Juliana Protásio Benjamin Pereira

“HARO, NABI" UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA CIBERCULTURA EM Monografia de conclusão do curso de Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação do professor André Lemos.

Universidade Federal da Bahia Salvador – 2003 RESUMO

Esta monografia de conclusão de curso se propõe a uma análise da série de animação japonesa Serial Experiments Lain, tendo como enfoque o imaginário da cibercultura que aparece em seu enredo, especialmente nos seguintes aspectos: o corpo em relação com as máquinas na era tecnológica, as relações sociais mediadas pelas redes telemáticas, as novas configurações da religião em função do conhecimento e as tecnologias cognitivas. O trabalho traz ainda considerações sobre o , gênero artístico do qual a obra faz parte, e também sobre a cibercultura, elemento fundamental nas comparações e análise. AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à minha família, que mesmo sem entender bem o que eu estava fazendo, jamais deixou de me dar apoio e motivação. Agradeço também aos meus amigos e colegas, em especial ao pessoal do Claque (Rodrigo, Gabriela, Greice, Érico e Lucas), cuja convivência foi um dos maiores tesouros que descobri na vida universitária e com quem troquei idéias fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. Quem também não pode ficar de fora dessa lista é o professor André Lemos, que teve toda paciência do mundo para orientar uma criatura desorientada como eu e apontou caminhos decisivos para que eu concluísse essa jornada de trabalho. Pazu, muito obrigada por ter me ajudado a dar um mergulho mais profundo no universo do anime, e pixel, valeu por me dar a mão nesses tortuosos passeios pelo ciberespaço. SUMÁRIO

1. Apresentação...... 2

2. Introdução...... 3

3. Metodologia...... 5

4. O que é Anime?...... 7 4.1 Serial Experiments Lain (SEL)...... 9

5. Lain e Cibercultura...... 13

6. Crossover: A Cibercultura em SEL...... 16 6. 1 Incorporação Binária ...... 20 6.1.1 Complexo Corpo-Máquina...... 20 6.1.2 Desmaterialização...... 22 6.2 Todos Estão Conectados...... 24 6.3 Tecnomisticismo...... 27 6.3.1 Os Iniciados...... 27 6.3.2 Deus no Ciberespaço...... 29 6.4 Consciente Coletivo...... 31

7. Conclusão...... 37

8. Fontes de Referência...... 39 8.1 Bibliográficas...... 39 8.2 On-line...... 39 8.3 Videográficas...... 41

9. Anexos Anexo A...... 42 Anexo B...... 48 5

1.Apresentação

O desenvolvimento deste projeto foi norteado por uma questão de interesse pessoal por uma subcultura e produtos a ela relacionados. Refiro-me, neste caso, à cibercultura e aos (lê-se animês), mais especificamente ao título Serial Experiments Lain (SEL). Desde a infância, na década de oitenta, tive a curiosidade despertada pelas características da animação japonesa, mesmo sem ter consciência muito clara das diferenças entre esta e a ocidental. Desta época, recordo que o que me chamava atenção nos animes era a beleza dos desenhos (personagens de olhos grandes, bastante expressivos, roupas e cabelos exóticos), a questão da continuidade dos episódios, e uma certa complexidade das tramas. Ao contrário do que acontecia com a maioria dos desenhos animados, era impossível compreender tudo o que se passava em um dos episódios de uma animação japonesa, porque além de haver uma maior quantidade de elementos relevantes na narrativa, eles faziam parte de uma ficção seriada, o que não ocorria com os demais. Mesmo não tendo acompanhado nenhuma saga completa neste período, meu interesse prosseguiu. Posteriormente, já na adolescência, por volta de 1997, conheci narrativas que, além dessas características, tinham tramas que giravam em torno da tecnologia, ou eram ambientadas em ambientes futuristas. Os avanços técnicos eram representados por computadores, robôs, andróides e outros artefatos cibernéticos. Nesta mesma época, eu já começava a vivenciar pessoalmente os impactos da cibercultura, com o uso do computador e da internet como parte de minha existência social. Mesmo incipientemente, ampliava minha comunicação e meus laços sociais através da utilização de softwares de chat, troca de e-mails e navegação pela rede. Também já começava a observar uma série de sutis diferenças entre as relações que se estabeleciam no “mundo real” e aquelas travadas no “mundo virtual”. Foi então que tomei conhecimento da série animada Serial Experiments Lain, cujo enredo retrata exatamente o uso das novas tecnologias para comunicação, as diferenças entre as formas de representação e posicionamento das pessoas nos “mundos” real e virtual, assim como sua influência sobre as relações interpessoais. É neste ponto que o universo ficcional dos animes coincide com o universo da cibercultura em minha vida, vindo a motivar meus estudos anos depois. Somente em 2002, assisti a série pela primeira vez, quando foi exibida 6

durante o Soulcyber, evento promovido na FACOM pelo Ciberpesquisa.

2. Introdução

Mesmo tendo surgido em épocas e condições diferentes, ao longo do tempo, os animes (animações japonesas) e a cibercultura acabaram se aproximando por uma questão temática, já que os autores dos enredos deste tipo de animação muitas vezes se apropriam de elementos da cibercultura (como robôs, computadores, cyborgs, naves teleguiadas, equipamento de comunicação de última geração, etc.) para criar o universo ficcional complexo característico dessas obras. Outro ponto que faz o cruzamento entre a cibercultura e o anime, é o fato de que esta arte exerce sobre seus fãs uma espécie de fascínio que os leva a mergulhar no desvendamento de seus mistérios através da busca desenfreada de dados a respeito das obras, tornando-os armazenadores e difusores deste tipo informação. Tal comportamento não poderia ser mais característico da era do fluxo de informações pelas redes telemáticas e, justamente por isso, a cultura estabelecida em torno dos animes também acabou se tornando um dos elementos constituintes da cibercultura. Este estudo pretende realizar uma análise da obra ficcional Serial Experiments Lain de acordo com as teorias a respeito da cibercultura. O trabalho irá estabelecer comparações que serão comprovadas com trechos da obra e textos teóricos, ao mesmo tempo em que realizará a interpretação analítica do enredo e dos fenômenos representados através do universo da série. Além das partes introdutórias, a monografia está dividida de forma que visa promover a compreensão do objeto estudado, a série de animação japonesa Serial Experiments Lain (SEL), assim como a categoria artística da qual ele faz parte, os desenhos animados japoneses (animes). Por se tratar de um material ainda pouco conhecido do público brasileiro, cuja linguagem ainda carece de estudos na língua portuguesa, e em função de suas características distintivas próprias e dignas de nota, este trabalho sublinha a importância de um tópico dedicado à sua definição e descrição. Ainda no sentido de facilitar o estabelecimento de relações entre o tema e o objeto escolhido para análise, há também uma parte dedicada a algumas considerações acerca da cibercultura, na qual se faz o estabelecimento preliminar de conexões existentes entre esta, 7

que revela ser a cultura contemporânea, e aquilo que se passa na ação da série. Depois de feitas as considerações gerais sobre o tema e o material a ser estudado, o trabalho segue na análise propriamente dita do objeto, dividida em sub-tópicos que contemplam o detalhamento e a explicação sobre como aparecem em SEL a questão do corpo humano em interação com os computadores, a forma como as relações sociais são afetadas pela comunicação cibernética, a configuração da religiosidade na era tecnológica e a maneira como as tecnologias cognitivas afetam a relação das pessoas com a realidade. Por fim, além da conclusão das análises, e com o objetivo de auxiliar a compreensão do estudo, este trabalho traz ainda, em anexo, as sinopses de todos os episódios da série estudada, juntamente com um glossário com os termos que fazem parte do universo ficcional de Serial Experiments Lain. 8

3. Metodologia

O que interessa neste estudo é uma análise de como são representadas em Serial Experiments Lain alguns aspectos do imaginário da cibercultura, a saber: as relações pessoais mediadas pelas redes telemáticas; a questão do corpo, sua representação e relação com as máquinas; o aspecto místico que o domínio tecnológico vem reincorporando na sua relação com o saber e a maneira como as tecnologias cognitivas afetam as convenções do ser humano acerca da realidade. Com a finalidade de embasar a comparação entre os elementos de SEL e os estudos da cibercultura, o projeto iniciou-se com uma pesquisa bibliográfica a fim de levantar e coletar material de leitura para aprofundar os conceitos trabalhados. A pesquisa foi feita através de consulta a catálogos de bibliotecas e, principalmente, através de acervo online, especialmente no tocante à literatura relacionada aos animes, uma vez que se trata de um produto artístico e de entretenimento que só recentemente ganhou notoriedade no meio cultural do ocidente e, por tal motivo, ainda não existe bibliografia muito ampla sobre tal assunto em outro idioma que não seja o japonês. Com base nesta pesquisa direcionada, foi constituído um acervo bibliográfico composto por textos, livros, artigos, reportagens, etc. tanto obtidos no meio impresso, quanto no digital, material este que foi lido em paralelo ao processo de assistir à série. A fase de leituras reservou um período dedicado ao material relacionado à caracterização dos animes, para que fiquem melhor expostos os motivos pelos quais esta modalidade de ficção foi escolhida para análise. Além de textos escritos por estudiosos e especialistas, foram lidas também resenhas, comentários, descrições e compilações de dados elaborados por fãs para sites voltados para a cultura do anime. Este material, contudo, passou por um processo comparativo dentro do próprio universo de onde foi tirado, com a finalidade de se estabelecer a verossimilhança dos dados e filtrar opiniões pouco embasadas, uma vez que muitas dessas informações podem ser lançadas na internet sem muito cuidado com sua precisão. A leitura dos materiais tanto de especialistas quanto de fãs foi importante para ajudar a definir as propriedades específicas do anime enquanto forma legítima de manifestação artística, assim como aquelas o diferenciam da animação ocidental e demonstrar sua presença como objeto constituinte da cibercultura. No que se refere à série, para a realização uma análise aprofundada, foi necessário um 9

detalhamento dos elementos presentes em SEL, tanto do ponto de vista narrativo, quanto pictórico e discursivo. Desta forma, foi feito o download integral da série através do Kazaa1, para que fossem assistidos exaustivamente cada um dos 13 episódios da série, com a finalidade de tomar nota, selecionar e destacar os pontos relevantes para o estudo comparativo a que este trabalho se propõe. Esta fase consistiu na observação e destaque de trechos relevantes da série para efeito de demonstração e comprovação das semelhanças ou diferenças entre a ficção e os conceitos estudados. O trabalho, portanto, propõe o desenvolvimento de um estudo descritivo e analítico do objeto, visando o mapeamento de suas principais características e temáticas abordadas/retratadas. Desta maneira, o desenvolvimento do projeto foi baseado na leitura de textos e análise videográfica, com ênfase na seleção e descrição de trechos específicos para comprovar a eficiência ou não da transposição do universo da cibercultura para a ficção em Serial Experiments Lain.

1 Kazaa é um software que permite a troca de arquivos ponto-a-ponto, ou seja, é permitido o compartilhamento dos arquivos dos computadores pessoais dos usuários enquanto estes conectados ao serviço. 10

4. O que é Anime?

Anime – é como se chama a arte dos graciosos desenhos animados em que os personagens têm olhos imensos, brilhantes e carregados de expressividade. Anime (cuja pronúncia correta é animê, uma vez que a palavra é uma adaptação do termo em inglês animation) são animações japonesas que, ao contrário do que acontece no ocidente, não são necessariamente direcionadas às crianças. Por isso, a variedade e o grau de complexidade dos temas tratados nos animes é bastante grande e uma das principais características deste tipo de animação. No Ocidente, a tradição das obras em animação é da temática infanto-juvenil, o que criou no imaginário desta sociedade a noção de que desenhos animados são um tipo de arte limitado à apreciação de crianças e adolescentes. No Japão, por sua vez, os animes são uma forma de arte legítima, que serve para expressar e abordar os mais diversos assuntos, portanto, independe de faixa etária, tal como o cinema, por exemplo. O que ilustra bem esta situação é o fato de que o filme de maior bilheteria da história do Japão é um anime, Sen to Chihiro no Kamikakusen (A Viagem de Chihiro), do , em 20022. Uma das principais características do anime é a complexidade das tramas, pois estas são elaboradas com uma mistura de símbolos e representações, com temáticas como misticismo, ecologia, cotidiano, artes marciais, esportes, sexo, dramas existenciais, valores tradicionais, alta tecnologia... A coexistência do bem e do mal num mesmo ser, numa mesma situação é uma constante que incrementa as histórias, pois carrega um traço de realismo que causa certo estranhamento num universo fantástico e isto acaba se constituindo como uma espécie de contraponto com o que acontece nas obras da animação ocidental, nas quais o maniqueísmo impera como mecanismo facilitador da compreensão do enredo. Outra característica dos animes é o fato de que raramente são dadas explicações didáticas, diretas, para os pontos obscuros nas histórias. A sensação é de que nunca se “entende” totalmente a narrativa, mas fica uma compreensão aberta e geral sobre a trama. Não significa, porém, que há uma lacuna de entendimento. Há, sim, um entendimento em outro nível, mais conceitual e subjetivo. Na tradição da arte gráfica japonesa, que vem desde o

