de Wetering, o suporte foi identificado como um painel de carvalho, uma prancha única, inteiriça, sem emendas, com 7 mm de espessura, chanfrado em três lados. O carvalho possui data aproximada entre 1592 e 1355, sendo proveniente da região dos países baixos ou do oeste da Alemanha. O painel contém nas camadas de baixo, uma natureza morta380, portanto, Rembrandt reaproveitou um painel já pintado. Acredita-se, baseado na idade da madeira, levando-se em consideração o período de amadurecimento e outras considerações, que a primeira pintura (natureza morta) tenha sido executada aproximadamente após 1611. O parecer de análises conduzidas por Barbara Schoonhoven, descreve as conclusões da cientista no arquivo 0001513539 (2953_4238_001.pdf) do Rembrandt Database:

O cross-section mostra que só há uma camada de tinta abaixo da tinta escura da assinatura. Entre essas duas camadas há uma camada fluorescente fina que Karin Groen descreve como uma camada antiga de óleo usado para lubrificar a superfície381. Parece que a camada de baixo pertence a segunda representação, mas isso não pode ser afirmado com segurança. A estrutura de camadas, composição e morfologia de ambas as camadas estão conformes com a tradição do séc. XVII. Os outros cross sections mostram que a estrutura das camadas é mais complexa. Camadas de lubrificação (oiling out) não foram mais achadas. Durante o teste de resistência do verniz, a assinatura resistiu bem. Baseado no teste e nos cross-section, assume-se que a assinatura é verdadeira

Segundo as análises relatadas por Van de Wetering em (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 620), a base e o primuersel contém:

Base Primuersel Van de Wetering: Cinza: Giz e Preto Giz (por cima de pintura já seca, reuso) Gemäldegalerie: Marrom-avermelhado (laca orgânica).

380 É possível discernir na radiografia, uma natureza morta composta por alguns elementos. É claro o discernimento de pelo menos dois copos altos de vidro e um prato com duas sardinhas. Ao fundo, uma massa clara dá a impressão de que possivelmente possa haver uma ave com penas (VAN DE WETERING; HEIDELBERG, 2011, p. 623). 381 Usa o termo “oiling out”

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Mas, as análises 382 feitas pela Gemäldegalerie, do Staatliche Museen em Berlin, revelam que a estrutura inicial e o doodverf, é um estágio monocromático acastanhado com acentos em vermelho e amarelo, a estrutura contém as seguintes características:

[...] a composição foi desenhada numa pré-pintura marrom- avermelhada fina, com acentos locais do que parece ser laca vermelha. A autorradiografia indica presença de manganês. A pintura foi então trabalhada em vários tons de cinza contendo preto de osso e azuis (esmalte) contendo cobre. Em várias áreas o desenho inicial contém tons de cinza avermelhados que contém vermilion. Partículas de amarelo também foram adicionadas a essa mistura inicial

Portanto, segundo Van de Wetering, há um primuersel cinza, e segundo a Gemäldegalerie, o doodverf é um estágio monocromático acastanhado com acentos de laranjas feiro por cima de uma pré-pintura marrom-avermelhada. In loco, a aparência geral faz parecer que os laranjas estão por trás dos cinzas. A falta de amostras dessa obra não permitem que uma conclusão mais assertiva possa ser feita para este estudo sobre o conteúdo pigmentário do primuersel e dos tons de pele.

Segundo as análises químicas feitas pelo Rembrandt Research Project, uma análise de uma amostra retirada da área “12 cm da esquerda, 4.8 da parte de cima”, arquivo 0001513635 (51478_R16592_001.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

5) Camada fina de verniz 4) Camada fina mais escura (veículo?) 3) Camada escura: contém esmalte, preto de osso, vermelho orgánico, um pouco de óxido vermelho, um pouco de branco de chumbo 2) Mistura castanha com branco de chumbo 1) Falta a camada da base

382 Arquivo 0001512211 “805 kunsttechn Summary_EN_GB_final (filename: 20092.pdf)” do Rembrandt Database.

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6.4.3. Concordia do Estado (1637)

Figura 89 Rembrandt Van Rijn, Concórdia do Estado, Boijmans, 1637. Fonte: Nossa, 2018.

Embora não seja uma pintura do período tardio, é um dos poucos exemplos do que aparentemente trata-se de uma pré-pintura feita por Rembrandt, mostrando os primeiros estágios de seu processo. A análise da obra, feita in loco, tornou possível constatar que, embora a pintura possa parecer numa primeira análise monocromática, feita principalmente em tons de cinza e laranjas, nota-se mais de perto que as misturas usadas para os meios-tons da vegetação parecem ser um castanho ou marrom esverdeado, uma mistura que poderia facilmente ser vermelho e amarelo ocre com adição de branco e preto, essa cor de meio tom destaca-se sobretudo no lado esquerdo da composição. Em contrapartida, os meios-tons usados para representar o céu parecem ser cinzas acastanhados mais quentes. Nas áreas onde o meio-tom começa a clarear e tornar-se luz mais intensa, principalmente no foco central de luz, é possível que a mistura não seja somente branco de chumbo, pois é visível certa neutralidade e uma temperatura mais quente nessas áreas, possivelmente branco com alguma

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terra que neutralize levemente a mistura, como uma sombra e algum amarelo mais intenso, como o amarelo de chumbo e estanho ou talvez uma laca amarela. Nas áreas de sombras mais intensas as misturas são marrons bem escuros, praticamente preto em certas áreas. É possível que a mistura geral para as sombras seja uma terra orgânica como o terra de Colônia383 complementado com pequenas quantidades de preto conforme era necessário escurecer a mistura. O primuersel aparenta ser uma mistura marrom ou castanha clara alaranjada, de temperatura quente, observado facilmente em várias áreas da pintura. Essa pré-pintura alaranjada aparentemente tem certa similaridade com o que se percebe na pintura Tobit e Anna, possivelmente o que parece ser um amarelo ocre com alguma terra vermelha, talvez uma laca orgânica, por baixo da camada que constrói a pré-pintura de marrons quentes (marrons orgânicos como terra de Colônia). A dificuldade de definição do primuersel veio da falta de indicação das camadas nos resultados das amostras dos cross-sections. Na grande maioria das amostras é necessário interpretar ou supor qual das camadas é a base e qual é o primuersel. Em uma das amostras, a cor da base é descrita como contendo branco, pigmento laranja fino e amarelo ocre, que poderia de fato compreender um laranja forte que aparece por de trás do doodverf. Mas, em outras amostras, a cor da base muda completamente, como exemplo, sendo “giz e marrom escuro”. Em algumas amostras, o laranja aparece em camadas superiores, e não parece ter conexão com a base ou com o primuersel. É descrita como um “ocre intenso”, e composta de: branco de chumbo, um pouco de ocre, castanho escuro, e vermelho ocre.d Portanto, não foi possível estabelecer com absoluta certeza, qual das camada apresenta a cor alaranjada quente. É importante dizer que devido à falta de definição nas fontes de informação, foi necessário interpretar a ordem, a natureza da cor e a função de cada uma dessas camadas.

Base Primuersel Amostra 1: Giz e marrom escuro Ocre Intenso (?): branco de chumbo, um pouco de ocre, Amostra 2: castanho escuro, e vermelho Branco, pigmento ocre. laranja fino, amarelo ocre

“[...] durante o exame de uma de suas obras mais soltas, Concórdia do Estado, de Rotterdam, traços do que parece ser uma primeira composição foram achados. Eram linhas aplicadas de

383 Também chamada de terra de Cassel.

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modo leve, tanto escuras quanto claras, as quais mostraram-se após análises químicas, feitas com um meio aquoso” (VAN DE WETERING, 1997, p. 27). Portanto, Van de Wetering tem a teoria de que o processo inicial de pintura de Rembrandt possui relação com seu processo de desenho feitos com pincéis e tinta aguada sobre papel384, por conta não somente da similaridade estética, mas dos indícios materiais.

Análise de uma amostra retirada da área “base visível próxima a borda”, arquivo 0001513609 (2909_2077_001.pdf) do Rembrandt Database (análise não dispõe de desenho esquemático das camadas):

5) Verniz 4) Verniz 3) Castanho escuro e um pouco de pigmento branco e um pouco de amarelo ocre 2) Pigmento branco, um pouco de pigmento vermelho e preto 1) Base de giz

Análise de uma amostra retirada da área “tecido amarelo do banner”, arquivo 0001513553 (2909_2068_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 90 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Verniz 4) Camada amarela escura: cristais redondos pequenos, branco mais amarelo orgânico, 3) Branco de chumbo 2) Branco de chumbo, um pouco de pigmento marrom escuro, amarelo e ocre 1) Branco de chumbo, marrom transparente

384 O autor usa como exemplo a obra Judas Arrependido.

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Análise de uma amostra retirada da área “esquerda, a confusão da batalha”, arquivo 0001513554 (2909_2069_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 91 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Verniz 4) Branco de chumbo, pigmento marrom escuro, um pouco de amarelo ocre 3) Branco de chumbo, pigmento marrom escuro, um pouco de amarelo e vermelho ocre 2) Giz, marrom escuro 1) Giz, um pouco de marrom escuro

Análise de uma amostra retirada da área “ar acima da confusão da batalha”, arquivo 0001513566 (2909_2071_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 92 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019. 8) (camada não original) Verniz 7) (camada não original) Branco, marrom escuro, preto, amarelo e um pouco de pigmento vermelho 6) (camada não original) Verniz 5) Branco de chumbo, marrom escuro, preto, um pouco de pigmento vermelho e amarelo (ocre?) 4) Camada fina de argila385 transparente 3) Branco de chumbo, pigmento marrom escuro, um pouco de vermelho e amarelo ocre 2) Branco de chumbo, pigmento marrom escuro, um pouco de vermelho, amarelo ocre 1) Base de giz

385 Do termo holandês “kleiul”.

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Análise de uma amostra retirada da área “mancha escura, confusão da batalha”, arquivo 0001513571 (2909_2072_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 93 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Mistura de marrom avermelhado transparente, branco e pigmento vermelho 4) Camada fina de argila transparente 3) Branco, amarelo, castanho avermelhado transparente, 2) Branco, marrom transparente, preto e amarelo ocre 1) Branco, pigmento laranja fino, amarelo ocre

Análise de uma amostra retirada da área “superior direita”, arquivo 0001513619 (2909_2079_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 94 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5) Verniz 4) Branco, marrom transparente, esmalte, um pouco de vermelho, preto e amarelo ocre 3) Camada marrom transparente feita de marrom escuro com um pouco de branco 2) Branco, preto em um pouco de pigmento marrom escuro 1) Marrom transaparente e pigmento marrom escuro

Análise de uma amostra retirada da área “céu (verde azulado)”, arquivo 0001513624 (2909_2080_001.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 95 Cross-section. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4) Verniz 3) Mistura de branco de chumbo, preto e pigmento marrom escuro 2) Camada “ocre intenso”: branco de chumbo, um pouco de ocre, castanho escuro, e vermelho ocre 1) Base de giz

Análise de uma amostra retirada da área “céu (verde azulado)”, arquivo 0001513624 (2909_2080_001.pdf) do Rembrandt Database (cross-section não dispõe de desenho esquemático):

4) Verniz 3) Mistura de branco de chumbo, preto e pigmento marrom escuro 2) Camada “ocre intenso”: branco de chumbo, um pouco de ocre, castanho escuro, e vermelho ocre 1) Base de giz

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6.4.4. Homem com Boina Vermelha (1660)

Figura 96 Rembrandt Van Rijn, Homem com Boina Vermelha, Boijmans, 1660. Fonte: Nossa, 2018.

Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660) é uma pintura escura e os tons predominantes são quentes. Há um notável uso de vermelhos, não só nas roupas, mas aparentemente também no tom de pele, apresentando traços de vermelho, laranja e rosados, embora ainda contenham uma boa parte do que parece ser uma mistura neutra acastanhada. Assim como outras pinturas do período tardio, Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660) possui um plano cromático simples. Há tons de pele quentes na figura, vermelhos com

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traços de carmim nas vestes, marrons quentes no fundo e várias áreas de um profundo escuro transparente. É possível que todas as partes mais escuras da pintura seja uma velatura de preto cm alguma laca orgânica, desde que a mesma emite uma cor de um carmim profundo. Há uma espantosa similaridade no modo em que as vestes da figura é construído a partir do acúmulo de tinta empastada, entre Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660) e as pinturas Retrato de um Idoso (Mauritshuis, 1667) e Casal como Isaac e Rebecca (Rijksmuseum, 1666). Essa é uma das características que poderia sem sombra de dúvida, auxiliar nas questões de autenticidade, praticamente uma assinatura do artista. Assim como em várias outras pinturas analisadas neste estudo, não havia nenhuma amostra extraída de alguma área de tom de pele de Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660). Mais uma vez, as áreas onde provavelmente seria possível confirmar a presença de uma mistura neutralizadora para tom de pele, ficaram sem fontes a serem analisadas. As únicas amostras que aparentemente possuem uma camada que faz uso de complementares são o cross-section chamado “roupa, manga direita, 31x20”, que mostra na camada dois, uma mistura de preto de osso, lacas amarelas e vermelha, e o cross-section “área central do chapéu 31x15”, que mostra na camada três, uma mistura de laca vermelha e amarela, preto de osso e esmalte. As misturas provavelmente resultariam numa mistura de neutralização embora as lacas funcionem melhor para uma aplicação de velatura. As poucas amostras extraídas de Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660) são do fundo da pintura. Amostras de áreas mais variadas seriam necessárias para uma investigação mais detalhada.

