Percepções e Usos da Água em Pequenas Comunidades:

Uma Perspectiva Antropológica

Relatório Final

Programa de Pesquisa em Saúde e Saneamento

Coordenador da pesquisa: Carla Costa Teixeira

Brasília Agosto/2007

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Apresentação

Este projeto foi submetido ao Programa de Pesquisa em Saúde e Saneamento, no Edital de Convocação no. 001/2003, da Fundação Nacional de Saúde, integrando-se na linha de pesquisa “Atitudes, comportamentos e percepções da população atendida por sistemas de abastecimento de água”. Seus participantes são professores e alunos da Universidade de Brasília (Unb) e encontram-se inseridos no Laboratório de Antropologia, Saúde e Saneamento, do Departamento de Antropologia, sendo oriundos dos Dep. de Antropologia, de Engenharia Civil e Ambiental e de História. Neste sentido, dá continuidade ao trabalho conjunto que desde 2003 vem sendo desenvolvido entre os Dep. de Antropologia e de Engenharia Civil e Ambiental da Unb.

Participantes

Coordenação: Carla Costa Teixeira (Departamento de Antropologia, UnB)

Consultoria: Ricardo Bernardes (Departamento de Engenharia Civil e Ambiental, UnB)

Pesquisadores Bolsistas: Carla Coelho Andrade (Doutoranda, Departamento de Antropologia, UnB) Jacques de Novión (Mestrando, Departamento de História) Luís Cláudio Moura (Mestrando, Departamento de História) Anna Davison (Graduanda, Departamento de Antropologia)

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Sumário Resumo ...... 5 Abstract ...... 6 Lista de ilustrações ...... 7 Lista de Tabelas ...... 8 1. Introdução ...... 9 2. Objetivos ...... 9 2.1. Objetivo Geral ...... 9 2.2. Objetivos Específicos ...... 10 3. Revisão da Literatura ...... 11 3.1. Antropologia da Saúde ...... 14 3.2. Antropologia da Política...... 16 3.3. Estudos de Comunidade ...... 18 4. Metodologia ...... 20 4.1. Produção de dados primários ...... 23 4.1.1 Observação direta...... 23 4.2. Pesquisa em fontes secundárias ...... 25 5. Resultados Alcançados frente aos Objetivos e Discussão ...... 26 5.1. Introdução...... 26 5.2. Percepções e Usos de Água em Pequenas Comunidades: o caso de Granjeiro ...... 28 5.2.1. Chegando ao Município ...... 28 5.2.2. Um pouco da história de Granjeiro ...... 32 5.2.3. Um passeio pela cidade: sua rotina ...... 35 5.2.4. Da rua para as casas ...... 38 5.2.5. Abastecimento de Água ...... 45 5.2.6. Lixo e Limpeza Pública ...... 58 5.2.7. Saúde – Estrutura do Município ...... 60 5.2.8. Sob o signo da pluralidade: Usos, práticas e reflexões ...... 62 5.3. Percepções e Usos da água em pequenas comunidades: o caso de Maracaçumé .... 75 5.3.1 Chegando ao Município ...... 75 5.3.2. Uma breve história de Maracaçumé ...... 81 5.3.3. Um passeio pela cidade: sua rotina ...... 82 5.3.4. Da rua para as casas ...... 92 5.3.5. Abastecimento de Água ...... 99 5.3.6 Lixo e Limpeza Pública ...... 104 5.3.7. Saúde – estrutura do município...... 107 5.3.8. Saúde – quadro epidemiológico ...... 110 5.3.9. Do acesso à água por parte da população: vivendo sob o signo da adversidade112 6. Conclusão ...... 121 7. Recomendações para utilização dos resultados pela Funasa ...... 131 8. Justificativa das Alterações do Projeto de Pesquisa ...... 133 9. Referências Bibliográficas ...... 134 APÊNDICE 1 ...... 138 APÊNDICE 2 ...... 141 APÊNDICE 3 ...... 144 APÊNDICE 4 ...... 148 APÊNDICE 5 ...... 150

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APÊNDICE 6: ...... 152 APÊNDICE 6 ...... 153 APÊNDICE 7 ...... 154 APÊNDICE 8 ...... 158 APÊNDICE 9 ...... 163 ANEXO 1...... 165 ANEXO 2...... 166 ANEXO 3...... 167 ANEXO 4...... 168 ANEXO 5...... 172

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Resumo

A pesquisa tem como objetivo geral compreender as ações de saneamento público, notadamente de implementação de sistemas de abastecimento de água, em suas conexões e seus desdobramentos no modo de vida e nas condições de saúde das populações envolvidas. Este relatório aborda especificamente as representações e os usos da água em dois municípios do nordeste brasileiro, Granjeiro (CE) e Maracaçumé (MA), nos quais foram realizadas pesquisas de campo. Palavras-chave: água, políticas públicas, modo de vida, representações e práticas, antropologia.

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Abstract

This research aims at understanding the connection among water supply public policy, lifestyle, and health conditions of local population. It analyses social representations and practices involving the use of water in two towns in the Brazilian northeast - Granjeiro () e Maracaçumé (Maranhão) - where we developed anthropological fieldwork during one month. Keywords: water, public policy, lifestyle, representations, practices, anthropology.

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Lista de ilustrações

Figura 1 - Localização do município de Granjeiro (CE)...... 29 Figura 2 – Vista do município de Granjeiro (CE)...... 30 Figura 3 – Região central do município de Granjeiro (CE)...... 30 Figura 4 – Praça central da cidade...... 37 Figura 5 – Atividade de limpeza das casas...... 40 Figura 6 (a) e (b) – Casa abandonada com MSD ...... 45 Figura 7 – Vista do açude do Junco...... 46 Figura 8 – Vista das plantações na planície de inundação do açude...... 47 Figura 9 – Aspersor utilizado na irrigação...... 47 Figura 10 – Atividade de pesca no açude. Figura 11 – Atividade de pesca no açude. 48 Figura 12 – Vista da Avenida. Figura 13 – Vista da Avenida...... 48 Figura 14 – Passeio de barco...... 49 Figura 15 – Presença de caramujos no açude...... 50 Figura 16 – Presença de animais à beira do açude...... 50 Figura 17 – Presença de urubus ocasionados por limpeza do fato...... 51 Figura 18 – Distribuição de água do Chafariz...... 52 Figura 19 – Outra fonte de distribuição do Chafariz...... 52 Figura 20 – Poço...... 55 Figura 21 – Cacimbão em uso. Figura 22 – Cacimbão desativado...... 55 Figura 23 – Atividade de fabricação de tijolos nos barreiros...... 57 Figura 24 – Bueiro em mau estado e com lixo ...... 58 Figura 25 – Descarte inadequado de lixo...... 59 Figura 26 – Lavagem de roupa às margens do Junco Figura 27 – Lavadeira à beira do Junco. 64 Figura 28 – Medidor de consumo de água nas residências ...... 65 Figura 29 – Manipulação da água proveniente do Chafariz...... 68 Figura 30 – Nata bege formada após fervura da água do açude...... 69 Figura 31 – Localização de Maracaçumé. Fonte: 4 Rodas...... 76 Figura 32 – Localização de Maracaçumé. Fonte: Ministério da Saúde...... 76 Figura 33 (a) (b), (c), (d) – BR 316 – rua grande...... 78 Figura 34 – (a) e (b) – Final de Tarde...... 79 Figura 35 – (a) e (b) – Animais nas ruas...... 79 Figura 36 – (a) e (b) – Casario...... 79 Figura 37 – Igreja Católica. Figura 38 – Assembléia de Deus. .... 80 Figura 39 – Dia de convenção. Figura 40 – Quadrilha...... 80 Figura 41 – (a), (b), (c), (d) – Mercado Municipal...... 83 Figura 42 – Vendedores de melancia na rua grande...... 83 Figura 43 – Pequeno comércio agrícola na rua grande...... 84 Figura 44 – (a) e (b) – Ponte sobre o rio Maracaçumé/divisa com Governador Nunes Freire (Encruzo)...... 85 Figura 45 – (a) e (b) – Oleiros do baixão...... 85 Figura 46 – Projeto beira-rio...... 86 Figura 47 – (a) e (b) – Lavagem do fato...... 86 Figura 48 – (a) e (b) – Lavagem de roupas no rio...... 87 7

Figura 49 – Lavagem de roupas e louças no rio...... 88 Figura 50 – (a), (b) e (c) – Pescado no rio e saindo para a pescaria...... 88 Figura 51 – (a) e (b) – Movimentação de final de semana no rio...... 89 Figura 52 – (a) e (b) – Balcão e barracas das vendedoras de comida...... 89 Figura 53 – (a) e (b) – Barraqueiras...... 90 Figura 54 – Praça do coreto...... 90 Figura 55 - Pessoas jogando dominó. Figura 56 – Campo de Bola da mangueira... 92 Figura 57 – (a), (b) e (c) – O lixo nas ruas e a água que escorre dos quintais...... 93 Figura 58 – (a), (b) e (c) – Tipologia das casas, (d) – Divisória de tecido no interior de uma casa...... 93 Figura 59 – (a) e (b) – Fogões...... 94 Figura 60 – (a), (b), (c) e (d) – O cantinho da água de beber...... 96 Figura 61 – (a) e (b) – Privadas...... 97 Figura 62 – (a) e (b) – Banheiro (banho)...... 97 Figura 63 – (a) Privada (fossa seca). (b) Banheiro (banho)...... 97 Figura 64 – (a), (b), (c) e (d) – Poços nos quintais...... 101 Figura 65 – (a) e (b) – Poços nos quintais...... 101 Figura 66 – Poços na rua...... 101 Figura 67 – (a) e (b) – A turma da varrição...... 104 Figura 68 – Trator de coleta de lixo...... 104 Figura 69 (a) e (b) – Lixão...... 105 Figura 70 – (a) e (b) – Unidade mista – Posto de saúde do bairro Carioca...... 109 Figura 71 – (a) Hospital e (b) Posto de saúde do Cajueiro (área rural)...... 109 Figura 72 – (a) Filhos de D. Clemilda apanhando água da vizinha através da cerca. (b) D. Clemilda lavando os peixes do jantar com a água da vizinha...... 116 Figura 73 - Estado dos banheiros do kit MSD ...... 155

Lista de Tabelas

Tabela 1: Dados Demográficos – Município de Granjeiro...... 30 Tabela 2: Tipo de construção das casas...... 38 Tabela 3: Tratamento de água...... 41 Tabela 4: Destino de fezes e urina ...... 44 Tabela 5: Abastecimento de água – proveniência...... 45 Tabela 6: Destino do Lixo ...... 59 Tabela 7: Indicadores de Mortalidade e Morbidade ...... 61 Tabela 8: Dados Demográficos – Município de Maracaçumé...... 77 Tabela 9 – Tipo de construção das casas ...... 94 Tabela 10 – Tratamento de água ...... 96 Tabela 11 – Destino de fezes e urina ...... 99 Tabela 12 – Abastecimento de água – Proveniência ...... 103 Tabela 13 – Destino do lixo ...... 107 Tabela 14 – Indicadores de moralidade e morbidade – Município de Maracaçumé ...... 112

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1. Introdução

O projeto Percepções e Usos da Água em Pequenas Comunidades: Uma Abordagem Antropológica insere-se na abordagem analítica que busca estabelecer vínculos e conexões entre as diversas dimensões da vida humana que, ao longo do processo de modernização, foram sendo historicamente fragmentadas em especialidades e esferas autônomas. Desta perspectiva, a investigação sobre a água, embora esteja sendo realizada sob o ângulo das práticas em saneamento e saúde, mantém-se no horizonte abrangente da compreensão das vivências cotidianas que expressam e constituem as práticas e os sentidos em torno deste fenômeno, ao mesmo tempo, físico, social, político, econômico e cultural. Afinal, as políticas públicas em saneamento e saúde buscam interferir na vida cotidiana das populações contempladas melhorando sua qualidade de vida por meio do incremento das condições materiais de habitabilidade. Freqüentemente, contudo, suas ações não conseguem atingir os resultados esperados, mesmo quando as realizações tecnológicas são acompanhadas por programas educativos, revelando a face pragmática da importância de se compreender as práticas incorporadas, o estilo de vida e as relações sociopolíticas daqueles que se apropriam de tais empreendimentos.

2. Objetivos

2.1. Objetivo Geral

Esta pesquisa tem como objetivo geral compreender as ações de saneamento público, notadamente de implementação de sistemas de abastecimento de água, em suas conexões e seus desdobramentos no modo de vida e nas condições de saúde das populações envolvidas. Visa, ainda, a contribuir para a crítica qualitativa dos indicadores de vigilância ambiental em saúde usualmente presentes nas avaliações das políticas deste setor e para a 9

melhor compreensão por parte dos prestadores de serviço da relação entre a água e a proteção da saúde humana.

2.2. Objetivos Específicos

Para atingir o objetivo geral da pesquisa, procurou-se observar as seguintes dimensões específicas 1:

1. Percepções e atitudes em relação à água e seus usos (sistemas de classificação, tipos de uso, relações com espaços de armazenamento e cursos d’água); 2. Tipos de relações sociais propiciadas pelos sistemas de abastecimento de água implantados (novas áreas de lazer, mudanças na convivência familiar e comunitária etc.); 3. Percepções e usos dos equipamentos e tecnologias implantados; 4. Sistemas de classificação e condutas relacionadas ao lixo; 5. Tipos de convivência com esgotos e suas destinações; 6. Representações sobre doenças e práticas de cura, focalizando as doenças oriundas do ambiente contaminado; 7. Padrões de higiene e alimentação; 8. Padrões de organização comunitária e formas de associativismo; 9. Percepções da relação entre população atendida por sistemas de abastecimento de água e prestador do serviço.

Em cada uma dessas dimensões buscou-se identificar os princípios, idéias e valores que as norteiam, considerando a diversidade de sujeitos e de instituições sociais, com especial atenção aos problemas e às melhorias identificados pelos moradores, líderes comunitários, gestores e técnicos após a implementação dos sistemas de abastecimento de água. Tratava-se, portanto, de

1 Estes objetivos específicos foram inicialmente concebidos durante a elaboração da proposta metodológica sócio-cultural para avaliação do impacto de políticas de saneamento na saúde, realizada pelos membros da equipe deste projeto, integrando uma equipe de profissionais de diferentes inserções acadêmicas e que veio a ser publicada em Brasil, Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. 2004. 10

apreender as representações sobre as intervenções para o suprimento de água potável desde a perspectiva dos diferentes sujeitos envolvidos, considerando que a forma como os indivíduos concebem o mundo é fundamental para o modo como nele atuam. O isolamento das conseqüências destas ações sobre a realidade, tomando como parâmetro um ponto de vista exterior aos identificados no horizonte dos grupos identificados, não constitui o propósito da investigação sócio-cultural proposta. Tal recorte se adequa mais a pesquisas que visam, prioritariamente, a construir cenários de realidades do tipo “dever ser”, em detrimento de como a realidade “é”. Por fim, a investigação contemplou, nos limites da pesquisa de campo, as múltiplas mediações políticas que envolvem a implantação de sistemas de abastecimento de água, tais como, conflitos e negociações entre poderes constituídos e emergentes, usuários e técnicos, líderes e gestores, e moradores e excluídos, procurando compreender de que forma o acesso aos serviços públicos básicos, um direito assegurado pela Constituição, é interpretado pela população e em que medida traduz-se, ou não, em sentimentos de inclusão social e novos padrões de cidadania.

3. Revisão da Literatura2

As práticas relativas à água possuem características que só podem ser plenamente apreendidas mediante a elucidação das lógicas e dos padrões socioculturais em que são atualizadas. As interpretações e vivências que os grupos sociais atribuem a essas experiências adquirem significados de acordo com contextos culturais e processos sociais específicos. O estudo antropológico de populações atendidas por sistemas de abastecimento de água visa a favorecer conhecimentos e entendimentos sobre os usos, os valores e os sentidos que diferentes grupos imprimem ao saneamento, às noções de saúde, doença, limpeza, sujeira etc. Trabalhar a dimensão

2 Tal revisão de literatura tem sua origem no âmbito da elaboração da proposta metodológica sociocultural para avaliação do impacto de políticas de saneamento na saúde mencionada na nota 1. 11

sociocultural das medidas destinadas a fornecer água potável a uma dada comunidade significa acordar importância a aspectos que, ao serem negligenciados, limitam a compreensão dessas ações de saneamento, implicando perdas substanciais em eficácia e efetividade. A realidade possui inúmeras facetas que escapam aos modelos estatístico-matemáticos de mensuração e só podem ser apreendidas por meio da observação direta dos comportamentos e das vivências e subjetividades partilhadas no cotidiano. Trata-se de uma realidade pouco evidente, envolvendo crenças, valores, idéias, sensações, afetos dificilmente quantificáveis, mas fundamentais em qualquer tentativa de entendimento dos significados e das cadeias de causalidade nos quais se inserem as práticas e as experiências humanas. Assim, investigar as implantações de sistemas de abastecimento de água sob o prisma mais específico da antropologia é crucial quando se deseja proporcionar uma perspectiva mais abrangente dos fenômenos aos quais essas medidas se vinculam. A abordagem antropológica privilegia as relações cotidianas, o sentido, a significação, a dimensão valorativa dos fatos observados, tendo por referência a lógica própria à cultura na qual as práticas humanas estão inseridas. Desse modo, em muito pode contribuir para alargar a compreensão das intervenções públicas para o suprimento de água potável, que vêm sendo concebidas e avaliadas quase que exclusivamente nos limites dos conceitos técnicos da engenharia e do saber médico-científico. A importância da dimensão sociocultural vem sendo recentemente reconhecida em diferentes pesquisas no âmbito de outros campos de produção de conhecimento, dentre os quais se destacam, para o tema central de interesse deste projeto, a engenharia civil e ambiental. Em estudo na localidade de São Sebastião, no Distrito Federal, Rissoli (2001) verificou que não houve a interrupção do ciclo de contaminação da população no que se refere à água e ao esgoto, mesmo após os investimentos públicos em sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Uma parcela significativa da população de São Sebastião continuava consumindo a água dos poços, em detrimento da água disponibilizada pela companhia de saneamento do Distrito Federal (CAESB, Companhia de Água e Esgoto de Brasília). As alegações apresentadas para esta escolha foram, entre outras, a 12

qualidade da água da CAESB que, na opinião dos moradores que responderam ao questionário na pesquisa, tem gosto ruim, tem muito cloro, parece leite, é salobra, quando cozinha a panela fica preta; além do preço da água. Diagnósticos deste tipo vieram a revelar a importância da dimensão não técnica do planejamento das ações de saneamento. Conhecer o modo de vida e os valores da população revelou-se tão importante quanto a definição da obra de engenharia a ser realizada. Esta ampliação de horizonte vem se constituindo numa orientação com forte presença na engenharia civil e ambiental. Trabalhos como os de Moraes e Menezes (s/d), que afirmam a importância da compreensão do imaginário social na implantação de projetos de educação ambiental, e de Bernardes et al. (2002), propondo modelos de planejamento em saneamento que levam a sério os determinantes sociais, são indicadores significativos da transformação que está em curso nas ciências tecnológicas. Por tal mudança de concepção, a população a ser beneficiada vem sendo reconsiderada em sua condição de sujeito ativo que deve interagir e se apropriar das diferentes ações de saneamento a partir de seu horizonte cultural, tanto nos momentos de concepção, planejamento, execução e gestão das políticas públicas, quanto no que concerne ao modo como as compreende e delas se utiliza na sua vida diária. Sendo longa a tradição dos estudos antropológicos na investigação da diversidade cultural e social dos grupos humanos, a antropologia dispõe de um rico arsenal teórico e metodológico para orientação de pesquisas no âmbito das representações e interações sociais em suas múltiplas dimensões. A temática da água não tem sido objeto de investigação nos termos propostos neste projeto, a maior parte das investigações das ciências sociais inserem-na nos estudos sobre formações sócio-religiosas, observando seu lugar em cosmologias mágico-religiosos, tendo como inspiração os textos clássicos de Frazer (1982) e Durkheim (1989)3, e nos estudos sociológicos sobre manejo de recursos hídricos e sustentabilidade4.