2 Dado fornecido por Marcus Vinícius Brito, coordenador do Clube Anime Gaiden, dedicado à cultura do anime, em matéria do site Claque - http://claque.com.br/juliana/jumi041402.htm 11

mangá3, o artista investe na exploração do imaginário do leitor/espectador, a quem cabe fazer adições e associações próprias, complementando as imagens dadas. No que diz respeito à abordagem dos temas, é tudo feito com sutileza e naturalidade. O erotismo, por exemplo, sempre aparece nas histórias, hora como a paixão platônica entre os personagens ou com insinuações nesse sentido, e até mesmo com a explicitação de relações sexuais, mas sempre equilibrando a ostentação com a ocultação, deixando à imaginação do espectador parte da constituição das cenas. Os valores familiares e fraternos, como lealdade, humildade, respeito, perseverança e coragem também são evidenciados, demonstrando como são arraigados não apenas à cultura japonesa, mas ao ser, à essência do humano. Num só anime é possível identificar as mais diversas temáticas, que são tratadas em pequenos nichos que compõem a trama central. Um tema muito caro, presente na maioria das vezes, é o misticismo, uma vez que a cultura japonesa é repleta de divindades ligadas às forças da natureza. A questão mística aparece, se não como assunto central, como motivação, como elemento de complexificação da trama. Os enfoques variam: podem ser encantamentos (bruxaria), capacidades paranormais, a questão da alma e sua relação com o corpo físico, os deuses e sua atuação na terra, etc. Geralmente, não é o protagonista quem concentra poderes sobrenaturais. Ele, no entanto, por uma série de virtudes morais, é dotado de dons especiais para lidar, manipular ou neutralizar a divindade de outros personagens. A pluralidade de informações e detalhes obscuros ajudou a criar em torno dos animes uma cultura da busca por dados e explicações na tentativa de auxiliar o desvendamento em níveis cada vez mais aprofundados das histórias. Neste ponto, a cultura do anime e a cibercultura se cruzam, através do surgimento de um fenômeno chamado “otakismo”, no Japão. Cristiane A. Sato traça este encontro com mais precisão:

Em meados de década de 80, a produção de animação para TV atingiu seu pico no Japão. Esquemas de produção em massa para as massas fizeram com que, só em , se concentrassem mais de dez mil animadores profissionais. (…) A década de 80 também marca o surgimento do “otakismo”. Um dos muitos tipos de “zoku” (em gíria em português, “tribos”) que surgiram no Japão pós-guerra, os fãs de animês foram denominados genericamente de “otaku”, expressão que vem do hábito em japonês de se referir a terceiros de maneira polida, impessoal, e em alguns contextos de procurar afastar uma pessoa de um círculo de convívio, referindo-se a ela de uma maneira exageradamente formal. É uma gíria em japonês que designa fãs

3 Histórias em quadrinhos japonesas, a arte da narrativa visual caracterizada por poucos textos e anterior ao anime, fundadora da estética característica nesta arte. Muitos animes são versões animadas de histórias publicadas nos mangás. 12

de anime também pelo hábito que estes possuem de ficar muito tempo em casa, isolados diante da TV e de equipamentos, assistindo desenhos ou jogando video- games, absortos a ponto de se comportarem de forma doentia. No ocidente, muitas vezes traduz-se “otaku” como sinônimo de “nerd”, mas apesar de ambos serem vistos humoristicamente como pessoas socialmente inaptas, os “otakus” são conhecedores fanáticos de um determinado assunto incomum, obtuso ou complexo.4

Os otakus não surgem da cultura do anime, mas da sociedade informacional, em que o intenso fluxo de dados faz parte do cotidiano e o acesso a eles é cada vez mais aprimorado a partir das redes telemáticas. Os otakus também representam uma mudança nos hábitos sociais a partir da apropriação das novas tecnologias para comunicação interpessoal, uma vez que são pessoas com dificuldades de socialização no “mundo real”, mas que travam muitos contatos e têm até status de poder através das redes telemáticas5.

4.1 – Serial Experiments Lain

Serial Experiments Lain (SEL) é uma minissérie de animação japonesa com treze episódios que, na animação, são chamados de Layers (Camadas), com os títulos individuais de Weird (Episódio 1), Girls (Episódio 2), Psyche (Episódio 3), Religion(Episódio 4), Distortion (Episódio 5), Kids (Episódio 6), Society (Episódio 7), Rumors (Episódio 8), Protocol (Episódio 9), Love (Episódio 10), Infornography (Episódio 11), Landscape (Episódio 12) e Ego (Episódio 13). A série foi exibida pela primeira vez na TV, em episódios semanais, que foram ao ar entre 6 de julho de 1998 e 28 de setembro do mesmo ano pela TV Tokyo, emissora de televisão japonesa. Com roteiro de Chiaki J. Konaka e direção de Ryutaro Nakamuro, SEL mostra uma sociedade integrada com o uso das redes telemáticas, mas ao mesmo tempo dividida entre as vivências no mundo real e no virtual, entre os quais as barreiras tornam-se cada vez mais tênues. Neste contexto, um grupo de adolescentes comuns, que usa aparelhos eletro-eletrônicos para comunicação/interação, tem seu cotidiano repentinamente afetado pelo suicídio de uma colega, Chisa Yomoda. No entanto, o fato realmente desestabilizador é que, depois de morta, a garota passa a enviar e-mails para suas colegas. Nestas mensagens, Chisa deixa claro que abandonou seu

4 SATO, Cristiane A. – A cultura do Anime. (19/09/2002) 5 GREENFELD, Karl Taro – Otaku to you. (03/02/2003) 13

corpo físico para que sua alma trafegue livremente através da rede de computadores, chamada de Wired. Lain Iwakura é uma das garotas que também passa a receber as mensagens de Chisa. Até então, além de ser tímida e retraída, Lain não demonstrava muito interesse nem conhecimento a respeito de computadores ou outros aparelhos eletrônicos, no entanto, subitamente, ela se torna aficionada e especialista no assunto, como se tivesse um dom especial para isto. A partir daí a série se desenrola no processo de absorção de Lain pela Wired, com a busca da explicação para alguns dos fenômenos que se desenrolam no mundo real, como uma série de suicídios e assassinatos causados pela confusão entre realidade virtual e realidade física, e na própria rede, como a existência de uma outra manifestação de Lain com características bastante diferentes da garota “de verdade”. Além disso, Lain mergulha na investigação sobre um grupo ativista chamado Knights e o cientista Eiri Masami, responsável pela pesquisa do Protocolo 7, um mecanismo que interconectaria todas as pessoas sem a mediação de aparelhos. Paralelo a estes eventos, a garota se confronta ainda com uma forma de existência de Deus na Wired, que pode ser o motivador de todos os fatos estranhos que vêm ocorrendo na realidade. Ao longo da história, aparecem diversos tipos de aparelhos e práticas de comunicação através da rede telemática e os personagens trazem seu discurso impregnado de pensamentos coerentes com as teorias desenvolvidas nos estudos da cibercultura, ou então suas próprias vivências são bastante similares àquelas da sociedade atual, interconectada, global e plural. Em SEL, as relações entre os colegas de escola, a forma de entretenimento e o próprio cenário urbano retratado são pontuados pela presença da telemática, o que poderia ser um retrato de qualquer grande metrópole desde o final do século XX. Como já foi dito anteriormente, Serial Experiments Lain enfoca pessoas comuns, retrata o dia-a-dia das mesmas e tem como protagonista uma garota tímida. A evidência dada a esta “normalidade” é um traço característico trazido desde o mangá e transmitido ao anime. Além disto, outro traço evidente é o tipo de representação física das pessoas, com olhos grandes, bocas e narizes pequenos, mas a mais marcante característica do anime nesta série é a complexidade de sua trama. Em SEL há ambigüidades na constituição dos personagens e suas relações, com implicações afetivas e estratégicas, assim como a abordagem das aplicações de tecnologias. 14

Existem também diversos núcleos de personagens, cada um deles ligado à Lain por uma razão diferente e que são afetados direta ou indiretamente pelo que acontece a esta personagem. A intricação da trama de SEL é reforçada pela maneira como é apresentada a narrativa, com inserções de imagens com texto, informações de caráter documental, os fluxos temporais e de consciência entre real e virtual, alteração de foco narrativo e de ambientação (hora mundo real, hora a Wired). Apesar desta pluralidade de elementos fazer sentido no âmbito geral da série, nenhum deles é explicado clara/didaticamente ao longo ou término da obra. O desvendamento destes pontos, inclusive, é a principal razão pela qual os fãs buscam na internet informações, criam debates e divulgam tais dados, caracterizando o fenômeno do “otakismo”.6 Do ponto de vista estético, Serial Experiments Lain guarda ainda uma forte herança do mangá, que é o desenrolar de cenas com poucos textos falados, mas de grande apelo visual, com concentração nas expressões faciais dos personagens. Em algumas cenas, apesar de haver mais de um personagem, eles dialogam pouco, ficando a cargo dos olhos vibrantes a missão de transmitir o que eles estão vivenciando ou até mesmo vendo. Isto acaba funcionando também para reforçar a característica introspecção da personagem central, Lain Iwakura. Ainda no que diz respeito aos traços distintivos do anime observados na série, a vocação para o auto-sacrifício do personagem central, característica herdada da cultura japonesa, a ideologia da austeridade e da responsabilidade pelas próprias atitudes, também presente no mangá7, aparece na própria Lain. Ela prefere ser “apagada” da memória de todas as pessoas, “reiniciando” (reset) todos os fatos pelo benefício dos envolvidos e afetados pela cadeia de acontecimentos nefastos resultantes do rompimento da barreira entre o mundo real e a Wired. A despeito dos sentimentos que nutre pela amiga Arisu, Lain prefere abdicar de sua convivência e amizade para que a sociedade recomece de maneira mais próspera e alegre. Nas últimas cenas da série, Lain aparece não apenas conformada com seu desaparecimento do mundo real (no qual, na verdade, ela pode voltar a aparecer a qualquer momento, uma vez que tem o controle das barreiras entre o mundo real e a Wired), mas também satisfeita e segura por ter tomado o que ela julga ser a decisão correta. O enredo de SEL faz uma ponte com o imaginário da cibercultura na medida em que

6 Em sites como http://www.animegaiden.com.br/, http://www.animeblade.com.br/, http://www.animeinfo.org/, por exemplo, fãs de anime encontram e fornecem informações a respeito dos mais diversos títulos, enriquecendo o banco de dados e reunindo pessoas com interesse em comum por este tipo de animação. 7 LUYTEN, Sonia Bibe – Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. 15

aborda as relações sociais mediadas pelas redes telemáticas, a mudança da relação com o corpo físico em função da sinergia entre o ser humano e a máquina, a abordagem do misticismo baseado no saber e na noção de onipresença proporcionada pela televivência e também por dar evidência às tecnologias da inteligência e o modo com estas afetam a percepção da realidade. A trama da série se desenvolve a partir da maneira como o tráfego de informações na Wired interfere na sociedade, no modo como as pessoas se comportam nos ambientes reais, evidenciando também como as redes telemáticas ampliam as possibilidades cognitivas (armazenamento/busca/difusão de informação) e diluem a noção de espaço e tempo. Neste contexto, está presente também uma noção de misticismo relacionada ao domínio da informação e do conhecimento, assim como a idéia de conexão global, irrestrita e consciente entre as pessoas. Em SEL, a existência de Deus também é trabalhada, posta a partir dos fenômenos da onipresença e onisciência de um suposto ser, a partir do conhecimento e manipulação dos dados em fluxo na rede. 16

5. Lain e Cibercultura

No atual estado da sociedade capitalista, quando termos como “globalização”, “tempo- real” e “on-line” estão em voga, é praticamente impossível que uma pessoa tenha uma vivência social plena se for completamente isolada de antenas, satélites, cabos, centrais telefônicas, computadores, etc. Tais artefatos servem para mediar a comunicação entre as pessoas nas mais diversas partes do mundo e possibilitar trocas sociais, econômicas, comerciais e políticas, enfim, permitir o andamento do modo de vida moderno que foi adotado a nível global. Somente com a noção de ciberespaço, cunhada pelo escritor William Gibson no seu romance Neuromancer como sendo “uma alucinação consensual coletiva”, questões como onde acontece um bate-papo virtual, uma conversa telefônica ou uma transmissão de arquivos entre usuários da internet, ganham uma resposta. Perguntas aparentemente simples como estas atingem uma nova dimensão quando pensamos que as pessoas envolvidas nestas situações podem estar fisicamente em locais e culturas imensamente diferentes no exato momento em que elas acontecem. Ainda que não seja somente isto, tal raciocínio ajuda a compreender um pouco a “desmaterialização” que a cibercultura está proporcionando à sociedade. De acordo com André Lemos:

Hoje entendemos o cyberespaço à luz de duas perspectivas: como o lugar onde estamos quando entramos num ambiente virtual (realidade virtual), e como o conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o planeta (BBS, videotextos, Internet...) (...) Mesmo sem ser uma entidade física concreta, pois ele é um espaço imaginário, o cyberespaço constitui-se em um espaço intermediário. (...) O cyberespaço é concebido como um espaço transnacional, onde o corpo é suspenso pela abolição do espaço e pelas "personas" que entram em jogo nos mais diversos meios de sociabilização como os BBS, os MUDs, ou o Minitel francês8

Através do ciberespaço, as pessoas estão cada vez mais interconectadas, utilizando para isso as redes digitais, seja através de computadores ligados à internet, televisão, telefone, telefones celulares, pagers e quaisquer outros aparelhos que sirvam para comunicação. Para Pierre Lévy, a cibercultura nasceu a partir de um movimento dos jovens urbanos intelectualizados, ávidos por formas de comunicação diferentes daquelas propostas pelas

8 LEMOS, André. As Estruturas Antropológicas do Ciberespaço. http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/lemos/estrcy1.html 17

mídias clássicas.9 O modelo um-todos das mídias de massa ou um-um dos meios de comunicação interpessoais existentes até então não mais atendiam aos anseios e necessidade de troca de informações da sociedade. Nesse sentido, a maior alteração inserida pela cibercultura é mudança no sentido de tornar a emissão do tipo todos-todos, quando qualquer pessoa pode emitir qualquer tipo de informação para uma quantidade ilimitada de pessoas. Tal modelo comunicacional fez o mundo entrar na era das informações em fluxo e acréscimo constantes. A cada instante, mais dados são adicionados ao sistema, sejam novos ou reproduzidos, e são acessados pelas pessoas de acordo com sua necessidade e disponibilidade. Isto, por sua vez, representa também uma alteração no pólo da recepção, pois transmite atividade ao papel do receptor, que precisa ir em direção àquela informação que foi disponibilizada. A disponibilidade abundante, assim como o tráfego constante de dados entre grandes quantidades de pessoas, de diversas culturas, também forjou uma mudança na relação com o saber. Em primeiro lugar, porque nem toda a informação colocada na rede é útil, o que demanda a seleção dos conteúdos que serão acessados. Em última instância, com tamanha absorção e repasse de informação através da rede, será que ainda é possível apontar autores para as idéias? Para alguns estudiosos, já vivenciamos os processos da inteligência coletiva10, fazendo parte de um todo informacional, em que ao mesmo tempo em que buscamos adquirir conhecimento, contribuímos oferecendo o nosso próprio arsenal cognitivo para o manancial de dados. O mundo também chegou ao estágio da televivência, quando as pessoas interagem de maneira cada vez mais independente do tempo e do espaço físico. O avanço das tecnologias, especialmente no tocante à comunicação, afetou a noção de tempo em função da simultaneidade e da imediaticidade dos meios, o que, por sua vez, se reflete na mudança das relações com o espaço físico e geográfico. Um e-mail, por exemplo, é escrito e enviado no momento mais adequado para o seu remetente, assim como é checado e lido nas mesmas condições pelo seu destinatário. Com a quase instantaneidade da transmissão dos dados da mensagem, independente da distância em que se encontram emissor e receptor, o tempo de resposta a ela depende exclusivamente das pessoas envolvidas na comunicação. Não é como o correio tradicional, que leva dias para entregar uma carta, nem como o telefone, que apesar de

9 LÉVY, Pierre. Cibercultura, São Paulo Ed. 34, 1999. 10 LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência, São Paulo Ed. 34, 1993. 18

instantâneo pode estar desligado, ocupado ou o destinatário da ligação não se encontrar, cabendo apenas àquele que liga a insistência na transmissão da mensagem. A cibercultura não surgiu como fruto dos aparatos tecnológicos que foram engendrados e adaptados ao longo das últimas quatro décadas, ou seja, a sociedade não se condicionou aos novos modos de se relacionar com a comunicação e a informação por causa da tecnologia. Na verdade, muitos dos progressos tecnológicos nesse sentido se deram em função de necessidades prévias da sociedade. Quando não, esta se apropriou daqueles para outras finalidades que não eram exatamente as previstas inicialmente. A cibercultura é, portanto, a cultura contemporânea que, apesar dos traços culturais peculiares e característicos de cada região, unifica diferentes povos através do modo de intercambiar informações interna e externamente, enfim, pela assunção de um padrão global na multiplicidade das maneiras de se comunicar. Neste contexto, a série animada Serial Experiments Lain traz para a ficção os elementos deste universo, que servem ao mesmo tempo como cenário e tema central de sua trama. 19

6. Crossover: A Cibercultura em SEL

A relação entre cibercultura e o enredo de Serial Experiments Lain é evidente desde a elaboração da mais simples e genérica sinopse da série. O centro da trama são as implicações que a comunicação mediada pelo ciberespaço (no caso, a Wired) têm sobre as relações das pessoas com a realidade. Por se tratar de uma obra de ficção, obviamente alguns pontos são exagerados, supervalorizados ou, em contrapartida, ganham explicações simplistas. Mesmo assim, SEL é uma obra que impressiona pela precisão conceitual com que trata determinados temas, principalmente a idéia de interconexão e as relações entre o ser humano e as redes telemáticas. Assim, Serial Experiments Lain traz a representação de um universo bastante significativo para os estudos da cibercultura – adolescentes ávidos por inovações tecnológicas, trocando informações através de computadores domésticos, celulares e palms, vivenciando uma socialidade caracterizada pela dualidade entre sua existência física (real) e a virtual (no ciberespaço). Ao tratar temáticas como imersão ciberespacial, trânsito e coleção de informações através de redes telemáticas, virtualização das relações sociais, rompimento de barreiras espaço-temporais, dentre outras, SEL implica não apenas a aplicação de teorias sociais e comunicacionais a um mundo imaginário, mas também retrata o universo real de uma sociedade da informação, caracterizada por elementos semelhantes a estes que aparecem no objeto em questão. Ao longo da narrativa, são abordadas temáticas características dos estudos do universo da cibercultura, tais como, evolução dos meios digitais e seus artefatos, virtualização das relações humanas, ambientes de imersão, sociedades informacionais, inteligência artificial, entre outras. Em SEL, se encontra, ao mesmo tempo, o retrato de um segmento já presente na sociedade atual, mas também uma série de possibilidades futuras e fantasias acerca daquilo que pode vir a ser feito com as novas tecnologias da informação. Neste estudo, pretende-se concentrar em quatro questões que parecem ser o centro do desenvolvimento do roteiro de SEL. São elas: - as relações sociais afetadas pela mediação e existência do ciberespaço (ficcionalmente representado pela Wired); - as conseqüências do aprofundamento na relação entre corpo humano e maquinário 20

(representado pelas conexões entre Lain e seu Navi); - a idéia de supressão do corpo físico em função das tecnologias intelectuais (evidenciado pelo suicídio de Chisa Yomoda e seu tráfego pela Wired); - o misticismo que envolve as novas tecnologias, trazendo novas perspectivas de religiosidade no universo que compõe a série (a existência de um deus ciberespacial, representado pelos personagens Eiri Masami e Lain Iwakura). Na abertura de cada episódio, as imagens de luzes, pessoas em movimento, carros, placas de sinalização e prédios, apesar de caracterizarem um espaço físico, oferecem uma localização que é mais temporal do que geográfica. Os elementos que são mostrados apontam para o espaço urbano de uma cidade, mas que poderia ser qualquer grande cidade moderna, ou seja, configura-se de acordo com o conceito de não-lugar11, cunhado por Marc Augé . No entanto, é possível facilmente saber que a época da ambientação é o final do século XX, que é então chamado de presente (Present day... Present time...) na abertura da série. Com relação à interconexão, há um elemento simbólico que aparece em todos os episódios para reforçar as noções de ligação, de eletricidade, de fluxo: as tomadas estáticas em que aparecem postes com uma vastidão de fios, tendo como plano de fundo o céu e acompanhados por um zumbido característico de cabos de alta tensão. Os postes, que servem tanto para o suporte de energia elétrica, quanto da companhia telefônica, elementos tão comuns à paisagem de qualquer cenário urbano, são investidos, em SEL, da função de demonstrar, ainda que como uma âncora física, a extensão da Wired. Os postes e a fiação contra o céu ao fundo remetem à idéia da existência da noosfera, uma camada ampliadora da realidade, presente em todos os lugares e o meio através do qual é possível a conexão entre as pessoas. As relações cibernéticas são viabilizadas graças à energia elétrica e os meios de transmissão de dados (como linha telefônica, fibra ótica, ondas de rádio, etc.), que neste caso são representados pela rede de cabos aéreos presentes em quase todo cenário externo do desenho. Nos primeiros episódios, a aparelhagem utilizada pelos personagens, em geral, segue com fidelidade o modelo dos equipamentos que vêm sendo usados e popularizados nos últimos anos. Se levarmos em consideração o fato de que a obra foi realizada antes de 1998, é provável que encontremos alguns pequenos disparates tecnológicos mas, de uma maneira

11Não-lugares são ambientes privados de uma identidade local, que lhes confere características genéricas e funcionamento semelhante nas mais diversas partes do mundo, são um reflexo da homogeneização globalizada 21

geral, os meios de comunicação e os aparelhos que aparecem na história são bastante familiares aos que fazem parte do cotidiano na atualidade. Mesmo que alguns recebam outras denominações que não aquelas usadas na realidade, computadores pessoais (chamados de Navis), pagers, telefones celulares, laptops, videogames, outdoors eletrônicos e a própria internet (que tem propriedades um pouco diferentes e chama-se Wired) fazem parte do cenário e da ação em SEL. Ao longo da narrativa é mostrada uma sociedade adaptada e familiarizada com computadores para as mais diversas necessidades. No terceiro episódio, Psyche, uma cena ilustra bem essa imersão tecnológica através do diálogo de um grupo de jovens que troca informações a respeito de equipamentos de informática, e um deles deixa claro que instruções sobre estrutura e montagem de computadores são ensinadas como conteúdo regular nas escolas. O Cyberia Café, em função do ambiente e o tipo de vivência que os personagens têm nele, também aparece como um elemento característico da cibercultura. Na série, é o ponto- de-encontro dos jovens, onde se troca idéias, encontra-se diversão e onde é possível reunir pessoas das mais variadas, tal como em qualquer boate de uma grande metrópole. A trilha sonora do lugar é música eletrônica, o que é definido pelo próprio Pierre Lévy como “o som da cibercultura”12. Além destes detalhes, o Cyberia também é um lugar onde se consegue a droga inteligente, Accela, que acelera as funções cerebrais. Ainda que no próprio episódio haja uma explicação “técnica” sobre o Accela, deixando claro que não se trata de uma droga, mas sim de um nanomecanismo, os seus efeitos funcionam de maneira semelhante sobre a mente humana. A própria estrutura narrativa de Serial Experiments Lain evoca a idéia de hipertexto e multimodalidade. A divisão da série em episódios interdependentes, os fluxos temporais e de consciência entre real e virtual, assim como a inserção de textos escritos ou digressões faladas para explicar alguns elementos da história faz referência à experiência de descontinuidade produzida pela multilinearidade hipertextual e também sugere uma simulação do deslocamento no ciberespaço, vivenciados por usuários das redes telemáticas. Em Serial Experiments Lain, além de haver tangenciamento entre o mundo real e o da ficção, através da utilização de elementos de pertencimento comum, dentro da própria obra há

12 LÉVY, Pierre. Cibercultura, São Paulo Ed. 34, 1999 22

a construção de dois universos distintos: o real e o virtual. Cada um deles constitui uma instância diferenciada, com regras próprias, onde, para além da representação de um no outro, há mesmo a assunção de identidades autônomas por parte dos indivíduos. Até mesmo conceitos elaborados por especialistas em cibercultura aparecem textualmente, embutidos no discurso de alguns personagens, como é o caso de uma fala no episódio 3, que explicita a noções como ciberespaço e inteligência coletivas aplicadas à Wired:

A Wired não é uma camada superior do mundo real. A rede é um campo de transmissão de informações. A informação não fica parada ali, funciona por estar sempre em fluxo. A memória das pessoas não é apenas pessoal ou parte da história da humanidade. Nem mesmo o inconsciente coletivo.

Um dos principais temas abordados em SEL, ou pelo menos o mais evidente, é a existência de dois universos ao mesmo tempo paralelos e complementares, o mundo real e a Wired. O dilema é a necessidade de haver barreiras entre eles ou não, ou seja, o estabelecimento de limites, sejam eles naturais ou artificiais. Na série, confrontam-se as seguintes formas de compreender tais mundos:

- são diferentes e devem continuar separados, com fronteiras bem definidas; - são ambientes distintos, mas parte de uma só realidade; - devem ser fundidos, com tráfego livre de informação entre os dois.