Amostra extraída da área “área central do chapéu 31x15”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

Figura 97 Cross-sections.

321

Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

9) Verniz 8) Vermilion 7) Vermilion e laca vermelha 6) Verniz 5) Verniz 4) Laca vermelha, terra vermelha e preto 3) Camada castanha: laca vermelha e amarela, preto de osso e esmalte 2) Branco de chumbo 1) Base: Quartzo, amarelo de chumbo e estanho

Amostra extraída da área “área central, parte de baixo, do chapéu 31x21”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross- section, mas há seu fotograma):

Figura 98 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Vermilion 4) Terra vermelha, preto de osso 3) Esmalte, preto de osso, laca vermelha 2) Branco de chumbo 1) Base: Quartzo e amarelo de chumbo e estanho

Amostra extraída da área “fundo 31x05”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

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Figura 99 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2) Resto de tintas com vermelho fino 1) Base: Quartzo

Amostra extraída da área “fundo 31x06”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

Figura 100 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Camada bege-amarelada 2) Esmalte puro 1) Base: quartzo

Amostra extraída da área “fundo 31x14”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

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Figura 101 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

2b) Camada rica em veículo e algumas partículas finas de pigmento preto e vermelho 2) Esmalte puro 1) Base: quartzo

Amostra extraída da área “roupa, lado direito, centro, 31x03”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section ou fotograma. Note que não há legenda das camadas 5 e 6 na imagem, embora haja descrição das mesmas):

Figura 102 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

6) Verniz 5) Pintura de cima (?) 4) Camada fina com esmalte e laca 3) Preto de osso e laca 2) Pré-pintura com laca vermelha 1) Base de quartzo

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Amostra extraída da área “roupa, manga esquerda, 31x19”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

Figura 103 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3) Camada marrom-acinzentada com partículas vermelhas e pretas 2) Fina camada de veículo 1) Esmalte, pigmento preto e vestígios de laca vermelha 0) Base de quartzo

Amostra extraída da área “roupa, manga direita, 31x20”, arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database (não há desenho esquemático do cross-section, mas há seu fotograma):

Figura 104 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

3 Camada vermelha com partículas de vermilion 2 Camada escura com preto de osso, laca amarelas e vermelha 1 Esmalte, orpimento sintético, amarelo ocre, branco de chumbo (Falta camada base na amostra)

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6.5. Hermitage Amsterdam A obra “Lição de Anatomia do Dr. Deijman”, de 1656, foi analisada in loco no Hermitage Museum. Nessa ocasião, a obra se encontrava emprestada a esse museu, embora a mesma pertença na verdade ao Amsterdam Museum. Até 2011, o Amsterdam Museum era chamado de Museu da História de Amsterdam (Amsterdam History Museum), e foi inaugurado em 1926. Em 1975, mudou-se para o prédio onde se encontra atualmente, um antigo orfanato municipal. O museu exibe uma série de objetos e itens relacionados a história da cidade de Amsterdam, desde a idade média até os dias atuais. O Hermitage Amsterdam é uma instituição que faz parte do Hermitage Museum de São Petersburgo, uma espécie de filial do museu russo. Localizado às margens do famoso rio Amstel, o edifício do Hermitage, fundado em 1682, foi originalmente um asilo para mulheres. O museu abriga duas exposições permanentes: uma apresenta a história das relações entre a Rússia e a Holanda, a outra, a história do edifício, chamado de Amstelhof.

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6.5.1. Lição de Anatomia do Dr. Deijman (1656)

Figura 105 Rembrandt Van Rijn, Lição de Anatomia do Dr. Deijman, Hermitage Amsterdam, 1656. Fonte: Nossa, 2018.

Assim como Dois Homens Negros (Mauritshuis) e Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660), a pintura Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656) possui uma certa simplicidade de execução, particularmente quanto ao plano cromático. A figura do cadáver, assim como a do médico a esquerda, são descritas com pouca informação no tom de pele, quase não há variação de valores ou contrastes, permanecem ambas numa condição quase dualista de meio tom para as áreas escuras e uma escala de três ou quatro valores para as luzes. É possível que somente duas misturas básicas tenham sido usadas para configurar a luz e a sombra dos tons de pele dessa pintura. As áreas de luz do tom de pele são levemente mais quentes, de um castanho sutilmente rosado, do que as áreas escuras, que mostram um tom castanho ou cinza esverdeado. Essa diferença é mais sútil no cadáver mas mais notável na figura da esquerda.

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Havia duas amostras extraída de uma área de tom de pele de Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656), da área do peito da representação do cadáver. Essa é a única obra do período tardio analisada para este estudo que contém o pigmento amarelo Nápoles.

Tom de Pele (Composição de Mistura) Cadáver: amarelo nápoles, branco de chumbo e vermilion.

A pintura não apresenta generosidade excessiva nos impastos como em outras pinturas do período tardio, na verdade, ela é consideravelmente lisa, embora não seja contida, apresentando pinceladas arrastadas e decisivas. Apresenta massa de tinta perceptível, sobretudo nas luzes. Ao todo, estavam disponíveis apenas esses dois cross-sections extraídos de Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656). Portanto, é possível que essas amostras não sejam suficientes para concluir qual a composição da base e do primuersel da pintura, embora a tabela reflita esses dados devido à ausência de maior quantidade de fontes para a análise.

Base Primuersel Amostra 1: Giz e marrom escuro Ocre Intenso (?): branco de chumbo, um pouco de ocre, Amostra 2: castanho escuro, e vermelho Branco, pigmento ocre. laranja fino, amarelo ocre

As análises organizadas por Van de Wetering na tabela de A Corpus IV (VAN DE WETERING, 2005), mostram os seguintes resultados acerca da base e do primuersel usados nessa obra:

Amostra extraída da área “peito da representação do cadáver”, arquivo 0001515053 (filename: 3047_2973_2979_001.pdf) do Rembrandt Database:

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Figura 106 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

5 Camada de Verniz 4 Camada de Verniz 3 Camada de branco acastanhado: branco de chumbo com pouco de pigmento vermelho fino 2 Camada fina de verniz transparente 1 Camada branca: branco de chumbo um pouco de vermelho opaco e vermelho orgânico, com óleo e proteína

Amostra extraída da área “peito da representação do cadáver”, arquivo 0001515053 (filename: 3047_2973_2979_001.pdf) do Rembrandt Database:

Figura 107 Cross-sections. Fonte: http://rembrandtdatabase.org/, 2019.

4 Camada de verniz 3 Amarelo Napoles e branco de chumbo 2 Amarelo Napoles, branco de chumbo e vermilion 1 Camada castanha: branco e pigmento vermelho

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7. Conclusão A seguir, define-se de modo pontual cada uma das hipóteses e suas conclusões desenvolvidas neste estudo. As ideias e conceitos concluídas neste capítulo foram desenvolvidos e explicados de forma pormenorizada ao longo do corpo deste estudo, portanto, as fontes usadas neste capítulo compreendem grande parte da bibliografia incluída ao final deste estudo. A relevância de cada subcapítulo será indicada logo no começo de cada um dos itens.

7.1. Hipóteses Primárias 7.1.1. Desenvolvimento Gradual da Maneira Rústica A relevância deste capítulo é apresentar a hipótese de que o estilo se desenvolveu de maneira gradual, já mostrando proto-características em 1630 até seu total desenvolvimento em 1650. Além disso, questiona-se a validade da relação estabelecida entre a idade avançada e a maneira rústica. Para apoiar essa hipótese, apresentam-se comparações entre obras do período tardio e trabalhos mais novos do próprio Rembrandt, assim como de outros artistas de seu círculo, observadas in loco ao norte e ao sul da Holanda386. A hipótese é relevante pois as obras de Bomford (BOMFORD et al., 2006), Bikker (BIKKER; WEBER, 2015), Alpers (ALPERS, 1991) e Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2016) tratam sobre o desenvolvimento do estilo, mas nenhuma aborda especificamente a teoria de um desenvolvimento gradual. Em algumas pinturas do colega e sócio de Rembrandt, Jan Lievens387, que dividiu ateliê com o artista em Leiden, é possível notar grande similaridade técnica, sobretudo na riqueza de texturas, quando comparadas aos efeitos das pinturas de Rembrandt em seu alterstil. A obra Moça com Capuz de Veludo Verde (1630), observada in loco no Mauritshuis, foi pintada quando Lievens possuía a tenra idade de vinte e três anos, Rembrandt era apenas um ano mais velho do que o colega. É notável a semelhança entre o efeito alcançado por Lievens e as pinturas tardias de Rembrandt, principalmente na aplicação de tinta nas áreas do tecido e no fundo da pintura. A quantidade de impasto e as características marcas feitas por ferramentas que não podem ser identificadas, exatamente como nas pinturas tardias de Rembrandt podem ser vistos na pintura de Lievens. O mesmo pode ser dito do Autorretrato (Leiden Collection;

386 Outras obras incluídas nessa análise foram observadas in loco, mas anos antes, dessa vez em Londres, Inglaterra, nas célebres instituições National Gallery e Wallace Collection. 387 Jan Lievens (1607 – 1674).: Jan Lievens nasceu um ano depois de Rembrandt, conterrâneos da mesma cidade natal, Leiden.

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1629-1630) de Lievens, que possui o mesmo tratamento estético, sobretudo nas áreas do cabelo e da gola.

Figura 108 Moça com Capuz de Veludo Verde; Jan Lievens (com 23 anos); Mauritshuis; 1630. Fonte: Nossa (2018).

Portanto, se o estilo está sempre relacionado à velhice ou a uma maturidade dos artistas, como é possível que Lievens já usava tais efeitos de manipulação e controle da tinta com idade tão jovem? Os trabalhos de Arent de Gelder388, um dos últimos pupilos de Rembrandt, compreendem outros exemplos que podem ajudar a considerar a hipótese de que o alterstil talvez independa da idade mas seja também influenciado por uma habilidade específica ou experiência. Suas obras são particularmente similares as de seu mestre a partir de 1700389, embora em obras anteriores 1680 e 1685 seja possível observar notável semelhança. Nesse período Arent ainda possuía trinta e cinco anos de idade. As obras Retrato de uma Jovem Moça (Art Institute of

388 Arent de Gelder (ou Aert de Gelder) (1645 – 1727).: Nascido em Dordrecht, sul da Holanda. De Gelder foi um dos últimos pupilos de Rembrandt, tendo estudado com o mestre em Amsterdam entre os anos de 1661 e 1663. É considerado por alguns especialistas como “o único pupilo a pintar no estilo tardio de Rembrandt”. 389 Com encantadores exemplos no Mauristhuis, Boijmans e na National Gallery de Londres.

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Chicago; 1685) e Deus e os Anjos Visitando Abraão (Boijmans; 1680) são dois bons exemplos desse período.

Figura 109 Retrato de uma Jovem Moça; Arent de Gelder (com 35 anos); Art Institute of Chicago; 1685.

Portanto, se Rembrandt conseguiu ensinar a Arent de Gelder como controlar essa técnica e ter resultados muito similares aos seus, a possibilidade de que tal processo ou conhecimento independe da idade não pode ser descartada. Se a estética independe da idade, então o termo alterstil, assim como late work, não podem ser considerados como adequados para indicar as características visuais particulares a esse estilo ou processo. É necessário recordar o argumento original, e deveras sensato, levantado por Vasari, Von Sandrart, Hoogstraten e outros autores, de que somente a experiência da idade pode trazer um melhoramento qualitativo à pintura de um artista e que, no caso de Rembrandt, a experiência da idade provavelmente contou como um enaltecedor do estilo. Mas, o ponto principal no argumento desses autores, não é somente o fato de que a idade é necessária para alcançar a maneira rústica, mas o fato de que nem todo pintor que envelhece testemunha a melhoria de seu trabalho, pois o contrário é geralmente mais comum: há um uma diminuição na qualidade das pinturas dos artistas conforme envelhecem, se analisado do ponto de vista relativo a técnica de pintura figurativa do período. Este estudo sugere ainda outra teoria. Embora os especialistas definam que Rembrandt inaugure sua fase tardia a partir de 1651 e portanto alcançando o alterstil por conta de sua

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experiência, é necessário considerar, examinando suas obras em ordem cronológica, que o desenvolvimento desse estilo aconteceu de modo gradual. A seguinte passagem de Van de Wetering contém alguns dados que podem corroborar com essa hipótese:

[...] A pintura de Rembrandt era variada desde o princípio. Ele já usava uma maneira “rústica” de pintura em alguns de seus trabalhos do início de carreira, como observado em “vidimus”, na obra “David diante de Saul”390 em Basle. Mas essa obra trata-se de um estudo rápido a óleo. Se nossa interpretação dos três trabalhos391 com as mesmas dimensões em cobre de aproximadamente 1630 é correta, Rembrandt de fato considerou a maneira rústica na qual Soldado Sorrindo no Mauritshuis foi pintada, como uma maneira distinta a ser usada [...] (VAN DE WETERING, 2016, p. 204).