3 Uma exceção a esta tendência é o número temático sobre os Usos Sociais da Água publicado na revista Etnográfica em Maio de 2003, Vol. VII, número (1). Portugal, Centro de Estudo de Antropologia Social. 4 Para os interessados nesta abordagem sugiro a consulta das teses e dissertações produzidas no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. 13

Assim, no que se refere ao conteúdo específico deste projeto destacam-se os trabalhos produzidos em: 1. antropologia da saúde; 2. antropologia da política; e nos chamados 3. estudos de comunidade.

3.1. Antropologia da Saúde

A preocupação com a temática da saúde, embora tenha ganhado impulso nos anos 1970, está presente desde os primeiros trabalhos antropológicos. Os estudos de W.H. Rivers, datados da segunda década do século passado, representam iniciativa pioneira no campo da antropologia médica. Rivers – antropólogo, médico e psicólogo – constatou, a partir do seu contato com povos então chamados primitivos, que as elaborações culturais sobre as causas das doenças seriam a principal chave para a compreensão das distintas noções de doença, diagnóstico, prognóstico e cura (RIVERS, 1924). Tal diversidade de causas foi por ele classificada em três categorias: (1) a da ação humana, traduzida na crença de que a doença ocorre devido à ação levada a cabo por um ser humano (feitiço, bruxaria e outras formas de magia); (2) a da ação espiritual ou sobrenatural, que atribui a causa da doença à ação de algum agente não humano (espíritos, divindades e outras formas de personificação do sobrenatural); e (3) a das forças naturais, que engloba a crença nas causas naturais como fator provocador das doenças (ação de organismos vivos, do fogo, do calor e do frio etc.). Assim, Rivers verificou que as explicações sobre os fenômenos que levam à perda das forças vitais e à morte, embora não orientadas pela racionalidade do saber médico, revelam-se sempre portadoras de um esquema lógico se consideradas no contexto social no qual se manifestam. Ainda hoje, em que pesem as críticas à sua abordagem, o campo da reflexão entre a ordem biológica e a ordem cultural mantém conexões de continuidade com as linhas estabelecidas por Rivers, enveredando por investigações em torno de, por um lado, formas de racionalidade e de classificação simbólica e, por outro, de representações acerca da doença, da anatomia e das práticas de cura. A presente pesquisa colocou-nos o desafio de não apenas de avançar nesta temática em contextos socioculturais não explorados, bem como de esboçar uma nova linha de reflexão que conecte, em torno dos problemas específicos 14

postos pelas medidas de abastecimento de água, os conhecimentos alcançados nos trabalhos já consagrados. Estes versam principalmente sobre as relações entre doença e malefício (EVANS-PRITCHARD, 1937; BASTIDE, 1971), doenças e processos de cura (ZIMMERMAN, 1980; KNAUTH, 1991), relação entre médico e paciente (KLEINMAN, 1980; YOUNG, 1982; LOYOLA, 1984), hábitos alimentares (PEIRANO, 1975; WOORTMANN, 1978), representações sobre o corpo (IBAÑEZ-NOVIÓN, 1978; BOLTANSKI, 1979; LEAL, 1995) e a pessoa (MAUSS, 2003; DUARTE, 1986), classificações sobre puro e impuro (DOUGLAS, 1976; DUMONT, 1966) em diferentes realidades culturais e momentos históricos. Tratava-se de explorar as interfaces entre as dimensões abordadas nos diferentes estudos, de modo a mapear realidades que só ganham visibilidade quando consideradas em conjunto. As noções de higiene, de limpeza e de sujeira assumiram relevância especial nesta investigação por terem, na reflexão orientada pelos dados da pesquisa de campo, se apresentado como indicadores da mediação entre espaço público e privado, indivíduo e coletividade, corpo e ambiente, razão técnica e razão simbólica observada na classificação das águas e no seu manejo em Granjeiro (CE) e Maracaçumé (MA). Neste sentido, são tratadas no diálogo entre etnografia e teoria desenvolvido na “Conclusão”. Por ora cabe apresentar, em linhas gerais, o modo como os estudos antropológicos têm abordado tais temáticas por ser esta orientadora das interpretações propostas nesta investigação. Os trabalhos de Mary Douglas (1976) e de Norbert Elias (1993) são referências centrais neste debate. Nos seus estudos, Douglas propõe um entendimento das classificações de puro e impuro, sujo e limpo que se ancora na hierarquia ordenadora das relações sociais e simbólicas. Assim, a definição de sujo e impuro não adviria de qualidades intrínsecas às coisas e pessoas, mas sim das interações entre elas em uma totalidade abrangente. Desta perspectiva, sujo e impuro é o que se encontra fora de lugar em determinado sistema, ou seja, o que expressa a desordem no universo ao qual pertence e por isto é evitado. Assim, os elementos viscosos, por não serem nem líquidos nem sólidos, suscitam ao contato visual e físico reações de asco e nojo em sociedades que operam a partir daquele princípio de classificação. Semelhante posição liminar também 15

explica, em sua proposta, a categoria de alimentos considerados perigosos e por isso proibidos no Levítico (1976) – uma abordagem que tem sido atualizada para os estudos dos alimentos considerados “remosos” em diferentes regiões do Brasil (PEIRANO, 1975). Longe de operar com elementos fragmentados e dotados de significado em si (seja este material ou simbólico), a limpeza e a sujeira são consideradas a partir de seu lugar relativo em um sistema simbólico, mas nem por isso menos concreto, que é apreendido na experiência de uma só vez em sua totalidade. Se as elaborações de Douglas nos permitiram compreender a realidade encontrada nos estudos de caso sob o ângulo sistêmico, os trabalhos de Elias (1994) nos remeteram à reflexão sobre a aquisição das práticas cotidianas, do habitus, dos costumes. A discussão do processo de longo prazo de incorporação das regras comportamentais de higiene pessoal, do pudor, dos modos à mesa, do controle das manifestações corporais, de etiqueta e decoro nas relações sociais foram por ele abordadas como fundamental ao entendimento do processo civilizador que remonta às raízes da modernidade. As conexões entre discurso e prática, entre o fazer e o dizer ganharam densidade ao serem remetidas necessariamente a certa profundidade temporal, individual e coletiva, avessa às ações campanhistas e emergenciais. Ainda, as práticas ao serem apresentadas por Elias a partir de seu enraizamento no corpo, como uma regra vivida e não pensada (BOURDIEU, 1995) nos possibilitou construir novos sentidos para a não eficácia das chamadas ações de “conscientização” sobre o uso da água verificada em campo.

3.2. Antropologia da Política

Entre os inúmeros escritos sobre a temática da política, aqueles que se apresentam com maior rentabilidade analítica para os interesses desta pesquisa são os que buscam compreender os significados da vida política sob o ponto de vista dos próprios sujeitos envolvidos (PALMEIRA e HERÉDIA, 1995; BEZERRA, 1995; TEIXEIRA, 1998). A esta orientação inicial da pesquisa, vieram somar-se os estudos sobre a consideração do discurso na política, bem como o lugar específico das ações 16

públicas em saúde e saneamento como constitutivas de uma dinâmica de relações de poder, de conflito e de negociações singulares por se ancorarem nas conexões entre corpo e meio. A investigação sobre o discurso requer um tratamento que aborde sua dupla dimensão de discurso-sujeito e discurso-objeto, ou seja, sua capacidade de criar realidades ao ser instituído e sua condição de produto de disputas de autoridade sobre o mundo social. No entanto, a qualidade do discurso consagrado em documento de governo pode trazer armadilhas ao pesquisador que se distinguem daquelas pertinentes aos estudos de atos de fala (AUSTIN, 1990) e aos trabalhos desenvolvidos no âmbito da etnografia da fala (GUMPERZ e HYMES, 1986; FISHMAN, 1977). Não apenas pela fixidez e possibilidade quase infinita de interpretações que o registro escrito lhe confere, mas por tratar-se de um gênero narrativo específico que, a depender do documento, pode adquirir a forma de (i) apresentação referencial da realidade (os “relatórios”, “históricos” e “organogramas”) ou de (ii) texto legal-racional e impessoal (os “decretos”, “leis”, “portarias” e “regimentos”). Sobretudo, pelo fato desses documentos de política pública se constituírem, simultaneamente, em instrumento de poder, tecnologia política e agente cultural (SHORE e WRIGHT, 1997). Dito de outra forma, eles são parte dos instrumentos e das categorias centrais à organização das sociedades contemporâneas, dão dinamismo e constituem a “missão” da maquinaria de governo, bem como influenciam o modo como os indivíduos constroem-se como sujeitos sociais e políticos. Desta perspectiva, é preciso considerar em sua análise tanto os mecanismos lingüísticos que lhe são próprios, quanto os contextos extra-lingüísticos que possibilitaram sua instituição e que decorrem desse tipo singular de “texto cultural”. A consideração específica das políticas públicas em saneamento aportou a este debate um eixo discursivo que encontra nas analogias com a natureza seu dispositivo central de produção de verdade (no sentido foucaultiano), possibilitando que por tal procedimento suas instituições logrem retirar da negociação humana decisões que passam a ocupar “lugares sombreados no qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita” (DOUGLAS, 1998). Assim, frequentemente são construídas verdades inquestionáveis em nome de padrões técnico-científicos de avaliação da água, nosso foco de pesquisa, que 17

desautorizam os padrões orientados por visões e práticas mundanas qualificados como desconhecimento e falta de consciência.

3.3. Estudos de Comunidade

Nos anos 1940 e 1950 o “estudo de comunidade” foi um modelo de investigação adotado pela maioria dos sociólogos e etnólogos brasileiros, a partir de seus primeiros contatos com algumas obras representativas das ciências sociais americanas5. Estes estudos tinham como fundamento a observação direta de pequenas cidades ou vilas utilizando-se de técnicas desenvolvidas pela etnologia no estudo de sociedades tribais, a qual eram associadas as pesquisas de reconstrução histórica. No Brasil um número expressivo dos mesmos foi produzido. Em 1953, por exemplo, havia dezoito deles, entre publicados, realizados ou em andamento (MELATTI, 1983). O prestígio dessa forma de investigação “etno-sociológica” no Brasil explica-se por várias razões, dentre elas, a imensa vontade dos cientistas sociais de se verem livres dos modelos tradicionais de reflexão histórico-social, então vistos negativamente como “pouco científicos”; pois faltar-lhes-ia precisão e rigor, tanto teórico como metodológico. Os estudos de comunidade lhes foi apresentado como um modelo “científico” de investigação, pois traziam justamente precisão e rigor na observação e tratamento descritivo dos eventos. Outra razão do prestígio e forte motivação para o desenvolvimento de estudos de comunidade no Brasil foi a vontade dos cientistas sociais de contribuírem com elementos para “ação prática”: a intenção era a de oferecer aos administradores elementos seguros para orientá-los no planejamento de políticas públicas. Não se tratava apenas de conhecer a realidade, mas sim de agir sobre ela, ao menos nos setores que afetavam diretamente as possibilidades de sobrevivência física das populações e o seu ajustamento produtivo às condições econômico-sociais e culturais emergentes. Com os estudos de comunidade pretendia-se chegar a uma visão da sociedade brasileira, por meio da soma de muitos exemplos distribuídos pelas

5 Entre elas, particularmente influentes foram as monografias de Redfield (1941) e Warner & Lunt (1941). 18

diversas regiões do país. Os estudos estavam quase sempre voltados para temas específicos, como mudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes, educação, saúde e vários outros. Por exemplo, WAGLEY et al. (1950) elaboraram um projeto em que o estado da Bahia foi dividido em seis zonas ecológicas, em cada uma selecionando-se para estudo duas comunidades, uma tradicional e outra progressiva. As pesquisas tiveram a duração de dois anos, envolvendo equipes interdisciplinares, e foram patrocinadas pela Secretaria de Educação e Saúde do Estado da Bahia e pela Universidade de Columbia. Nas palavras dos autores do projeto, “uma finalidade fundamental desta(s) pesquisa(s) é fornecer uma base objetiva para planejamento dos programas de educação e saúde pública nas zonas rurais do estado” (WAGLEY et al. 1950). Desse modo, os anseios e expectativas de certos grupos operavam como um fator poderoso de desenvolvimento das pesquisas sociais. Os dilemas e tensões decorrentes de mudanças locais e globais dos sistemas econômico-sociais e culturais – sobretudo em núcleos de economia de subsistência em fase de desenvolvimento capitalista de produção, assolados pela pobreza, doença, analfabetismo, desorganização institucional etc. – impeliam os cientistas sociais a responderem afirmativamente aos apelos das autoridades para se engajarem em planejamento de desenvolvimento. Os estudos de comunidade foram comentados por vários autores. Algumas apreciações, como as de Otávio Ianni (1961) e Klaas Woortmann (1972), colocam fortes obstáculos à viabilidade do método. Entre as críticas apresentadas estariam a falta de conexão entre a comunidade estudada, tratada artificialmente como totalidade isolada, e a sociedade abrangente e o sistema de dominação vigente, levando o pesquisador a perder de vista certas relações fundamentais para a compreensão da realidade. Outra crítica é a do desdenho pelas expectativas da população local com relação às inovações propostas, privilegiando-se o conhecimento da configuração da estrutura econômico-social e dando-se pouca atenção às condições culturais de absorção de novas técnicas e empreendimentos. Nesse mesmo sentido, censuram-se os programas de desenvolvimento comunitário elaborados, pois teriam sido planejados apenas com base em dados objetivos relativos aos setores focalizados (saúde, educação, produção agrícola etc.), sem terem fundamento no conhecimento a respeito do 19

que as próprias pessoas pensavam e sentiam acerca de sua comunidade, dos seus problemas e de sua responsabilidade na resolução desses problemas. Ainda que o “estudo de comunidade”, tal como foi colocado em prática no Brasil nos anos 1940 e 1950, tenha se configurado num modelo de pesquisa que apresentou sérias limitações, há como resgatá-lo, atentando, certamente, para as observações de seus críticos. Nos estudos das comunidades que foram objeto de investigação, Granjeiro (CE) e Maracaçumé (MA), a abordagem estava centrada no sentido, na significação, na dimensão valorativa dos fatos observados, tendo por referência a lógica própria das práticas cotidianas. A pesquisa de campo foi orientada pela necessidade de considerar o universo investigado em sua totalidade, mas não tratada artificialmente como “totalidade isolada”, e sim com o objetivo de: mapear as cadeias causais envolvidas, direta ou indiretamente, nas ações de saneamento com ênfase na água; rastrear as complexas redes de relações locais e suas hierarquias (materiais e simbólicas), no contexto das quais as ações políticas públicas seriam implementadas, de modo a refinar, tanto na dimensão micro quanto macro, a compreensão das possíveis estratégias de atuação sobre a realidade. Os estudos de comunidade foram, assim, guias fundamentais para apurar a observação no trabalho de campo no que se refere aos modos de vida, relações cotidianas e seus significados em um espaço de convivências de base territorial (HARRIS, 1953; PIERSON, 1966; LEWIS, 1963; GALVÃO, 1955). Ao mesmo tempo, a leitura de seus críticos, ao apontar os limites e dificuldades desta abordagem, propiciou melhores condições para uma aproximação investigativa dos diversos aspectos da realidade num recorte local – município, bairro ou comunidade – articulada por um eixo de reflexão específico: a água.

4. Metodologia

O método de pesquisa de campo intensiva, próprio da tradição antropológica, foi o parâmetro desta investigação - embora a interface desta pesquisa com a avaliação das ações políticas governamentais tenha restringido a permanência em campo e exigido estratégias complementares de pesquisa, como

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veremos mais adiante. Neste o levantamento de informações dá-se prioritariamente por meio do contato íntimo e prolongado com os grupos investigados, envolvendo o aprendizado dos códigos e linguagem locais. Busca apreender o modo de vida dos grupos, englobando, a partir do olhar dos sujeitos, três dimensões principais: relações e práticas cotidianas, instituições sociais e visões de mundo6. Ainda, a pesquisa de campo intensiva reafirma a consideração do universo investigado em sua totalidade para: (1) dar conta das múltiplas causalidades envolvidas; e (2) conjugar as dimensões micro e macro da realidade. Para possibilitar a investigação por meio da pesquisa de campo antropológica buscando propiciar uma perspectiva comparativa foram realizados dois estudos de caso. Não se tratava de pretender representar o universo em miniatura ou de transformar essas áreas em laboratório dos cientistas sociais. Os estudos de caso almejam ser casos exemplares, no sentido de serem bons para pensar o problema em foco. Assim, a escolha dos municípios se deu a partir da construção de tipos gerais, tendo como critérios elementos que melhor permitissem explorar analiticamente as diferentes dimensões que compuseram a pesquisa: (1) tipo de intervenção de saneamento; (2) inserção regional; (3) porte populacional; (4) proximidade de cursos d’água. Sobretudo, porém, a escolha deu-se em função de já ter sido realizada uma viagem exploratória aos municípios de Granjeiro (CE) e de Maracaçumé (MA), que indicou um grande potencial para a investigação proposta. Ambos os municípios tinham sofrido recentemente ações de abastecimento de água e de melhoria sanitária domiciliar; localizam-se na região nordeste do país – que junto com a região norte concentram os mais baixos índices de desenvolvimento humano; possuem respectivamente 4.878 e 13.265 habitantes – o que permite otimizar o método de pesquisa de campo, apropriado para a investigação de contingentes populacionais de pequeno porte; e, por fim, possuem proximidade com cursos d’água, mas a água, embora abundante, apresenta características marcadamente distintas7.

6 Na metáfora utilizada pelo autor que é o paradigma da moderna pesquisa de campo antropológica, estas dimensões seriam a carne e o sangue, o esqueleto e o espírito da existência social (MALINOWSKI, 1978). 7 Em Maracaçumé (MA) a água é farta mas considerada de péssima qualidade, como pode-se observar na pesquisa exploratória. 21

A pesquisa de campo antropológica permite abordar questões que não são passíveis de serem tratadas pelo uso de instrumentos de levantamento de dados de rápida aplicação, tais como pesquisas de opinião e questionários sobre condições materiais de existência, tão necessários às pesquisas por amostragem. Consiste, em especial, de mapear as teias de significado8 nas quais os sujeitos vivem e as quais atualizam numa tensão permanente entre continuidade e mudança. Por sua natureza essencialmente compartilhada, os sistemas simbólicos, ou seja, aqueles que atribuem significado à existência humana e à sua inserção no mundo, podem ser acessados tanto por observação direta quanto por interação verbal. Assim, valores e sentidos, emoções e sensações são partilhados e negociados no dia-a-dia em suas diversas dimensões, adquirindo distintas formas materiais e encarnando-se em relações sociais diferenciadas. A vida cotidiana revelou-se o espaço e o tempo por excelência das construções e reelaborações, verbais e não-verbais, dos significados que possibilitam e orientam as interações entre os diferentes sujeitos, consistindo assim o que Schutz (1970) denominou “realidade suprema”. Para alcançar os objetivos propostos – compreender as intervenções de abastecimento de água e seus desdobramentos no modo de vida dos grupos sociais; e contribuir para a crítica qualitativa dos indicadores de vigilância ambiental em saúde –, o desenho da pesquisa de campo requereu a incorporação de ancoragens metodológicas complementares, envolvendo etapas, conteúdos e técnicas de coleta de dados distintas, Tal pluralismo deve-se, em especial, ao fato de não ser possível realizar uma pesquisa de campo de longo prazo como se faz nas pesquisas antropológicas acadêmicas que envolvem muitos meses e, por vezes, anos de investigação. A interface com as políticas públicas exige do pesquisador antropólogo que utilize técnicas de coleta de dados que são originárias de outras ciências sociais. Assim, as estratégias de coleta de dados utilizadas podem ser classificadas em dois tipos: produção de dados primários e pesquisa em fontes secundárias.