Tais questões aparecem textualmente nas falas dos personagens. No episódio 7 (Society), por exemplo, a perspectiva segundo a qual os dois “mundos” pertencem a um só aparece quando Lain diz as seguintes frases: “O mundo real não é completamente real” e “A Wired e o mundo real são um só e o mesmo” . Posteriormente, o assunto surge também na fala dos homens de preto, personagens que vigiam Lain a serviço da maior empresa de informática do universo da série, a Tachibana Labs. No episódio 10 (Love), um deles diz: “A Wired não pode ter permissão para ser um mundo especial. Só pode ser um campo que funciona como um subsistema reforçando o mundo real” . A confusão entre mundo real e Wired, assim como a falta de clareza na natureza da 23

relação e das fronteiras entre tais universos, como vão se estabelecendo ao longo da série, cria uma sensação de desespero e insanidade em alguns personagens. Aos poucos, começam a acontecer assassinatos e suicídios, mortes causadas pelo gradativo desaparecimento das fronteiras entre realidade física e a Wired. Durante o episódio 2 (Girls), um dos personagens, um jovem que mata duas pessoas e se suicida no Cyberia Café, tem o seguinte diálogo com Lain antes de pôr fim à própria vida:

Rapaz – A Wired não deve interferir no mundo real. Lain - Onde quer que você vá, todos estão conectados.

A temática das barreiras entre o mundo real e a Wired e o seu rompimento é responsável pelos principais e mais complexos desdobramentos da trama de Serial Experiments Lain. Nos tópicos que se seguem, será feita uma análise mais detalhada sobre a questão do corpo humano em relação com as máquinas, sobre as mudanças nas configurações das relações sociais a partir da interferência das novas tecnologias em comunicação, sobre a religiosidade relacionada à tecnologia e sobre o modo como as tecnologias cognitivas atuam sobre a percepção humana acerca da realidade.

6.1 Incorporação Binária

Logo no início da série, a questão do corpo vs. informação vem à tona com o suicídio da personagem Chisa Yomoda, que manifesta a idéia do abandono de sua dimensão física para atingir a plenitude de uma vivência cibernética. Com a continuação da série, o que acontece é uma mistura de integração radical entre ser humano e maquinário e a tendência ao desaparecimento das interfaces, com a supressão da dimensão material da existência, que passa a ser convertida num volume de dados. Um olhar mais apurado sobre essas duas perspectivas continua nos pontos abaixo.

6.1.1 Complexo Corpo-Máquina

Além da noção de obsolescência dos aparelhos, na série também aparece uma 24

(radical) gradação na relação simbiótica entre seres humanos e máquinas. A própria Lain é o mais ilustrativo exemplo disto, porque nos primeiros episódios ela utiliza seu Navi somente com os comandos de voz e teclado. Aos poucos, ela vai se cercando cada vez mais com o maquinário (não só em casa, mas também com a utilização de um aparelho semelhante a um palm-top), até chegar ao ponto de, a partir do episódio 10 (Love), conectar fios a diversas partes do seu corpo (rosto, lábio, braços, mãos, peito) para ampliar sua ligação/percepção/atuação na Wired. Ainda no que se refere à relação entre Lain e seu Navi, é possível notar o gradativo desaparecimento da interface. O uso do Navi é cada vez mais naturalizado, não apenas pela ampliação das possibilidades do comando de voz – aos poucos Lain dispensa o uso de periféricos – mas também pela resposta imediata do mecanismo à usuária. Lain entra no quarto e o Navi é automaticamente acionado, ligando telas flutuantes que trazem o tipo de informação que ela deseja obter. Com o rompimento da barreira entre os mundos real e virtual, a rede de Navis torna-se uma extensão propriamente dita de suas capacidades cognitivas. Há um outro personagem - este faz apenas uma breve aparição no episódio 7 (Society) - que também atua a partir da associação entre seu corpo e aparelhos. Trata-se de um homem que deseja se integrar aos Knights e acredita ter rompido as barreiras entre os mundos real e virtual a partir do momento em que se cerca de uma parafernália tecnológica aonde quer que vá. Ele anda pelas ruas carregando mochilas onde leva seu equipamento, com um visor no rosto, que lhe permite acompanhar simultaneamente o que acontece diante de seus olhos e receber a informação que está circulando na Wired. Num determinado momento, ele diz: “A Wired e o mundo real estão ligados por suas extremidades. Eu posso existir em qualquer lugar. Não importa onde meu corpo está, posso mandar minha consciência para onde quiser”. Apesar de representar a integração entre o corpo humano e o maquinário, a idéia presente em SEL não é de prolongar ou aperfeiçoar a extensão da atuação do corpo físico, mas de suprimir suas limitações a partir da ampliação cognitiva, como fica evidenciado na própria fala reproduzida acima, em que o personagem afirma a vontade de “mandar a consciência para onde quiser”. 25

A cyborgização13 que aparece em SEL, portanto, visa a integração entre humano e maquinário a fim de suprimir o corpo físico e suas necessidades. Paradoxalmente, os artefatos que são ligados ou acrescidos ao corpo têm por objetivo fazê-lo desnecessário, porque a prioridade, no caso do universo em questão, é a expansão das possibilidades cognitivas, o favorecimento da troca, armazenamento e processamento de dados.

6.1.2 Desmaterialização

O modo como é apresentada a questão do abandono do corpo físico e suas limitações para uma existência virtual, traça um paralelo entre alma e persona circulante no ciberespaço (Wired). Da mesma maneira que a alma (seguindo a idéia religiosa de imortalidade e imaterialidade), a circulação dos dados no ciberespaço não tem limites espaciais, temporais ou cognitivos – tudo se sabe, tudo se vê. A morte de Chisa Yomoda e a afirmação de que isto era necessário para que ela vivenciasse plenamente sua “conexão” ilustram esta noção. Chisa, uma garota que enfrenta problemas de relacionamento com as pessoas no mundo real, acredita que existir unicamente na Wired, e não mais fisicamente, num mundo onde ela “não é necessária”, é a solução para dar fim para o seu sofrimento. No entanto, tal saída não é encontrada ao acaso. Ela parte também de uma premissa religiosa, uma vez que ela recebe do próprio “Deus da Wired” (o cientista Eiri Masami, que também abandonou seu corpo para se tornar uma entidade onipresente na Wired) o chamado para a morte física e sua importância para sua existência virtual: “A razão de você fazer isso, você mesma deve descobrir. Se você continuar num lugar assim (referindo-se ao mundo real), pode não ser capaz de se conectar”. O “deus” Eiri Masami, inclusive, tem como objetivo maior de sua atuação “libertar” os seres humanos do seu corpo físico, limitado em capacidades e evolução, para se incorporarem integralmente ao inconsciente coletivo trazido ao nível consciente. Algumas de suas falas deixam bastante clara tal intenção:

“A humanidade é incapaz de evoluir, não? Comparando com outros animais, a incidência de câncer no homem é muito pequena. Uma teoria diz que o homem é

13 Definida por André Lemos como sendo o processo simbiótico entre seres humanos e máquinas, fundado na integração entre artificial e orgânico, uma característica fundamental da cultura contemporânea, in Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea, Porto Alegre: Ed. Sulina, 2002. 26

uma neotenia e não é mais capaz de evoluir. Se é verdade, em que criatura absurda o homem evoluiu. Sem saber o que os conduz, eles mantêm seus corpos meramente para satisfazer os desejos carnais. Não valem nada, não é? A humanidade é só isso. Mas não é mais necessário que reste um único pobre ser humano. A humanidade finalmente criou uma saída. A rede, a Wired.” – Episódio 5 (Distortion).

Todas as funções do corpo humano, sem exceção, podem ser postas em palavras e descritas em termos materiais. O corpo não é mais que uma máquina. Se as limitações físicas do corpo restringem a evolução humana, seria como se o fim da raça humana fosse definido por um deus que sequer existe. A informação gravada dentro dos humanos não é apenas aquilo que adquiriram enquanto indivíduos. Esta espécie humana está conectada a seus predecessores e as informações acumuladas por eles. Se a informação não é partilhada, não faz sentido. São meros dados. A humanidade pode evoluir. Evoluir por seu poder próprio. Mas para isso, precisa saber o que realmente é. O que você pensa que é? – Episódio 12 (Landscape).

Neste ponto, fundem-se uma perspectiva religiosa/simbólica e outra, racional/ prática. Em comum, ambas têm a noção de desvinculação do corpo físico para atingir um estágio superior, no entanto, em termos religiosos, isto representa a evolução espiritual através de práticas rituais, enquanto, do ponto de vista racional, representa uma ampliação da capacidade cognitiva. Por uma perspectiva, o enfoque está na alma, por outra, na mente. Essa noção evolutiva da supressão das instâncias físicas, sejam elas o corpo humano, sejam os equipamentos eletrônicos, aparece no seguinte diálogo entre Lain e Eiri Masami, no episódio 12 (Landscape):

Lain - Não entendo você, Deus. O que você fez foi remover os aparelhos da Wired. Telefones... Televisão... A rede... Sem eles, você não poderia ter feito nada. Eiri Masami - Sim. São coisas que acompanharam a evolução humana. Mas os humanos mais evoluídos que outros têm o direito a maiores habilidades. Lain - Quem lhe deu este direito? O programa que introduziu o código sincronizado à freqüência característica da Terra no código do Protocolo Sete, que traria o inconsciente coletivo para o nível consciente. Você realmente chegou a esta idéia sozinho?

De um modo ou de outro, o que Eiri Masami faz, enquanto Deus, é uma tentativa de tradução integral do mundo real em dados para serem processados como uma realidade apenas virtual, não-física. Este ponto de vista se apóia no fato de que, assim como acontece na rede de computadores, o cérebro humano traduz a realidade sensível em estímulos elétricos. Uma outra fala na animação, desta vez, proferida por uma alucinação de Lain, reitera tal lógica: 27

“É razoável enxergar a Wired como uma camada superior do mundo. Em outras palavras, a realidade física não é nada além de um holograma da informação que circula através da Wired. Isso porque o corpo – a atividade do cérebro humano é apenas um fenômeno físico causado pelas distribuição de impulsos elétricos pelas sinapses. O corpo existe apenas para comprovar a própria existência do indivíduo” – Episódio 5 (Distortion).

Por outro lado, o corpo físico aparece em SEL como um instrumento de ligação emocional, afetiva. A radicalização da existência das pessoas, proposta por Eiri Masami, baseada apenas nos seus dados e sua memória, encontra como contraponto a dimensão afetiva da presença material. Isto é posto em questão através do contato físico estabelecido entre Lain e Arisu ao longo dos episódios, quando aparecem cenas que enfocam suas mãos entrelaçadas (episódios 3 e 7), demonstrando seu carinho e amizade. É no episódio 12 (Landscape), no qual Lain diz: “Você é minha única amiga mesmo sem conectar comigo”, porém, que esta dimensão afetiva se torna evidente e acontece uma reviravolta no discurso que perpassa toda a série (o da tendência à desmaterialização). No seguinte diálogo, Lain tenta explicar a Arisu que as pessoas não precisam de seus corpos:

Lain: Eu sou um programa criado para destruir a barreira entre o mundo real e a Wired. Arisu: Você é um programa, Lain..? Lain: Você e todos os outros são apenas aplicativos. A verdade é que vocês não precisam de corpos. Arisu: Você está enganada.

A ação que se segue traz a evidência do corpo material. Quando Arisu revela não compreender a existência como uma compilação de dados, mas mostra a Lain o calor de sua pele e as batidas de seu coração, num gesto de carinho que demonstra uma outra dimensão simbólica do corpo, faz esta compreender a necessidade emocional da existência corpórea. Assim, a questão do corpo em Lain aparece por duas perspectivas: numa delas, o enfoque é a radical supressão do corpo material em função da expansão cognitiva, em outra, a necessidade da existência física firma-se como necessária em virtude de sua função simbólica-afetiva.