Portanto, Van de Wetering indica que essa maneira de pintura era de fato usada conscientemente pelo artista já em 1630, estilo que viria a se desenvolver de forma mais expressiva e proeminente depois de 1650. Logo, se a teoria de Sandrart, Hoogstraten e Vasari também está certa, o desenvolvimento da maneira rústica é uma provável mistura entre uma intenção prematura do artista, um conhecimento prático somado a uma maturidade artística.

390 Também chamada de “Golias diante de Saul”, “A Cabeça de Golias para o Rei Saulo” ou ainda “David oferece a Cabeça de Golias ao Rei Saulo”. 391 Van de Wetering se refere a Rembrandt Sorrindo (1628, J. Paul Getty Museum) com 22.2 x 17.1 cm , Soldado Sorrindo (1629, Mauritshuis) com 15.3 x 12.2 cm, e Autorretrato (1630, Nationalmuseum, Stockholm) com 15.5 cm x 12 cm .

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Figura 110 Obras de Rembrandt pintadas sobre cobre: Rembrandt Sorrindo (1628, J. Paul Getty Museum) com 22.2 x 17.1 cm , Soldado Sorrindo (1629, Mauritshuis) com 15.3 x 12.2 cm, e Autorretrato (1630, Nationalmuseum, Stockholm) com 15.5 cm x 12 cm.

Primeiramente, é importante relembrar que Moça na Janela (1651, Nationalmusuem de Estocolmo) é considerada a primeira obra onde a aplicação de tinta arrastada, sintética e volumosa é observável em todos os elementos da obra. Van de Wetering define que:

[...] A partir de 1650, o uso de uma pincelada livre e diferenciada nas pinturas de Rembrandt torna-se dominante. É possível dizer que, com certas ressalvas a serem discutidas posteriormente, que Rembrandt optou desse ponto em diante, pela maneira rústica, embora aplicada com grande diferença do que aquela usada no período tardio de Tiziano (VAN DE WETERING, 2016, p. 204).

No entanto, além dos exemplos dados por Van de Wetering, outros exemplos com o mesmo tipo de resolução formal, isto é, com impastos arrastados, pinceladas vigorosas e expressivas, omissão de informação para atingir um sintetismo, além de outras características da maneira rústica tardia de Rembrandt foram observadas em outras pinturas anteriores ao ano de 1651, como visto anteriormente, ano em que a primeira obra considerada como período tardio foi feita. Na obra Jeremias Lamentando a Destruição de Jerusalem (Rijskmuseum; 1630), pintado quando o artista possuía vinte e quatro anos, Rembrandt já mostra em alguns elementos, o mesmo tipo de representação solta, sintética e rústica do período tardio. Isso é especialmente notável na descrição dos bordados do tecido, na parte inferior esquerda da obra (detalhe). Os brocados não são descritos com precisão e maciez, mas um tipo de fatura que não se relaciona com um pintura lisa e laboriosa.

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Há uma clara intenção de descrição dos elementos do bordado mas sem que os mesmos se apresentem em condições de absoluta reprodução de cada detalhe observado. O desenho do bordado surge através de um efeito parcial da informação e não de sua totalidade, o artista omite informação representando apenas a estrutura fundamental das formas, a grosso modo, uma visão sintética e resumida daquilo que se observa.

Figura 111 Jeremias Lamentando a Destruição de Jerusalem (detalhe); Rembrandt; Rijskmuseum; 1630. Fonte: Nossa (2018).

Na obra Autorretrato com Boina Vermelha e Corrente de Ouro (coleção particular; 1633), pintado quando o artista possuía vinte e sete anos, os fundamentos dos procedimentos da maneira rústica se fazem ainda mais notáveis do que na obra anterior. O uso das pinceladas absolutamente largas e executadas com segurança, descrevendo o tecido, o bordado e até mesmo a gargantilha de aço provém uma sugestão geral dos elementos e não uma descrição detalhada, tudo de modo despojado e solto. Há claramente aqui, a intenção de descrever de modo rápido, suscinto e seguro, uma ideia resumida. Obviamente, não há um tratamento demorado e detalhado das formas, mas um sintetismo formal dos elementos. Os princípios vistos anteriormente da perceptibilidade tátil chamado em holandês de khenlijkheit, são percebidos principalmente nas áreas de cor uniforme, onde provavelmente não havia muita informação de luz e sombra ou mudança da forma, onde Rembrandt usa seu recorrente recurso do período tardio de evidenciar, e não esconder, as marcas das cerdas do

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pincel em todas essas áreas, criando interesse numa área que do contrário, seria árida e sem graça.

Figura 112 Autorretrato com Boina Vermelha e Corrente de Ouro, Rembrandt (Coleção Particular, 1633). Fonte: Nossa (2018).

Na obra Retrato de Saskia van Uylenburgh como Flora (National Gallery de Londres; 1635), pintado quando o artista possuía vinte e nove anos, novamente a função tátil do khenlijkheit é observável por toda extensão das vestes de Flora. A descrição do tecido é claramente rústica e não tem nenhum tipo de relação com a pintura lisa do período. Aplicou tinta em boa quantidade, de maneira generosa, com movimentos soltos do pincel, deixando sinais de marcas em certas áreas e esfumando levemente onde necessário. A construção de uma topografia rica em textura é notável, tanto de perto quando de uma distância considerável, ao longe, como deve ser a aplicação da maneira rústica, o procedimento descreve de modo natural o objeto que deseja representar. Há marcas das cerdas do pincel, e grande aspereza por toda superfície pictórica. Novamente, em diversas áreas, nota-se o recorrente uso de uma intenção em evidenciar as marcas das cerdas do pincel e não de alisar ou suprimir.

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Figura 113 Retrato de Saskia van Uylenburgh como Flora, Rembrandt (National Gallery de Londres; 1635). Fonte: Nossa (2018).

Busto de um Velho (National Gallery de Copenhagem; 1630) foi pintado quando o artista possuía vinte e quatro anos. A obra é provavelmente um estudo, hipótese tirada pelo modo de execução absolutamente resumido das formas e devido a seu tamanho deveras pequeno. Além disso, suas similaridades estéticas e formais, como seu tamanho, com as obras Homem Sorrindo (Mauritshuis, 1659), Rembrandt Sorrindo (1628; Getty Museum; California. EUA) e Retrato de Jovem Judeu (1648; Staatliche Museum Preussischer Kulturbesitz; Berlim; Alemanha), também mostram que Busto de um Velho é provavelmente um estudo. No entanto, há uma topografia rica em textura e informação tátil, pinceladas definidas e um modelado sintético das formas, não só nas roupas e fundo mas também no tom de pele. É impossível não comparar o tom de pele pintado nessa pequena figura com os tons de pele característicos do período tardio. É difícil de acreditar que isso seja apenas uma coincidência, todos os elementos da maneira rústica estão presentes aqui: o sintetismo da forma, a omissão de informação descritiva, a construção de áreas ricas em textura e impasto (khenlijkheit) a deliberada evidenciação das pinceladas.

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Figura 114 Busto de um Velho; Rembrandt (National Gallery de Copenhagem, 1630). Fonte: Nossa (2018).

A pintura Autorretrato com Boina de Veludo (coleção particular; 1634), pintado quando o artista possuía vinte e oito anos, é o mesmo caso de todas as pinturas apresentadas anteriormente nesse capítulo: a pintura, embora de 1634, apresenta todas as características da maneira rústica, observável principalmente no casaco de pele, na gola de tecido e nos cabelos, mas também notável, de modo um pouco mais tímido, nas luzes do tom de pele.

Figura 115 Autorretrato com Boina de Veludo; Rembrandt; coleção particular; 1634. Fonte: Nossa (2018).

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É importante observar que em todos os exemplos mostrados aqui, o artista possuía menos de trinta anos de idade. Inúmeros outros exemplos podem ser encontrados em alta resolução no site do projeto Rembrandt database392. Portanto, considera-se como hipótese que o desenvolvimento desse estilo tenha se dado de forma gradual, fruto de um aprimoramento através de alguns anos, a começar pela sua formação em Leiden no ateliê de Peter Isaacsz e se estendendo até o ano da morte do artista em 1669. Considerando o desenvolvimento do estilo como um percurso gradual é possível observar o marco de 1651, ano em que Rembrandt pintara Moça na Janela (Nationalmusuem de Estocolmo; 1651) apenas como uma data em que o desenvolvimento completo do estilo e o emprego dos efeitos tão característicos do alterstil começam a serem usados em todos os elementos da composição e não num momento mágico onde tudo aconteceu pela primeira vez. Observando pinturas do artista de todos os períodos, principalmente após 1630, período no qual o artista se muda para Amsterdam e abre seu próprio ateliê, podendo finalmente pintar livremente, sem a influência de um mestre ou sócio, é possível notar que em praticamente quaisquer um de seus trabalhos, até mesmo os retratos mais comportados e executados de modo preciso e laborioso, mostram algum elemento ou área pintada com a maneira bruta (rough manner). É preciso considerar a hipótese de que o estilo começou como uma tímida aplicação do modo rústico em áreas ou elementos menos importantes de suas composições, como em detalhes das roupas, joias, broches, cabelos, objetos e em fundos, e conforme as obras se aproximam de 1650, Rembrandt resolve aplicar o mesmo tratamento matérico e ousado nas áreas mais importantes de suas pinturas, como os tons de pele dos personagens e retratados. Como conclusão, parece correto afirmar que Rembrandt começou a desenvolver o estilo rústico por volta de 1630, quando o artista possuía quase trinta anos de idade, continuando a aprimorar as características da maneira rústica até aproximadamente 1650, atingindo então as características padrões por quais hoje o estilo é conhecido. O artista possuía quarenta e quatro anos de idade. Portanto, trata-se de um desenvolvimento gradual, fruto de uma intenção conceitual do artista e provavelmente da experiência adquirida com a idade.

392 http://www.rembrandtdatabase.org

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7.1.2. Uso do Contraste Verde-Vermelho (e Castanhos) no Campo Pictórico A relevância desse capítulo é apresentar uma particularidade técnica usada pelo artista não mencionada na bibliografia especializada. Ela é fundamental para constituir a fisicalidade das obras: trata-se do modo como um grupo específico de cores é arranjado num campo pictórico, formando os aspectos visuais das obras do período tardio. Quando o pesquisador adquire familiaridade com certas cores e pigmentos usados em pinturas de determinado período e região, monta-se um arquivo cromático visual, na mente do pesquisador, capaz de detectar certas cores mais tradicionais de forma relativamente fácil. Ao analisar in loco as obras do período tardio do artista nos museus holandeses, foi possível notar que o artista faz um uso absolutamente sutil e inteligente das cores terrosas. Particularmente nos tons de pele, é possível notar um padrão processual: o uso de um artifício cromático que constrói uma interessante dinâmica nas figuras. Esse artifício é o recorrente uso de um contraste harmônico das duplas de cores complementares vermelho e verde. Ao colocar ambas cores complementares próximas uma da outra numa determinada área, Rembrandt cria um jogo dualista de temperatura: a frieza do verde e o calor dos vermelhos (ou castanhos) conferem diversidade à pele dos retratados, criando também unidade, desde que sua natureza é complementar. Quando a dupla verde e vermelho é arranjada numa mesma área compositiva, ou num mesmo campo pictórico, sua propriedade de cores complementares cria uma harmonia cromática natural: isto é, sua combinação é percebida de forma harmoniosa ao olhar humano. Esta qualidade de contraste é amplamente explorada no célebre tratado de Eugene Chevreul (CHEVREUL, 1855). É dessa forma que o observador tem uma percepção de unidade e harmonia nas composições, quando por exemplo, uma figura usa vestes vermelhas sobe um fundo esverdeado: é o uso inteligente das complementares num campo visual para criar um contraste harmônico. Nos tons de pele, parte do mesmo princípio, só que inclui a dupla de complementares na luz e sombra: luzes verdes, sombras vermelhas e meios-tons marrons, que provém uma transição entre os verdes e os vermelhos.

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Figura 116 Todas as obras do período tardio analisadas in loco, com exceção de Tobit e Anna (1659) e Concordia do Estado (1637). Fonte: Nossa , 2018.

Identificou-se e organizou-se uma lista das obras observadas in loco nas quais o uso das complementares foi detectado. As pinturas definidas na tabela em cinza claro não mostraram a presença do contraste verde-vermelho. É importante notar que, dentre as treze pinturas do período tardio analisadas para este estudo, todas as treze apresentaram o uso do contraste entre verde-vermelho no campo pictórico, particularmente na luz e sombra dos tons de pele. Numa primeira análise, as pinturas Titus numa Mesa (Mauritshuis, 1655) e Titus como São Francisco (Rijksmuseum, 1660) pareciam apresentar áreas de luzes percebidas como praticamente monocromáticas, mas numa análise mais detalhada, revelaram áreas não tão claras e principalmente meios-tons e sombras que apresentam esse artifício. As obras Homem Sorrindo (Mauritshuis, 1629) e Concórdia do Estado (Boijmans, 1637) não foram consideradas pois são anteriores a 1650 e portanto não se enquadram como obras do período tardio.