8 Para os interessados nesta abordagem antropológica, conferir Geertz 1978. 22

4.1. Produção de dados primários

A produção de dados primários comportou a obtenção de dados novos a partir da realização dos estudos de caso. O levantamento de informações nesta etapa contemplou três técnicas de coleta de dados:

4.1.1 Observação direta

Consistiu no levantamento de informações obtidas por meio de conversas informais individuais e/ou grupais e também na observação minuciosa de eventos e de comportamentos não verbais relacionados ao objeto de estudo. Por tal procedimento, buscou-se acessar dimensões de difícil comensurabilidade por serem rotineiras ou naturalizadas pela população e, freqüentemente, imersas em sistemas culturais desconhecidos no planejamento das enquetes convencionais. Aqui se privilegiou o próprio entendimento local do que seja adequado ou inadequado em termos dos vários aspectos presentes na avaliação dos serviços de saneamento e, em especial, os relativos à água. Assim, o desperdício de água, como previsto no projeto original, não foi avaliado estritamente por meio de medições hidrométricas, pois o maior ou menor consumo de água depende fortemente da visão que os usuários têm sobre escassez, abundância, ciclo de origem e destino das águas, além do custo e da classificação que se faz dos tipos de água (do poço, do rio, encanada, tratada etc.) e seus usos (boa para beber, para cozinhar, para banho, para lavagem de roupa etc.), bem como dos padrões de obtenção de limpeza pessoal e doméstica. A observação direta, portanto, visa a captar valores, atitudes, percepções, sentidos e experiências que fundamentam as visões de mundo e o dia-a-dia das populações com as ações de saneamento.

1. Grupos de discussão

Objetivaram obter informações por meio de entrevistas direcionadas a grupos selecionados a partir de determinadas características identitárias. Trata-se de uma “conversa com finalidade”, ou seja, possui um foco de interesse sobre o

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qual se desenrolará a conversa, tendo o apoio de um roteiro temático estruturado. Esta técnica explora as representações conscientes permitindo ir além das respostas estereotipadas, pois pressupõe um envolvimento prolongado dos participantes na discussão estruturada, criando condições para uma reflexão coletiva que transcende a soma das opiniões individuais. Deve ser potencializada na investigação junto a moradores das áreas objeto de intervenções, lideranças comunitárias, profissionais e técnicos do prestador do serviço de abastecimento de água. Procurou-se abordar em especial as opiniões sobre os serviços em suas diferentes fases no que se refere ao grau de satisfação, às respostas às expectativas, ao acesso às informações, à avaliação das tecnologias utilizadas, aos critérios de alocação de recursos e às mudanças ocorridas nas rotinas da vida local. Contudo, embora dirigidas, estas conversas dependeram sempre das ênfases dadas pelos próprios sujeitos envolvidos, cabendo aos pesquisadores ter flexibilidade para seguir as prioridades locais sem impor questões que não sensibilizem os participantes. Os grupos de discussão em Granjeiro fluíram como o planejado inicialmente e serviram como um importante aporte de informações durante a pesquisa. Foram realizados ao todo quatro grupos, sendo um na Serrinha e os outros três na sede municipal. Os Grupos foram realizados com homens e mulheres adolescentes, jovens e adultos, de diferentes classes sociais. O tema foi bem aceito pelos participantes e amplamente discutidos nos encontros, com duração média de pouco mais de uma hora9.

2. Entrevistas

Trata-se de um levantamento de informações por meio de conversas individuais, agendadas e apoiadas por um roteiro temático aberto. As entrevistas seguiram um esquema geral, incorporando temas adicionais que pareceram

9 O primeiro grupo ocorreu em 18/07/2005, contando com a participação de três homens adultos e quatro mulheres, além de dois adolescentes que encenaram uma peça onde o foco era a necessidade de se cuidar da água e não a desperdiçar. O segundo, em 28/07/2005, contou com a participação de sete meninas e um menino, todos adolescentes. O terceiro grupo foi realizado na Serrinha em 30/07/2005, contando com a participação de quatro homens e três mulheres. O quarto encontro ocorreu no colégio Gonzaga Mota no dia 04/08/2005 e teve a presença de três professoras, quatro alunos, e duas alunas. 24

pertinentes a cada um dos sujeitos em questão, prioritariamente, decisores e gestores em diferentes níveis: prefeitos e vereadores, gerentes de serviços, secretários estaduais e municipais. Por tal procedimento buscou-se informações concernentes à existência de participação e de controle social, de serviços de atendimento aos usuários, à relação entre partidos políticos e administração pública, aos critérios de alocação dos recursos, à disponibilidade e acessibilidade das informações, ao grau de desenvolvimento institucional (integração de serviços e das administrações estadual e municipal, programas intersetoriais, extensão das ações), às operacionalidade e manutenção dos serviços.

Em Granjeiro foram realizadas entrevistas com alguns representantes do poder público considerados importantes para nossa abordagem. Entre eles estavam o prefeito, o vice-prefeito, ex- prefeito e o secretário de Coordenação e Planejamento, que prontamente colaboraram com o trabalho. Em Maracaçumé foram realizadas um total de quinze entrevistas com gestores e decisores locais: uma com a ex-prefeita, uma com o secretário de gabinete do atual prefeito, uma com a ex-secretária de saúde, uma com a atual secretária de saúde, uma com a gestora da Secretaria Estadual de Saúde que assessora os projetos e ações da Secretaria de Saúde de Maracaçumé, um com assistente social que trabalha na Secretaria de Saúde de Maracaçumé, uma com a ex- secretária de assistência social, duas com técnicos da Secretaria de Agricultura, uma com o coordenador das ações do INCRA no município, uma com um técnico da Sercretaria de Obras, uma com a coordenadora do IEC (Informação, Educação e Comunicação), uma com o ex-gerente da Funasa em Maracaçumé, uma com um atual funcionário da Funasa em Maracaçumé e uma com um vereador, ex- coordenador do IEC.

4.2. Pesquisa em fontes secundárias

A pesquisa secundária implicou na reorganização dos dados disponíveis, configurando-se numa etapa importante da investigação, pois permitiu inserir a observação feita no local em um contexto maior, principalmente, o dos dados populacionais e históricos. Sua contribuição se ordenou em complementaridade e 25

em relação aos dados colhidos em campo por meio da observação direta, dos grupos de discussão e das entrevistas. Esta etapa pressupôs:

 Levantamentos bibliográficos e documentais (legislações, avaliações e diagnósticos, periódicos etc.);  Pesquisa em banco de dados e sites (IBGE, CNBB, partidos políticos, órgãos públicos etc.);  Levantamentos de dados junto aos órgãos da administração pública estadual e municipal, tais como secretarias de saúde, de educação, de obras e de meio ambiente, e empresas prestadoras de serviços de saneamento;  Pesquisa histórica (arquivos municipais e estaduais, acervos dos ministérios e bibliotecas)

Para assegurar eficácia máxima à pesquisa de fontes secundárias, foi fundamental que a mesma tenha se dado em absoluta complementaridade com as visitas à campo, que foram precedidas de minuciosa preparação bibliográfica. O objetivo deste levantamento foi instrumentalizar os pesquisadores com as informações já disponíveis sobre os municípios, tendo continuidade tanto durante a pesquisa de campo, no que se refere aos dados municipais em eventuais arquivos e bibliotecas locais, quanto no retorno do campo, com relação a informações que anteriormente não foram consideradas relevantes, mas que ao seu término revelaram-se importantes.

5. Resultados Alcançados frente aos Objetivos e Discussão

5.1. Introdução

A pesquisa de campo em Granjeiro, município localizado na região do Cariri, estado do Ceará, teve a duração de trinta dias e ocorreu de meados de julho até meados de agosto de 2005, tendo sido precedida por uma pesquisa exploratória de uma semana em junho de 2004. Os resultados que são tratados 26

neste relatório têm por base as anotações de campo referentes às observações diretas realizadas pelos pesquisadores Luís Cláudio Moura (então aluno de mestrado) e Anna Davison (então aluna de graduação), bem como as entrevistas e os grupos de discussão que foram gravados e transcritos. Ainda, foi feita uma experiência com o uso de máquina fotográfica por alguns moradores que, junto com as fotografias feitas pelos pesquisadores, também compõem os dados primários aqui abordados10. De início há que destacar que a situação política do município de Granjeiro dificultou a abordagem das dimensões específicas relativas à participação popular nas ações de abastecimento de água, pois enquanto os pesquisadores estavam em campo o prefeito teve seu mandato cassado e a cidade esteve bastante tocada por esta questão, tornando o tratamento político das políticas públicas em foco delicado e ao mesmo tempo enviesado. Já a observação do cotidiano com relação aos usos, representações, sentimentos e valores no que se refere à água foi muito frutífera e constituiu o recorte central deste relatório. Em Maracaçumé foi muito positiva a observação das práticas cotidianas na cozinha, pelo fato da pesquisadora ter se hospedado numa pensão, o que também possibilitou a convivência com uma larga variedade de pessoas da cidade. A facilidade de acesso à prefeitura foi muito positiva, o que redundou na qualidade e diversidade das entrevistas com gestores locais. Tal dinamismo em campo corrobora a máxima de que, nos termos da tradição antropológica, uma boa pesquisa é aquela que, levando a maior quantidade de questões para o campo, ou seja, um bom “esquema mental” (MALINOWISKI, 1978), consegue no seu curso “ouvir” os dados e seguir a linha de investigação que a realidade etnográfica revelar como mais promissora. Em Maracaçumé, localizada no oeste do estado do Maranhão, a visita exploratória foi realizada de 27 de junho a 2 de julho de 2004 e a pesquisa de 19 de agosto a 09 de setembro de 2005. Quatro dias foram despendidos em São Luiz para coleta de dados secundários. Diferente da pesquisa em Granjeiro, aqui

10 De acordo com a monografia de Anna Davison, a experiência não alcançou os resultados esperados.

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o campo não foi desenvolvido por uma equipe conforme explicado na “Justificativa das Alterações do Projeto de Pesquisa”. Os dados relativos à Maracaçumé foram extraídos das notas de campo, registro fotográfico, entrevistas e levantamento documental feito por Carla Andrade (aluna de doutorado), pois a condução de grupos de discussão se tornou inviável contando-se com apenas um pesquisador.

5.2. Percepções e Usos de Água em Pequenas Comunidades: o caso de Granjeiro

5.2.1. Chegando ao Município

O município de Granjeiro está localizado na região do semi-árido do estado do Ceará, na macro-região do Cariri Centro-sul, na meso-região Sul Cearense, e mais precisamente na micro-região do Caririaçu, situando-se a 495 km da cidade de . A viagem de carro, da capital ao município, dura ao redor de oito horas, com rede viária em bom estado de conservação com exceções de pequenos trechos isolados, sendo o pior deles na estrada federal que liga a cidade de Várzea Alegre a Granjeiro11 (Figura 1).

11 Várzea Alegre, com vinte e oito mil habitantes, é a maior cidade em comunicação com Granjeiro, funcionando com um ponto de “apoio” ao município vizinho. Dois terços da estrada está localizada em uma pequena e íngreme serra, com diversas subidas e curvas fechadas. Esta é a principal via de ligação a Granjeiro, asfaltada apenas em 2002. 28

Figura 1 - Localização do município de Granjeiro (CE). O município de Granjeiro possui uma área de cem quilômetros quadrados, sendo um dos menores municípios do Brasil. Com uma altitude média de trezentos e cinqüenta metros de altura, seu território é predominantemente rural (76,69%) congregando 832 dos 1.116 domicílios12. A pluviosidade é de 1.236mm, com a estação chuvosa compreendida entre janeiro e maio, o que se chama localmente de inverno. Em uma temperatura média anual entre 24° a 26° C, sua vegetação é composta de Caatinga Arbustiva Densa, Floresta Caducifólia Espinhos e Cerrado. A população granjeirense encontra-se dividida de forma difusa por seu território. No entanto, existem dois focos urbanos principais em Granjeiro: a sede municipal e a comunidade da Serrinha, somados às comunidades menores e a sítios. Sua divisão política territorial não apresenta uma subdivisão em distritos, como costuma ocorrer na maioria dos municípios brasileiros. A localização geográfica da sede municipal está triangulada entre duas pequenas serras e uma planície. Entre as serras estão a cidade e o açude. A planície estende-se por área adjacente ao açude, onde há parcelas de terras utilizadas para agricultura. Chegando pelo caminho que vem desde Várzea Alegre, a cidade começa em um declive que, seguindo mais de 300 metros, leva ao seu centro. No local

12 Fonte: IBGE – Censo 2000. Acreditamos que essa proporção não reflita a situação do município, pois o número que está sendo considerado urbano é basicamente o dos moradores da sede do município, estão excluindo a localidade da Serrinha onde o número de moradores é semelhante ao da sede. 29

encontram-se a prefeitura, a igreja, o correio, a farmácia, a praça central, a maioria dos comércios e as melhores casas da cidade13 (Figuras 2 e 3).

Figura 2 – Vista do município de Granjeiro (CE).

Figura 3 – Região central do município de Granjeiro (CE).

Tabela 1: Dados Demográficos – Município de Granjeiro.

População Total do Município (Zona urbana e rural): 5.519 habitantes Proporção de menores de 05 anos de idade na população: 11,86% Proporção de adolescentes na população (10 a 19 anos): 26,25% Proporção de mulheres em idade fértil (10 a 49 anos): 31,20% Proporção de idosos na população (60 anos e mais): 09,08% (Fonte: IBGE – Estimativa 2004) Densidade demográfica (área geográfica: 100 km²): 53,74. Grau de urbanização: 23,31% (Fonte: IBGE – Censo 2000)

13 Não há rede hoteleira no município, é comum os visitantes se hospedarem na casa do ex- prefeito ou de outras autoridades. Na pesquisa exploratória realizada no ano anterior, a pesquisadora ficou hospedada na casa do ex-prefeito Dr. Soares, que reside em Fortaleza e vai a Granjeiro em torno de uma duas vezes por mês. Fixamos-nos na casa da presidente da Câmara Municipal. Esta casa antiga e simples, à beira do açude e em frente a umas das bicas mais movimentadas da cidade, foi a “base” de pesquisa em campo. 30

A sede de Granjeiro foi desenvolvida ao redor da igreja, o maior edifício do município, onde podemos verificar as casas mais antigas, algumas com quase cem anos. A cidade é o foco urbano mais antigo e melhor estruturado do município14. A rua principal é paralela a uma das margens do açude. Na sede há poucas ruas, podemos apontar basicamente três, paralelas e principais, ao lado da Avenida central e outras quatro pequenas ruas secundárias. Uma destas ruas centrais está localizada à beira do açude, a outra, do lado oposto, “delimita” o fim do núcleo urbano e o começo da área rural15. Além deste núcleo central, há um bairro mais recente (2001), construído em frente ao hospital (2003), um pouco afastado do centro. As principais atividades econômicas estão relacionadas aos pequenos estabelecimentos comerciais e à agricultura. O plantio está espalhado por todo município, sendo a falta de água um entrave ao desenvolvimento das plantações. O município estava em estado de emergência devido à seca verde16. Como o inverno deste ano caracterizou-se por baixa precipitação, no dizer local “o inverno foi fraco”, as plantações não produziram e a irrigação ficou limitada. Pudemos verificar vários leitos de rios temporários secos, assim como alguns pequenos açudes e reservatórios vazios. Na sede, a agricultura está concentrada logo abaixo da parede de contenção do açude do Junco, onde a terra é “irrigada” pela revência (passagem de água pela parede de contenção do açude). A água é distribuída através de canais, que vão se capilarizando pelas distintas parcelas de terras. Formando-se assim, um dos trechos mais férteis do município. As principais culturas são as de feijão, fava, milho, banana e arroz. Existe uma incipiente criação de animais, onde

14 Na sede do município existem umas quinze construções com entre sessenta e cem anos. Aparentemente não há consciência sobre o valor histórico destas construções e de sua preservação para a cidade. Um fato que ocorre em Granjeiro, mas pudemos ver em outras cidades da região, é que muitas pessoas cobrem a frente da casa de azulejos. Além da preferência estética, serve como isolante para o calor e a manutenção é mais fácil que a tinta. 15 Nesse limite urbano havia lixo espalhado, parte dele estava queimado. 16 A seca verde é um fenômeno que ocorre quando chove pouco, a vegetação nativa fica verde, mas a água é insuficiente para a agricultura. O jornal O Povo, Ceará, em 06 de junho de 2005, anunciava que setenta municípios estavam em estado de emergência devido à seca. A perda da safra estava estimada em 50%. Granjeiro estava entre os municípios atingidos. 31

se destacam caprinos, ovinos, galináceos e suínos. Há ainda, em menor escala, a criação de gado para leite e corte17. Já a Serrinha, a 9 km de distância do centro, apresenta um número de moradores semelhante ao da sede, a infra-estrutura é menor e a vila menos movimentada. Não foram observadas áreas de plantação nesta localidade, além da planta que dá origem aos trabalhos de sizal. A principal atividade da comunidade é o comércio proveniente do artesanato feito desta planta, através da cooperativa, segundo moradores do vilarejo e autoridades do município, organizada com a ajuda do Banco Mundial.

5.2.2. Um pouco da história de Granjeiro

A região do Cariri, onde se localiza Granjeiro, passou a ser regularmente povoada em 1703, ainda que se tenham notícias de incursões à região em meados de 1600, quando o governador geral de Pernambuco encarregou-se de anexar a região a sua capitania. Os povoados surgiram, em sua maioria, de missões de frades capuchinos que se instalaram na região a fim de catequizar os índios Cariri que ali habitavam. Entre 1660 e 1680, os colonos empreenderam uma guerra de expulsão dos indígenas da região. De acordo com Pinheiro (1992), em Retalhos do Cariri, o núcleo inicial de povoamento começou a crescer e se estruturar. No final do século XIX, temos a construção de um mercado que movimentou a economia local, com um comércio ligado a Crato e Juazeiro. Desta data também consta uma pequena indústria de tecido, abastecida pela produção local de algodão. Hoje em dia, o município não conta com nenhuma indústria, o mercado está deteriorado e apresenta pouca movimentação. Os demais sítios também surgiram da fixação de famílias vindas de ou Crato (cuja diocese pertence Granjeiro), muitos na segunda metade do século XIX. Exceção feita ao Sítio Serrinha, onde a maioria descende de

17 Na sede, todas as sextas-feiras um boi é abatido para alimentação. A quantidade de carne não é suficiente para o abastecimento local, os melhores cortes são comercializados logo após o abatimento, acabando nas primeiras horas da manhã. 32

famílias de Altos, no Piauí, que migraram para o Cariri em busca do padre Cícero (radicado em ) que lhes teria indicado ali o local para fixarem-se. Segundo Pinheiro (1992), David Granjeiro sucessor direto do “primeiro colonizador”18 do município, recebia o Padre Cícero em sua casa durante suas andanças no Cariri. Entre 1872 e 188919, o sacerdote atuou religiosamente na região, possuindo grande influência. Até o início do século passado, Granjeiro (então Junco) estava ligado ao município de Crato, que na ocasião era um importante centro comercial da região20. Em 1933, Granjeiro veio a tornar-se distrito de Caririaçu, município vizinho. Tornou-se município autônomo em 1957, em função da Lei nº 3.963 de 10 de dezembro de 1957, completando atualmente quase cinqüenta anos. A história do município no século XX está ligada ao desenvolvimento do açude que vem transformando-se, até chegar à forma atual. Entretanto, o reservatório tem seus primeiros anos ainda na época de Francisco David Granjeiro, com a construção de uma pequena barragem em meados do século XIX. Em 1932, através de reivindicações dos moradores ao poder público de Caririaçu e do Estado do Ceará, iniciou-se a construção, de fato, do açude. Por desentendimentos das famílias proprietárias das terras e envolvidas na obra, o projeto foi suspenso por mais de dez anos. Em 1946, de acordo com Pinheiro (1992), por iniciativa da Prefeitura Municipal de Caririaçu, iniciaram-se os estudos para um novo projeto ligado ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Aprovado, iniciou- se a construção que terminaria em 1952, ficando o açude completamente cheio apenas em 1955, quando sangrou pela primeira vez 21.