6.2 Todos Estão Conectados 28

Logo no primeiro episódio da série (Weird), uma fala do pai de Lain evidencia a importância da comunicação como um dos fundamentos para o funcionamento social: “No mundo real ou na Wired, as pessoas se conectam umas às outras e é assim que as sociedades funcionam”. Na série, tais palavras ganham sentido ainda mais forte de acordo com a noção de interconexão pessoal estabelecida através da comunicação mediada pelas redes telemáticas. Ao acompanhar a progressão de mudanças no comportamento social da personagem principal, Lain Iwakura, é possível traçar um paralelo com aquilo que vem acontecendo com as relações sociais contemporâneas. Num primeiro momento, Lain é uma menina tímida, que não se entrosa com as colegas de classe e não faz parte dos acontecimentos sociais que a cercam. A partir do instante em que ela começa a utilizar seu Navi (computador), ela passa a fazer parte do meio em que vive, pois o uso da ferramenta a integra no sistema de comunicação utilizado pelos jovens. O primeiro evento que traz Lain para a mesma realidade de suas colegas é o recebimento do misterioso e-mail da colega morta. Depois disso, ela passa a se comunicar com suas companheiras de turma e, aos poucos, se integra na vida social do grupo, freqüentando o shopping, a danceteria, e a partir da troca de conhecimentos a respeito dos computadores com outros jovens. Neste segundo momento, Lain se sociabiliza e estabelece conexões interpessoais no mundo real. A Wired funciona como uma ampliação dessas relações, já que os meios de comunicação servem para marcar encontros, estabelecer diálogos e até mesmo como pretexto para conversas. Lain então muda um pouco seu perfil social, deixando-se envolver com outras pessoas e tem sua vivência maximizada no mundo real. Já num terceiro momento, quando Lain desenvolve seu gosto e habilidade com o uso do Navi, ela volta a se afastar do convívio social no mundo real, passando a ampliar cada vez mais sua atuação na Wired. Neste momento, Lain passa a ser conhecida pela sua persona virtual, por suas relações são travadas no ambiente imaginário da Wired, ao passo que sua atuação no mundo físico volta a minguar, tornando-a novamente alienada da realidade que a cerca. Neste ponto, no quarto episódio (Religion), Lain se interessa cada vez mais pela expansão das relações entre mundo real e a Wired. Sua evolução no modo de lidar com o Navi e o interesse cada vez maior na existência virtual aparecem claramente no seguinte 29

diálogo:

Sr. Iwakura (Pai de Lain) - Parece que você e a Wired estão se dando bem agora. Quando tudo estiver dito e feito, a Wired é só um meio de comunicação e transferência de informação. Você não deve confundir com o mundo real. Lain - Você está errado, a fronteira entre os dois não está assim tão clara. Logo poderei entrar nela, em total alcance e mobilidade, vou traduzir-me nela.

Posteriormente, no episódio 10 (Love), o pai ainda observa: “Só? Você não está só. Se você se conectar à Wired, todos irão recepcioná-la.” Por fim, no que pode ser tomado como um quarto momento na existência de Lain, ela abandona completamente sua presença no mundo real – podendo voltar ocasionalmente a ele, caso deseje – para tornar-se um ser virtual, pertencente e regulador do universo da Wired. Neste ponto, Lain está fisicamente alienada do mundo real, porém, tem consciência e domínio sobre tudo aquilo que nele acontece. Lain então, novamente, não utiliza mais ferramentas para conectar-se à Wired, mas neste caso, porque está integralmente imersa nela. Essa progressão do comportamento da personagem-título numa escala que se estabelece em função do seu uso e domínio do Navi e da Wired permite traçar um paralelo com a chamada desmaterialização do mundo contemporâneo, com as alterações na percepção de tempo e espaço através de sua aniquilação em virtude das relações traçadas através das redes telemáticas. As transformações sofridas por Lain são uma metáfora para o que muitas das instituições – como as financeiras, por exemplo – estão passando na atualidade. No que diz respeito à maneira como é retratada a relação entre usuários e seus computadores, é possível observar como é inserida na trama a noção de evolução tecnológica do aparato físico (hardware) e a medida em que as pessoas se adaptam e tornam-se especializadas nela. Na casa de Lain, por exemplo, é notável o processo de amadurecimento da parafernália material à medida que a personagem mergulha no universo virtual. No primeiro episódio Lain possui um Navi infantil, que é trocado por um modelo regular de última geração e aos poucos, com acréscimo de peças e adaptações, se torna uma complexo gigantesco com diversas telas, sistema avançado de processamento e refrigeração, que tornam o quarto da personagem numa central de maquinário. Isso, inclusive, é previsto pelo pai de Lain logo no segundo episódio, quando ele lhe diz: “Para comunicação, você precisa de um sistema potente, que vai amadurecer junto com suas relações”. 30

A observação das mudanças pelas quais Lain passa ao longo da série permite uma análise de como os meios de comunicação afetam as relações sociais. A questão das personas forjadas para transitar no mundo virtual, por exemplo, evidenciada através das diversas “versões” de Lain que os outros personagens conhecem. Num espaço imaginário, sem limites de tempo e espaço, as regras são diferentes e a performance dos indivíduos também não corresponde fielmente à do mundo real, o que pode causar conflitos e interferências, como é o que acontece no episódio 8 (Rumors), quando uma informação de caráter estritamente pessoal vaza e passa por um julgamento público ao qual normalmente não seria submetido. 31

6.3 Tecnomisticismo

Depois de passar pelo período de “desencantamento” do mundo14, quando a ciência substituiu a religião na palavra de ordem para explicar os fatos da realidade, a humanidade vai retomando, ainda que de maneira reformulada, uma visão mística acerca do universo da qual ela faz parte. O misticismo não aparece somente nas formas esotéricas, no pluralismo de religiões, na tentativa de reencontro da espiritualidade. Ele aparece também numa relação com a própria tecnologia, tantas vezes posta como aniquiladora do espírito. Em Serial Experiments Lain a religião aparece como um dos temas centrais, dando mais de uma perspectiva de como a religiosidade se insere no universo tecnológico. A trama de SEL mostra o tratamento diferenciado, quase sacerdotal, que recebem aquelas pessoas com um domínio maior da técnica, e também apresenta a proposta de uma forma de existência de Deus, baseada no controle e no fluxo de informação. Tais perspectivas serão melhor desenvolvidas nos tópicos seguintes.

6.3.1 Os Iniciados

Atualmente, a tecnologia se encontra num estágio que exerce uma mistura de medo e fascínio sobre as pessoas. Como muitas das possibilidades e realizações tecnológicas exigem um conhecimento técnico muito avançado e aprofundado para a compreensão dos mecanismos que atuam nas operações, a maioria das pessoas têm acesso apenas ao nível mais superficial das linguagens do maquinário, nível este, suficiente para permitir o uso das tecnologias. Por exemplo, para que o usuário envie ou receba um e-mail, não é necessário que ele conheça as linhas de código que compõe o programa que ele está utilizando para tal fim, ou saiba como funcionam as estruturas da rede de transmissão de dados. A facilidade de trocar as mensagens, assim, parece “um passe de mágica”. O controle à distância, seja por ondas invisíveis, seja por pequenos mecanismos elétricos cujo modo funcionamento é desconhecido dos leigos (ou seja: esmagadora maioria das pessoas), exerce um fascínio semelhante ao dos fenômenos sobrenaturais, que não podem ser explicados fora do domínio da magia e razões extramundanas.

14 WEBER, Max, apud. LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea, Porto Alegre: Ed. Sulina, 2002. 32

Por este motivo, os indivíduos que têm habilidades com computadores figuram como “iniciados” em conhecimentos muito específicos, inalcançáveis para a maioria das pessoas, colocando-os num patamar privilegiado, semelhante a líderes religiosos, que dominam uma linguagem transcendental, com uma visão da realidade além do alcance convencional. A especificidade do jargão do funcionamento das novas tecnologias cria um mito de superioridade gnóstica em torno daqueles que o dominam.15 Paralelo a este fascínio, corre também o receio, porque é da natureza humana temer aquilo que desconhece, desconfiar das forças que não domina. Não saber que tipo de “reações” que podem ser obtidas por parte da máquina, a origem das informações nela contidas, ou ainda, não saber “do que a máquina é capaz”, até que ponto vai o controle do homem e a autonomia do artefato, são motivos suficientes para causar intimidação. Em SEL, esta idéia mística acerca da tecnologia está presente de maneira semelhante ao que acontece na realidade. O maior exemplo do status de superioridade mágica de um grupo são os Knights. O caráter secreto e místico dos Knights fica evidenciado nas falas de alguns personagens: “O Knights são um grupo de super-hackers, mas não são exatamente um grupo. Dizem que eles têm muito poder na Wired, e que fazem muitas coisas em segredo” – Arisu, episódio 5 (Distortion). “Os Knights não são crackers comuns. Eles são usuários que estão lutando para tornar a única verdade que existe em realidade. A verdade tem poder porque é verdade e porque é verdade, é justa” – Taro, episódio 9 (Protocol). Na série, o grupo de hackers16 formado pelos Knights é cercado sigilo e simbologia, com rituais de iniciação e pertencimento parecidos com os das ordens místicas. A organização tem um símbolo próprio, uma imagem que, por si só, remete ao hermetismo das doutrinas místicas. Seu conhecimento, a seletividade dos membros e a maneira como operam criaram mitos ao redor do grupo, conferindo-lhes um status de superioridade e poder dentro do sistema da Wired. O próprio nome do grupo, Knights (em inglês, significa “Cavaleiros”), faz uma referência à Ordem dos Cavaleiros Templários, os cruzados medievais responsáveis pela expansão e defesa do cristianismo na Europa da Idade Média. Além disso, eles são apontados como o principal grupo de fiéis do Deus da Wired.

15 LEMOS, André – As estruturas antropológicas do ciberespaço. (20/09/2002) 16 Pessoas com conhecimento muito avançado, muitas vezes autodidata, em programação para computadores, que trabalham por conta própria na implementação e melhoria de sistemas e programas ou, para desespero das grandes empresas de informática, descobrindo falhas em seus produtos. 33

Os Knights, portanto, têm notoriedade dentro do universo da Wired porque são capazes de manipular informações, desenvolver mecanismos (como o chip Psyche, que aparece no terceiro episódio), por isso, se diferenciam da maioria dos usuários. Para reforçar seu lugar no posto de elite, eles revestem sua atuação de uma aura misteriosa, escondendo sua identidade e a verdadeira natureza de suas ações.

6.3.2 Deus no Ciberespaço

Outra referência à mistura de tecnologia e misticismo diz respeito às figuras de Eiri Masami e da própria Lain. Desde o princípio da série, fala-se da presença de Deus na Wired e à medida que se aproxima do fim, este caráter místico se torna mais evidente, com a revelação de quem é este Deus e o motivo. O fundamento principal da existência do Deus da Wired é o seu caráter onipresente. Na abertura do episódio 9 (Protocol), temos a seguinte fala: “Se você quer se livrar do sofrimento, deveria acreditar em Deus. Quer você acredite nele ou não, Deus está sempre ao seu lado”. Ainda no mesmo episódio, encontramos diversas declarações a respeito da busca e reconhecimento desta divindade, como esta fala de Lain: “Há só uma verdade. Deus.” Neste caso, o que entra em discussão no conceito de verdade é se ela corresponde ao mundo real, vivenciado fisicamente, ou o mundo virtual, conhecido a partir de mecanismos cognitivos e o tráfego de informação. A questão do Deus da Wired, portanto, além de se pôr enquanto crença religiosa, diz respeito também à apreensão da realidade através dos meios de comunicação, que são mecanismos de expansão das possibilidades humanas de troca de informações. Ao longo dos episódios, o cientista Eiri Masami se identifica como este ser onipresente e onisciente, manipulador do fluxo entre realidade e a Wired, e da consciência das pessoas. A própria Lain também é reverenciada como uma deusa na Wired, o que fica evidenciado no episódio 6 (Kids), quando sua imagem aparece gigantesca e iluminada no céu da cidade, sendo vista inicialmente por criança e depois por todas as pessoas. Por fim, com a destruição do domínio de Eiri Masami na Wired e restituição da realidade sem a troca direta entre esta e o mundo real, fica evidente que Lain é o verdadeiro Deus da Wired. Ao longo da série vão sendo dadas algumas pistas para a revelação do verdadeiro caráter de Lain e da relação entre o sobrenatural e a Wired. No episódio 7 (Society), por 34

exemplo, a garota é confrontada com a realidade de não saber nada a respeito dos seus próprios pais. No episódio 5 (Distortion), Lain tem algumas alucinações. A primeira delas, uma boneca com quem ela conversa, lhe diz:

Para cada evento, há antes uma profecia. O evento só acontece depois de haver uma profecia. A profecia está se cumprindo, Lain. A história não é um mero conjunto de pontos que passamos através de uma linha do tempo. Eles estão conectados por uma linha. Não, talvez seja mais correto dizer que eles foram feitos para se conectarem.

Na mesma cena, Lain ainda vê uma imagem flutuante de seu pai, que diz o seguinte:

Pode ser que o que circula na Wired não seja apenas informação elétrica. Se assumirmos que foi o desenvolvimento da eletricidade e da telefonia que trouxe a formação da Wired, então devemos imaginar se um outro mundo não foi criado naquele momento. Aqui no mundo real, Deus existe apenas enquanto conceito. Mas na Wired, pode ser que exista uma espécie de personificação como Deus. Não sei se deve ser chamado de Deus ou não. mas creio que tenha a mesma força que é descrita nos mitos. É possível que o Deus da Wired já tenha força suficiente para afetar o mundo real de alguma maneira. Sim, na forma de profecias.