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Pinturas com uso do Contraste Verde-Vermelho Homem Sorrindo (Tronie) * 1629 Mauritshuis Concórdia do Estado * 1637 Boijmans Van Beuningen Saul e David 1652 Mauritshuis Titus numa Mesa 1655 Boijmans Van Beuningen Lição de Anatomia do Dr. Deijman 1656 Hermitage Amsterdam Tobit e Anna 1659 Boijmans Van Beuningen Titus como São Francisco 1660 Rijskmuseum Homem com Boina Vermelha 1660 Mauritshuis Autorretrato como o Apóstolo Paulo 1661 Rijskmuseum Dois Homens Africanos (Dois Mouros) 1661 Mauritshuis Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam 1662 Rijskmuseum Homero 1663 Mauritshuis Casal como Isaac e Rebecca (A Noiva Judia) 1665 Rijskmuseum Retrato de um Velho Idoso 1667 Mauritshuis Autorretrato 1669 Mauritshuis * Pinturas que não são consideradas do período tardio, posteriores a 1650. Fonte: Nossa (2018).

Em todas as pinturas dessa lista foi possível observar que quando há verdes nas áreas de sombras do tom de pele, sempre usados com um aspecto terroso, de baixa intensidade, é possível encontrar sua complementar nas luzes, vermelhos geralmente rodeados de castanhos (marrons) ou laranjas terrosos, criando grande sutileza de contrastes, nem sempre percebido facilmente. Em outros obras, a dinâmica é invertida: os vermelhos se apresentam nas luzes e os verdes por sua vez estão nas sombras. Essa dinâmica foi observada in loco em todas as obras pintadas após 1630 observadas na Holanda. A seguir, alguns comentários pertinentes ao modo como Rembrandt fez uso dos contrastes nessas obras. Na obra Tobit e Anna (Mauritshuis, 1659) o contraste entre verde-vermelho é absolutamente discreto, de fato tão discreto que faz desta uma das obras mais difíceis de se discernir o contraste. Com uma combinação de terras marrons esverdeadas e verdes acastanhados, é necessário explorar cuidadosamente o campo pictórico para detectar o contraste sutil com o qual Rembrandt aproximou os vermelhos dos verdes, tão próximos que é possível confundi-los. É possível discernir mais facilmente o contraste quando se comparam os marrons quentes do chão com os cinzas esverdeados das paredes representados na pintura. As imagens dessa obra publicada em livros ou suas versões digitais parecem mais cromáticas e mais claras do que sua versão original observada in loco. Ao vivo, a obra é tão escura, que fez dela a pintura mais difícil de se enxergar o contraste verde-vermelho. Abaixo, a primeira

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imagem extraída da web com luminosidade consideravelmente diferente da original, abaixo da primeira imagem, duas fotos registradas in loco, no Mauritshuis.

Figura 117 Tobit e Anna, Rembrandt (Mauritshuis, 1659). Fonte: Nossa (2018).

Figura 118 Tobit e Anna, Rembrandt (Mauritshuis, 1659). Fonte: Nossa (2018).

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O mesmo tipo de dificuldade encontrada em Tobit e Anna (Mauritshuis, 1659) foi encontrado na pintura Dois Homens Africanos (Dois Mouros) (Mauritshuis, 1661). Assim como em Tobit e Anna (Mauritshuis, 1659) as relações entre verde e vermelho são tão próximas que o discernimento de temperatura é extremamente difícil, sobretudo nas áreas mais escuras. A pintura como um todo, é na verdade, mais escura do que o habitual, quase como se as tintas claras, que vão nas partes mais iluminadas das figuras, não foram aplicadas com força suficiente para iluminar e cria um contraste adequado. É possível observar que a cor predominante da pintura provavelmente trata-se de um verde neutralizado com vermelho, resultando numa cor que confunde o olhar. As análises físico-químicas393 ajudam a confirmar que o primuersel é uma tradicional cor de creme (bege), feita de uma mistura de amarelo ocre, vermelho ocre e branco de chumbo. Uma “camada intermediária” é relatada nos resultados de De Vries (DE VRIES; TÓTH- UBBENS; FROENTJES, 1978), segundo o autor, “cinza-acastanhada”, feita de branco de chumbo, ocre vermelho, sombra e preto. Essa segunda camada, aplicada de modo transparente, foi provavelmente responsável pela formação de um efeito ótico que resultou nessa cor de fundo verde acinzentada que pode ser confundida também com marrom. Segundo as análises, a “camada final” da obra contém os pigmentos branco de chumbo, amarelo ocre, vermelho ocre, ocre marrom, terra de Colônia e preto. A quantidade maior de pigmentos avermelhados corrobora com aquilo que se observa in loco: uma sensação de que há luzes feitas de marrons mais quentes em ambas figuras. Portanto, configura-se um fundo mais frio do que as luzes adicionadas nas figuras, particularmente observável nas luzes da figura da direita. Portanto, este estudo considera que essa pintura apresenta os contrastes entre verde e vermelho no campo pictórico.

393 (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214).

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Figura 119 Dois Homens Africanos (Dois Mouros), Rembrandt (Rijksmuseum, 16). Fonte: Nossa (2018).

O contraste de verde-vermelho em Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656), é consideravelmente mais fácil de se notar. Por baixo de todos os tons de pele, nota-se um cinza escuro esverdeado que aparece em todas as áreas escuras das figuras, que hora permanece mais frio, como na mão do centro, hora se mostra mais quente, como na mão da figura à esquerda. Esse cinza esverdeado pode se tratar de um primuersel geral ou de um primuersel local de cada uma das figuras. Por cima desses cinzas frios, Rembrandt aplicou luzes em tons mais quentes, beges amarelados e principalmente beges rosados. A relação de contraste entre o verde-vermelho é claramente discernível no rosto da figura principal.

Figura 120 Lição de Anatomia do Dr, Deijman, Rembrandt (Hermitage Amsterdam, 1656). Fonte: Nossa (2018).

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Em Retrato de um Idoso (Mauritshuis, 1667), também se nota facilmente o contraste entre verde-vermelho. É fácil detectar o uso predominante de misturas verdes, cinzas esverdeados e marrons nas áreas de sombras do tom de pele. Nas áreas iluminadas do rosto e das mãos, Rembrandt fez uso de misturas quentes como beges e alaranjados em todas as luzes e de castanhos rosados e terras rosadas mais intensas próximas aos meios-tons. Dessa forma, alcançou um contraste equilibrado, obtendo uma notável diversidade e unidade.

Figura 121 Retrato de um Idoso, Rembrandt (Mauritshuis, 1667). Fonte: Nossa (2018).

Ao contrário da dinâmica apresentada em Retrato de um Idoso, na obra Titus como São Francisco (Rijksmuseum, 1660), observa-se uma inversão na predominância das matizes apresentadas na áreas de claro e escuro. Cinzas frios, às vezes levemente esverdeados, nas partes de luz394 do rosto, enquanto cinzas esverdeados mais intensos podem ser vistos nas áreas de meio tom que antecedem as sombras. Rembrandt reservou para as sombras e para as tênues refrações da parte escura do rosto, uma série de marrons e laranjas terrosos, que funcionam para contrastar as temperaturas, criando mais uma vez uma suave dualidade entre verde-vermelho.

394 Particularmente notável in loco: as áreas de luz são praticamente monocromáticas, parecendo consideravelmente mais cinzas do que em qualquer impressão ou imagem digital.

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Figura 122 Titus como São Francisco, Rembrandt (Rijksmuseum, 1660). Fonte: Nossa (2018).

De maneira parecida à configuração de cores de Titus como São Francisco (Rijksmuseum, 1660), a obra Titus numa Mesa (Mauritshuis, 1655) apresenta em suas áreas de sombras elementos verdes que foram neutralizados, provavelmente com cinzas e também outros agentes neutralizadores395, portanto, as áreas claras do rosto e das mãos são predominantemente frias. Nas áreas de sombras da figura, Rembrandt faz uso das complementares dos verdes, aplicando terras marrons (vermelhas e alaranjadas), de maneira predominante.

Figura 123 Titus numa Mesa (Mauritshuis, 1655) Fonte: Nossa, 2018.

395 Agentes neutralizadores.: cores que diminuem a intensidade de uma cor, nesse caso, seria possível diminuir a intensidade dos verdes usando cinzas, sombra natural ou ainda marrons quentes, como o sombra queimada ou o Siena queimada, tratando-se de cores praticamente complementares ao verde.

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Figura 124 Titus numa Mesa, Rembrandt (1655). Fonte: Nossa (2018).

A obra Homem com Boina Vermelha (Mauritshuis, 1660) também apresenta contrastes de verde e vermelho, embora seja difícil discernir. De maneira geral, quando se observa a obra ao longe, nota-se uma predominância de cores quentes nas áreas de luz do rosto e o que parecem ser áreas também quentes nas sombras. Mas, Rembrandt fez uso de um planejamento mais complexo para essa figura. Em primeiro lugar, o jogo de contraste dado na mão parece ser diferente daquele dado ao rosto. A mão da figura parace ter sido feita com cinzas esverdeados em todas as áreas escuras, enquanto as luzes foram feitas com beges acinzentados com um toque rosado. Nas áreas de sombra do rosto, vemos verdes acastanhados que parecem ser o primuersel local do rosto, na parte mais inicial da pintura. Por cima desse estágio, Rembrandt adicionou terras marrons e terras alaranjadas, provocando um jogo de contrastes entre frios e quentes em todas as áreas de sombras. As luzes são variações de beges rosados, mas é possível observar em algumas áreas de meios-tons cinzas esverdeados.

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Figura 125 Homem com Boina Vermelha, Rembrandt (Mauritshuis, 1660) Fonte: Nossa, 2018.

Na obra Homero (Mauritshuis, 1663) o contraste é observável, embora não seja percebido facilmente. Nota-se em toda a extensão da pintura, inclusive ao fundo, o que parece ser uma camada inicial mais quente seguida de um estágio subsequente de cinzas esverdeados e verdes acastanhados por cima. Em algumas áreas, como na roupa de Homero é possível confundir a ordem das pincelas, tornando difícil discernir se os verdes estão por baixo ou por cima, provavelmente por uma alternância da ordem das complementares nessas camadas. Após inúmeras tentativas de entender a ordem dos elementos e de suas cores nas vestes, notou-se que o contraste é mais fácil de ser percebido no rosto da figura: há verdes acastanhados e cinzas esverdeados em toda as áreas de sombras e meios-tons, enquanto as luzes foram feitas com misturas de beges mais quentes, levemente rosado, um pouco parecido com o tratamento dado nas luzes de Homem com Boina Vermelha (Mauritshuis, 1660).

Figura 126 Homero (Mauritshuis, 1663) Fonte: Nossa, 2018.

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Figura 127 Homero, Rembrandt (Mauritshuis, 1663). Fonte: Nossa, 2018.

Em outros casos, o trabalho de contraste verde-vermelho é mais complexo: Rembrandt deixa de colocar os contrastes de verde e vermelho de modo dualista, para apresentar o mesmo tipo de contraste em cada um dos elementos do rosto. Como exemplo, a pintura Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (Rijksmuseum, 1661). As áreas de sombra dos tons de pele são predominantemente cinzas esverdeados, enquanto as áreas de luz apresentam misturas beges mais quentes, com toques rosados esporadicamente. Ao analisar a obra mais de perto, é possível notar que Rembrandt descreve algumas refrações dentro das áreas de sombras com terras mais quentes, marrons (castanhos) alaranjados, criando um contraste de verde-vermelho dentro das áreas de sombras.

Figura 128 Os Síndicos, Rembrandt (1661). Fonte: Nossa, 2018.

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Figura 129 Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam, Rembrandt (Rijksmuseum, 1661). Fonte: Nossa, 2018.

O contraste também pode ser visto em várias áreas do tapete. Marrons esverdeados com áreas de cinzas esverdeados parecem pertencer ao primuersel da pintura ou a um primuersel local do tapete. Por cima dessa pré-pintura fria, aplicações opacas e transparentes de vermilion descrevem o desenho da tapeçaria.

Figura 130 Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam, Rembrandt (Rijksmuseum, 1661). Fonte: Nossa, 2018.

As próximas obras mostram uma maior complexidade no modo como o artista trabalhou o contraste entre verde e vermelho. Em Autorretrato (Mauritshuis, 1669), há uma

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predominância de tons avermelhados e rosados nas luzes do rosto, mas é possível observar o contraste de cinzas esverdeados e marrons, tanto nas áreas de luz quanto nas áreas de sombras, criando uma alta complexidade de ritmo de temperatura.

Figura 131 Autorretrato, Rembrandt (Mauritshuis, 1669). Fonte: Nossa, 2018.

O mesmo acontece na pintura Saul e David (Mauritshuis, 1652), as áreas de sombras do rosto foram aparentemente blocadas inicialmente por um primuersel local com cor esverdeada de pouca intensidade, mas numa inspeção mais de perto é possível observar que Rembrandt acrescentou por cima dessa base, diversas áreas de marrons mais quentes, tornando as sombras repletas de contrastes entre verde-vermelho. O mesmo acontece nas áreas de luz do rosto, as luzes mais altas apresentam coloração bege (quente) em algumas áreas e em outros setores as luzes parecem mais esverdeadas. Os meios-tons que fazem a transição entre as luzes e as sombras também apresentam variação de temperatura, hora verde, hora marrom.

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Figura 132 Saul e David (Mauritshuis, 1652). Fonte: Nossa, 2018.