18 O município apresenta um mito fundador centrado em Francisco David Pereira Granjeiro (apontado por muitos granjeirenses como seu ancestral) que teria vindo de Barbalha (cidade próxima) em finais do século XVIII. Granjeiro estava em busca de um lugar onde pudesse se fixar e casar com uma moça pobre a quem sua família não aprovara. Encontrou no vale onde hoje Granjeiro se situa condições favoráveis para seu estabelecimento. De volta à Barbalha para buscar a pretendida, Francisco soube que ela havia se casado com outro. Diante disso, aceitou casar-se com uma prima, com quem os pais gostariam que ele se casasse e retornou para suas terras. 19 O túmulo de David Granjeiro é o único presente na igreja da sede. 20 O município não possui redes ferroviárias em suas terras, por muito tempo o deslocamento foi feito a pé ou por animais. As primeiras estradas que permitiram o uso de carros foram construídas nos anos 1930. 21 As águas do Junco são abastecidas pelas chuvas, dependendo de bons invernos para encher. Na ocasião de sua construção, segundo Pinheiro, as pessoas previam que sua capacidade estaria 33

O açude parece ter alimentado o orgulho dos granjeirenses desde cedo. Na ocasião da implementação oficial de Granjeiro como município, durante as comemorações de 1958, conheceu-se uma “Marcha”, de autoria de seu morador e comerciante José Dantas, na qual se cantavam as seguintes estrofes de exaltação à cidade: A nossa terra tem belas cascatas Tem jardins de matas e seus canaviais Suas paisagens são aquarelas Com bonitas serras e seus vegetais

Tem um açude, uma beleza A água limpa e peixes mil Com suas ilhas maravilhosas Recanto verde deste país.22 Entre o final da década de 1950 e o começo dos 1970 do século passado, o município apresentou significativo desenvolvimento. Foram construídas escolas, postos de alfabetização, Agência Postal e Telegráfica da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – EBCT, praças, trechos de rua com calçamento de pedras, postos de saúde, prédios para o serviço público e Cartório de Registro Civil. Na década de 1970 também chegou eletricidade à cidade, substituindo o motor gerador de energia que funcionava entre as 18 às 21 horas. Com a eletricidade, foi possível captar as primeiras transmissões radiofônicas na cidade. Entre 1973 e 1976, houve um desenvolvimento menos centralizado na sede do município. Nesta época foi construído o centro comunitário, o centro de abastecimento, um mini-posto de saúde na localidade dos Canabrava dos Ferreira, uma praça e escolas. Também foram recuperadas algumas estradas e trechos de rua ganharam calçamento. Alguns prédios públicos foram restaurados, foi introduzida a merenda escolar e implementados os benefícios do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) para o funcionalismo público. Na administração posterior, de 1977 até 1983, marcada pela cassação do prefeito, as melhorias públicas foram mais restritas. Neste mandato, houve a reconstrução do edifício da prefeitura, aquisição de prédios para os postos da então TELECEARÁ e da CAGECE (Companhia de Água e Esgoto do Ceará),

preenchida em 10 anos, se tivessem bons invernos. Sangrar é o termo local utilizado para o transbordamento do reservatório após atingir sua capacidade máxima. 22 Pinheiro, M. 1992:106. Quando estivemos no município não encontramos rios cheios ou fontes de água. É provável que na época de chuva existam as “cascatas” cantadas no verso. 34

reforma do mini-posto de saúde da Canabrava dos Ferreiras e a recuperação das escolas e estradas. No mandato seguinte, entre 1984 e 1988, foi construído um novo prédio destinado à delegacia de Polícia e Cadeia Pública e uma escola no sítio Santa Vitória. Com ajuda de verba do governo federal levantaram-se a atual escola Mauro Sampaio e o matadouro público. Consta desta época também a construção de uma lavanderia, que já não existe, de dois banheiros públicos, hoje abandonados, dois chafarizes, entre outras obras. Em junho de 2002, com as obras de saneamento do Projeto Alvorada, concluídas em 2003, localidades do município passaram a receber água tratada e a implementação e melhoramento do tratamento de esgoto. Esta última referência histórica é essencial ao nosso estudo, pois as obras de abastecimento e saneamento são centrais na pesquisa.

5.2.3. Um passeio pela cidade: sua rotina23

Entre as comunidades granjeirenses existe uma ligação que as transforma em uma comunidade maior e relacionada. Um dos fatores dessa integração é a concentração das instituições centrais à vida cotidiana na sede do município, como por exemplo, Prefeitura, Secretarias, Câmara Municipal, escolas, correio, hospital e farmácia24. O correio, além de sua função básica de “comunicação” acumula a de “agente financeiro”, pois é responsável pelo pagamento dos aposentados25.

23 O “tempo” e o “espaço” são peças importantes para a análise da relação existente entre a população e os usos da água no município. O período do ano e a localização de nossa “base” durante a pesquisa em Granjeiro influenciaram na construção deste estudo. A observação esteve condicionada por nosso estabelecimento na sede, onde residimos e passamos a maior parte do dia, como praticamente todas as noites. Hospedamos-nos em uma casa localizada na zona central da cidade, à beira da Avenida, em frente a um Chafariz, na rua subseqüente ao açude. O período no qual visitamos a cidade também condicionou nossa investigação. Estivemos no município entre julho e agosto (verão), época de seca. No inverno, como costumam se referir ao período, as chuvas do início do ano foram fracas. O açude da sede, assim como os pequenos açudes e barreiros, tinha seu nível abaixo da média. 24 As estradas de ligação interna do município são bastante precárias, pois além de estarem localizadas em uma região de serra, não estão asfaltadas ou calçadas. Em alguns trechos é bastante difícil o deslocamento de carro devido às pedras soltas e aos buracos. 25 Pudemos observar um grande movimento nos dias de pagamento, onde há pessoas de todas as localidades municipais. 35

Na zona central da cidade, uma das maiores de suas construções é o mercado municipal, que ainda mantêm uma aparência de meados do século XX. O lugar que antes era movimentado e um importante ponto de comércio para o município encontra-se calmo e em estado precário. Atualmente, existem poucos feirantes e com produtos escassos. Hoje, o movimento do comércio está difundido por diversos estabelecimentos locais, mercadinhos e mercearias, que apresentam movimento maior que o do antigo mercado. Apesar do tamanho reduzido da sede, observou-se uma diferença social entre o bairro novo e as ruas secundárias em contraste com a avenida central, onde estão as melhores casas e a maioria dos estabelecimentos comerciais e edifícios do poder público. Nas secundárias percebeu-se casas em piores condições que as do centro, apesar das casas em geral não se diferenciarem muito quanto ao tamanho e modelo de construção. A diferença foi observada, sobretudo, na preservação do espaço público em que se inserem. Os animais, principalmente cachorros, gatos e aves, andam soltos pela cidade. Pela manhã, o gado atravessa a cidade para pastar. Neste horário, existe a circulação de alguns poucos caminhões que cruzam a rua principal transportando moradores das demais regiões do município. A movimentação mais comum nas áreas de concentração urbana ocorre a pé, apesar de existir um relativo trânsito de motos. Este transporte substituiu em grande parte o uso de cavalos para o deslocamento de maiores distâncias. A frota do município não é grande. Em 2004 encontrávamos a seguinte situação: 18 automóveis, 5 caminhões, 5 camionetes, 1 microônibus e 24 motocicletas26. Em Granjeiro, o dia começa entre cinco e seis horas da manhã quando se inicia uma ruidosa movimentação pela cidade. Em geral, a comunidade tem seu maior tráfego neste instante, onde a população se desloca para trabalhar, ir à escola e pegar água nos chafarizes. Em torno do meio-dia, diminui o número de pessoas, ficando bastante parada a cidade. Há um novo aumento em torno das 16 horas, estendendo-se até cerca de 20 horas. É comum neste horário as pessoas ficarem em frente às suas casas conversando. A praça central em frente à igreja também apresenta um certo movimento, com alguns adultos e jovens

26 Fonte: IBGE, Ministério da Justiça, Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN – 2004. 36

conversando e crianças brincando (Figura 4). O movimento torna a diminuir, para quase extinguir-se às 22 horas, com exceção da Avenida e de alguns bares do centro, que são os estabelecimentos que mais concentram pessoas. Estes estão localizados principalmente na Avenida do açude ou em um ponto acima da praça central.

Figura 4 – Praça central da cidade.

A movimentação também aumenta no horário da entrada e da saída das crianças e jovens que freqüentam as escolas. Existem três escolas municipais na cidade e uma creche particular. As escolas, de ensino básico e fundamental, possuem considerável infra-estrutura e atendem a todo o município. Principalmente para o ensino fundamental, a sede recebe jovens das demais localidades do município27. Quanto à diversão, o local mais indicado é o açude. Pode-se nadar, tomar sol, conversar ou freqüentar os estabelecimentos comerciais. Existem quatro bares localizados à beira do reservatório. Um deles, menos movimentado, está fixado mais ao final da cidade, em uma ponta onde o calçadão não chega. Os outros três estão localizados na parte mais movimentada da Avenida28. Dois deles estão construídos à beira do Calçadão. O maior estabelecimento, chamado por alguns de churrascaria, foi um empreendimento realizado na construção da Avenida, sendo também o mais movimentado. Concorrendo com a popularidade do balneário, estão a praça central e a “rua dos bares”. Pela noite, este espaço, onde funciona boa parte dos comércios

27 Na cidade não há instituição de ensino superior, mas as pessoas cursavam o nível superior em Várzea Alegre. Em geral eram cursos relacionados à licenciatura. As pessoas com melhores condições financeiras se dirigem às cidades maiores como Crato, Juazeiro do Norte e Fortaleza. Parte do período em que estivemos em Granjeiro, as escolas estavam de férias. 28 Avenida ou Balneário é o nome dado pelos moradores ao novo calçadão do açude. 37

da sede, fica ocupado principalmente por homens, às vezes jogando sinuca no interior dos estabelecimentos ou, em frente a eles, conversando e jogando o que chamam de um jogo de tabuleiro chamado de caipira. Neste horário, não se encontra quase nenhuma mulher e poucas crianças brincam por ali. Apesar da concorrência, o lugar “oficial” para comemorações do município é a Avenida do açude. Durante os finais de semana o movimento não se altera muito, porém há a presença de moradores, em geral estudantes, que regressam à cidade nos finais de semana, ou mesmo turistas29.

5.2.4. Da rua para as casas

Quanto à observação no interior das casas, a pesquisa se deparou com dois pontos centrais: entrar nas casas e conseguir observar sua dinâmica. Inicialmente prevíamos que seria difícil entrar nas casas, porém este fato não se concretizou. Fomos convidados a tomar alguns cafezinhos, copos de água, lanches, almoços e também um jantar. Esta hospitalidade facilitou nosso trabalho, pois parte das vezes nos dirigiam diretamente para a cozinha das casas.

Tabela 2: Tipo de construção das casas. Famílias cadastradas: 1527 Fonte: SIAB (Sistema de Informação da Atenção Básica) - 2005 Tipo Número de casas Freqüência (%) Tijolo 1399 91,62 Taipa revestida 77 5,04 Taipa não revestida 50 3,27 Outros 1 0,07 Total 1527 100

Entretanto, mesmo com esta facilidade, o nosso objeto de pesquisa propriamente dito mostrou-se difícil de observar. Em geral, a relação com a água

29 Em dezembro também existe turismo com a festa da padroeira do município, onde há a visita de pessoas das regiões mais próximas. 38

no interior das casas ocorre de maneira íntima, como é o caso do uso do banheiro ou mesmo, com menos restrição, a limpeza da louça e da roupa. Dentro das dinâmicas internas possíveis de observação, a que apresenta uma característica de reunião e possibilita a observação, é a preparação de alimentos e o cozinhar. Foi comum a reunião em cozinhas, funcionando como espaço de socialização. Em nossa pesquisa, a cozinha tornou-se um espaço privilegiado devido à disposição dos cômodos nas casas. Em geral, possuíam um mesmo padrão de construção no posicionamento do banheiro e da área de serviço em relação à cozinha/copa. A porta do banheiro ficava na cozinha, em sua maioria ao lado da pia. A cozinha possuía uma porta aberta para o terreno da casa, onde muitas vezes se localizava a área de serviço. Mais de uma vez chegamos às casas, a convite dos proprietários e em horário combinado, e estivemos impossibilitados de observar as atividades cotidianas com maior profundidade. Em uma das visitas chegamos quando nossa anfitriã lavava a louça e fazia o almoço. Com a nossa presença, a moça parou imediatamente de fazer suas atividades para nos dar atenção. Dissemos que ela podia ficar a vontade e seguir com suas tarefas. Cortando logo o assunto e alegando ser falta de educação, parou de fazer suas obrigações para nos dar atenção. Situações semelhantes aconteceram no decorrer da pesquisa. Assim, embora acessível à nossa observação, as cozinhas adquiriam um ritmo distinto do dia-a-dia quando nela éramos inseridos. Outra atividade observada em campo foi o modo de se lavar a casa, que apresentava um modelo padronizado de execução no município. Em geral, utiliza- se rodo e baldes de água, em média de um a três. A água é jogada no chão e com um rodo vai percorrendo toda a casa tirando a sujeira junto com a água. Não é costume varrer a casa antes, ou passar um pano. No final, a limpeza termina na porta da rua ou do quintal. Observamos esta atividade ser executada diariamente30. Em uma conversa, uma moradora disse que não adiantava varrer ou passar um pano molhado, pois a poeira era muita e assim a casa não ficava limpa. Na visita à dona Lúcia, sua filha lavou o chão, usando um balde com água

30 Era fácil a observação desta atividade, pois a limpeza terminava na porta da rua. Em visitas à serrinha e no sítio do seu “Pierre” o serviço foi feito enquanto fazíamos as entrevistas. Em breve passagem por Juazeiro do Norte, pudemos presenciar o mesmo método de limpeza. 39

e um rodo. Segundo a moça, utilizava um balde para o interior da casa e dois para a área externa que, apesar de ser menor, tinha um chão mais áspero. (Figura 5).

Figura 5 – Atividade de limpeza das casas. Dona Lúcia foi uma importante informante a quem fizemos algumas visitas e participamos de algumas refeições em sua casa (cozinha). A senhora, casada e com quatro filhas adultas, trabalha para prefeitura como copeira e faxineira, além de cuidar junto com o marido de uma pequena parcela de terra arrendada. Em uma ocasião, Dona Lúcia comentou que há dois anos atrás, quando não havia água encanada em sua casa, roubava água de um vizinho que possuía um poço. Afirmou que não era a única que o fazia e que outras pessoas também pegavam água deste poço, pois este não possuía um cadeado em sua porta. Em uma de nossas conversar, indagada sobre o açude, assim como a maioria dos moradores, a senhora declarou que a água do açude era uma água grossa, sebosa e que por isso não a utilizava para cozinhar e beber. Dona Lúcia comentou ainda que o marido necessitava lavar a caixa de água todo mês, pois formava um lodo, uma lama, se passasse muito tempo sem limpá-la. Outra prática difundida e constantemente citada é coar a água com um pano para tirar os ciscos e sujeiras macroscópicas. Ouvimos falar também de um método para manter a água da caixa livre de larvas de mosquito, no qual se consiste em colocar piabinhas para comerem as larvas depositadas no reservatório de casa. Dona Lúcia também nos visitou um dia. Em nossa casa, nos dirigimos ao quintal, que estava sujo e desorganizado. Ao ver o local, Dona Lúcia afirmou que conhecia a pessoa pelo quintal e que não beb[ia] água na casa de quem tinha o quintal sujo, pois isso refletia a higiene da dona da casa. 40

A relação com a água para beber apresenta algumas características comuns no município. De maneira geral, as pessoas não costumam ferver a água para a ingestão. O meio mais comum encontrado para purificar o produto é a cloração. Em todo o município encontramos nas casas frascos de cloro distribuídos gratuitamente pela Secretaria de Saúde à população. Entretanto, o produto não é usado por todos, como nos relataram algumas vezes em campo.

Tabela 3: Tratamento de água. Famílias cadastradas: 1527 Fonte: SIAB - 2005 Tipo Número de casas Freqüência (%) Filtração 203 13,3 Fervura 14 0,9 Cloração 1211 79,3 Sem tratamento 99 6,5 Total 1527 100

Poucas casas possuíam filtro de barro, sendo um dos motivos o seu preço. Um filtro em Granjeiro, dependendo do tamanho, custa entre 40 e 60 reais. Em geral, utiliza-se um reservatório de barro, o pote, muito comum nas casas, que deixa a água a uma temperatura mais agradável. A minoria destes recipientes possui uma torneira em sua parte inferior. Em geral, retirava-se água pela parte superior do pote com uma vasilha, ameaçando a qualidade do produto armazenado. É costume deixar a água assentar ou descansar de uma noite para outra para baixar o cloro, conforme nos foi explicado. Em uma das casas que visitamos na sede, após uma breve conversa, pedimos um copo de água. Para nossa surpresa, o rapaz nos disse que a água era de um poço de seu quintal. Em sua casa havia água encanada, mas preferiam beber a do poço. Para purificar a água disse utilizar o cloro distribuído pela prefeitura. Em outra casa visitada, onde havia encanamento apenas até a porta, próxima à comunidade chamada dos Cocos, a senhora declarou que utilizava o cloro distribuído para purificar a água. No entanto, afirmou que não gostava de usar o produto, pois ofendia o seu estômago.

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Notas de campo

No sítio do Brejo, uma senhora que utiliza água do poço para beber, comentou que não ferve nem filtra a água, mas que a clora. No entanto, com o decorrer da conversa, comentou que ela não coloca sempre o cloro distribuído na água que vai beber. Afirmou preferir a água sem cloro, que não gosta do gosto do cloro e que também lhe fazia mal. Comentou, levando a mão sobre o estômago, que o cloro lhe doía o fígado.

Em uma das casas, bastante pobre, de taipa e chão batido, também só havia água do lado de fora, pois o encanamento chega apenas até a porta. Devido ao custo, segundo a senhora, não teve condições de levar a água ao interior de sua habitação. Consumia a água encanada para beber e possuía um pote para armazená-la. Em outra casa que estivemos, localizada do outro lado do açude e bastante próximo à sede, encontramos uma senhora que morava sozinha com um filho adolescente e uma criança. A senhora, cuja casa de taipa não tinha água encanada, declarou que apanhava água no açude com baldes ou latões, apenas para dar descarga e tomar banho. Qualificou a água do açude como suja e sebosa, pois já haviam retirado roupas de pessoas mortas do interior do reservatório. Apontou também a existência de chiqueiros de porcos em sua margem. Para beber, disse que utilizava a água do Chafariz, localizado em frente à nossa casa, em torno de um quilômetro de distância de onde mora31. Nesta casa de taipa e chão batido, onde não havia luz e água encanada, possuía um banheiro construído há dois anos pela FUNASA. No entanto, a construção era precária, afastada da casa e não possuía água. Uma casa que tivemos bastante acesso foi a de nossa informante Vera e de sua mãe. Uma simpática mulher em torno dos quarenta anos que cuidava de sua mãe e era filha de um conhecido poeta no município, Odete Gregório, falecido em 2003. O imóvel estava localizado na região central da sede, na rua mais urbanizada da cidade. Em uma de nossas visitas, ocorreu um caso que representa com clareza a diferença entre prática e discurso. O quintal da casa possui diversas plantas que são molhadas diariamente com uma mangueira deixada aberta ao pé da planta. Esta senhora tem um discurso comprometido com

31 A senhora era uma ex-lavadeira, que atualmente trabalhava em casa de família. Indagada se usava cloro na água, disse que nunca havia recebido. 42

o combate ao desperdício de água e ciente de seus efeitos sobre o meio ambiente32. Entretanto, em uma ocasião, diferentemente do que ocorria normalmente, não nos chamou para entrar em sua casa e ver seu quintal. Segundo Vera, o motivo era porque estava há algum tempo com a mangueira aberta molhando as plantas. A mulher, que conhecia o tema de nossa pesquisa, nos disse de forma jocosa na frente de vocês não posso desperdiçar água. No entanto, esta não foi a primeira vez que presenciamos a mangueira ligada por longos períodos. Com o tempo, descobrimos que este discurso em relação ao uso da água era influenciado pelas ações educativas que o município havia passado recentemente. Basicamente o discurso incluía a questão da economia e o não desperdício da águas. Na sede além deste tema, havia referências sobre o uso do açude. Eram questões relativas à não contaminação do reservatório e de como mantê-lo limpo.