A profecia a que estes trechos se referem é a tomada de consciência por parte de Lain de que ela é o Deus da Wired. Tal consciência é impulsionada pelo embate com o suposto e auto-instituído deus, Eiri Masami. O próprio Eiri Masami afirma o caráter divino de Lain, acusando sua existência como sendo naturalmente intrínseca ao universo da Wired: “Você nasceu originalmente na Wired. A lenda da Wired. A heroína dos contos de fadas da Wired. A Lain do mundo real é apenas um holograma dela, um homúnculo de ribossomos artificiais. Para começar, você nunca teve um corpo.” – Eiri Masami (“Deus”), episódio 10 (Love). Em outro momento, fica mais claro como Eiri Masami impulsionou a compreensão de Lain sobre seu papel divino, pois ele afirma: “Você era onipresente espalhada na Wired. Eu lhe dei um ego.” – episódio 12 (Landscape). A compreensão de Lain, por sua vez, aparece na seguinte fala: “A Wired não é uma camada superior do mundo real. Dentro da Wired, você era Deus. Mas e antes da Wired ser criada? Você era apenas um falso Deus no lugar de alguém que estava aguardando que a Wired atingisse seu atual estado.” – Lain, episódio 12 (Landscape). Outro dado que comprova o caráter divino de Lain é a referência ao ritual do urso do 35

povo Ainu, uma minoria étnica japonesa estabelecida no norte da ilha de Hokkaido. Segundo a tradição deste povo:

Um dos cultos religiosos mais conhecidos é o festival anual cujo clímax é o sacrifício de um urso. Os ainus capturam o urso ainda filhote, alimentam-no e, quando o animal atinge 2 ou 3 anos, é sacrificado em um ritual. Para os ainus, o urso é um visitante do outro mundo que aparece para oferecer sua carne como uma dádiva para os seres humanos. Assim, eles sacrificam o urso, comem sua carne e devolvem seu espírito ao outro mundo.17

Lain, por mais de uma vez aparece não apenas vestida de urso, mas alguns de seus objetos pessoais carregam o mesmo símbolo, como o chaveiro preso em sua mochila e o estojo que ela leva para a escola. Finalmente, no episódio 13 (Ego), quando ela já foi “sacrificada” em sua existência no mundo real, Lain aparece diante de seu pai com a roupa de urso e ele lhe diz “Você não precisa mais usar isto”, indicando o cumprimento da profecia/ritual, que a levou de volta a seu mundo, ou seja, a Wired. A “divindade” de Eiri Masami, assim como a de Lain, se estabelece em função de seu domínio sobre os mecanismos cognitivos, permitido pelo rompimento da barreira entre o mundo real e a Wired. Com seu conhecimento das conexões, Eiri e Lain são capazes de trafegar e manipular os dados, inclusive alterando a percepção das pessoas sobre a realidade através de remanejamentos em sua memória. O que estes personagens fazem é representar aspectos extremados dos conceitos de desmaterialização do mundo, ubiqüidade e televivência.

6.4 Consciente Coletivo

Em SEL, a partir do rompimento da barreira entre a Wired e o mundo real, seria possível torná-los efetivamente um só e as pessoas estariam todas interconectadas em nível consciente (não através do inconsciente coletivo) e sem a necessidade do uso de aparelhos. Seria formada, portanto, uma rede cognitiva a nível global, onde toda a informação seria compartilhada e processada por todos, com a realidade acontecendo independente da existência do corpo físico. De tal maneira, as potencialidades (intelectuais) do ser humano seriam maximizadas, rompendo também por completo com as limitações espaço-temporais.

17 “Curiosidades Japonesas” in: Artigos São Paulo Shimbun - Ano 1999/2000 (15/02/2003) 36

Ao longo da série, são apresentadas diversas tecnologias da inteligência, criadas antes mesmo do computador, a fim de manipular informações e expandir a capacidade cognitiva dos seres humanos. São trechos contendo dados documentais, que falam a respeito de cientistas como Vannevar Bush (inventor do hipertexto com seu artigo As We May Think), John C. Lilly (que realizou experiências com estados de consciência), Ted Nelson (inventor do termo hipertexto) e Douglas Rushkoff (autor de Cyberia, onde discute a noção de “Cérebro Global) com seus estudos sobre formas de armazenar e processar dados, assim como acerca da consciência humana e como determinados agentes externos podem afetá-la. Os trechos explicativos aparecem concentrados no episódio 9 (Protocol), no qual são descritos os estudos e seus autores. O conceito MEMEX é colocado da seguinte forma:

O conceito MEMEX de expansão de memória, desenvolvido por Vannevar Bush em 1945 era um sistema através do qual informação gravada num microfilme era projetada numa tela translúcida. Ele visava era a compressão e o rápido acesso da informação. Mesmo antes do aparecimento dos computadores, Bush já havia criado a base da atual multimídia, enquanto liderava os experimentos da bomba atômica no Projeto Manhattan.

Posteriormente, as explicações são a respeito das experiências sensoriais conduzidas por John C. Lilly:

Conduzindo experimentos de privação sensorial usando narcóticos dos nativos americanos e tanques de isolamento para comprovar o inconsciente humano, John C. Lilly acreditava que suas experiências o conectavam a entidades cósmicas através de uma rede de comunicação. Lilly nomeou estes seres que o guiavam como ECCO - Earth Coincidence Control Office (Escritório de Controle da Coincidência da Terra). Posteriormente, Lilly começou a trabalhar na comunicação com golfinhos. Os golfinhos são criaturas capazes de conduzir uma rede de longo alcance na água através de ondas ultra-sônicas.

O episódio traz ainda informações sobre o projeto Xanadu:

Ted Nelson, que estudou sob os dois pioneiros Vannevar Bush e John C. Lilly, propôs uma biblioteca eletrônica gigante em satélites na órbita estacionária que poderia ser usada em qualquer terminal na terra através das linhas do rádio ou de telefone. Chamou de 'Xanadu' este conceito que faria esta base de dados - era a utopia do povo Mongol, na qual todas as culturas escritas nunca seriam perdidas. Assim era Xanadu. O conceito do hipertexto o tornaria realidade e o nome de Ted Nelson entraria na história como seu criador.

E, em seguida, sobre a Ressonância Schuman e como ela poderia servir para o 37

estabelecimento de uma interconexão global do inconsciente coletivo:

A Terra tem suas próprias e específicas ondas eletromagnéticas . Entre a ionosfera e a superfície terrestre, há uma ressonância constante na freqüência de 8 Hz na banda ELF. Chama-se Ressonância Schumman. A extensão dos efeitos sobre os humanos dessas “Ondas Cerebrais da Terra”, constantemente emitidas pelo planeta, continua sendo desconhecida. A população humana da terra está se aproximando do número dos neurônios no cérebro. Douglas Rushkoff propõe que a consciência da própria Terra deve ser despertada quando todos os seres humanos da Terra se tornarem conectados (networked) coletivamente. A evolução da rede seguiria um modelo neural e assim como os neurônios no cérebro humano são conectados pelas sinapses, a própria Terra se tornaria uma rede neural.

Cada um destes conceitos e estudos, à sua maneira, representa o desejo científico de ampliar as capacidades cognitivas do homem através do uso de tecnologias capazes de expandir o seu potencial natural. Cada um dos conceitos que aparecem no nono episódio de SEL estabelece uma ponte com a tecnologia do Protocolo 7, que no universo ficcional é o maior expoente da radical expansão cognitiva do ser humano. Os trechos são dispostos intercalados com partes regulares do episódio, dando uma noção de evolução científica realista, até que eles se voltam novamente ao universo ficcional, inserindo personagens e acontecimentos da série numa linha histórica fictícia, mas baseada na realidade:

Eiri Masami, pesquisador-chefe do Laboratório Geral Tachibana, desenvolveu a hipótese de uma rede neural a nível mundial. Sua hipótese propunha uma rede sem fios, através da qual toda a humanidade seria conectada num nível inconsciente sem a necessidade de nenhum aparelho. Posteriormente, ele codificou o Fator da Ressonância Schuman e o inseriu na sétima geração do Protocolo da Wired por iniciativa própria.

Apoiado nisso, é possível afirmar que Serial Experiments Lain evidencia a fusão entre ficção e realidade para tratar, principalmente, dos estados de consciência humanos, com uma abordagem sobre o modo como o uso das redes telemáticas os afeta. Em SEL, a principal preocupação com que os personagens lidam são as conseqüências, sejam elas boas ou ruins, de conectar as mentes humanas e promover o compartilhamento de informação a nível global e sem barreiras. Em alguns momentos, há uma tendência utópica sobre os benefícios da interconexão global, segundo a qual a tomada de uma consciência coletiva ampliaria o alcance da 38

existência das pessoas. Tal idéia aparece na fala de abertura do episódio 6 (Kids): “Se todos se conectarem, até a menor das vozes se tornará alta. Se todas as pessoas puderem se conectar umas as outras, até suas vidas ficarão mais longas”. Num ponto de vista pessimista, uma rede deste tipo causaria confusão na mente das pessoas, cuja percepção e memórias próprias estariam misturadas entre si e com os dados de outras pessoas (inclusive pessoas mortas, como Chisa e Eiri), aniquilando a individualidade e noções espaço-temporais. Isto aparece ao longo da série, com as perturbações mentais sofridas por diversos personagens secundários, ou quando a voz de Eiri Masami conversa com Lain a respeito das informações espalhadas indevidamente, no episódio 8 (Rumors): “Onde quer que as pessoas estejam, onde quer que elas vão, você sempre esteve ali. Você assistiu ao que elas não gostariam que ninguém assistisse. E você contou a todo mundo. Esta era a coisa certa a fazer. A informação da Wired deve ser compartilhada, não?”. Fica claro que esta radical rede de permuta de informação se configuraria como um problema, e não melhoria, para a humanidade quando, ao final da série, Lain decide reiniciar os acontecimentos e desfazer a conexão extrema proporcionada pelo Protocolo 7. Em Serial Experiments Lain entra em jogo também a forma como os seres humanos percebem o mundo que os cerca e como convencionam aquilo que chamam de realidade. De acordo com o personagem Eiri Masami, tudo e todas as funções do corpo podem ser traduzidos em termos de dados, informação. A forma como estes dados são interpretados pelo cérebro humano é o que determina aquilo que existe e é real, portanto, tudo depende do registro (memória) dos seres humanos, como é dito a Lain por um usuário da Wired no episódio 9: “Se um ser é lembrado, isso prova que é parte de um registro”. Por esta razão, a realidade é algo ambíguo, impreciso (“Não, nada é tão ambíguo quanto a memória...”, Wired, episódio 11), e fundado nas inter-relações cognitivas (“As pessoas só têm substância com as memórias de outras.” – Lain, episódio 12). Em SEL, a partir do episódio 8 (Rumors), fica evidente que tudo no universo da série depende exclusivamente da manipulação das informações e a memória aparece como a central onde são feitas as alterações, uma vez que é nela que residem as chaves de compreensão do tempo, do espaço e da existência. Tal noção aparece na seguinte fala de Lain, no episódio 13 (Ego): “Então, as memórias não são apenas do passado, não é? Podem ser de exatamente agora e até de amanhã...”. A determinação da memória nas noções de existência e realidade 39

aparece também nesta fala de Arisu, no mesmo episódio: “Se você não se lembra de algo, isso nunca aconteceu. Se você não é lembrado, é como se você não existisse”. No universo da série, onde a realidade é estabelecida enquanto uma base de dados regulada a partir da memória, Lain, que assume o posto de deusa da Wired - ou seja, entidade responsável pelo fluxo de informações – é capaz de manipular os acontecimentos, os fluxos temporais e a existência de qualquer ser. Para esta personagem, não existem limites de manipulação daquilo que é considerado realidade pelos seres humanos: “Não preciso mais de aparelhos. Parece que eu finalmente destruí a barreira entre o mundo real e a Wired. Posso ir a qualquer lugar que desejar agora. Por isso vim aqui. Também devo ser capaz de desfazer algo que aconteceu!” – Lain, episódio 11 (Infornography). Ainda sobre a possibilidade da manipulação da memória para fazer com que tenham acontecido ou não os eventos, Lain diz à Arisu, no episódio 12: “Você deveria apenas reescrever as memórias ruins”, sugerindo a reconfiguração da realidade a partir da memória coletiva. Outro exemplo de como, no universo de SEL, a percepção de tempo e espaço está ligada ao fluxo de informações aparece no episódio 7 (Society), quando o seguinte texto é veiculado num dos boletins informativos da Wired: “Esta tarde, o firewall do Bureau de Informação do Centro de Controle de Informação foi corrompido e destruído por algum grupo. A informação na Wired está desordenada. Este boletim está sendo emitido agora, mas pode chegar amanhã, ou mesmo ontem”. No último episódio, um diálogo entre duas versões da personagem Lain estabelece relações entre informação, realidade e misticismo. A título de esclarecimento: o diálogo em questão se desenrola entre uma Lain ainda confusa a respeito de sua identidade, a mesma que é apresentada ao espectador ao longo da série; enquanto a outra, que será chamada de Lain2, conhece a verdade sobre Lain e faz reflexões provocativas.