O caso de Autorretrato como Apostolo Paulo (Rijksmuseum, 1661) talvez apresente um dos mais elaborados casos de contraste entre verde-vermelho dentre as obras analisadas na Holanda. Cada elemento do rosto, como a testa, nariz, boca, maçã do rosto, queixo, é individualmente contrastado com as complementares, cada elemento apresenta um complexo jogo de contrastes de verde e vermelho, planejado para descrever diferentes temperaturas de luz e sombra. É notável que, dentro de cada elemento atômico do rosto, há verdes e vermelhos tanto nas sombras quanto nas luzes, em muitas áreas, os fundamentais castanhos e marrons, necessários para descrever as transições suaves entre as temperaturas contrastantes.

Figura 133 Autorretrato como Apostolo Paulo, Rembrandt (Rijksmuseum, 1661). Fonte: Nossa, 2018.

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Como conclusão, não resta dúvida de que há em cada uma dessas obras um padrão em forma de plano cromático, que faz uso dos contrastes de complementares verde-vermelho, com auxílio de castanhos (marrons) que harmonizam com ambas as complementares. É importante notar que, a complexidade desses contrastes é maior em algumas obras, enquanto em outras o seu uso é mais discreto. A seguir, analisa-se de modo mais detalhado, como o pintor, além de usar as complementares num campo pictórico, fazia uso do conhecimento das complementares em suas misturas de cor.

7.1.3. Uso de Mistura de Complementares para Neutralização A relevância desse capítulo é apresentar a hipótese de que o artista usou um procedimento particular de mistura para neutralizar cores complementares, especificamente os verdes e vermelhos, processo fundamental para seu pensamento cromático, alcançando maior dramaticidade em suas obras e particularmente importante para alcançar a naturalidade de seus tons de pele. Ao examinar pinturas de Rembrandt em livros e em imagens digitais, foi possível detectar características recorrentes em seus trabalhos, sobretudo nas obras do período tardio. O mesmo padrão foi confirmado ao examinar as obras tardias de Rembrandt do grupo específico estudado in loco. Em primeiro lugar, a óbvia e já amplamente comentada ausência de pigmentos azuis396. Outra característica não citada na bibliografia usada para este estudo, é a aparente ausência de um pigmento verde puro ou verde intenso, como o caso dos tradicionais e amplamente usados verdigris, azurite (verde) e malaquita. Uma das primeiras hipóteses desenvolvidas para este estudo, era a de que Rembrandt poderia ter feito uso de terras importadas, como as italianas397, particularmente alguma Siena natural mais neutra, pigmento famoso por sua sutileza cromática e baixa intensidade, úteis quando se pretende obter o que Hoogstraten chama de cores quebradas, como visto anteriormente.

396 Embora Rembrandt faça uso de pelo menos dois pigmentos azuis, os mesmos são azuis de baixa intensidade, usados mais por suas propriedades secativas do que por sua coloração. A ausência de um azul intenso, como o Azul Ultramar, é relatada e explorada por Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997), Bomford (BOMFORD et al., 2006) entre outros. 397 Terras Italianas, são famosas pela baixa intensidade e naturalidade pela qual tingem os tons de pele.

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A relação de pigmentos usados por Rembrandt feitas por Van de Wetering (VAN DE WETERING, 1997) e Bomford (BOMFORD et al., 2006), apresentadas no capítulo sobre pigmentos, não inclui nenhum pigmento verde, ajudando a confirmar a hipótese da ausência de verdes e refutando a hipótese das terras italianas. As análises físico-químicas das obras analisadas in loco surpreendentemente não apresentam nenhum resultado que mencione um pigmento verde398 puro. Portanto, verificou-se que a hipótese era correta: os verdes usados por Rembrandt são misturas feitas pelo artista de pigmentos amarelos, como o amarelo ocre e preto de carbono. Os resultados das análises físico-químicas do capítulo que analisa em detalhes essas obras mostram uma grande quantidade de exemplos dessa mistura. Também foi possível notar que havia a ausência de terras tradicionais em suas formas mais intensas de maneira geral. Isto é, embora seja possível detectar cores tradicionais como os vários ocres, as Sienas e outras terras, essas cores aparentemente não eram usadas de forma pura por Rembrandt, pois não apresentam sua força total tão característica mas versões menos intensas, uma forma mais neutra dessas cores. Isso é particularmente notável nas terras amarelas, como o amarelo ocre e o Siena natural, assim como nas terras vermelhas, como o vermelho ocre e o Siena queimada. Por conta dessa importante observação, passou-se a considerar a hipótese de que os amarelos (esverdeados), verdes e vermelhos usados por Rembrandt eram, pelo menos nesse grupo de obras, cores neutralizadas através de uma mistura de duas ou mais cores, provavelmente complementares. O manual Inleyding de Hoogstraten, analisado extensivamente (WESTSTEIJN, 2008), foi uma das provas necessárias para comprovar que o artista era familiar à teoria de cores quebradas e portanto, poderia fazer uso do conhecimento das propriedades neutralizadoras dos pigmentos complementares, sobretudo os verdes e vermelhos. Portanto, se Rembrandt sabia o que eram complementares e sobre suas propriedades, havia certamente uma chance de que o artista fez uso desse conhecimento nas suas misturas. As análises físico-químicas dessas obras confirmaram, na grande maioria dos casos, a presença de um verde, feito sempre de um amarelo terroso com preto, misturado a algum vermelho: evidências de uma mistura neutralizadora baseada em complementares.

398 Observou-se no entanto, o que parace ser verdigris em obras do período inicial de Rembrandt.

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Figura 134 Sistema de mistura de Neutralização de Complementares. Fonte: Nossa, 2018.

O sistema de mistura de neutralização via complementares funciona da seguinte maneira: sendo o vermelho uma cor complementar ao verde, quando misturados tendem a se neutralizar, isto é, diminuem em intensidade, perdendo cada vez mais sua potência cromática conforme se adiciona seu par complementar. Portanto, ao ir adicionando um pouco de verde no vermelho, a mistura lentamente vai se afastando de sua condição quente, perdendo sua intensidade em direção a um marrom, que se distancia cada vez mais do vermelho, até que começa a parecer um marrom esverdeado. Nesse momento, a mistura marrom agora possui maior quantidade de verde do que de vermelho, e começará a parecer fria. Esse é o fenômeno que acontece quando se mistura as tintas com cores complementares verde-vermelho, uma estratégia para neutralizar ambas as cores quando é necessário usá-las com intensidades mais baixas. A seguir, mostra-se o sistema em funcionamento usando algumas cores terrosas similares aquelas usadas por Rembrandt:

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Figura 135 Simulação A do sistema de neutralização. Fonte: Nossa, 2018.

Figura 136 Simulação B do sistema de neutralização Fonte: Nossa, 2018.

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Figura 137 Simulação C do sistema de neutralização. Fonte: Nossa, 2018.

Figura 138 Simulação D do sistema de neutralização. Fonte: Nossa, 2018.

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Uma outra maneira de diminuir a intensidade dos verdes é adicionando alguma tinta marrom (castanho). No caso de Rembrandt, havia uma quantidade considerável de pigmentos com essa cor: o sombra queimada, Siena queimada, ocre marrom, marrom Van Dyck, terra de Colônia ou ainda o terra de Cassel. O marron diminui a intensidade dos verdes, particularmente das terras esverdeadas, pois trata-se de uma cor que na verdade é um vermelho de baixa intensidade ou vermelho escuro. Aparentemente, Rembrandt fazia uso de ambos sistemas: marrons e complementares (verde e vermelho). Mas, por que o recorrente uso dessas misturas neutralizadas e não o uso de terras intensas em sua força natural? É provável que há duas razões principais pelas quais Rembrandt diminuía o contraste de suas terras verdes e vermelhas. Em primeiro lugar, com um menor contraste entre essas cores, era possível criar diversidade nas cores sem perder a unidade. O uso de diversidade de cores é sempre desejado no campo pictórico. Fazendo uso de contrastes, cria-se áreas mais interessantes visualmente, no entanto, é necessário restringir a quantidade de variação para não causar conflitos entre os elementos. Ao neutralizar levemente essas cores, cria-se um diminuição cromática que permite conservar a diversidade obtendo ao mesmo tempo unidade. Em segundo, esse artifício tornava os tons de pele mais naturais. Certamente o uso de cores terrosas para os tons de pele é um artifício que garante com que haja certa naturalidade nas figuras, mas, os tons terrosos podem ser surpreendentemente intensos. Ao neutralizar os tons de terra, Rembrandt certifica-se que as cores usadas nos tons de pele são de fato absolutamente naturais, obtendo uma atmosfera ainda mais naturalista a suas pinturas. Portanto, o sistema de neutralização das cores terrosas tornava a diferença de contrastes entre por exemplo, o verde e o vermelho, muito mais suave do que quando se usa uma terra verde e vermelha em suas intensidades naturais, criando um contraste mais tênue entre essas cores. É justamente por conta dessa sutileza que esse contraste nem sempre é percebido facilmente pelos observadores, a maioria das pessoas parecem ter certa dificuldade em discernir esses contrastes mais suaves. Rembrandt neutralizava esses verdes e vermelhos revelando uma tênue diferença entre eles. Além da diminuição da força dessas cores complementares, Rembrandt usava marrons que faziam uma ponte entre elas, funcionando como meio de campo que conectava os verde e vermelhos, afinal, são castanhos feitos exatamente dessas cores: verde e vermelho. Esses marrons que apresentam características tanto do verde quanto do vermelho são os mais difíceis de se notar, pois tratam-se de misturas com quantidades suficientemente grandes

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de sua complementar para que se neutralizem quase que completamente. Isso faz com que a mistura seja realmente difícil de se discernir, hora parecendo vermelha e hora parecendo verde, criando até mesmo uma confusão visual no observador. Afinal, é justamente isso: embora o observador nem saiba que uma das formas de se compor um castanho é através da mistura de complementares, ainda assim sua visão identifica, naquela cor, a presença de ambas as cores: verde e vermelho. Ao detectar até de forma inconscientemente o verde e também o vermelho, a dificuldade em entender qual dos dois predomina a mistura, força a visão, criando um stress visual e mental. Alguns observadores podem ter certeza de que a mistura é “na verdade” um vermelho, enquanto outros enxergarão verde, mas ambos estão corretos e presentes nas misturas. É importante entender que Rembrandt fazia um uso estratégico dos marrons e castanhos em conjunto com as complementares verdes e vermelhos pois eles fornecem uma maneira inteligente e harmônica de ligar os verdes com os vermelhos. As cores que denominamos marrons são categoricamente vermelhos de baixa intensidade. No caso específico da pintura a óleo, os marrons são obtidos em misturas geralmente quando os vermelhos são misturados ao preto e portanto perdem não só o brilho399, mas sua intensidade. Outra forma de obter marrons e castanhos é adicionando ao vermelho o seu complementar: o verde. É por isso que os marrons são muito úteis para descrever uma transição entre verdes e vermelhos, pois eles são naturalmente uma forma neutralizada de verdes com vermelhos. É esse fenômeno cromático que se observa num abacate maduro: um verde misturado ao marrom, isto é, um verde que denota parentesco ao vermelho. Esse paradoxo cromático certamente pode causar uma sensação de estranheza ou dificuldade para discerni-lo, uma vez que se racionaliza e se explica o modo como ele é composto ao observador. Portanto, é possível considerar a hipótese de que esse procedimento é uma estratégia fundamental no trabalho do artista para alcançar uma neutralidade das cores, uma forma de, assim como visto anteriormente na obra de Samuel van Hoogstraten, Inleyding, manter “a cor em função do valor” (WESTSTEIJN, 2008). Dessa forma, o artista enaltece a profundidade dos elementos, cria maior unidade do campo pictórico e obtém grande realismo nos tons de pele. É importante notar que, embora o artista faça considerável uso dessa mistura, ela não é usada em todo elemento de suas pinturas. Certamente é possível encontrar o uso de verdes e sobretudo vermelhos de alto croma nas obras do pintor. A obra de Rembrandt faz uso da

399 Em outras palavras, baixa-se o valor do vermelho, tornando-se mais escuro.

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neutralização de complementares mas é uma característica que se nota de maneira geral, principalmente nas misturas de tom de pele, embora as mesmas também apresentem diversas áreas de cores terrosas em suas versões mais puras. Após a confirmação in loco desse contraste cromático em quase todas as obras do grupo, foi necessário analisar os resultados dos testes físico-químicos disponíveis para comprovar se os pigmentos usados nessas obras tinham alguma relação com a hipótese sugerida. Logo, seguindo a lógica dessa hipótese, era necessário encontrar nos resultados das análises físico- químicas a presença de misturas contendo amarelo ocre mais preto de carbono, para resultar num verde, além da adição de algum pigmento vermelho. Nos inúmeros resultados de análises físico-químicas que investigam camadas extraídas de várias áreas das pinturas estudadas, foi possível encontrar algumas camadas em oito pinturas contendo misturas com essas características, confirmando a hipótese. As obras que possuem camadas com essa combinação de pigmentos são: Titus como São Francisco (1660) 400; Autorretrato como o Apóstolo Paulo (1661) 401, Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam (1662) 402, Homero (1663) 403, Casal como Isaac e Rebecca (1665) 404, Saul e David (1652) 405, Retrato de um Idoso (1667) 406, Autorretrato (1669) 407, Dois Homens