Fala do Prefeito quanto ao desperdício de água

“Existe esse problema que é no mundo todo, o desperdício. Que é uma preocupação minha em fazer esse controle ainda. Eu acho que aqui há um desperdício de dez a quinze por cento da água potável aqui ainda. E eu não admito e nem eu posso admitir porque a escassez de água está no mundo todo, vai acontecer já, já talvez assim... um princípio de colapso, e, aqui, nós temos um pouco de água e eu quero conservar esse pouco de água que existe no planeta”.

Entrevista em 29/07/2005.

A principal característica e referência sobre o trabalho de educação realizado para uma melhor utilização dos novos recursos foi a homogeneização do discurso, focando sobre o não desperdício da água. Em geral a questão sobre instruir água, termo local para desperdiçar, estava presente em praticamente todas as falas de nossos interlocutores.

32 Vera, que morava em uma das melhores casas e região da cidade, era filha de Odete Gregório, poeta reconhecido na cidade, falecido há poucos anos. 43

Tabela 4: Destino de fezes e urina33 Famílias cadastradas: 1527 Fonte: SIAB - 2005 Destino Número de casas Freqüência (%) Esgoto 45 2,9 Fossa 786 51,5 Céu aberto 696 45,6 Total 1527 100

Procuramos observar também a questão dos banheiros construídos pela FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) em meio à realidade precária de esgotamento sanitário em Granjeiro, como pode ser visto na Tabela 4. Em Fortaleza tivemos contatos com a FUNASA local e conversamos com um funcionário responsável pela verificação da efetivação das obras de Melhoria Sanitária Doméstica. Segundo nosso contato, a sede recebeu 51 kits. A Serrinha recebeu 58 exemplares. O Sítio Picada recebeu 37. O Sítio dos Patos ganhou 15 Kits. Por fim, Canabrava dos Ferreiras recebeu 35 unidades. Segundo o funcionário não foi a FUNASA que administrou o projeto no município, foi a CAGECE que executou o projeto Alvorada no Ceará, o município não administrava nada. Encontramos as melhorias sanitárias da FUNASA, tanto na área urbana como na rural. Principalmente nas áreas rurais, constatamos diversos kits de Melhoria Sanitária Domiciliar (MSD) em casas abandonadas, de taipas, e até em habitações que na ocasião da observação se encontravam em ruínas e abandonadas34. Nas casas abandonadas que possuíam os kits, verificamos que não havia mais o sanitário, a pia interior, o chuveiro nem o tanque externo. (Figuras 5 e 6)

33 Acreditamos que esse dado este já incorreto, pois praticamente não avistamos esgoto a céu aberto, e obtivemos o conhecimento que o número de residências com esgotamento no município é bem maior. 34 Quando o pesquisador Luís Cláudio Moura esteve em Pedro Avelino (RN) em pesquisa exploratória, pode observar a mesma situação. Em Granjeiro ouvimos algumas críticas quanto à implementação dos Kits que baseavam-se principalmente nos critérios de escolha da casa a receber o benefício. Um informante da Serrinha reclamou não haver ganhado a melhoria, alegando que sua casa era mais apropriada para receber o benefício do que algumas eleitas, assim essa escolha foi apontada como política. 44

Figura 6 (a) e (b) – Casa abandonada com MSD

5.2.5. Abastecimento de Água

Atualmente o município conta com um atendimento de abastecimento de água acima de 95% das residências35. Para atender a população, com o passar do tempo, foi necessário diversificar suas fontes conforme a região e as possibilidades viáveis. As diferentes fontes de origem das águas de Granjeiro se dividem principalmente em água do açude da sede, água do Chafariz, água de poços e cacimbas, água encanada de Caririaçu, água do açude da pomba e água armazenada da chuva em caixas de água36.

Tabela 5: Abastecimento de água – proveniência.37 Famílias cadastradas: 1527 Fonte: SIAB - 2005 Proveniência Número de casas Freqüência (%) Rede pública 307 20,1 Poço/Nascente 1170 76,6 Outros 50 3,3 Total 1527 100

A água do açude: sua importância e a diversidade de seu uso

O Junco possui uma atividade nova: fornecimento de água potável. A água encanada é algo recente, existe em torno de 10 anos na sede e de 1 ou 2 anos

35 Durante a pesquisa encontramos uma forte relação entre a água e a política local. Entre as conversa, entrevistas e grupos focais a relação água e política estavam intrincadas. 36 Em épocas de seca em anos anteriores uma solução encontrada para amenizar a questão foi a utilização de carro-pipa. 37 Essa distribuição não representa mais a situação do município. Acredito que este número não represente a realidade recente do município, pois constatamos que seguramente um número maior de famílias que recebem água encanada pela rede pública. 45

em alguns sítios. Esta função do açude foi aceita diferentemente entre as comunidades da sede e dos povoados que recebem esse serviço. No entanto, podemos encontrar outras funções que valorizam o açude dentro do município, como, por exemplo, a importância alimentar e econômica do Junco. Assim, o uso do açude merece uma atenção especial em nossa pesquisa devido a seus papéis múltiplos na vida da cidade, relacionando-o ao consumo de água para beber fornecida pela CAGECE (Figura 7).

Figura 7 – Vista do açude do Junco.

As áreas mais rentes às margens são utilizadas para o plantio de arroz, feijão, bananas, favas, milho, entre outros. No sítio Cocos, onde há boa parte das plantações do município, a irrigação é feita pela revência. Esse fenômeno irriga uma boa parcela de terra de diversos agricultores, sendo esta talvez a área de maior plantio contínuo do município. Muitas famílias tiram sua renda, ou parte dela, destas terras. Existem também plantações feitas ao redor do açude quando ocorre o rebaixamento de suas águas devido à seca, o que torna a área propícia a diversas culturas (Figura 8).

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Figura 8 – Vista das plantações na planície de inundação do açude.

No restante do município, é usada água de cacimba para a irrigação da agricultura. A irrigação em Granjeiro ocorre de várias maneiras. Para as maiores áreas, que não são muitas, encontramos a irrigação através de um aspersor, canhão como nos indicou um agricultor, movido por um motor a diesel ou eletricidade, sendo o primeiro mais comum (Figura 9).

Figura 9 – Aspersor utilizado na irrigação.

No açude a prática da pesca fornece outra fonte de alimentos e de renda para os moradores de Granjeiro. Alguns habitantes da sede são pescadores que além de pescar para o consumo próprio e da família promovem o comércio de peixe em Granjeiro. No centro da cidade encontramos “banquinhas” que oferecem o pescado local na principal rua comercial. O peixe também ajuda a mover a economia granjeirense como o principal38 e o mais pedido tira-gosto dos bares localizados na Avenida (Figuras 10 e 11).

38 Os moradores fazem questão de enfatizar que o peixe é do açude e que é muito gostoso. 47

Figura 10 – Atividade de pesca no açude. Figura 11 – Atividade de pesca no açude.

Outro aspecto que agrega importância ao açude na vida de Granjeiro é o seu valor como local de diversão e atração turística. A Avenida recém construída (2004/2005) à beira do Junco, segundo observações e considerações dos habitantes da sede, é a principal atração da cidade39. O orgulho em relação ao açude e da existência da Avenida ou Balneário aparece em quase todos os discursos que ouvimos (Figuras 12 e 13).

Figura 12 – Vista da Avenida. Figura 13 – Vista da Avenida.

Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação quanto ao açude40

39 O carnaval de 2004 foi o primeiro evento realizado na nova área de lazer. Uma das lembranças da festa que nos foi relatada era que o prefeito jogava água sobre os foliões para amenizar o calor. Em um dos finais de semana, ocorreu no local um bingo, promovido pela associação de moradores, onde o prêmio seria um engradado de cerveja e um bode. Estava previsto ainda para o mês de agosto, o concurso Garota Molhada. Este não aconteceu devido aos distúrbios políticos que passavam no município. 40 A visão de representantes do poder público foi um dos interesses de nosso trabalho. Como guia utilizou-se um questionário onde havia questões pertinentes aos empreendimentos e iniciativas encaminhadas por parte do governo. Entre os principais pontos indagados, perguntou-se sobre saneamento, promoção da saúde, auto-avaliações de governo e parcerias. Os entrevistados foram o Ex-Prefeito, o atual Prefeito, o Vice-Prefeito e o Secretário de Planejamento. Estes quatro representantes exerceram cargos públicos no governo durantes os últimos oito anos. Uma característica presente em todas as falas foi quanto a diferença entre o passado e o presente. 48

“Nós temos, no município, também com relação à água, o nosso açude, que, quando eu cheguei aqui, tinha era chiqueiro de porcos ao redor, não era bem tratada, a população não via isso como se fosse uma fonte econômica que é hoje, entendeu? Eles não viam que esse açude podia pudesse trazer aquela mudança mesmo de qualidade de vida para eles e que hoje a gente já vê diferente quando, na gestão do Doutor Soares, nós implantamos a questão do pólo de lazer. Né? Tem a parte do lazer, hoje tem os pescadores, né? Os artesões, os pescadores do município que dá alimentação às suas famílias através do açude, né? Com a sua pescaria e temos a água que embeleza, né? hoje é uma bacia muito bonita, bem feita. Um pólo de lazer que nós recebemos visitas de toda a região, entendeu? e a gente se sente feliz hoje por Granjeiro.”

Entrevista em 19/07/2005.

A atividade do turismo se reforçou com a construção da obra às margens do Junco. Constatamos que existe um turismo incipiente à cidade, restrito à visita ao açude nos finais de semana41. Outra atividade ligada ao turismo é o passeio de barco da Associação de Moradores. De fato, cremos que este é mais um projeto do que um fato. Durante nossa estadia observamos o barco sair poucas vezes. Uma delas para transporte de mercadoria e depois duas vezes conosco para conhecer o açude (Figura 14).

Figura 14 – Passeio de barco.

Em volta do açude pudemos avistar raros currais e chiqueiros de porcos. É corriqueiro encontrar animais passeando, a beira do açude, tomando água ou mesmo fazendo suas necessidades por ali (Figura 15). Encontramos mulas e cavalos sendo lavados no reservatório, bem como bicicletas, louças, entre outras

41 Este foi o caso de um grupo de uns dez jovens de Caririaçú, cidade próxima, com aproximadamente 15.000 habitantes, que havia ganhado uma quadrinha e recebeu como prêmio um dia a beira do açude. Nos finais de semana, o açude recebe algumas visitas de banhistas de outras cidades e moradores. À noite, quando não há festas em outros sítios ou em outras cidades, ocorre um movimento maior de seu principal bar (a Churrascaria), com caixas de som com forró a todo volume. 49

coisas diversas. É comum encontrar nas margens do Junco muitos caramujos, em geral mortos (Figura 16).

Figura 15 – Presença de caramujos no açude.

Figura 16 – Presença de animais à beira do açude.

Observamos um evento às margens do açude que nos chamou a atenção, foi a lavagem do intestino do porco. Segundo o menino que a acompanhava a mãe, indagado sobre o que a senhora estava fazendo, nos afirmou que estava lavando o fato. De um balde, a mulher tirou umas tripas e começou a lavar. Enquanto limpava o fato, fazia todo o tempo cara de nojo e movimentos como se estivesse com vontade de vomitar. A mulher ficou uns 20 a 30 minutos fazendo esta atividade. No final, após sua retirada, um bando de urubus que sobrevoavam o local pousou para se alimentar do que sobrou da limpeza do fato (Figura 17).

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Figura 17 – Presença de urubus ocasionados por limpeza do fato.

O açude é considerado tão importante para seus moradores que inspira narrativas mágicas e assume qualidades personalizadas, sendo considerado perigoso. Por diversas vezes ouvimos comentários onde eram dadas características humanas ao açude. Em geral, as características são negativas, quase sempre relacionadas com a morte, mais precisamente com afogamento, para muitos, assassinatos cometidos pelas águas traiçoeiras do Junco. Contaram- nos casos de incidentes no açude onde apareciam frases como: este açude é assassino, açude criminoso e quando o açude geme alguém vai morrer42. Tantas dimensões, como veremos, comprometem a aceitação dos moradores à água tratada do açude.

A água do Chafariz

A água do Chafariz é distribuída em quatro pontos espalhados pela sede municipal. Os pontos de água são construídos de forma padrão. São quatro torneiras, da altura de meio metro, localizadas dentro de “casinhas” de alvenaria, porém sem porta. Está água não é paga, pois vem de um poço e é de

42 No livro Retalhos do Cariri, existe um subcapítulo sobre os mitos do açude. Em nossa pesquisa encontramos alguns. Um destes mitos é sobre um bebê que, ainda pagão, foi jogado pela mãe no açude. Por não ser batizada, essa criança tornou-se uma cobra muito grande, como costuma ser enfatizado pelos moradores. Além de grande, esta cobra também é perigosa. De acordo com depoimentos, existem casos de ataques do réptil às pessoas no açude. Uma das informantes acabava de fazer recentemente um trabalho para a escola onde um capítulo era denominado Mistérios sobre as águas de Junco. 51

responsabilidade da prefeitura. Os chafarizes existentes na cidade apresentam diferentes estados de manutenção (Figuras 18 e 19).

Figura 18 – Distribuição de água do Chafariz.

Figura 19 – Outra fonte de distribuição do Chafariz.

A proteção dada às fontes não é suficiente para mantê-las livre de contaminação, sobretudo por animais. É comum ver cachorros, gatos e aves, que passeiam livremente pela cidade, tomarem água que escorre abaixo das torneiras, às vezes chegando a entrar nas casinhas43. Outro fato, isolado, mas que chamou a atenção, foi quando na ocasião da falta de água observamos uma criança, em torno de três anos, tomando banho no Chafariz.

43 O carro em que estávamos, estacionado logo em frente ao Chafariz, tinha sua rodas urinadas frequentemente por cachorros. 52

Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação sobre a água do Chafariz

“É o seguinte: quando foi implantado, por exemplo, foi implantado quando o Granjeiro era distrito de Caririaçú, foi implantado esse pequeno poço de água para abastecer algumas casas, daquelas pessoas que tinham uma condição, entendeu? E foi feito esse poço. No Governo de Vicente Tomé, de noventa e três à noventa e seis, foi implantado o Sistema de abastecimento d’água do Município de Granjeiro, com a industrialização (tratamento) que é aqui ao lado do açude... e, com isso, aquele poço, um poço pequeno que tinha aqui, feito há muitos anos atrás, eles colocaram lá uma setazinha dizendo que estava encerrado o atendimento através daquele poço, que seria da industria de água que tem no município, da CAGECE. No Governo de Doutor Soares, aí o Doutor Soares viu o seguinte: ‘quem vai botar água nas casas é quem tem condições de pagar. E este pessoal vai continuar com lata d’água na cabeça? Vindo de longe? Não. Eu vou reestruturar o poço, fazer uma limpeza nele e vou mandar fazer chafarizes na cidade para dar água ao pessoal, àqueles que não têm condição de pagar uma água, mas tem a água do ‘Chafariz’. E isso, ele fez, distribuiu vários chafarizes, né? Na cidade, reabilitou o poço e fez tratamento, como é feito o tratamento d'água que tem aí no Chafariz. Tem a outra água da CAGECE, a outra água da CAGECE só coloca em sua casa quem acha que pode pagar a água, né? Tem uma entidade que cobra mensalmente a água e tem muitas pessoas que não podem pagar”.

Entrevista em 19/07/2005.

A água do Chafariz não chega às casas, sendo necessário ir buscá-la na fonte. O maior movimento nesta fonte ocorre pela manhã entre 6 e 8 horas. Nestas primeiras horas do dia, as bicas começam a receber a visita dos moradores, que fazem fila para encher seus baldes. Apesar do fluxo se concentrar neste horário a fonte recebe a visita de moradores durante todo o dia, sendo o meio dia o horário de menos movimento e havendo no final da tarde um pequeno aumento da movimentação. Aparentemente, não há uma determinação de sexo e idade para as pessoas que pegam a água no Chafariz. Observamos homens, mulheres e crianças fazendo esta atividade. Em uma comunidade no Sítio Honorato, encontramos ainda uma caixa d’água, em torno de uns 20 m de altura, abandonada. Segundo a moradora, professora do sítio, disse que a caixa funcionou por um período curto de tempo e logo foi desativada. De acordo com a mulher, um funcionário explicou que seria necessário desativar o reservatório, pois estava atrapalhando que a água chegasse às demais localidades, que utilizavam a mesma rede. Nossa informante, explicou que a água armazenada na caixa vinha do Chafariz. Bastante contrariada com o desligamento da caixa, deu como o principal motivo da desativação do reservatório a gratuidade da água. Segundo ela, o projeto foi construído pelo “Projeto São José”. Este projeto do estado promovia a construção

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de obras de saneamento com uma contrapartida dada pelo município com mão- de-obra local.

O açude de Caririaçu: abastecendo a Serrinha

Na comunidade da Serrinha a água encanada que chega até a população não é captada dentro da área do município. A água vem da vizinha Caririaçu, onde há um açude maior que o encontrado em Granjeiro. A água que vem deste outro reservatório sofre o mesmo tipo de tratamento (CAGECE) que a água captada do Junco.

Notas de campo

Seu Geraldo chamou um colega que passava pela rua e perguntou se a água era boa. O senhor respondeu que sim e falaram que anteriormente era pior. Disseram que havia muita dor de barriga, principalmente entre as crianças.

Dona Rosinha disse que a água era boa, que não filtra e não ferve. Toma a água que vem de sua torneira.

Dona Terezinha, logo no início da conversa, falou que a água é boa, que não costumam ferver a água, nem filtrar. Falou também que como parece ser um costume difundido, muitas pessoas coam com um pano.

Poços, cacimbões e pequenos açudes: presentes em todo território

O território de Granjeiro é todo marcado pela existência de poços (Figura 20) e cacimbões secos, desativados ou em utilização (Figuras 21 e 22)44. Encontramos diversos usos para esta água espalhada pelo território, há casos que são utilizadas inclusive para beber e cozinhar. Esta foi por muito tempo a principal fonte de abastecimento da maior parte do município.

44 Os poços são mais profundos e mais estreitos, por vezes completamente fechado em sua boa. Em geral, possuem melhor isolamento em suas paredes. Os cacimbões são mais rasos com boca bastante larga, em geral de 2 a 3m de diâmetro, e sua água é visivelmente suja. 54

Figura 20 – Poço.

Figura 21 – Cacimbão em uso. Figura 22 – Cacimbão desativado.

É comum, sobretudo nas áreas mais baixas e planas, a utilização de cacimbões para a irrigação e criação de animais. Água destes poços é de cor esverdeada e visivelmente impura, com diversos corpos flutuando em seu interior, pois em geral são largos e não possuem isolamento adequado nem tampas45. (Para qualidade da água ver Anexos 2 e 3). Com menos freqüência, a água dos cacimbões é utilizada para lazer, ou mesmo como encontramos em poucos casos, para beber.

Notas de campo

A senhora (Sítio do Brejo) nos contou que só tem poço na localidade, que não tem água encanada. Em sua terra tem umas três cacimbas e um poço artesiano. Disse que usa a água da cacimba pra molhar as plantas. Indagada se dava outra utilidade para essa água, a senhora respondeu que também a usava para lavar a louça.