Lain2: A Wired não é uma camada superior do mundo real. A rede é um meio de transmissão de informação. A informação não fica parada nela. A informação funciona por sempre estar em fluxo. As memórias das pessoas não são meramente pessoais ou parte da história da humanidade. Não, nem mesmo o inconsciente compartilhado. Você acha que os seres humanos poderiam criar algo que pudesse armazenar uma memória assim tão vasta?

(Neste ponto, a personagem se refere à quantidade de informação gerada ao longo da existência da humanidade, sua necessidade de gerenciamento e criação de tecnologias 40

cognitivas, que seriam responsáveis pelo armazenamento, acesso e manipulação destes dados)

Lain: A Wired estava apenas conectada a algo mais. Mas a que estava conectada?

Lain2: As pessoas realmente precisam saber disso? Veja o quão longe chegaram sem saber. O mundo humano cria e ora para seus diversos deuses, e os homens se convencem que "este é o mundo como ele é".

(Aqui ela sugere a existência de uma entidade extramundana responsável pelo gerenciamento das informações da vida humana, que seria representada pela própria Lain enquanto Deusa). O que fica evidenciado com o que se passa ao longo da série, é que as funções cognitivas dos seres humanos e sua inter-relação são as responsáveis pelo estabelecimento daquilo que é convencionado enquanto realidade, uma vez que somente os mecanismos do cérebro humano são capazes de interpretar os dados oriundos percepção enquanto registros. É deste princípio que parte a idéia do personagem Eiri Masami, que julga ser melhor abandonar o corpo e convidar toda a humanidade a fazer o mesmo. No entanto, numa contrapartida a esta lógica informacional, é inserida também a noção da existência de um ser supremo, extramundano, capaz de regular as experiências humanas, sendo o responsável pela manipulação da realidade através de alterações no registro das memórias dos seres humanos. 41

7. Conclusão

Através das comparações traçadas neste estudo, pode-se afirmar que Serial Experiments Lain não é apenas um produto ficcional que trabalha com elementos tirados diretamente do imaginário da cibercultura, mas também que leva ao extremo algumas idéias e conceitos trabalhados pelas teorias sócio-comunicacionais da atualidade, como a inteligência coletiva, a ubiqüidade, a desmaterialização e o reencantamento do mundo a partir das novas tecnologias. Na série, é possível não apenas identificar similaridades e inspiração em fenômenos, eventos e artefatos que fazem parte do dia-a-dia da cultura contemporânea, mas ela também traz trechos documentais que reforçam a idéia realista presente em seu enredo. Em outras palavras, SEL não se trata apenas de um produto de ficção científica, mais do que isso, é uma representação de uma série de fenômenos vivenciados pela sociedade atual. Em especial, a abordagem das questões religiosa, da relação entre corpo e máquina, especialmente colocando a cognição acima da existência física, e das mudanças nas relações sociais com a existência do ciberespaço. É precisamente isto que se sobressai no estudo das representações presentes na série, e a maneira como são manipuladas para construir um retrato ao mesmo tempo fiel e fantástico da cibercultura. Este embasamento (teórico, inclusive) nos fenômenos sócio-comunicacionais contemporâneos para a construção do enredo é o que resulta na coerência e complexidade da temática abordada e da trama elaborada a partir dela. SEL, portanto, é uma obra cuja análise à luz dos estudos em cibercultura serve, ao mesmo tempo, para compreendê-la em suas minúcias simbólicas, para ilustrar a realidade contemporânea, e também, a partir de uma série de abstrações permitidas pela invenção fantasiosa do roteiro, ajudar nas reflexões acerca dos fenômenos sociais engendrados pelo uso das novas tecnologias em comunicação. O principal enfoque de SEL acaba sendo sobre as relações entre existência real e virtual, a partir das tecnologias cognitivas, sejam elas intelectuais ou materiais, centrando no debate na necessidade ou não do corpo físico, aventando a possibilidade de sua supressão em benefício da ampliação cognitiva a partir de processos de inteligência coletiva. A questão religiosa aparece, então, para demonstrar que o ciberespaço é mais uma das esferas de atuação do ser humano e, portanto, está também sujeito ao engendramento de uma ótica mística para 42

compreender e explicar suas regras e seu funcionamento. O dilema de Lain, que deve decidir entre o abandono de sua humanidade para assumir seu posto enquanto deusa da Wired e continuar a existir no mundo real, revela a dicotomia entre a separação e a integração do mundo real e do ciberespaço enquanto partes de uma só realidade. A série demonstra como os meios de comunicação, assim como os mecanismos de tratamento e armazenamento de dados evoluíram para se tornar extensões das capacidades cognitivas da humanidade, criando algo semelhante a um universo paralelo e hermético. A linguagem do anime revelou-se adequada para trabalhar com uma representação do imaginário da cibercultura porque, além de ser plasticamente viável, dá margem à abordagem aprofundada e simultânea de múltiplas temáticas. O anime é mais viável, por exemplo, do que um filme, por uma série de facilidades técnicas (e econômicas), e por associar, numa só obra, a ostentação visual, a conceituação e a liberdade imaginativa do espectador. O aprofundamento fica por conta, não apenas destes últimos elementos citados, mas também pelo formato, que permite uma duração bastante longa e, ao mesmo tempo, não muito intensiva. Além disso, seu caráter “misterioso”, em função da pluralidade de elementos a serem elucidados, coloca a obra na posição de mais um fetiche otaku, tornando-a parte do banco de dados mundial, ao mesmo tempo em que serve como motivo para o fluxo de informações entre os indivíduos. Ou seja, SEL se insere também no manancial de elementos do próprio universo que representa. 43

8. Fontes de Referência

8.1 Bibliográficas

BERTHON, Pierre, PITT, Leyland e WATSON, Richard T. “Postmodernism and the Web: Meta Themes and Discourse”. In: Technological Forecasting and Social Change, 2000, nº 65, p. 265-279. Elsevier Science Inc. New York. COSTA, Leonardo. O imaginário tecnológico presente na série Serial Experiments Lain, Trabalho de Conclusão da Disciplina Comunicação Multimídia, FACOM, 2002. LEMOS, André. “A Cultura ´Cyberpunk´”. In Textos nº29, 1993, p. 25-39 _____, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea, Porto Alegre: Ed. Sulina, 2002. _____, André e PALACIOS, Marcos (orgs.). Janelas do ciberespaço. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2001. LÉVY, Pierre. Cibercultura, São Paulo Ed. 34, 1999. _____, Pierre. As Tecnologias da Inteligência , Sao Paulo : Ed. 34, , 1993. LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. SANTOS, Hermílio. “Interação social e novas mídias: elementos para uma análise da interação mediada”. In Revista FAMECOS, 18 (2002): 99-105. Porto Alegre SCHROEDER, Ralph. “Cyberculture, cyborg, post-modernism and the sociology of virtual reality technologies - surfing the soul in the information age”. In: Futures 26 (1994): (519- 528) Butterworth-Heinemann Ltd

8.2 On-line:

Textos Curiosidades Japonesas - Artigos - São Paulo Shimbun - Ano 1999/2000 (15/02/2003) IZAWA, Eri. What are and Anime? (24/01/2003) COULBORNE, Gary e POLLARD, Phil. Bear Information and Resources. 44

(15/02/2003) FREITAS, Álisson de. Anime. (22/09/2002) GREENFELD, Taro. Otaku to You. (03/02/2003) LEMOS, André. As Estruturas Antropológicas do Ciberespaço”, (20/09/2002) _____, André. Anjos Interativos e Retribalização do Mundo - Sobre Interatividade e Interafaces Digitais. (22/01/2003) _____, André. A Página dos Cyborgs. (22/01/2003) _____, André. Ciber-Socialidade - Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea (01/02/2003) _____, André. Imaginário da Cibercultura. Entre Neo-Luddismo, Tecno-Utopia, Tecnorealismo e Tecnosurrealismo. (22/01/2003) SATO, Cristiane A. “A cultura do animê” (19/09/2002)

Sites Digital Angel – Serial Experiments Lain (28/08/2002) Lain – Alive in Cyberspace (28/08/2002) Serial Experiments Lain (28/08/2002) Cyberia-Anime.com (28/08/2002) 45

8. 3 Videográficas:

Ghost in the Shell. Direção de Mamoru Oshii. Japão: Duração: 82 min. Animação,color. Legendado.

Matrix. Roteiro e Direção de The Wachowski Brothers. EUA: Silver Pictures, 2001. Duração: 136 min,color. Legendado.

Serial Experiments Lain. Direção de Ryutaro Nakamura. Japão: Pioneer LDC, 1998. Duração: 13 episódios/25min. Animação, color., Legendado em Inglês. 46

ANEXO A

Ficha Técnica e Sinopse dos Episódios de Serial Experiments Lain

1. Ficha Técnica18: Direção: Ryutaro Nakamura Design Original de Personagens: Yoshitoshi Abe Estrutura da Série e Roteiro: Chiaki J Konaka Design de Personagens: Takahiro Kishida Storyboard: Ryutaro Nakamura Direção de Arte: Masaru Sato Colorização: Michiyo Iriomote Direção de Fotografia: Takashi Azuhata Edição: Takeshi Seyama Direção de som: Youta Tsuroka Música: Reiichi "Chabo" Nakaido In association with Tatsunosuke Produção musical: 7th Mother Koyousha J-Works Produção de Animação: Triangle Staff Co-Produção: Produção: Pioneer LDC (http://www.pioneer-ent.com)

2. Sinopses

Layer 01: Weird

O episódio começa com o suicídio de Chisa Yomoda no centro da cidade. Pouco depois, na escola onde Lain estuda, uma colega chora por ter recebido um e-mail da falecida Chisa. Arisu pergunta se Lain também recebeu um e-mail e responde que não, afirmando não ser chegada a computadores. Ao chegar em casa, Lain liga seu velho Navi infantil e checa seu e-mail, tendo recebido também uma mensagem de Chisa dizendo que abandonou o corpo. Lain então pede ao seu pai um novo Navi. Lain tem alucinações, ela não consegue se concentrar na escola, visualiza uma mensagem que diz “Venha para a Wired”.

18 Fonte: http://www.cyberia-anime.com/ 47

Layer 02: Girls

À noite, no Cyberia Café, boate freqüentada pelos jovens da série, um rapaz ingere uma unidade de Accela, seus sentidos se alteram e tudo parece lento aos seus olhos. As colegas de Lain estão na boate e vêm uma garota idêntica a ela. Na manhã seguinte, ao sair de casa, Lain percebe que está sendo observada por um homem de preto. Na escola, as garotas tentam se aproximar de Lain convidando-a para ir ao Cyberia, mas ela não gosta da idéia. Chegando em casa, Lain recebe seu novo Navi e insiste para que seu pai monte o mais rápido possível. Por insistência de Arisu, Lain resolve ir ao Cyberia. Lá, o rapaz do início do episódio atira em algumas pessoas e, ao ver Lain, tem um ataque e, em seguida, se suicida. Lain está tão próxima da cena que o sangue espirra em seu rosto.

Layer 03: Psyche

Lain presta depoimento na delegacia, mas diz não se lembrar de nada do acontecido. O delegado não consegue entrar em contato com os pais da garota e ela é levada para casa numa viatura. Na manhã seguinte, Lain vai para a escola e se percebe observada por luzes vermelhas vindas de um carro preto, do qual ela foge. Logo depois, no trem, ela ouve uma voz, mas não sabe sua origem. Lain continua desconcentrada e tendo alucinações na escola. Em seu armário, ela acha um envelope contendo um chip, que ela descobre ser o Psyche. Mais tarde, no Cyberia, ela conversa com um grupo de garotos que a ensina a instalá-lo no seu Navi, mas ela ainda não demonstra muita intimidade com o aparelho. No outro dia, Mika (irmã de Lain) se depara com dois homens de preto na porta de casa. Ela fica assustada e diz que vai chamar a polícia, comenta com a mãe, que é indiferente. Dentro do quarto, Lain está de roupa íntima trabalhando no Navi desmontado.

Layer 04: Religion

Lain aprimorou seu Navi, tornando-o um sistema maior que o original, a garota parece agir diferente. Em outro ponto da cidade, um homem corre apavorado e é encurralado por uma garotinha. Notícias de suicídio se espalham, e Lain surpreende suas colegas por estar sabendo de tudo antes, através da Wired. Ela sai do encontro com as colegas para continuar trabalhando no Navi. Um rapaz aparece correndo desesperado num jogo 3D (Phantoma). Ele foge de uma garotinha e, quando encurralado, carrega uma arma imaginária e então dispara na 48

direção da menina, que morre no jogo e na vida real. Lain assiste à cena. Ela também recebe informações sobre os Knights. Mais tarde, em seu quarto, Lain está conectada à Wired quando percebe pontos de luz vermelha passeando pelo teto. Ela nota que eles vêm de fora, do aparelho dos homens de preto que a estão observando. Ela ordena que vão embora e uma onda emana dela, quebrando a vidraça da janela e o aparelho que os homens carregam no rosto.