400 De acordo com arquivo 0001515592 do Rembrandt Database, extraído da “mão, parte de baixo da pintura”. Camada “4” do cross-section. 401 De acordo com arquivo 0001515571 do Rembrandt Database, extraído do “amarelo e cinza esverdeado do fundo”. Camada “2” do cross-section. Embora a amostra contenha esses pigmentos é possível que se trate de uma mistura mais neutra, mais parecida com um cinza acastanhado do que um marrom. Possível tratar-se de uma cor de base. 402 De acordo com arquivo 0001515619 (3046_5266_001.PDF) do Rembrandt Database, extraído da “toalha acima da assinatura – castanho avermelhado”, Camada “4” e também com o arquivo 0001526169 do Rembrandt Database, extraído da “parte de baixo da jaqueta amarela”, Camada “2”. Provavelmente não se trata de uma camada base, onde comumente restos da paleta são usados e ainda Análise de uma amostra retirada da área “mão sobre a mesa’”, arquivo 0001515594 (3046_5261_001.pdf) do Rembrandt Database, camada “5”. 403 De acordo com (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), análise feita de cross-section extraído dos “pigmentos da camada final”: branco de chumbo, amarelo de chumbo e estanho, ocres marrom, amarelo e vermelho, preto de osso. É possível que o autor trate sobre diferentes partes da pintura e essa descrição seja uma somatória de pigmentos encontrados em mais de uma área, mas não há confirmação dos dados no documento. 404 De acordo com arquivo 0001515619 (3046_5266_001.PDF) do Rembrandt Database, extraído da “toalha acima da assinatura – castanho avermelhado”. Camada “4” do cross-section. 405 De acordo com (NOBLE et al., 2010), amostra extraída da “base”, da “camada superior a base”, contendo: “preto de osso, terra amarela, laca e uma partícula de vermilion”. É possível que a mistura seja na verdade restos de tinta da paleta. No entanto, a mistura forma um castanho neutro. Também presente na amostra extraída da “cortina e do fundo original”, contendo: “mistura de preto de osso, terra de Kassel, terra amarela e vermelha, giz e adições de esmalte e laca vermelha”. 406 De acordo com arquivo 0001496582 (MHManCoudray_Groen_x4504_sampleform_1999.pdf) do Rembrandt Database, extraído da “área marrom abaixo da mão esquerda, próximo a borda da composição”. Camadas “1” e “2’ do cross-section.

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Africanos (1661) 408 e Tobit e Anna (1659) 409. As áreas em cada uma dessas pinturas de onde as amostras foram extraídas são definidas nas notas de rodapé desta página. É importante citar que, em algumas das pinturas analisadas, a mistura de neutralização foi encontrada na camada da base (ground). Embora a base contenha todos os pigmentos da mistura de neutralização, sabe-se que o artista usava às vezes sobras de tinta na mistura de base, portanto, a presença desses pigmentos na base é provavelmente uma coincidência e provavelmente não é um indício do uso de uma mistura de neutralização. As obras que apresentam esse caso foram marcadas na tabela com um asterisco e não foram consideradas como obras que indicam o uso da mistura de neutralização. Outro caso que merece consideração especial, devido à sua especificidade, é A pintura Homem com Boina Vermelha (Boijmans, 1660) 410. A obra possui duas amostras com misturas que possivelmente foram feitas com a função de neutralizar as complementares, embora não sejam compostas de amarelo ocre, preto de carbono e vermelho ocre, mas compostas de duas lacas orgânicas. As amostras foram retiradas da manga direita e do chapéu da figura, provavelmente não foram usadas para pintar um tom de pele, mas é necessário considerar a possibilidade de que Rembrandt tenha usado essas lacas de cores complementares, mais o preto, para obter uma mistura de neutralização, dessa vez uma versão transparente, provavelmente o motivo de ter escolhido esses pigmentos naturalmente transparentes. A presença da mistura de neutralização mais comum por sua opacidade contém ocre amarelo e preto de osso (verde), mais ocre vermelho (ou outro vermelho), e foi encontrada em mais da metade das obras estudadas, sendo oito dentre as treze pinturas analisadas do

407 De acordo com arquivo 0001492444 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-5.pdf) do Rembrandt Database, extraído da “borda da parte de baixo a direita”, Camada “1” do cross-section. Contém “vermelho, preto, laranja, e branco de chumbo”. O laranja é provavelmente amarelo ocre fino misturado a vermelho ocre fino. Além dessa amostra, mais outras três amostras contém misturas neutralizadas, duas das camadas das bases da pintura e uma de camada superior (“3”). Sendo: 0001490416 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-1.pdf), 0001492447 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-9.pdf) e 0001492447 (MHLateSelfportrait_sampleform_1208-9.pdf). 408 De acordo com (DE VRIES; TÓTH-UBBENS; FROENTJES, 1978, p. 214), a “última camada de cima” é composta de “[…] branco de chumbo, ocre marrom, amarelo e vermelho, terra de Colônia, preto de osso”. 409 Segundo análise do Gemäldegalerie, Staatliche Museen em Berlin: “[...] a composição foi desenhada numa pré-pintura marrom-avermelhada fina, com acentos locais do que parece ser laca vermelha. A autorradiografia indica presença de manganês. A pintura foi então trabalhada em vários tons de cinza contendo preto de osso e azuis (esmalte) contendo cobre. Em várias áreas o desenho inicial contem tons de cinza avermelhados que contém vermilion. Particulas de amarelo também foram adicionadas a essa mistura inicial”. Arquivo 0001512211 “805 kunsttechn Summary_EN_GB_final (filename: 20092.pdf)” do Rembrandt Database. 410 De acordo com arquivo 0001496553 (12239.pdf) do Rembrandt Database, extraído do “chapéu”, camada neutra que está por baixo da camada vermelha do chapéu. E também de acordo com amostra extraída da área “roupa, manga direita, 31x20”, arquivo 0001496553 (12239.pdf).

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período tardio. A presença dessa mistura comprova a intenção de neutralizar uma das duas cores do par de complementares (verde ou vermelho). As outras cinco pinturas que aparentemente não contém a mistura, possuíam material analítico insuficiente. Os resultados de Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656) possuía apenas duas amostras. As análises de Titus numa Mesa (Boijmans, 1655), embora em grande quantidade, descrevem de modo vago as camadas, descrevendo apenas a sua cor geral (castanha, amarelada, etc) e não uma lista identificando os pigmentos. Autorretrato como o Apóstolo Paulo (1661) não possui nenhuma amostra retirada das áreas de tom de pele do rosto, assim como Saul e David (1652) e Titus numa Mesa (1655. É possível que a mistura fosse achada, caso mais amostras de diferentes áreas dessas obras estivessem disponíveis para essa pesquisa, particularmente de amostras dos tons de pele.

Pinturas contendo Misturas de Amarelo Ocre, Preto de Carbono e Vermelho *Saul e David 1652 Mauritshuis *Titus numa Mesa 1655 Boijmans Van Beuningen Lição de Anatomia do Dr. Deijman 1656 Hermitage Amsterdam Tobit e Anna 1659 Boijmans Van Beuningen Titus como São Francisco 1660 Rijskmuseum Homem com Boina Vermelha 1660 Mauritshuis *Autorretrato como o Apóstolo Paulo 1661 Rijskmuseum Dois Homens Africanos (Dois Mouros) 1661 Mauritshuis Os Síndicos da Guilda dos Tecelões de Amsterdam 1662 Rijskmuseum *Homero 1663 Mauritshuis Casal como Isaac e Rebecca (A Noiva Judia) 1665 Rijskmuseum Retrato de um Idoso 1667 Mauritshuis Autorretrato 1669 Mauritshuis *Resultados são compatíveis mas mostram mistura na base, provavelmente uma coincidência. Fonte: Nossa, 2018.

Portanto, mais da metade das obras analisadas in loco contém a mistura de neutralização a partir das complementares verde e vermelho. É muito provável que, a disponibilidade de um maior número de amostras, principalmente extraídas de áreas dos rostos das figuras, levariam a uma proporção ainda maior de obras indicando o uso da mistura.

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7.2. Hipóteses Secundárias A seguir, apresentam-se as conclusões das hipóteses secundárias surgidas durante o desenvolvimento deste estudo. São hipóteses que embora ajudem a contextualizar e a compreender melhor a maneira rústica, não se configuram como fundamentais a este estudo. É importante definir que elas não foram desenvolvidas de modo pormenorizado por se tratar de hipóteses secundárias a este estudo, questões e insights que surgiram durante o desenvolvimento das hipóteses primárias . Poderão ser desenvolvidas em futuros estudos.

7.2.1. Terminologia Adequada ao Estilo: Maneira Rústica A relevância deste capítulo é apresentar um termo português mais adequado para descrever o estilo de pintura usado por Rembrandt em seu período tardio. Como conclusão final sobre a terminologia que descreve o estilo tardio do artista, sugere- se que, embora seja óbvio que os termos alterstil, late work e rough manner prestem um serviço razoavelmente adequado de categorizar as características da maneira tardia de pintar de Rembrandt, também é verdade que os mesmos funcionam de maneira pouco específica. O termo germânico alterstil, amplamente usado pelos holandeses e pelos alemães, oferece algumas associações pertinentes a um estilo, maneirismo ou tipo de pintura (stil) e o termo alter, que está associado ao conceito temporal de “último período”, ou aos conceitos qualitativos de “velhice” ou “maturidade”. Um termo que categoriza um período na linha do tempo, mas também nesse caso, a indicação de uma qualidade que é consequência do estado físico e psíquico do pintor, seja um aumento ou diminuição qualitativa. Como sugerido anteriormente, ao considerar que o estilo é um desenvolvimento gradual é possível sustentar a hipótese que a técnica é uma consequência de uma intenção artística e de uma postura processual que pode não ter relações diretas com a idade, embora seja possível que, no caso de Rembrandt, sua experiência pode ter acrescentado maior qualidade na forma de segurança processual em suas obras tardias. Portanto, as duas hipóteses são válidas: é possível que o estilo seja influenciado pela experiência (idade) do artista, assim como também é possível que não haja qualquer relação com a idade. Dificilmente haverá uma resposta precisa para compreender a relação dos efeitos da idade no estilo do alterstil, pois os efeitos da idade variam conforme o indivíduo em questão. A teoria proposta por Vasari e Von Sandrart ainda parece a mais provável, de maneira geral: o alterstil é um aprimoramento da qualidade artística desenvolvida por pintores excepcionais, portanto, não é um desenvolvimento alcançado por qualquer pintor.

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O termo inglês late work (estilo tardio) é, no fim das contas, uma definição temporal, embora seja verdade que a maneira bruta se manifeste no trabalho de Tiziano e de Rembrandt no último período de suas vidas. Ainda assim, é preciso lembrar que o termo se refere a um apontamento na linha do tempo da vida desses pintores e, a priori, não tem quaisquer relações ou associações com a estética visual do estilo ou a técnica de pintura em questão. Isso torna o termo mais adequado para indicar um período da carreira de um artista do que para a indicação de um maneirismo visual e processual. Como discutido anteriormente, Na versão brasileira da obra de Svetlana Alpers, O Projeto de Rembrandt: O Ateliê e o Mercado (ALPERS, 1991) a autora faz uso de ambos os termos (late work e rough manner). O termo late work foi traduzido como “fase madura” (ALPERS, 2010, p. 223). Considerando a qualidade física do estilo do artista, a tradução de Vera Pereira para late work (fase madura) é perfeita: distancia-se de um recorte temporal para determinar um estado qualitativo da carreira do artista, seu período de maturidade artística. O uso do termo cunhado por Pereira, fase madura, parece mais adequado e deveria ser sempre usado no lugar de período tardio, principalmente quando se trata de Rembrandt ou algum outro artista que desenvolveu um alterstil. O termo período tardio é mais adequado para apontar somente o último período de um artista que não necessariamente oferece um amadurecimento. O termo rough style, literalmente traduzido como estilo rude, bruto ou rústico, foi traduzido na obra de Alpers como “estilo rugoso”. É provável que a tradutora Vera Pereira tenha usado o termo rugoso por tratar-se de uma palavra próxima ao universo tátil e topográfico, na tentativa de descrever a qualidade da superfície pictórica, um raciocínio muito sensato, provavelmente criado por tratar-se da ideia contrária de liso. Embora o termo rugoso ilustre uma característica das pinturas tardias de Rembrandt, que de fato não são lisas, rugoso é apenas uma dessas características. Além disso, nem todas as áreas de suas pinturas são rugosas. Há inúmeras áreas das pinturas do período tardio do artista onde o empaste apresenta picos afiados de tinta seca, feitos pelo levantar rápido do pincel, apresentam uma textura áspera, mas decididamente não rugosa. O termo também pode ilustrar a ideia do encolhimento de massa e consequentemente do enrugamento da camada pictórica, o que decididamente não é o caso na vasta maioria de suas pinturas: essa característica é quase sempre o resultado de um acidente ou incompetência processual, geralmente relacionada com o uso excessivo de óleo vegetal ou medium. Rugoso é uma descrição visual específica demais para ser usada para descrever obras com topografias tão diversificadas. É necessário avaliar uma importante consideração: o termo rugoso tem maior relação com uma única

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característica visual. Portanto, é provavelmente necessário voltar atrás, em busca de traduções mais literais do termo rough manner: cru, rude, bruto, rústico, etc. Considerando as possíveis traduções, embora mais genéricas, elas provavelmente representam melhor a grande variedade de texturas encontradas no estilo tardio de Rembrandt. Dentre eles, o termo rústico remete a um processo sem acabamento excessivo, uma ideia diferente de algo inacabado. Por falta de um termo melhor, sugere-se o uso do termo “maneira rústica”, usado em grande parte deste estudo, como modo mais adequado para apontar as características visuais e físicas desse estilo.