45 Em uma das visitas a uma das pequenas parcelas de terras próxima à sede verificamos a presença de um rato morto no cacimbão, utilizado somente para irrigação e criação de animais. Por isso, segundo o agricultor, não haveria problema, era só retirar o animal. 55

Apesar de ter a água encanada em casa, Dona Rosinha (Serrinha) lavava a roupa em um cacimbão. A senhora disse que o motivo era econômico, que a água encanada era paga e no poço de graça. Disse também que muitas pessoas lavam em um açude da localidade.

Percebemos que há uma grande quantidade de cacimbas e poços espalhados pelo município. Em algumas localidades tivemos a impressão que existe quase um poço ou cacimbão por casa.

Na extremidade leste, em uma região de comunidades menores, há um outro açude, bem menor que o da sede. Este não está localizado em nenhuma comunidade e fica distante uns oitocentos metros da comunidade mais próxima que é Serra Nova, não havendo nenhum contato visual. Na ocasião que o visitamos encontramos crianças se divertindo em suas águas, nadando e pescando piabas junto a suas mães que estavam lavando roupa. No caminho, encontramos um adolescente que havia ido buscar água neste reservatório com um burro equipado para transportar água com apoio para um recipiente de cada lado. Os açudes fazem parte de uma prática, que apesar das novas soluções, não foi abandonada.

Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação em relação aos açudes

“Uma outra coisa com relação à água, é que o município tinha apenas esse açude, né? Esse açude e o Umari, o açude aqui dos Patos e das Trairas ... e essa conversa toda de que precisava de água e que tinha que juntar... fazer pequenos barreiros para juntar água porque, com isso, resolvia o problema das comunidades, foi feito construído o açude Bacubari, construído o açude das Pombas, na gestão do Vicente, foi construído o açude da Raposa, entendeu? Teve ampliação desses açudes daqui da dos Patos e da Traíras, que, realmente, tomou mais água, mudou. Lá já tem o peixe pra eles, já tem a água, tem a água para os animais, tem pra eles, entendeu? Todos esses açudes são açudes novos e vieram por conta das parcerias, das instituições, dessas coisas (está falando sobre um projeto que ocorreu da parceria do município e do estado).”

Entrevista em 19/07/2005.

Quando os pequenos reservatórios, chamados de barreiros, normalmente usados para dar água ao gado, começam a secar, abrem lugar à outra atividade: a fabricação de tijolos. Com a retração da água, o local exposto apresenta um barro é retirado e colocado dentro de uma forma e deixado secando no sol. Os tijolos são feitos com a mesma forma, um a um (Figura 23).

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Figura 23 – Atividade de fabricação de tijolos nos barreiros.

A água da chuva: receita antiga, projeto novo

Armazenar água de chuva é um costume existente em Granjeiro, inicialmente feito de maneira improvisada e que recentemente faz parte das estratégias de combate à falta de água. Na comunidade de Serra Nova, encontramos o sistema construído pelo poder público para amenizar a seca. Assim como a Serrinha, o vilarejo está localizado no topo de uma serra, ocorrendo a mesma dificuldade para se achar água através da escavação de poços. No vilarejo utiliza-se a captação e armazenamento de água da chuva em reservatórios abastecidos pela água que cai sobre o telhado. Na ocasião, 6 meses após a estação chuvosa, tivemos acesso a uma caixa de captação, onde havia em torno de 20% da capacidade do reservatório. Esta solução é a mais recente utilizada pelo município para captação de água que, como constatamos, é o tipo de captação tradicionalmente usado pela população. Em uma de nossas visitas à casa de dona Lúcia, descobrimos que a senhora também armazenava água da chuva. Na casa da senhora não existia uma caixa de água construída pelo Estado. O armazenamento era feito através das calhas do telhado e colocado em um recipiente de uns 100 litros de capacidade. Como de costume declarou que não armazena a água da primeira chuva. Segundo dona Lúcia, como esta água era suja, sua destinação era apenas

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para lavar roupa. Ouvimos, diversas vezes, que a água da chuva também era boa para lavar os cabelos, deixando-os mais macios.

5.2.6. Lixo e Limpeza Pública

A coleta de lixo na cidade não é uma prática diária. Pudemos observar que o serviço existe de forma irregular na sede do município, onde inicialmente é colocado em barris abertos no meio da rua e depois coletado por um caminhão comum. Em geral, podem-se observar focos de aglomeração de lixo nas ruas do município (Figuras 24 e 25). Um dos locais que pudemos verificar uma grande quantidade de lixo foi em uma das margens do açude, um pouco mais afastado da parte central da cidade. Soubemos que houve campanha contra jogar lixo no açude e que alguns anos atrás houvera um mutirão de limpeza das margens do reservatório.

Figura 24 – Bueiro em mau estado e com lixo

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Figura 25 – Descarte inadequado de lixo.

Tabela 6: Destino do Lixo Famílias Cadastradas: 1527 Fonte: SIAB - 2005. Tipo Número de casas Freqüência (%) Coleta pública 327 21,4 Queimado/Enterrado 96 6,3 Céu aberto 1104 72,3 Total 1527 100 Não encontramos esgoto correndo pelas ruas em Granjeiro apesar de apenas pouco mais da metade do município possuir este tipo de saneamento e este está concentrado na sede e em parte da Serrinha (Tabela 4). Os poucos bueiros que existem estão concentrados na sede do município e em geral entupidos com lixo.

Notas de campo

O motivo de nossa visita à casa (Serrinha) era o fato da senhora ter em seu quintal um banheiro desativado com uma fossa. O quintal estava bastante sujo e havia lixo acumulado, assim como o quintal de sua vizinha. Indagada se havia coleta de lixo, a senhora respondeu afirmativamente, que a coleta era feita uma vez por semana. (...) vimos que um cano da casa da vizinha deságua no quintal, segundo Seu Geraldo a água vinha da cozinha.

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Um conjunto de ações recentes interferiu de maneira geral no município, estando mais forte em uma região ou em outra, porém sem deixar de afetar a rotina de todas. Entre estas podemos destacar a chegada da água encanada à quase totalidade do município e o esgotamento sanitário em parte dele. O saneamento, mais precisamente quanto ao esgoto, teve suas obras iniciadas em torno de quinze anos com as primeiras ações. Recentemente em 2003, como já mencionado, o município participou do Projeto Alvorada que atuou de maneira descentralizada nesta frente de trabalho. (Anexo 4).

Fala do ex-Prefeito sobre as últimas ações de saneamento

“Teve o Governo Federal, foi o seguinte: todo... todo o saneamento que teve aqui no município foram recursos do Ministério da Saúde, entendeu? Através do Governo do Estado, que trouxe os recursos, escolheu alguns municípios, entre os quais, eu tive a sorte, mas também a insistência, porque a gente estava (...) entendeu? E mostrava em reunião com o Governador, e mostrando... tentando sensibilizar o Governador para a questão do município, entendeu? Isso foi assim fundamental, entendeu? Agora o papel do Governo Federal, ele foi mais o financiador das ações, né? Porque o recurso era recurso federal. O Estado serviu como intermediário, mas quem foi na função mesmo de articular e pôr realmente as coisas ( ... ) quem sabe a necessidade da comunidade, somos nós da comunidade, né?”

Entrevista em 04/08/2005.

5.2.7. Saúde – Estrutura do Município

A estrutura de saúde de Granjeiro comporta toda sua população e por vezes atrai algum morador das redondezas do município. Granjeiro possui dois centros de saúde, duas equipes do Programa Saúde da Família e um hospital construído em 2003, relativamente grande. Está localizado fora da área central da cidade, em torno de aproximadamente 1 km de distância do centro46. Em 2003 o município contava com dezesseis médicos, cinco enfermeiros, cinco odontólogos, dezesseis agentes comunitários de saúde e com outros dezesseis profissionais de saúde de nível médio47.

46 Tivemos informações que a prefeitura estava tentando fechar um convênio com o SUS. 47 Fonte: Perfil Básico Municipal. Governo do Estado do Ceará. Secretaria de Saúde do estado do Ceará. 60

Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação quanto à saúde

“Nós fizemos questão, no governo do Doutor Soares, erradicar as casas de taipa da sede do município, entendeu? E que, graças à Deus tem acontecido. Muitas coisas tem acontecido. Hoje, é implantado um dos grandes hospitais que já deveria ser regional, por ser tão grande, entendeu? Que mudou a saúde do município, com a implantação do hospital. Treinamento agentes de saúde, implantação de dois PSF que faz cem por cento na comunidade, entendeu? Ele atende cem por cento de casa a casa, o médico com a enfermeira, de casa a casa”48.

Entrevista em 19/07/2005.

Tabela 7: Indicadores de Mortalidade e Morbidade49 INDICADORES EPIDEMIOLÓGICOS DE Granjeiro Ceará BRASIL MORTALIDADE SIM/SINASC - 2003 Números de óbitos de menores de um ano 0 3.413 57.532 Número de nascidos vivos e notificados 70 140.083 3.033.829 Taxa de mortalidade infantil (%) 0,00 24,49 18,91 Número de óbitos de mulheres em idade fértil notificados 1 2.405 63.902 Taxa de mortalidade materna (%) 0,00 51,40 50,66 MORTALIDADE PROPORCIONAL POR GRUPO DE CAUSAS SIM/SINASC – 2003 Algumas doenças infecciosas e parasitárias 0,00 6,01 4,15 Neoplasias 18,18 14,55 14,88 Doenças do aparelho circulatório 63,64 26,94 30,26 Doenças do aparelho respiratório 0,00 9,96 10,79 Algumas afecções originadas no período perinatal 0,00 10,96 7,38 Causas externas 0,00 14,93 13,99 Mortalidade proporcional por causas mal definidas (%) 31,25 25,22 12,88 MORBIDADE SINAN 2003¹ / SIAB – 1° SEM/2004² / SIH 2003³ Taxa de incidência de tuberculose ¹ (%) 0,00 49,25 41,74 Taxa de prevalência de hanseníase ¹ (%) 7,32 6,11 6,75 Prevalência de desnutrição em menores de 2 anos ² 7,65 8,70 6,13 Risco nutricional em crianças de 6 m a 6 anos (modelo 25,27 15,07 13,08 preditivo – 2000) Taxa de internação: por acidente vascular cerebral³ 77,12 44,54 51,66 por cetoacidose e coma diabético³ (%) 0,00 0,74 1,22 Por diarréia/desidratação em menores de 5 anos³ (%) 0,00 20,93 18,77 Por IRA em menores de 5 anos³ (%) 0,00 27,58 32,39

Não encontramos nenhum surto de doença específica durante nossa permanência no município. Soubemos que nos meses anteriores houve uma campanha contra o mosquito da dengue. Houve ainda um programa mais amplo

48 Os números oficiais coincidem com o observado em campo (Ver Tabela 2: Tipo de casa). Encontramos algumas casas de taipa no município, muitas delas estavam abandonadas, algumas haviam desabado. 49 Acreditamos que estes dados não correspondam a situação mais verossímil quanto à vida no município. Pode haver ocorrido algum problema, atraso, defasagem ou ausência de registro nas entidades responsáveis. O índice 0,0 de diarréia, assim como outros, chama a atenção. 61

de educação, implementado conjuntamente às obras de saneamento50. Os casos que mais tomamos contatos foram de diarréia, mas ligados às narrações sobre a época em que não havia água encanada nas demais regiões. Ouvimos ainda um relato sobre hepatite na Serrinha, mas também como referência aos anos anteriores. Contudo, podemos antecipar pelas condições materiais e sanitárias observadas em Granjeiro que os dados da Tabela 7 não parecem ser condizentes com a realidade de saúde e doença dos seus moradores. O mais provável é que tenha ocorrido algum problema, atraso, defasagem ou ausência de registro nas entidades responsáveis. O índice 0,0 de diarréia, assim como outros, chama a atenção.

Opinião do Ex-Prefeito sobre a situação atual do município quanto à saúde

“E nós fizemos inúmeras e inúmeras reuniões nas comunidades para um diagnóstico do que realmente precisava aquela comunidade, de como a gente ia mudar a vida daquele povo. Então, isso a gente praticamente não tinha assistência médica. Depois vem a questão da implantação desse programa Saúde da Família aqui... os agentes comunitários de saúde e travar uma luta muito grande na questão da diminuição da mortalidade infantil... que era um problema muito sério, cultural também. Então com a municipalização da saúde, com a ampliação desse programa Saúde da Família, nós conseguimos mas a gente viu que só isso não era suficiente porque lá na área da saúde a gente tinha que, até uma situação muito complexa, né? Envolve o bem estar físico, psíquico, social, um dos fatores que contribui , vamos supor que um dos fatores era a questão da água. Então umas comunidades e ainda tem problemas de água. Nós colocamos eletrificação, nós estávamos com apenas dez por cento do município eletrificado dez por cento, só. Hoje, nós temos noventa e seis por cento eletrificada, né? Deixei totalmente eletrificado e tem a questão também do saneamento que nós fizemos na cidade, que era um problema seríssimo.”

Entrevista em 18/07/2005.

5.2.8. Sob o signo da pluralidade: Usos, práticas e reflexões

50 O Programa de Educação em Saúde e Mobilização Social (PESMS) foi um projeto que teve sua origem da necessidade de contrapartida do Estado do Ceará pela efetivação das obras de saneamento empreendidas pelo Projeto Alvorada. A CAGECE ficou responsável pela execução da atividade no Estado, englobando ao todo 10 municípios. No Projeto Alvorada, a FUNASA não executa o PESMS, sua função restringiu-se a aprovar, acompanhar e fiscalizar a execução do programa. Foram feitas algumas palestras e encontros promovidos pela CAGECE com o apoio do município e da associação de moradores. O programa foi executado com algumas atividades isoladas, em período reduzido e restringindo-se a abordagem do desperdício de água. Utilizou-se folders e cartazes para a divulgação das idéias pretendidas. A ação educativa e o comportamento dos moradores estão relacionados, ao menos no discurso. Existe uma opinião generalizada quanto à questão de evitar o desperdício, de acordo com a expressão local: Instruir água. 62

O município de Granjeiro está localizado em uma das áreas mais secas do país e marcado por problemas socioeconômicos e históricos relacionados, entre outros fatores, com a água. No entanto, apesar do quadro descrito, Granjeiro apresenta uma situação que aparentemente pode soar paradoxal. O município sofre com o problema da estiagem, porém possui diferentes fontes de abastecimento de água sobre seu território. Estas fontes são resultados de diferentes ações que ao longo do tempo foram empreendidas para o manejo do problema da seca. Apesar do modesto território do município, verificamos ao menos seis (6) fontes de abastecimento de água. Entre elas encontramos o Chafariz, o açude do Junco com a água encanada da CAGECE, a água encanada proveniente de Caririaçu para Serrinha, a água dos demais reservatórios do município, a água captada da chuva e dos cacimbões espalhados pelo município. Entretanto, não encontramos todas “estas águas” presentes ao mesmo tempo e na mesma comunidade. Sua composição e utilização variam conforme a localidade e oferta dentro do município, e, também, de acordo com a estação climática da época, no caso dividindo-se em verão e inverno. As estações produzem diferenças significativas quanto aos usos da água devido às limitações impostas pela ausência e pela alteração da qualidade da água provocada pela estiagem. Estas características nos levam a traçar diferentes usos das águas cruzando o espaço e o tempo para observar sua utilização. Estas diferenças se apresentam ou sobressaltam sobre a água utilizada para beber frente as demais atividades.

A contraposição açude e Chafariz: o caso da sede

A sede nos oferece um caso interessante de estudo, devido às inovações do Projeto Alvorada relacionadas com o tratamento da água do açude. Estas obras produziram dinâmicas novas, entre elas nos chama a atenção o comportamento constituído em torno da água do açude e do Chafariz. Encontramos uma polarização de atitude frente às duas águas do município de Granjeiro. De um lado temos a água boa e gratuita do poço em 63

contraste com a água paga do açude apontada como inferior. Podemos perceber que há uma atitude de negação e rejeição em relação à água do açude, reforçando a rejeição em consumi-la. Frequentemente nos deparamos com explicações onde não havia a elaboração de motivos de ordem “física” para a rejeição desta água, já que sua purificação com o tratamento era reconhecida no discurso, mas não o era na prática. Já a água do poço, dos chafarizes, era qualificada como boa, ou seja, tem uma positividade que incentiva o seu uso. O comportamento e os discursos quanto a água do açude em diversos momento nos pareceu contraditórios. Em geral, as pessoas reconhecem que o tratamento da CAGECE é efetivo e que a água estaria apta para ser ingerida. Entretanto, ao nível da prática não o fazem, e mesmo no discurso aparecem contradições. Apesar de respaldarem a qualidade do tratamento, se insistíssemos nas indagações, davam por entender que a água não estaria, de fato, adequada ao consumo51. Existem motivos declarados para não beber a água do açude, relacionados com a utilização do açude para diversas atividades. Em várias ocasiões ouvimos que a água do reservatório era suja. Entre os principais culpados, ou assim reconhecidos pela população, foram apontadas as lavadeiras que freqüentavam diariamente o Junco (Figuras 26 e 27).

Figura 26 – Lavagem de roupa às margens do Junco Figura 27 – Lavadeira à beira do Junco.

51 Uma de nossas interlocutoras, uma adolescente que acaba de participar de uma feira regional de ciência, onde seu tema foi a água, possuía diversas opiniões sobre o assunto, e nos afirmou que foram encontrados micróbios na água do Chafariz, 64

De fato, lavar a roupa fora de casa é uma prática comum e o hábito é praticado em todo o município. Além do costume, há a questão econômica52, pois utilizando a água encanada aumentaria o valor da conta a ser paga à CAGECE. (Figura 28). Na sede as roupas são lavadas nas águas no Junco, na Serrinha e em outras localidades são usados os barreiros e cacimbões, é muito comum ver pedras à beira de barreiros, pequenos reservatórios, utilizadas pelas lavadeiras.

Figura 28 – Medidor de consumo de água nas residências

A maioria das pessoas utiliza a água do Chafariz para beber e cozinhar. A do açude é usada para outras atividades.

Notas de campo

A senhora apanha água no Chafariz para beber. Disse que a água é boa, que tem um gosto bom e que as pessoas de foram falam que a água tem um gostinho doce. Disse que para as outras atividades, lavar roupa, lavar a casa, cozinhar, usa a água do Chafariz que armazena no pote.

52 Outra questão de fundo econômico levantada foi a duração do sabão, podendo segundo relatos, podendo durar até 4 vezes menos se utilizada a água encanada. Soubemos que o preço da água iria aumentar na época de 30 centavos para 40 centavos o m³. Uma solução apontada durante as conversas foi a construção de uma lavanderia. 65

O senhor não bebe a água do açude. Nos contou que o açude foi construído entre 1951 e 1954, sendo um dos motivos para não beber esta água o fato do reservatório ser velho. Alegou também que o açude é usado como praia, que se lava roupa e que o tratamento não é bom. Disse ainda que tem muita gente doente de ameba, que vem da água poluída.

A estudante havia feito um trabalho que ganhou a feira de ciência de sua escola, segundo a menina a água era um tema muito importante na cidade, para ela o açude era poluído. A poluição era proveniente do lixo jogado às margens do reservatório nos fins de semana. Para ela, a poluição havia aumentado com a construção da Avenida.

Entre outros motivos que causam repulsas, configuram-se também a presença de animais em suas margens, o banho no açude, a presença de algum chiqueiro, currais, do outro lado do açude na parte mais afastada da cidade.

Vice-prefeito comentando sobre a água do açude e a memória do reservatório

“Existe assim um certo preconceito com relação à água do açude e com a água do Chafariz. Essa água do Chafariz, as pessoas têm por ela assim uma admiração muito grande ... Então, as pessoas... por essa água do açude, na mentalidade das pessoas, se aquela água que existia, aquela questão daquele lixo, daquela coisa, as pessoas têm na cabeça isso, que essa água é uma água poluída. Mas essa água é:: é provado que essa água, toda semana, se leva essa água para um laboratório em Juazeiro, e é feita análise dessa água desse açude toda semana, que passa na estação de tratamento ali. Então, é uma água potável, normal para o consumo humano, igual a essa aqui que vem de três irmãos ali (Chafariz). Não é só por que, realmente, acha uma água mineral que sai das serra ali e as pessoas têm esse... preconceito. Mas... acredito que a própria empresa não iria colocar uma água para consumo, né? Onde ele tem a preocupação de, toda semana, estar fazendo aquelas análises, como essa aqui também é feita toda semana.”