Layer 05: Distortion

O episódio abre com uma fala sobre a incapacidade humana de evoluir. A fala é dita por alguém que se autodenomina Deus. Mika caminha indiferente a um carro que invade uma multidão. Em seu quarto, Lain pede a uma boneca que lhe conte uma história inédita, e esta lhe explica que não há nada que ela não saiba. No centro da cidade, a imagem de Lain aparece num telão e Mika recebe estranhas mensagens para que ela cumpra uma profecia e aos poucos começa a enlouquecer. Arisu também recebe por e-mail tal mensagem e atribui ao grupo dos Knights. Em seu quarto, Lain conversa com imagens flutuantes de seu pai e de sua mãe, que lhe explicam coisas sobre a Wired, o mundo real e as profecias.

Layer 06: Kids

Lain transformou seu Navi num complexo gigantesco, que toma completamente o seu quarto e ela fica absorta quando se conecta à Wired. Na escola, as colegas de Lain observam que ela está voltando a ser retraída como no início, que está se isolando, e ela responde que não está sozinha, que tem companhia na Wired. Na rua, algumas crianças estão com os rostos e braços voltados para o céu. De repente, as nuvens se abrem, um ser de luz aparece e suas formas são muito semelhantes às de Lain. Ela entra na Wired e começa a pesquisar para tentar entender o que aconteceu. Lain entra em contato com um tal Dr. Hodgeson, com quem fala a respeito do projeto KIDS, que matou – ou retirou do mundo real – diversas crianças. Alguém sabota o sistema de refrigeração do super-Navi de Lain e ele explode. Os homens de preto sugerem que foram os Knights.

Layer 07: Society

Lain entra na Wired e tem a impressão de que se torna diferente do mundo real. Na rua, um homem caminha com um Navi na mochila e óculos de realidade virtual, querendo 49

fazer parte dos Knights e dizendo poder estar em qualquer lugar. Algumas pessoas comuns aparecem com símbolos estranhos em seus Navis, sugerindo que são membros dos Knights. Na escola, Lain continua suas investigações na Wired utilizando um Navi portátil, Arisu alerta que ela está voltando a ser retraída. Acontece um ataque dos Knights ao protocolo da Wired. Lain é levada pelos homens de preto ao Laboratório de Pesquisa Tachibana, onde é acusada de pertencer aos Knights e é confrontada com o fato de não saber dados sobre seu passado.

Layer 08: Rumors

Taro promove uma matança virtual num jogo, enquanto conversa com Lain. Em casa, Lain fala com os pais sobre a conversa nos Laboratórios Tachibana e tudo que eles fazem é olhá-la de modo estranho. Na escola, Arisu pergunta a Lain se ela é responsável pelos rumores, mas Lain não sabe de nada. Durante a aula, Lain trafega na Wired e uma voz lhe fala sobre Deus. Ao voltar ao mundo real, todos estão olhando Lain com um ar acusador, ela supõe que seu eu-virtual fez algo impróprio. Em casa, Arisu tem fantasias sexuais com seu professor e Lain assiste tudo sentada em sua cama. Arisu fica magoada, pois comprova que a amiga espalhou os rumores. Lain tem um combate com seu eu-virtual e fica confusa sobre sua identidade. Lain conversa com Deus e chega à conclusão de que pode alterar a memória das pessoas. No outro dia, parece que ninguém lembra de nada.

Layer 09: Protocol

O episódio começa com a narração documental da queda do OVNI em Roswell, Estados Unidos, no ano de 1947. Em casa, Lain vê um alienígena na porta de seu quarto. As narrações continuam se alternando com trechos do anime. Lain aparece na Wired conversando com usuários comuns. Aparecem ainda trechos documentais falando sobre a criação do Memex, ECCO, projeto Xanadu, Ressonância Schuman e do personagem Eiri Masami. Lain recebe um componente para Navi dos Knights e vai de encontro a Taro, acusando-o de ser um dos membros. A família de Lain age de modo estranho. Taro confessa ser um membro informal dos Knights. Lain tenta compreender sua identidade buscando informação na Wired. O episódio termina com o encontro entre Lain e Eiri Masami numa rua deserta. 50

Layer 10: Love

Lain conversa com Eiri Masami na rua deserta e ele lhe explica que morreu e agora é onipresente na Wired, tendo os Knights como seguidores. Na manhã seguinte, na sala de aula, os colegas e a professora se comportam como se ela não existisse. Ela volta para casa e encontra tudo desarrumado, como se fosse desabitada, então seu pai lhe diz que o tempo acabou e que é hora de despedir-se, mas que ela nunca está só quando conectada à Wired. Lain deseja saber quem são os Knights. O Cyberia Cafe também parece abandonado. Uma lista dos Knights é publicada e essas pessoas começam a aparecer como suicidas. Lain pergunta aos homens de preto pelos assassinatos e eles respondem que este era o serviço solicitado por seu cliente. Lain encontra Eiri mais uma vez e pergunta se ele continua sendo deus sem seguidores. Ele responde que ainda restou um deles, que é ela, que é parte da Wired, que ele criou dentro dela. Lain o manda embora e fica sozinha na rua deserta.

Layer 11: Infornography

Os primeiros dez minutos do episódio são trechos já exibidos da série, numa espécie de flashback em que Lain recorda os acontecimentos. Lain está deitada no chão de seu quarto exausta quando Eiri Masami entra e fala como se ela fosse um software. Chisa e Lain aparecem caminhando na rua, o jovem suicida do Cyberia Cafe afirma que Lain não precisa de seu corpo e tenta convencê-la a tirar a própria vida. Em casa, Arisu tem uma videoconferência com Juri sobre uma maneira de contornar os rumores, quando uma figura, com corpo de um pequeno alienígena e o rosto de Lain aparece na porta de seu quarto. A criatura diz que vai dar um jeito de apagar as memórias ruins. Na manhã seguinte, Arisu fica confusa porque as colegas não sabem nada sobre os boatos. Lain aparece na escola sorridente, deixando Arisu ainda mais atordoada.

Layer 12: Landscape

Lain conversa animadamente com as colegas e Arisu observa preocupada. Um canal de notícias da Wired diz que todos devem amar Lain. Eiri diz a Lain como todas as pessoas estão conectadas e qual foi sua contribuição para isso. Num estacionamento, os homens de preto conversam sobre seu trabalho. O homem da Tachibana Labs lhes entrega uma pasta com dinheiro e diz que eles se escondam num lugar onde não haja fios ou satélites, mas tal lugar 51

não existe na Terra. Um dos homens tem um estranho ataque e morre, o outro tenta ver o que ele enxergou através de seu visor, então também tem um ataque. Arisu vai à casa de Lain e se espanta com seu aspecto de abandono. Ela segue até o quarto de Lain, onde se assusta com seu aspecto exausto e corpo todo cheio de fios. Arisu pergunta o que ela fez para merecer ser aparentemente a única pessoa que se lembra das coisas. Lain tenta lhe explicar o que está acontecendo, mas Arisu não entende. Arisu mostra a Lain o calor de sua pele e as batidas do seu coração. Eiri Masami aparece para Lain e pergunta por que Arisu não está conectada. Lain desafia Eiri e ele fica furioso e começa a juntar pedaços de coisas para criar seu próprio corpo. Arisu fica assustada com a monstruosidade que se forma em sua frente. Lain usa seus poderes e atira um monte de máquinas, esmagando o corpo de Eiri feito no mundo real.

Layer 13: Ego

Arisu está em pânico e esbofeteia Lain, que se entristece e diz que fez tudo de melhor pela amiga. Elas se abraçam e Lain decide reiniciar tudo. Numa nova manhã, a família Iwakura se reúne à mesa, mas Lain não está. Na escola, as garotas combinam de ir ao Cyberia Cafe, e Arisu tem a intenção de chamar mais alguém, que as meninas assumem ser Chisa. Alguns jovens caminham pela rua, entre eles, o rapaz que havia se suicidado na Cyberia e a garotinha que foi assassinada jogando Phantoma. Eiri Masami passa pelo grupo, resmungando que vai abandonar o emprego. Dois homens consertam cabos – são os homens de preto. Numa rua deserta na Wired, Lain está sozinha, quando aparece uma outra versão de Lain para confortá-la. Elas conversam sobre a reinicialização da memória das pessoas e o bem que foi feito a elas. A outra versão de Lain fica fazendo questionamentos e Lain continua confusa sobre sua identidade. Lain aparece conversando com uma imagem de seu pai numa mesa de chá. Ela tenta fazer perguntas e ele lhe interrompe dizendo que ela ama a todos. Em outra cena, uma jovem passeia com seu noivo pela rua, quando encontra uma garotinha que ela tem a impressão de conhecer. A jovem é Arisu e a garotinha é Lain, mas elas não se conhecem. Arisu se despede, dizendo que se verão novamente. Lain sorri e observa ela se afastar. 52

ANEXO B Glossário19

Accela – Não é uma droga, é um suplemento inteligente com nano-mecanismos que oscilam numa freqüência específica com o corpo, liberando um determinado hormônio que, quando secretado, altera a percepção do tempo, como se a vigília estivesse acelerada. Não apenas a consciência, mas o funcionamento do cérebro é alterado, operando duas a doze vezes mais rápido. O mecanismo é destruído em 24 horas, mas não se sabe a duração de seus efeitos. Um possível efeito do Accela é conectar à Wired sem o uso de um Navi.

Memex - Sistema de arquivamento e manipulação de informação análogo à memória humana, criado por Vannevar Bush para auxiliá-la. Em outras palavras, e um método pelo qual uma biblioteca coletiva pode ser armazenada e de onde se pode obter informação de maneira eficiente.

Navi - Computador. Existem muitos tipos diferentes de Navi’s, a maioria dividida entre modelos de gabinete e portáteis. Podem vir em muitas formas e tamanhos, com as mais diversas configurações. Podem ser muito personalizados e melhorados por seus usuários, que acrescentam componentes específicos. Na série maioria é produzida pela empresa Tachibana Labs.

Protocolo - Uma série de regras que controlam as interações na Wired. Os protocolos determinam a velocidade e o nível de segurança das transmissões. São um acordo internacional. O protocolo atual, no universo da série, é o Protocolo 6.

Protocolo 7 - Um suposto protocolo novo e radical. O desenvolvimento do Protocolo 7 foi interrompido quando a Tachibana Labs descobriu que seu principal programador, Eiri Masami, havia inserido linhas ilegais em seu código. O Protocolo 7 seria capaz de fazer os usuários se conectarem à Wired sem o uso de equipamentos, e também integrar o mundo real e a Wired. O Protocolo 7 utiliza a Ressonância Schumann para conectar todo mundo à Wired e uns aos outros, fazendo o inconsciente coletivo, como descrito por Jung, tornar-se a consciência coletiva.

19 Elaborado a partir da tradução dos próprios episódios da série e dos glossários contidos nos sites http://www.princeton.edu/~ykoh/lain/ e http://www.cjas.org/~leng/lain.htm#glossary 53

Psyche – Se você pensa no Psyche como um mero processador, perde a noção do todo. Como um terminal multi-função de informação, o Navi ganhou uso em larga escala entre os colegiais. Entretanto, a atividade na Wired continua restrita por causa da máquina. O Psyche pode incrementar drasticamente a performance de qualquer Navi. Instalando-o em qualquer máquina, é possível ter acesso irrestrito à Wired.

Ressonância Schumman – A Terra tem suas próprias e específicas ondas eletromagnéticas . Entre a ionosfera e a superfície terrestre, há uma ressonância constante na freqüência de 8 Hz na banda ELF (Extremely Low Frequency - freqüência muito baixa), que corresponde ao campo eletromagnético da Terra, medido por W.O. Schuman. Teria sido inserida por Eiri Masami no código do Protocolo 7 para conectar a Wired e o mundo real sem o uso de equipamentos, uma vez que a extensão sobre os humanos, dos efeitos dessas “Ondas Cerebrais da Terra”, constantemente emitidas pelo planeta, continua sendo desconhecida.

Sistema KIDs - Uma parte dos experimentos Kensington, realizados pelo professor Hodgeson, quinze anos antes do tempo atual da série. Supostamente, tinha a capacidade de extrair a força PSI (energia psíquica, como a capacidade telecinética) das crianças em que era usado. No entanto, o acontecimento de uma tragédia interrompeu o programa.

Tachibana Labs – Empresa fabricante de Navis e do sistema operacional Copland, utilizado pelos personagens da série.

Wired - Network/Internet. Espaço imaginário, uma realidade que amplia o mundo real, o ciberespaço. No entanto, é também por onde trafegam informações de pessoas mortas, um espaço sobrenatural.