7.2.2. Padrões Processuais A relevância deste capítulo é a apresentação da hipótese de que há mais padrões do que diferenças processuais na maneira rústica usada por Rembrandt em seu período tardio. Uma afirmação que apresenta uma perspectiva diferente daquela proposta por Bomford (BOMFORD et al., 2006, p. 35). Antes que se faça pontual essas conclusões, faz-se necessário registrar que as conclusões apresentadas aqui são baseadas num conjunto de obras particular, escolhidas a partir dos recursos disponíveis para realizar essa pesquisa, sendo essas, quinze obras do período tardio que se encontram em quatro dos principais museus da Holanda. Portanto. É possível que uma investigação de um grupo maior, ou diferente, de obras tardias possam revelar pequenas discrepâncias nos resultados. Ao final do desenvolvimento deste estudo, tornou-se claro que seria necessário um acesso mais amplo e exclusivo a resultados físico-químicos de análise dessas obras. Além disso, como citado anteriormente, a ampliação do grupo de obras analisadas também seria essencial para definir com maior certeza os padrões processuais no trabalho do artista. As condições ideais para concluir de modo mais preciso as hipóteses e questionamentos levantados neste estudo seria ter acesso a uma assistência laboratorial com acesso a um largo grupo de pinturas do período tardio e, ainda mais importante do que isso, a possibilidade de escolher áreas específicas dessas pinturas para colher análises químico-físicas. De qualquer forma, os resultados e conclusões sobre os padrões achados nessas obras é apresentado a seguir. Van de Wetering está correto em afirmar que “[...] certamente não há um método o qual [Rembrandt] tenha usado por toda a sua carreira” (VAN DE WETERING et al., 1982, p. 11). Note que o autor trata sobre a carreira do artista como um todo. Como visto no capítulo sobre os procedimentos técnicos usados pelo artista, há particulares diferenças entre a técnica usada em seu período inicial e a de seu período tardio. Conclui-se que seria possível nomear

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essas diferenças como maneira lisa e maneira rústica, objetivamente comprovando uma diferença expressiva entre esses dois estilos ou períodos. Bomford, trata em sua obra, sobre as técnicas usadas exclusivamente nas obras tardias do artista, revelando uma falta de padrão nos procedimentos empregados no período específico.

[...] Não há um só padrão que emerge, e embora alguns meios de pintura sejam recorrentes, raramente são parte de um sistema técnico controlado de modo rígido (BOMFORD et al., 2006, p. 35).

A frase de que não há um só padrão que emerge, permite interpretar que na opinião de Bomford, os procedimentos usados em diferentes obras do período tardio são bem diferentes entre. Poderíamos até interpretar, de que as semelhanças processuais são inexistentes. Dessa forma, a afirmação de Bomford leva o leitor a crer que o artista procedia de forma diferente toda vez que pintava. A frase também pode ser interpretada de um modo contraditório: se “não há um só padrão que emerge”, como podem “alguns meios [...] serem recorrentes”? A sequência da frase de Bomford também pode passar a impressão de que, se raramente Rembrandt usava um sistema, sem um controle rígido, as obras podem apresentar um grau enorme de variações técnicas e variantes processuais. Uma consulta em ferramentas de busca na internet revelará dezenas de vídeos, a maioria estrangeiros, que pretendem explorar o modo e a técnica de pintura de Rembrandt, a grande maioria feito por artistas, com diferentes intenções e diferentes níveis de comprometimento científico. Em muitos desses vídeos, a teoria de Bomford parece ter exercido influência, revelando que o artista não possuía um único modo de pintura, ou nos piores casos, que Rembrandt “nunca pintava da mesma maneira”. Mas, ao desenvolver este estudo, foi possível discordar da opinião de Bomford, concluindo que sua afirmação pode ter sido escrita com certo exagero. Embora haja certas variações processuais no período tardio, essas variações são claramente limitadas, as opções tomadas pelo artista parecem sempre estar dentro de um número limitado de escolhas. Este estudo sugere a hipótese de que, na verdade, parece haver mais padrões do que diferenças nas técnicas empregadas em seu período tardio e que seu sistema funcionava de um modo consideravelmente controlado. A seguir, define-se pontualmente os padrões encontrados nessas quinze obras do período tardio.

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7.2.2.1. Paleta (Pigmentos) A relevância do capítulo é apresentar a organização de dados científicos referentes à paleta usada no grupo de pinturas observadas in loco nos museus holandeses, além do apontamento de uma problemática acerca da falta de especificidade nas análises químico- físicas dos pigmentos dessas obras. Um dos padrões mais fáceis de ser notado nas obras da maneira rústica de Rembrandt é o modo como as cores são usadas, isto é, o fato do artista aparentemente fazer uso sempre de uma mesma paleta. Há uma óbvia consistência em seu esquema cromático e no uso recorrente de certas cores, notável em todas as obras analisadas in loco. Uma das características mais marcantes é a sempre presente predominância de tons terrosos: o artista sempre faz uso de cinzas, castanhos, terras escuras e neutras, como as sombras naturais e queimadas e terras betuminosas como a terra de Colônia e o marrom van Dyck. As terras mais claras são visíveis nas áreas de meio tom em todas as pinturas: Siena natural e queimada e os ocres amarelos e vermelhos. As terras parecem compor grande parte da paleta de Rembrandt, compondo sempre a maior parte da superfície disposta na película pictórica. Além das cores terrosas, o preto de osso e o branco de chumbo estão sempre presentes em estado puro ou misturados às terras para produzir gradações nas misturas. O amarelo de chumbo e estanho, sempre usado para acrescentar mais intensidade quando necessário, mas de forma sempre bem controlada, de modo que não fique presente demais. As lacas amarelas (stil de grain) e vermelhas (alizarin ou madder lake), sempre usadas em parcimônia quando misturas a outros pigmentos ou quando puras, sempre aplicadas em finas camadas transparentes, em inúmeras pinturas observadas. Essas cores formam o conciso e prático esquema cromático da maneira rústica do artista e estão sempre presentes em suas obras. São os alicerces da obra de Rembrandt. Embora Bomford (BOMFORD et al., 2006, p. 46) e outros pesquisadores citem o uso de pelo menos dois pigmentos azuis411 pelo artista, e de um verde, outro padrão detectado nessas pinturas é a aparente falta dos pigmentos azuis e verdes, uma característica observada em praticamente todas as obras analisadas. Deliberadamente o artista evita fazer uso desses pigmentos em seu campo pictórico. Emprega na ausência dos azuis, cinzas feitos a partir de preto de osso com branco de chumbo e na ausência de um verde puro, faz verdes a partir de

411 Esmalte (smalt) e azurite (BOMFORD et al., 2006, p. 46).

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preto de osso e amarelo ocre412. O truque parece cumprir a função de esfriar misturas e produzir contrastes com as cores quentes. A falta de presença de um verde puro e principalmente do azul passa a ser uma característica marcante que confere personalidade a sua paleta. Abaixo, organizou-se uma tabela com informação pertinente aos pigmentos usados nas obras do período tardio analisadas in loco para este estudo. Antes que se discuta sobre a constância ou a ausência desses materiais no grupo de obras estudadas, faz-se importante algumas observações acerca das análises químico-físicas usadas como fonte de informação primária neste estudo. As análises feitas por diferentes pesquisadores apresentam diferenças nas definições de certos pigmentos, dificultando a assertividade quanto sua presença em algumas obras. Há análises que dispõem resultados definindo os pigmentos apenas pela descrição genérica de sua cor, sem uma definição precisa sobre a natureza química do mesmo. A falta de especificidade sobre a cor de uma partícula, fazendo uso de termos vagos como marrom ou castanho, deixa a desejar. Isso é particularmente problemático quando se tenta discernir cores terrosas. Algumas análises consideram os pigmentos chamados de sombras como ocres marrons, enquanto outros parecem considerá-los diferentes. Isso influenciou o modo de divisão da tabela de pigmentos apresentada aqui: a tabela foi montada com duas áreas distintas, ocres marrons e sombras, embora algumas das análises não definam uma distinção de modo claro e objetivo. Exatamente o mesmo acontece em uma das análises, desta vez com os termos sombra e marrom orgânico. Se o cientista pesquisador não é suficientemente específico na diferenciação entre ocre marrom e sombra, compromete-se qualquer pesquisa cromática que porventura possa basear- se nos resultados dessas análises. Talvez pareça não haver diferenças entre um ocre marrom e um pigmento de sombra, mas suas características são diferentes, assim como suas cores. Duas únicas análises, indicadas na tabela, identificam um pigmento ocre laranja. As mesmas análises identificam a presença de ocres amarelos e ocre vermelhos, portanto, considera-se que de fato, há ocres alaranjados nessas amostras, com cor diferente dos amarelos e vermelhos. Uma das questões levantadas durante o desenvolvimento deste estudo, sendo que somente essas duas análises identificaram esse ocre laranja, seria a existência da possibilidade de diferentes pesquisadores considerar esse ocre laranja como um amarelo ocre, portanto eliminando a identificação desse pigmento nas obras do artista.

412 Às vezes, também mistura laca amarela (Stil di Grain) com preto, para obter verdes.

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Além disso, notou-se a ausência de pigmentos como as terras de Siena, vermelhos e amarelos ocres mais neutros. São pigmentos consideravelmente diferentes dos ocres, que geralmente apresentam maior intensidade cromática, mas não aparecem indicados em nenhum dos resultados das análises usadas neste estudo. A especificação exata sobre a natureza dessas terras seria de tremenda valia para este estudo. Questiona-se quantos desses resultados que identificam o pigmento amarelo ocre não eram na verdade indícios do pigmento Siena natural? A análise de Lição de Anatomia do Dr. Deijman (Hermitage Amsterdam, 1656), é a única análise que identifica a presença do pigmento amarelo Nápoles. Devido à falta de especificação de outros pigmentos, mais questionamentos acerca da evidência do amarelo Nápoles foi considerada. Na análise não há uma definição química, portanto, estaria o pesquisador interpretando essa cor como amarelo Nápoles? Não seria esse pigmento, um amarelo de chumbo e estanho? Afinal, o segundo é um material recorrente na obra do pintor.

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No grupo dessas pinturas, totalizando treze obras, os pigmentos mais usados por Rembrandt compreendem o amarelo ocre, branco de chumbo, ocre vermelho e o preto de osso. São pigmentos presentes em quase todas as pinturas analisadas e representam cores absolutamente indispensáveis em sua paleta. A ausência de uma dessas quatro cores numa obra do artista é aparentemente impossível. Outras cores populares, embora menos usadas, são a laca orgânica (madder lake), ocre marrom, sombra, esmalte, carbonato de cálcio e o vermilion. As tintas menos usadas são o amarelo Nápoles, amarelo de chumbo e estanho, ocre laranja, azurite e o buckthorn (still di grain). O único pigmento da lista de Bomford (BOMFORD et al., 2006) e Van de Wetering (VAN DE WETERING, 2016) que não foi encontrado nesse grupo é o vivianite. Confirma-se a hipótese comentada anteriormente da provável ausência de um pigmento azul intenso ou verde puro: nenhum pigmento desse tipo foi encontrado nos cross-sections dessas pinturas, indicando ainda mais um padrão comum entre essas obras. Seria correto afirmar que há uma absoluta consistência nas cores usadas pelo artista em todas as obras analisadas in loco, há um evidentemente padrão reconhecível na paleta usada nessas pinturas.

7.2.2.2. Khenlijkheit (perceptibilidade) e houding (espacialidade) Como visto no capítulo sobre perceptibilidade e espacialidade, não resta dúvida de que esses conceitos, em particular o khenlijkheit, são os responsáveis por guiar a mudança de suas obras lisas para a maneira rústica. Essa mudança se efetivou definitivamente após 1650 e permaneceu inalterada. Em todas as obras do período tardio, nota-se o uso da cor em função da luz e sombra (houding), característica básica de seu tenebrismo, e o uso da materialidade dos impastos como forma de perceptibilidade e espacialidade (khenlijkheit). Portanto, o uso desses conceitos é um padrão do período tardio, provavelmente, um dos mais importantes dentre todos os padrões, pois são eles as marcas mais indeléveis de suas obras.

7.2.2.3. Base e Primuersel A conclusão deste estudo sobre o uso de bases e primuersels no período tardio é a de que Rembrandt fazia uso de poucas variantes nos componentes de suas bases e seu primuersel.

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Aparentemente as bases são sempre cobertas por um primuersel, portanto, sendo essa a camada que além de retirar a absorção do suporte, também dá cor a ele, é a camada de maior importância para o processo. Como visto no capítulo sobre a base e o primuersel, as variações de primuersel usadas por Rembrandt usam sempre um castanho como base. Castanho é o nome que se dá a um cinza misturado com marrom, um termo genérico que também pode descrever um marrom- acinzentado, nomes que comumente acabam descrevendo algo muito similar. Trata-se de um marrom ou cinza quente de baixa intensidade, hora revelando maior quantidade de cinza, hora maior quantidade de marrom. Essa é provavelmente a cor mais constante no primuersel do período tardio. A segunda variação é o castanho amarelado, ou em outras palavras, um amarelo acastanhado. Conclui-se que as opções de cores para o primuersel do período tardio são restritas, sendo de maneira geral as seguintes variantes: castanho acinzentado, castanho avermelhado e castanho amarelado, portanto, certamente um padrão.