Entrevista em 04/08/2005.

Em conversas com moradores, a restrição quanto ao preço da água encanada não aparece como os primeiros motivos declarados para não usá-la. Os principais motivos alegados para preferência da água do Chafariz eram seu sabor, sua cor e sua pureza. Havia também reclamações quanto ao uso da água do açude para o banho, pois ressecava a pele e provocava coceira.

Prefeito comentando a diferença de percepção dos moradores entre a água das duas fontes

“É aqui é assim, a pessoal ainda falta um pouco de consciência do entendimento de que água tratada, água potável tratada, ela acaba todos os riscos de doença. Mas as pessoas por influência não acham que a água que está com sessenta metros, sem ela passar pelo processo de tratamento, ela fica melhor que a do açude sendo tratada e que eu mesmo eu bebo água do açude, eu tomo água do açude todo dia, e eu acho que a água do açude é muito boa, bem tratada teve o pessoal aqui uma época da CAGECE, o pessoal que veio de Brasília e teve fazendo uma conscientização explicou para o pessoal, fizeram reunião para o para o povo, para as associações, explicaram que a comunidade consome as duas água mas que não faz diferença, as duas são de boa qualidade. Agora, eu prefiro a água tratada que é a água do açude, que ela 66

passa por um trabalho de química muito boa, né? E ela é tratada, então eu acho que eu consumo é dela.”

Entrevista em 29/07/2005.

O contato visual apresenta uma diferença significativa entre a água do açude e a do Chafariz. A água do açude chega pelo encanamento da CAGECE até a porta das casas, porém a partir de cada residência a responsabilidade pela infra-estrutura e armazenamento é de responsabilidade de cada morador. As condições da caixa de água e do encanamento interferem na qualidade da água. Verificamos que a água que sai do açude em geral é armazenada nas caixas de água, onde nem sempre as condições de limpeza são as adequadas. A água que sai do encanamento era turva. Na maioria das casas a água do açude é armazenada numa caixa de água. A manutenção da caixa é essencial para preservação da água livre de sujeira. No entanto, este requisito não parece estar contemplado na situação de Granjeiro. Na casa em que estávamos, foi necessário quebrar a parede para desentupir um cano que estava bloqueado devido, segundo o senhor que reparava o problema, o acúmulo de barro e de lodo na caixa de água53. No entanto, em diversos momentos as pessoas declaravam que lavavam constantemente o reservatório, algumas chegaram a afirmar que o fazia uma vez por semana, fato duvidoso. Uma prática que nos chamou a atenção em Granjeiro é quanto ao modo de buscar a água no Chafariz. Em geral era feita em baldes ou latas sem muito cuidado com a não contaminação do produto. Era comum ver o contato da mão ou de algum objeto com a água. Muitos recipientes utilizavam como alça, agregado logo na boca do recipiente, madeira, que quase sempre entrava em contato com a água54 (Figura 29).

53 Poucos dias antes, tivemos a visita de um agente da SUCAM que veio inspecionar a casa, especificamente a caixa de água, onde colocaria uma substância preventiva contra larvas de mosquito. Depois do trabalho, afirmou que estava tudo bem com a caixa de água. No dia seguinte quando fomos cozinhar aparamos na panela uma “pequena lesminha” junto com a água colhida da torneira. 54 Podemos encontrar este recipiente à venda em estabelecimentos comerciais. O transporte da água gerava também um pequeno comércio, pois existiam pessoas que cobravam 50 centavos, por dois baldes, para buscar água no Chafariz e levar até a casa do requerente do serviço. 67

Figura 29 – Manipulação da água proveniente do Chafariz.

A água proveniente do Chafariz, apesar da falta de cuidados adequados em seu transporte, era visivelmente mais transparente que a do açude. Do Chafariz a água vai direto ser armazenada em um jarro, onde qualquer sujeira seria decantada. Esta prática, deixar a água dormir, descansar de um dia para o outro, foi indicada também para a água do açude, onde segundo seus moradores, com o descanso do líquido o gosto de cloro diminui, pois é assentado no fundo do recipiente. Um costume utilizado antes do armazenamento da água, seja do Chafariz, do poço, da chuva ou da cacimba, é coar a água com um pano. Deixar a água do açude armazenada alguns dias é, assim, a solução dada para o problema do gosto do cloro em diferentes classes sociais.

Secretário de Gabinete de Planejamento e Coordenação falando sobre o tema

“É o seguinte: eu tenho, por exemplo, três tambores, que eu encho lá em casa hoje, então hoje é que dia? Terça. Só lá para sexta-feira que eu começo a utilizar, entendeu? Ela dorme esses dias todinhos por questão da... eles botam cloro, essa coisa toda, então, se usar ainda hoje, ela fica muito com um gosto diferente, né? Então, quando é lá para quinta, sexta-feira, que ela tem dormido, adormecida, fica uma beleza.”

Entrevista em 19/07/2005.

De acordo com as verificações em campo, além do contato visual a classificação da água é derivada principalmente do paladar. A água do Chafariz é 68

indicada como boa porque não tem gosto, ou quando tem, é bom. Por sua vez a do açude, possui um forte gosto, rejeitado pela população, atribuído ao tratamento do cloro. Cozinhar com a água do Chafariz é uma opção coletiva na sede de Granjeiro. Os motivos para esta escolha são fáceis de verificar. A água do açude ao ferver produz dois fenômenos: a panela fica negra onde a água tem contato com o metal; o segundo é que ao ferver a água produz uma nata bege sobre sua superfície (Figura 30). Pudemos vivenciar a incidência dos dois fenômenos.

Figura 30 – Nata bege formada após fervura da água do açude.

Nestes casos, a diferença entre os usos da água não se dá apenas para a ingestão humana. As diferenças são presentes o suficiente para contribuir para a diferenciação das duas fontes para outras atividades. Encontramos relatos sobre as diferenças produzidas sobre o corpo após o banho. Segundo os moradores, a água do poço produz um efeito diferente sobre a pele e os cabelos. A água encanada resseca a pele e os cabelos. A água do Chafariz, segundo nossas fontes, ao contrário, deixa a pele e os cabelos mais hidratados e bonitos. Durante o mês em que estivemos em Granjeiro a água encanada acabou umas quatro ou cinco vezes. Ocorreu o mesmo com a água do Chafariz, tendo

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seu volume reduzido ou mesmo chegando a acabar totalmente. Em uma ocasião da falta de água, em um dos bares da Avenida, seu funcionário foi pegar água do açude para lavar a louça do estabelecimento. O fato foi feito com naturalidade e sem despertar estranhamento entre os moradores presentes. Depois de lavar a louça, armazenou em um balde outra porção para ser utilizada caso não retornasse o fluxo nas torneiras. Para diversas pessoas consultadas durante o trabalho existe mais um motivo para recusar a água do açude. Estas relacionaram a má qualidade da água para consumo humano a morte de pessoas nas águas do açude. Chamou- nos a atenção o fato de não ser apenas a questão de haver ocorrido a morte de uma pessoa na água o suficiente para “sujar” as águas do Junco. Em vários relatos, a contaminação da água vinha através do contato de roupas de falecidos, que tinham sido jogadas no açude. Outra questão que nos foi apresentada foi quanto ao destino da água da chuva que escorre do cemitério ao açude55. Em geral, as pessoas que levantaram esta prática se referiram ao assunto como se fosse algo normal, corriqueiro. Uma mulher falou que a água era sebosa porque já haviam tirado roupas de mortos do açude. De fato, o açude parece ser usado algumas vezes como depósito de lixo. Soubemos que, pouco antes de chegarmos à cidade, haviam feito uma limpeza no açude. Também nos disseram que tinham retirado vários objetos de dentro da água. Durante nosso período na cidade vimos garrafas, de vidro e de plástico, sacos plásticos e alguns galhos de árvores. No entanto, não temos como avaliar se jogar as roupas das pessoas mortas no açude é uma prática tão comum como pode parecer em algumas falas. Na comunidade dos Cocos, situada a aproximadamente 4 km desde a sede, a água encanada do açude havia chegado há apenas um ano. Segundo

55 O cemitério da sede Granjeiro está localizado na zona central da cidade, pouco acima da igreja, em uma área a um nível muito mais alto que o nível do açude, provavelmente derramando suas águas de chuva no reservatório. Segundo Retalhos do Cariri, o cemitério foi fundado em 1877, quando a “Seca dos Dois Setes” assolou a região, produzindo um elevado número de vítimas. Antes desta data, os mortos de granjeiros eram levados a pé até as cidades vizinhas, principalmente para os cemitérios de Lavras e Várzea Alegre. Em 1818, houve uma gripe, forte e generalizada, denominada bailarina, que causou grande mortandade entre a população local. Os túmulos mais antigos que encontramos são datados da segunda década do século XX. Hoje, não há mais espaço para novas lápides, é já há uma discussão quanto à construção de um novo cemitério. Para maiores reflexões sobre a poluição por morte em Granjeiro, consultar: DAVISON, Anna. Morte como fator poluidor: o caso de Granjeiro, CE. Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia, Monografia de graduação. 2006. 70

relatos, anteriormente se bebia a água dos cacimbões, pois não havia outra opção. Um senhor, morador, acredita que existia a possibilidade de haver intoxicação dos moradores pelo uso desta água, uma vez que se utilizavam agrotóxicos nas plantações perto dos cacimbões. A comunidade, que não possui outra opção de água, com exceção dos antigos cacimbões, não se queixou da qualidade da água encanada56. Desta maneira, na sede e em seu entorno, a água do açude disponibilizada pela CAGECE fica para outras atividades que não a ingestão humana, como tomar banho, limpeza da casa, entre outros.

O Açude de Caririaçu: a água na Serrinha

Na Serrinha, utilizam-se basicamente duas fontes de água: a encanada vinda de Caririaçu e a água dos poços e cacimbões. A água utilizada amplamente, para beber, tomar banho, lavar a roupa, lavar a casa é a encanada. As dos cacimbões e dos poços são utilizadas para alguma atividade de irrigação, por vezes lavar roupa, e para o trato com os animais. Na localidade, não encontramos projetos sobre a captação de chuva ou sobre sua prática por moradores, apesar de ser possível sua existência. Nesta comunidade o abastecimento de água encanada surgiu há apenas três anos. Anteriormente, a comunidade era abastecida por poços e cacimbões e passava por severos períodos de seca. Na Serrinha, a consciência e discurso sobre o contraste entre o antes, sem água, e o depois, hoje, com água. O período de seca ainda está muito recente na memória dos moradores da localidade e a satisfação com a nova opção é visível. A maioria das pessoas tem recordações sobre este passado recente. O contraste entre as épocas é um ponto comum quando se fala sobre água com seus habitantes. Os relatos sobre a falta da água e seus efeitos foram correntes, todos tinha uma história onde eram personagens ligados à escassez do recurso57.

56 Na comunidade não há esgoto. Utiliza-se “fossas”. 57 Um meio comum, porém insuficiente, para amenizar a falta de água foi a utilização de carro– pipa. De acordo com diversos entrevistados, não houve mais necessidade de usá-lo após a chegada da água da CAGECE. Também há um pequeno açude construído no início dos anos de 71

Em visita à Serrinha, em conversas com Seu Geraldo, encontramos a lembrança sobre os efeitos da ingestão da água sem tratamento sobre a saúde. Segundo o senhor, nos relatando sobre um de seus filhos que adoecera anos atrás, afirmou que era comum a diarréia na localidade. Também disse que por vezes se o problema era duradouro e com muita intensidade, como aconteceu com filho, provocava o que chamou de dilatação (estado de diarréia permanente), podendo levar à morte.

O Vice-prefeito comenta algumas diferenças na Serrinha

“Raspando aquela agüinha para botar numas ancoretas, para levar num jumento, para o pessoal beber, né? E hoje, graças a Deus, a Serrinha está terminando de concluir a questão do abastecimento d’água que vem dois quilômetros, esse abastecimento d’água, com estações elevatórias e que, com certeza, a gente fica muito satisfeito, porque acabou aquele clamor do povo de, quando chegava o mês de setembro, ter que, todo jeito, botar um caminhão pipa carregando água para aquele povo, e aquele povo com aquelas latas correndo, batendo. Hoje, cada um tem a sua torneira em casa, tem sua água tratada, tem o seu banheirozinho.”

Entrevista em 04/08/2005.

Conseguimos ver um vídeo da Serrinha antes de chegar a água encanada. O material continha cenas de pessoas se aglomerando em poços secos, esperando a água “brotar” para conseguir algum bocado. A água colhida era pouca e com uma cor amarronzada. Havia fila, havia muitos poços, porém todos com pouquíssima água. Em uma cena o cinegrafista pergunta a uma das crianças que estava esperando o seu balde encher, há quanto tempo ele estava esperando, a criança responde que há quase duas horas. Este era o tempo médio que demorava a completar um balde neste período. Relataram ainda que algumas pessoas preferiam ir buscar água à noite, às vezes chegavam a meia-noite e voltavam para casa quando o dia estava clareando. Na Serrinha não encontramos reclamações sobre a qualidade da água consumida. Em contraste com a sede, não há críticas quanto a qualidade do serviço da CAGECE, nem parece existir problemas de percepção que prejudiquem a sua utilização. Trabalhamos com duas possibilidades, a inexistência de outras fontes, uma vez que os poços são limitados; a outra seria o

1980, hoje, suas águas são utilizadas para lazer, lavar roupa, dessedentação de animais e plantas. 72

fornecimento de uma água de natureza e/ou tratamento distinto entre as duas localidades.

Água da chuva

Outra fonte de água que encontramos, como já foi dito, é a captação da chuva. Na sede a captação de chuva é caseira e ocorre através da calha que deságua em um recipiente doméstico, diferentemente da localidade de Serra Nova, onde utiliza-se de uma caixa de água construída pelo Estado, com grande capacidade de armazenamento. Essa água é aproveitada para limpeza de lavar a casa e a louça. Como a água encanada ainda não chegou à localidade, em Serra Nova a água proveniente da captação da chuva é a solução para o abastecimento da comunidade. Este tipo de captação não é suficiente para manter uma família o ano inteiro, pois as chuvas acontecem em um período curto do ano, limitando o uso e captação da água. Existe a necessidade de outra fonte para satisfazer o suprimento de água para beber e de qualidade durante todo o ano. Atualmente a carência de água é complementada com o uso de poços, cacimbões e de um pequeno açude. Neste açude, perto da comunidade, as roupas são lavadas e a água é colhida e transportada por animais às casas necessitadas. Na época da seca as duas fontes ficam limitadas. Estas águas têm suas divisões quanto ao destino. A água dos poços é preferencial para a ingestão humana.

Notas de campo

Dona Maria (Moradora de Serra Nova) afirmou que foram construídas 28 cisternas e que 17 estavam em andamento. A senhora nos mostrou sua cisterna, havia em torno de 20% da capacidade total. Comentou que normalmente retira a água com um motor, porém, devido ao baixo nível da água, estava utilizando um balde para fazer o trabalho. Não vimos a bomba. No interior do reservatório havia muitos ciscos. A senhora disse que essa água não era utilizada para beber, mas para outras atividades. Na localidade tem vários poços que são usados exclusivamente como fonte de água para ingestão.

Existe uma maneira correta de utilizar a caixa de água para a captação da chuva na qual a primeira água da chuva não deve ser captada, pois traz consigo as sujeiras do telhado. Após esta primeira chuva, usada para lavar o telhado, as 73

próximas podem ser armazenadas sem problema58. Nossa informante na localidade, indagada sobre esta prática, respondeu que assim procedia.

A manutenção das cacimbas e poços: de complemento necessário à preferência

Outra opção que encontramos em todo o município foi a manutenção do uso dos poços e cacimbões. Em algumas localidades seu uso é dado pela preferência de gosto, cor ou outro motivo, porém, ainda existem lugares onde esta é a única opção disponível. Na sede, onde há outras opções de água, continua utilizando-se desse tipo de captação oferecida através dos chafarizes públicos. Em casos mais raros, encontramos a utilização da água de cacimbões para beber e cozinhar. Neste caso, a solução mais comum utilizada para purificar esta água é a adição de cloro distribuído por agentes públicos.

58 Não podemos observar se o uso estava condizente com a prática.

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5.3. Percepções e Usos da água em pequenas comunidades: o caso de Maracaçumé

5.3.1 Chegando ao Município

Maracaçumé é um município situado na microrregião geográfica do Gurupi, localizada no oeste do estado do Maranhão. Partindo de São Luís, dois caminhos terrestres são os mais freqüentemente utilizados para se chegar ao município: evitando a travessia do mar em Ferry Boat, muitos motoristas optam por atravessar a cidade Santa Inês (microrregião do Pindaré), percorrendo aproximadamente 480 km, dos quais a maior extensão concentra-se na BR 316, num trecho da rodovia onde não existe mais sinal de asfalto e as condições de trafegabilidade são extremamente precárias, o que vem sendo tratado pela imprensa nacional59; o outro caminho, mais curto e com estradas em melhor estado de conservação, soma aproximadamente duzentos e dez quilômetros e implica na travessia do mar. Após a travessia, de Cujupe segue-se em direção à Pinheiro (microrregião da baixada Maranhense) e dali parte-se em direção a Governador Nunes Freire, município também conhecido pelo nome de Encruzo em razão de ser o ponto de encontro entre a MA 106 e a BR 316. A sede municipal de Governador Nunes Freire dista apenas dez quilômetros da cidade de Maracaçumé, que está situada a apenas sessenta e três quilômetros de Gurupi, fronteira com o estado do Pará.

59 Em matéria especial do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, esse trecho da BR 316 foi apontado como um dos piores da rodovia para exemplificar a precariedade das estradas do país. 75

Figura 31 – Localização de Maracaçumé. Fonte: 4 Rodas.

Figura 32 – Localização de Maracaçumé. Fonte: Ministério da Saúde.

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Tabela 8: Dados Demográficos – Município de Maracaçumé.

População Total do Município (zona urbana e rural): 16.020 Proporção de menores de 05 anos de idade na população: 13,73 Proporção de adolescentes na população (10 a 19 anos): 26,25 Proporção de mulheres em idade fértil (10 a 49 anos): 30,43 Proporção de idosos na população (60 anos e mais): 6,35

(Fonte: IBGE – Estimativa 2004) Densidade Demográfica (área geográfica: 629,33 km2): 33,3 Grau de urbanização: 85,37

(Fonte: IBGE – Censo 2000) População: 16.651 habitantes

População dos bairros da área urbana: Bairro da Mangueira = 1364 habitantes Bairro São Francisco = 1296 habitantes Bairro Cidade Nova = 1592 habitantes Bairro Boa Vista = 932 habitantes Centro = 5336 habitantes Total de habitantes na área urbana = 10.520 habitantes No total há 4072 prédios, sendo que aproximadamente 2000 se situam no centro.

(Fonte: Funasa – Dados obtidos no local, 2005)

Atravessa a sede municipal, dividindo a cidade em duas metades, a BR 316, chamada pelos habitantes de rua grande, que tem o papel de rua principal e ao longo da qual se concentram, num trecho de aproximadamente dois quilômetros, hotéis e pousadas, restaurantes e bares, igrejas, o mercado municipal, supermercados, comércio de quinquilharias , barraqueiras 60, sedes de partidos políticos e sindicatos, postos de gasolina, casa lotérica, correio, banco, prefeitura e hospital. Este conjunto de serviços permite o contato entre os viajantes, funcionando como veículo de informação e trocas entre diferentes cidades e povoados que se situam também ao longo das estradas que ligam Maracaçumé às regiões metropolitanas de São Luiz e Belém (Figuras 33a, 33b, 33c e 33d).