7.2.2.4. Stelsel (Blocagem Inicial) O estágio chamado de invenção ou stelsel413 é de difícil discernimento a olho nu, sendo revelado mais facilmente através de exames imagéticos laboratoriais. Após a investigação das análises químico-físicas das pinturas analisadas neste estudo, foi possível confirmar que havia um padrão no modo como o pintor começava suas obras: não fazia uso de desenhos iniciais em giz ou carvão, sempre começando a traçar o desenho de modo direto (stelsel), depois preenchia as áreas de todos os elementos de modo semitransparente, blocando a luz e sombra, geralmente fazendo uso de cores castanhas quentes, como as sombras, as terras avermelhadas ou os marrons orgânicos. Esse estágio possuía fundamentalmente a mesma função, cor e modo de aplicação. Novamente, mais similaridades do que diferenças.

7.2.2.5. Doodverf (Camada Morta ou Pré-pintura) As descrições de Van de Wetering, Bikker e Bomford sobre o estágio doodverf414, ou camada morta, sugere o uso de uma construção inicial com valores escuros e meios-tons acastanhados seguidos de luzes que irão formar a base fundamental de suas pinturas, que

413 Stelsel.: como visto anteriormente, do holandês “esquema”. 414 Doodverf.: como visto anteriormente, do holandês “camada morta” em holandês antigo.

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mais tarde, receberão camadas subsequentes com mais cor. In loco, as pinturas parecem mostrar o recorrente uso desses valores castanhos escuros nas áreas de sombras e nos meios tons, misturas que parecem de fato sempre compostas de pigmentos como o sombra queimada ou o marrom van Dyck (ou terra de Cassel), ou ainda outras terras castanhas e quentes. Na grande maioria das obras analisadas, aparentemente os meios-tons e luzes são desenvolvidas após as sombras escuras acastanhadas com pigmentos marrons ou esverdeados misturados com uma ínfima quantidade de pigmentos mais claros, como o Siena natural, o amarelo ocre ou outras terras mais luminosas do que aquelas usadas anteriormente, de forma a se constituir luzes de forma mais opaca e começar a formar as fundações mais luminosas, sem necessariamente iluminar em demasia. Esses meios-tons e luzes iniciais as vezes são difíceis de se detectar. De qualquer forma, em todas as obras analisadas há uma pré-pintura, em tons acastanhados ou acinzentados que antecedem os estágios de desenvolvimento, servindo como um guia inicial que pode ou não ser coberto por camadas posteriores, conforme o artista sentia necessidade. Esse é um estágio fundamental na obra do artista, mostrando-se como padrão em todas as obras. Embora haja pequenas diferenças na cor e na quantidade de camadas de finalização efetuadas após o doodverf, ele parece ter sempre a mesma função específica, um fundação que continua a ser usado e aproveitado nos estágios subsequentes.

7.2.2.6. Quantidade de Camadas Em todas as obras analisadas é possível notar um padrão, de modo geral, na quantidade de estágios ou camadas de certos elementos. Os fundos são comumente compostos de dois ou três estágios de fatura, no máximo, sempre feitos de maneira mais simples quando comparados com as figuras. Segundo Van de Wetering, também são sempre finalizados antes do que que as figuras. Por outro lado, as figuras são sempre mais complexas. Enquanto as vestes e roupas são mais ou menos construídos assim como os fundos, com poucos estágios, os tons de pele são sempre mais complexos. É comum por exemplo, a aplicação de uma base chamada primuersel local para estabelecer um meio-tom local da figura, contando como um desses estágios. Após a aplicação da base local, o pintor procedia com as luzes e sombras, quase sempre fazendo uso de uma ou mais camadas para finalizar a área. O artista poderia trabalhar de modo molhado sobre molhado ou molhado sobre seco, alternando os estágios. Isso foi dissecado em

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alguns cross-sections das pinturas analisadas, confirmando as informações obtidas nas fontes bibliográficas de que as áreas do tom e pele são sempre mais complexas.

7.2.2.7. Resumo Pontual de Padrões Processuais Após a análise geral dos textos históricos, artigos e livros sobre as obras de Rembrandt, assim como a inspeção in loco das quinze obras do período tardio do artista, observadas na Holanda415, definiu-se abaixo uma lista pontual com as principais características estilísticas das obras tardias de Rembrandt:

415 Nos museus Rijskmuseum, Rembrandthuis, Hermitage Amsterdam, Mauritshuis e Boijmans. Há de se considerar outras obras tardias do artista que foram observadas em Londres, na National Gallery e na Wallace Collection, embora as mesmas mostrem consistência com as observações feitas aqui, elas foram analisadas de modo breve neste estudo.

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Figura 139 Todas as obras do período tardio estudadas in loco. Fonte: Nossa (2018).

• As representações são sempre naturalistas, mas a execução sempre faz uso de um sintetismo daquilo que se observa, representando as formas através da omissão e da abreviação, uma economia de informação, sugerindo e não descrevendo, aproximando-se de um maneirismo sui generis. • A cor está sempre em função do valor.

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• Há sempre um ponto de interesse ou focal na composição onde o artista confere uma descrição mais completa, enquanto outros elementos mais afastados desse ponto são descritos de modo mais sintético416. • A predominância tonal é sempre de valores escuros, geralmente ao redor das figuras e ao fundo. • A luz é sempre tenebrista: sempre focal, iluminando-se um ponto da figura ou da “cena” enquanto as margens vão se tornando mais escuras e desfocadas. • A luz sempre vem do lado esquerdo, substantivamente deixando as sombras do lado direito. Particularmente notável na luz e sombra dos rostos. • A paleta e as misturas de cores aparentam privilegiar a baixa intensidade com predominância de cores terrosas: • Há uma aparente preocupação em neutralizar ou amenizar a intensidade das cores intensas417. • Os fundos parecem sempre mais lisos, sempre trabalhados de modo a parecer mais transparentes e de execução mais simples do que as figuras, particularmente quando comparados aos tons de pele. • Uso de primuersel acastanhado, de maneira geral. • O plano cromático faz sempre uso predominante de cores quebradas: baixa intensidade croma, cores terrosas. É possível perceber a ausência de um azul de alta intensidade e de um verde puro. • Os tons de pele possuem grande complexidade nas texturas e variedade de valores. • Há recorrente uso de um contraste de cores complementares como o verde e o vermelho, com uso de castanhos (marrons) entre eles, principalmente nos tons de pele, para criar diversidade e unidade. • A qualidade matérica sempre mostra uma grande diversidade de texturas, revelando uma topografia pictórica absolutamente rica. • As áreas escuras são sempre lisas, as áreas de meio tom sempre com impasto mediano e as áreas de luzes sempre com impasto mais carregado.

416 É possível interpretar, como no caso de Van de Wetering, esse sintetismo, como algo inacabado. 417 Há no entanto,as exceções que quebram essa regra, fazendo uso de alta intensidade em alguns elementos no campo pictórico. Um célebre exemplo é o recorrente uso de algum elemento em vermelho intenso que exerce especial ponto de interesse na composição.

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• Todas as obras analisadas, quando observadas à distância, demonstram uma descrição naturalista dos elementos representados, e tornam-se mais sintéticas, quando observadas de perto.

7.2.3. Aplicações sobre Tinta Semi-seca Como visto anteriormente, Van de Wetering define poucos exemplos do período tardio que mostram o modo de aplicação de tinta usado por Rembrandt: se a aplicação de diferentes camadas ou estágios eram feitos de modo molhado sobre molhado (alla prima ou nat op nat) ou molhado sobre seco. As obras apontadas por Van de Wetering provam que Rembrandt fazia uso de ambos os tipos de aplicação (VAN DE WETERING, 1997, p. 205). Embora nenhuma pesquisa consultada para este estudo levante essa hipótese, deve-se considerar a possibilidade de que o artista tenha trabalhado com tinta em estado semi-seco, isto é, nem molhado sobre molhado nem molhado sobre seco, mas uma aplicação de molhado sobre semi-seco. A tinta a óleo é uma mistura de pigmento e óleo vegetal, como visto anteriormente no caso de Rembrandt, óleo de linhaça ou nozes, que seca por oxidação. O tempo de secagem dependerá do tipo de pigmento que foi misturado ao óleo. Alguns pigmentos precisam de uma quantidade maior de óleo para que se forme uma pasta de tinta com corpo ideal, enquanto outros precisam de uma quantidade muito menor de óleo. Dessa forma, as tintas a óleo que recebem menos óleo demoram menos a oxidar. Tintas como os brancos e os vermelhos418 demoram mais a secar do que as sombras, por exemplo. De maneira geral, num clima ameno e sem umidade, uma camada de espessura mediana de tinta a óleo, que não se configura como impasto, demora em média sete dias, dependendo da cor, para secar ao toque419. É claro que a secagem acontece de modo gradual e portanto, após algumas horas, já é possível sentir que a tinta não possui as mesmas propriedades macias como possuía no momento original de sua aplicação. A tinta, lentamente começa a endurecer e a se tornar cada vez menos macia, tornando-se mais dura e resiliente.

418 Os vermelhos mais intensos, como o vermilion, cromo, cádmio e orgânicos sintéticos. Os vermelhos terrosos secam muito mais depressa. 419 Secar ao toque.: isso não quer dizer que está completamente seca, mas seca o suficiente para que, quando toca-se na superfície da pintura, ela não borre ou manche. O processo de secagem completo leva pelo menos um mês no caso de uma camada fina, para estar oxidado da superfície até o “fundo” da tinta. No caso de pinceladas mais grossas, configuradas como impasto, esse processo é mais longo, podendo levar de seis meses a um ano dependendo da espessura.

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Portanto, em torno de algumas horas depois que a tinta é colocada no suporte ainda é possível tocar na superfície da tinta e modificá-la, isto é, fazer com que ela se misture a uma nova cor, mesmo que a camada já ofereça alguma resistência devido a sua condição semi- seca. A condição de secagem na verdade dependerá de alguns fatores. A cor usada na área a ser retocada influirá no tempo de secagem, pois cada cor possui um tempo de secagem. Isto acontece pois alguns pigmentos levam mais óleo para adquirirem uma pastosidade adequada enquanto outros levam menos óleo. Portanto, nem todas as cores levam o mesmo tempo para secar. O tipo de base aplicada no suporte influirá no modo como a tinta é absorvida. As bases feitas com pouca cola e maior quantidade de gesso tendem a absorver maior quantidade de óleo, fazendo com que a tinta fique mais seca quando acomodada no suporte e substantivamente, com menos óleo em seu corpo, leva menos tempo para secar. As bases feitas com grande quantidade de cola, ou que recebem uma camada grossa de primuersel, tendem a absorver pouco óleo da tinta que é recebida por cima, fazendo com que a pintura seque em condições normais. Sabendo disso, alguns artistas deliberadamente preparavam suas bases regulando o modo de absorvência de seus suportes, para apresentarem maior ou menor absorvência. Por último, as condições de temperatura e umidade irão influir na secagem. Dias frios tendem a retardar o tempo de secagem, assim como a umidade das estações chuvosas. As evidências encontradas no estudo de Gonzalez (GONZALEZ et al., 2019), sobre o uso de um medium secativo pelo artista ajuda a colocar essa hipótese em considerável, sendo que esse veículo serve exatamente para aumentar o tempo de secagem e certamente faria com que o artista pudesse obter o estágio de semi-seco de forma muito mais rápida, facilitando o processo. Portanto, embora seja impossível provar, considera-se a hipótese de que Rembrandt esperasse algumas horas para proceder com subsequentes camadas por cima de certos estágios. A aplicação de uma nova camada por cima de uma camada semi-seca, ou quando ela começa a secar por fora, atingindo um estado de secagem superficial. As vantagens desse procedimento são que, como citado anteriormente, enquanto um estágio está semi-seco, ainda é possível aplicar outra camada de tinta e alterar a cor que está semi-seca. Dessa forma, é possível mudar de ideia e aplicar as modificações que o artista bem entender. A maciez da camada não é a mesma de uma camada recentemente aplicada, mas, com uma maior pressão do pincel, a tinta se move e é afetada por operações subsequentes. Além disso. também é possível cobrir uma grossa camada de impasto com finas velaturas sem

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incomodar a camada anterior ou ter de esperar dias para que a camada de impasto seque por completo para finalmente aplicar a velatura, economizando tempo. Outra possibilidade é a criação de texturas feitas com o pincel seco sobre as camadas semi-secas, resultando em texturas e informação tátil nas áreas incomodadas pelas cerdas duras do pincel. Esse tipo de marca é impossível de ser alcançada com os outros métodos, molhado sobre molhado ou molhado sobre seco. Considera-se imprescindível uma pesquisa mais aprofundada sobre esse assunto para que conclusões mais assertivas possam ser tiradas da hipótese sugerida. O acesso a uma maior quantidade de análises físico-químicas, especificamente sobre a topografia das obras e sobretudo acerca da ordem das camadas seriam primordiais.

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