60 Cozinheiras que fornecem refeição, o que é bastante comum na paisagem das cidades maranhense. 77

Figura 33 (a) (b), (c), (d) – BR 316 – Rua grande.

Maracaçumé se estende por um terreno plano61 e as ruas moldam um traçado irregular, tendendo a se organizar como ligações entre os pontos mais importantes na vida da cidade – o comércio da rua grande, as igrejas, prefeitura, escolas e o estádio de futebol. Há um grande espaço livre destinado às festas e outros eventos que reúnem a população. Arborização nas ruas é praticamente ausente, sendo que o toque verde na paisagem urbana é dado pelos quintais. Há muita poeira no ar e o trânsito de carros e caminhões na BR ajudam a espalhá-la. Ao entardecer, mesmo sem sombra, quando o sol e o calor não castigam, as pessoas costumam sentar-se na porta de suas casas e de estabelecimentos comerciais (Figuras 34a e 34b). Animais, como cachorros, galinhas, cavalos e bodes passeiam livremente pela cidade, onde apenas duas ruas são calçadas (Figuras 35a e 35b).

61 Nos arredores da sede, existe a presença de uma faixa de latifúndios, com criação de gado e terras destinadas à agricultura, com destaque para o cultivo do açaí. A agricultura se desenvolve também em colônias rurais, denominadas “quadras”, a mais distante situada a vinte quilômetros da sede municipal. Ao todo existem dez quadras, destinadas a oitocentos e noventa e oito famílias. É possível se pensar numa gradação rural-urbano e não numa separação rural-urbano. Uma massa de migrantes pobres que é atraída para o município não tem acesso à terra. Reside na cidade, mas fazendo tarefas sazonais no campo e na cidade. A cidade fica sendo o ponto de referência desta mão de obra móvel, que faz tarefas alternativas na cidade e no campo.

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Figura 34 – (a) e (b) – Final de tarde.

Figura 35 – (a) e (b) – Animais nas ruas.

O casario evidencia, na sua simplicidade, a modéstia da maior parte da população. Predominam casas térreas, com dois ou três pequenos cômodos, no máximo quatro, e são construídas com material e técnicas rudimentares (Figuras 36a e 36b). À exceção de poucas, os pisos são de chão batido. A população mais abastada geralmente prefere residir em chácaras ou fazendas nos arredores da sede municipal.

Figura 36 – (a) e (b) – Casario.

As construções públicas (prefeitura, escolas, postos de saúde, centro cultural) e religiosas (Igreja Católica, Assembléia de Deus, Testemunha de Jeová, 79

Adventista de Sétimo Dia, Igreja Batista, Igreja Luterana) também revelam modéstia e simplicidade. As duas edificações mais imponentes da cidade são religiosas: a Assembléia de Deus e a Igreja Católica, ambas sendo lentamente construídas (Figuras 37 e 38). Não existe em Maracaçumé a praça da Igreja matriz e da prefeitura, organização espacial bastante comum nas cidades do interior do Brasil e que configura a área central. Falar em centro é, nessa localidade, referir-se à rua grande.

Figura 37 – Igreja Católica. Figura 38 – Assembléia de Deus.

Maracaçumé chama a atenção pela agitação e barulho, em nada congruentes com a atmosfera preguiçosa típica de uma localidade de interior. O ritmo da cidade é pontuado por um calendário de festividades profanas e religiosas, emendadas ao longo de um ciclo anual. Em ano eleitoral, as convenções partidárias dão um tom ainda mais frenético à sociabilidade local. (Figura 39). Junho é tempo dos arraiais: quadrilhas e bois animam as noites (Figura 40).

Figura 39 – Dia de convenção. Figura 40 – Quadrilha.

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5.3.2. Uma breve história de Maracaçumé62

A cidade de Maracaçumé teve origem num acampamento de trabalhadores instalado à beira do rio quando da implementação da linha telegráfica ligando os estados do Maranhão e Pará, no governo Afonso Pena (1906-1910). No povoado Cajueiro, distante doze quilômetros de Maracaçumé, ainda hoje existem três dos postes por onde corriam os fios telegráficos. A ocupação do local onde se situa a sede municipal e que ficou conhecido por muito tempo como Estação, devido à existência de uma estação telegráfica, data do início do século XX, mas têm-se registros de povoamentos anteriores na região de Maracaçumé. A extração do ouro teria sido a principal motivação para o conhecimento e a exploração da área a partir do século XVIII. Em 1855, o então governador do Maranhão chegou a criar a Colônia Maracaçumé, que era formada por quarenta chineses contratados pela Companhia de Mineração Maranhense para trabalharem na extração do ouro. A faiscação garimpeira também atraiu para a região negros escravos fugidos, instalados em quilombos. Sublinha-se ainda a presença de indígenas neste território63. Nos anos 1940, a pequena população moradora do povoado de Maracaçumé vivia em relativo isolamento, meio às ameaças dos constantes ataques de onças, ao excesso de piuns (mosquitos que causam grande coceira) e aos surtos freqüentes de malária, que levava ao óbito principalmente crianças. Paulatinamente o caminho que fora feito para a implantação da linha telegráfica foi se tornando lugar de passagem das boiadas de gado que eram conduzidas do Maranhão para o Pará. A viagem dos boiadeiros implicava na travessia do rio Maracaçumé e, durante as cheias, moradores do povoado eram contratados para auxiliá-los na travessia do gado. Também aos poucos a madeira de lei existente no local começou a ser extraída, sendo levada de canoa para Cândido Mendes,

62 Não existe uma publicação sobre a história da cidade. Zaquel Eleotério Silva, funcionário da prefeitura e morador desde menino na região, há anos empenha-se em colher informações com o objetivo de escrever a história do município. A ele agradecemos a gentileza de nos ter lido e deixado registrar em gravação parte de seus manuscritos, que nos serviram como principal fonte de dados. 63 Nos anos 1940, o governo federal criou o Porto dos Índios, próximo ao povoado de Maracaçumé e no qual nativos eram reunidos com a finalidade de serem “domesticados”. 81

onde era comercializada. O comércio do gado e da madeira, portanto, davam certo dinamismo ao povoado de Maracaçumé. No final dos anos 1960, o conhecimento da existência do projeto de construção da BR 316 atraiu novos moradores para o local. Salienta-se que muitas pessoas se instalaram no povoado vizinho, Cajueiro, que, na época, contava com melhor estrutura que o de Maracaçumé. Com o começo das obras da BR, no início dos anos 1970, a região entre Maracaçumé e Gurupi sofreu grandes transformações, passando a ser bastante procurada para a exploração da agricultura, pecuária e madeira. Nessa década, o governo militar, através do Banco do Brasil, concedeu a abertura de crédito rural para estimular o desenvolvimento ao longo de toda a região da BR 316. O crescimento do Distrito de Maracaçumé, tanto demográfico como econômico, incrementado pela abertura de inúmeros garimpos da região, demandou a presença de uma administração mais efetiva no local64. Assim o município foi emancipado politicamente em 1994 (Lei nº 6.163), desmembrado de Godofredo Viana, originado, por sua vez, de Cândido Mendes.

5.3.3. Um passeio pela cidade: sua rotina

No início do dia, o mercado municipal é um dos lugares mais movimentados de Maracaçumé. Ali são comercializados legumes, hortaliças, frutas, grãos, carnes e peixes. Há também um espaço reservado para as chamadas cafeteiras, mulheres que se dedicam a preparar e a servir o café da manhã, tomado na rua principalmente pelos homens. A água – fornecida pela prefeitura e distribuída por torneiras localizadas em vários pontos – e as instalações sanitárias utilizadas pelos comerciantes são coletivas, mas os boxes de venda são individuais. Quem não tem boxe expõe o produto que deseja comercializar na porta do mercado. Este é o caso das vendedoras de cheiro-verde

64 Segundo informações obtidas junto a gestores municipais, a taxa de crescimento populacional do município vem aumentando consideravelmente, com boa parte da população composta de migrantes vindos de garimpos da região e do Suriname, hoje bastante procurados porque até agora foram menos explorados. Diríamos que muitos dos que chegam em Maracaçumé são “perambulantes”, pessoas com trajetórias de desvinculação sociofamiliar, que não conseguem encontrar lugar no mundo do trabalho e andam pelo país ao sabor das circunstâncias. 82

(coentro e cebolinha), que diariamente marcam sua presença naquele espaço65 (Figuras 41a, 41b, 41c e 41d). Também é o caso dos vendedores de melancia que, na época da safra, empilham a fruta não apenas na porta do mercado, como também ao longo de toda a BR (Figura 42).

Figura 41 – (a), (b), (c), (d) – Mercado Municipal.

Figura 42 – Vendedores de melancia na rua grande.

No sábado, dia de feira, os espaços nos arredores do mercado são também ocupados por pessoas vindas da área rural66 trazendo o que produzem para comercializar: farinha, feijão de corda, abóbora, quiabo, alface, banana e

65 Nos quintais urbanos algumas pessoas mantêm pequenas hortas com a finalidade de ganhar algum dinheiro com a venda de hortaliças (basicamente coentro, cebolinha e alface). A prática de manter hortas urbanas foi estimulada por um projeto de geração de emprego e renda levado a cabo na anterior gestão da prefeitura (2000-2004). 66 O município possui oito povoados e duas colônias rurais, a mais delas distante situada a vinte quilômetros da sede municipal. 83

limão. As pessoas costumam vender meia dúzia de quiabo, uma abóbora, um mamão, ou seja, não importa o tamanho da produção: tudo o que se produz pode ser colocado à venda (Figura 43).

Figura 43 – Pequeno comércio agrícola na rua grande.

Muitas das verduras, frutas e legumes comercializados no mercado, assim como nos demais pontos de venda existentes na cidade, são trazidos do Pará. A proximidade de Maracaçumé deste estado e as boas condições de suas estradas fazem com que os comerciantes prefiram fazer seus negócios em Belém. Há muita variedade de peixe disponível para compra, sobretudo nos finais de semana: tambaqui, pescada, piau, mandi (mandiaçu), por exemplo. Os vendedores afirmam que trazem os peixes de Santa Helena (rio) e Carutapera (mar). Dizem que há muito tempo praticamente não existe peixe no rio Maracaçumé e que no verão, quando o rio baixa, não encontram peixe de modo algum. A ponte sobre o rio Maracaçumé marca a divisão entre o município e o de Governador Nunes Freire, cuja sede é conhecida como Encruzo (Figuras 44a e 44b). Na estação das chuvas, o chamado inverno, quando o rio se torna plenamente navegável, é possível sair de barco de Maracaçumé e chegar a Cândido Mendes, município situado no extremo noroeste do estado, na região das Reentrâncias Maranhenses, costa do Oceano Atlântico. No verão este trajeto é inviabilizado por uma série de quedas d’água que surge apenas nessa época do ano.

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Figura 44 – (a) e (b) – Ponte sobre o rio Maracaçumé/Divisa com Governador Nunes Freire (Encruzo).

O casario da cidade guarda certa distância do rio devido às cheias. As casas são distantes do rio por orientação da companhia (Batalhão Militar) que fez a estrada. As razões para essa orientação eram a malária e as enchentes, pois se trata de área de baixão, termo utilizado localmente para terrenos alagáveis. No passado muitos moradores teimaram em construir suas casa perto do rio, mas, com o problema das inundações durante o inverno, desistiram de ali permanecer67. No baixão ou baixo, ao lado do rio, localizam-se inúmeras olarias artesanais (Figuras 45a e 45b). Os oleiros estão há muito tempo instalados naquele baixão, onde existe o que consideram uma boa argila. Eles represaram a água do rio para formar a chamada lagoa da mata, cuja água é importante para a fabricação dos tijolos. No inverno o baixão inunda e a água da lagoa se emenda com a do rio. As olarias submergem e não há trabalho, mas, como enfatizou um oleiro, o rio enche, mas não desabriga. Ou seja: as residências não chegam a ser inundadas.

Figura 45 – (a) e (b) – Oleiros do baixão.

67 Sr. Zaquel Silva, o historiador do município, foi quem nos forneceu essa informação. 85

Numa das margens do rio próxima à ponte, nos meses finais da gestão da ex-prefeita da cidade, no ano de 2005, foi erguida uma espécie de escadaria que, segundo alguns informantes, era parte de um projeto, pago com recursos do governo federal, de construção de uma infra-estrutura de lazer na beira-rio. Os municípios vizinhos também teriam recebido recursos vindos da mesma origem e para o mesmo fim. Em Maracaçumé, a primeira cheia destruiu a obra (Figura 46).

Figura 46 – Projeto beira-rio.

Ainda de madrugada, a margem onde foi realizada essa obra é ocupada pelos lavadores de fato: bucho, tripa, “o livro” – bucharia –, do boi (figuras 47a e 47b). Os bancos de areia das duas margens paulatinamente se enchem de urubus, além da cachorrada que anseia pela sobra da sobra. Após a lavagem, o fato é levado diretamente para o mercado municipal e açougues da cidade68.

Figura 47 – (a) e (b) – Lavagem do fato.

68 Na época da pesquisa, os lavadores de fato estavam tendo problemas com o IBAMA e com a Vigilância Sanitária, que queriam transferir a atividade para o Matadouro Municipal. Os lavadores resistiam em serem transferidos, pois, como alegavam, “o fato só presta limpar em água grande. Eles dizem que polui, mas os peixes come rapidinho esses farelos... água de poço não limpa direito”. Visitamos o matadouro, ainda em obras. Chamou a atenção o tamanho da caixa de água: mínima para quem está acostumado com “água grande”. 86

Por volta das oito horas da manhã, os lavadores de fato já terminaram o serviço e as lavadeiras põem-se a trabalhar. Cada uma traz de casa a sua prancha de madeira. Há apenas uma sem dono que é de uso coletivo: quem chegar, pode usar. Nem todas essas mulheres lavam para fora. Algumas afirmam que não têm poço de água em casa e que por isso recorrem ao rio. Outras, embora tenham poço, dizem que gostam da água do rio para lavar roupa, pois, apesar da cor achocolatada, a água é boa porque o sabão pega; a sujeira sai toda. Essas lavadeiras quase sempre estão acompanhadas de filhos, principalmente dos pequenos. Enquanto lavam roupa, as crianças nadam, dão banho nos cachorros e lavam as bicicletas. O rio nunca fica totalmente deserto. Seus usos rotineiros são diversos. Sempre há, no dia-a-dia, uma atividade acontecendo nas margens próximas à cidade. Algumas pessoas jogam anzóis; outras lavam os carros, roupas, louça doméstica, animais como cavalo e cachorro; outras se preparam para partir para a pescaria, na qual podem permanecer até uma semana pescando, contrariando os que afirmam que no rio Maracaçumé quase não há mais peixe69 (Figuras 48a, 48 b, 49, 50a, 50b, 50c)

Figura 48 – (a) e (b) – Lavagem de roupas no rio.

69 Tivemos oportunidade de descer o rio fora da época das cheias, na direção de Cândido Mendes. Ao contrário do que ouvimos de muitas pessoas na cidade, o rio Maracaçumé nos pareceu bastante vivo. Em duas horas de navegação, passamos por dezenas de tarrafeiros, por muitos pecadores de anzol e alguns canoeiros fazendo transporte de mercadoria e pessoas. Vimos uma enorme variedade de pássaros e em muitos trechos a mata ainda é virgem. Contudo, deparamo-nos também com sinais de destruição humana das margens do rio: a extração intensiva de seixo tem provocado a formação de grandes bancos de areia. Lavouras implantadas nas margens também têm provocado o assoreamento. Em 24 de agosto de 2005, a prefeitura municipal de Maracaçumé publicou um decreto com objetivo de regular a extração de areia e seixo no rio. 87

Figura 49 – Lavagem de roupas e louças no rio.

Figura 50 – (a), (b) e (c) – Pescado no rio e saindo para a pescaria.

Nas tardes dos finais de semana, o movimento perto da ponte é maior: ir passear no rio é um programa popular. O dono de uma barraca garante a animação dessas tardes vendendo bebidas e colocando música em alto volume para os clientes, que aproveitam para dançar. Alguns adultos e crianças aproveitam para nadar (Figura 51a). Do alto da ponte muitos observam essa movimentação, com a qual se divertem (Figura 51b)

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Figura 51 – (a) e (b) – Movimentação de final de semana no rio.

Na segunda-feira a rua grande ganha o movimento de uma grande feira na qual são vendidos principalmente roupas e calçados. Também são comercializados utensílios domésticos (pratos, copos, colheres), redes e roupas de cama. Onze horas é o horário do almoço em Maracaçumé. É hora em que o sol tortura e em que a cidade entra em calmaria. Os carros de som param de anunciar, a música de estilo brega pára de tocar. Nas ruas, o trânsito de pessoas e automóveis sossega. O comércio não fecha as portas, mas quase não há clientela, exceto nos restaurantes. As barraqueiras trabalham nesse horário a todo o vapor. A prefeitura municipal construiu uma estrutura própria para essa categoria de trabalhadoras, mas algumas ainda servem comida em barracas rudimentares, situadas na beira da BR. O local de trabalho das barraqueiras é um galpão aberto, onde cada uma possui uma barraca (boxe) com uma pia e uma torneira com água fornecida por um dos poços da prefeitura. Os fogões, individuais, ficam situados numa das laterais do galpão (Figuras 52a, 52b, 53a e 53b).

Figura 52 – (a) e (b) – Balcão e barracas das vendedoras de comida.

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Figura 53 – (a) e (b) – Barraqueiras.

Contígua ao galpão existe uma praça rodeada por estabelecimentos comerciais (sorveteria, boate, bares, lanchonetes e terreiro de umbanda). No centro da praça há um coreto com banheiros públicos – os únicos desta categoria na cidade –, que são lavados diariamente pela prefeitura (Figura 54a). Neste espaço há ainda um ponto de água (torneira) utilizado não apenas pelas barraqueiras, como também pelos comerciantes da área (Figura 54b). Muitos não têm quintais em seus estabelecimentos, o que inviabiliza a instalação de poço próprio. Por isso toda a água que utilizam é apanhada na torneira da praça.

Figura 54 – Praça do coreto.

As barracas funcionam durante vinte e quatro horas. Os viajantes param para comer no local e muitas pessoas da cidade costumam fazer as duas principais refeições ali. De hábito, as barraqueiras colocam a disposição de cada cliente uma garrafa de água (utilizam normalmente garrafa peti de refrigerante). Algumas possuem filtros, outras não. Consideram aquela água que utilizam para tudo (cozinhar, lavar e beber) muito boa, bem limpinha. Afinal, é da prefeitura. Às onze horas termina o turno matutino das escolas públicas. A merenda, preparada nas cantinas, é servida às nove e meia. Para algumas crianças e

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adolescentes, essa é a refeição mais importante do dia. Todas as escolas são equipadas de cozinha e banheiros, sendo que o abastecimento de água é feito pela prefeitura. Em Maracaçumé, a maior parte dos serviços de atendimento públicos funciona apenas pela manhã. O horário de trabalho da prefeitura é de oito às quatorze horas. No período da tarde a grande movimentação que acontece em sua porta durante toda a manhã desaparece. O mesmo ocorre com as unidades de saúde: consultas, agendamentos, fornecimento de resultados de exames e medicamentos não são feitos no turno vespertino, embora estas permaneçam com as portas abertas. As escolas funcionam em três turnos: manhã, tarde e noite. No caso da única agência bancária (Bradesco), atende o público das dez às dezesseis horas. O movimento de idosos no início do mês é intenso e a fila começa a se formar ainda durante a madrugada. Do meio para o final da tarde, quando o sol começa a baixar, a cidade volta a ganhar vida. Chama a atenção o enorme trânsito de pessoas entre as cidades e povoados da região. A sede do município de Governador Nunes Freire, conhecida como Encruzo, parece um bairro de Maracaçumé e vice-versa. Como já mencionado, as cidade distam apenas dez quilômetros. Os transportes utilizados para ir de uma cidade a outra são vans, táxis, moto-táxis e ônibus. Os donos e condutores de vans são conhecidos como mala. Há pontos de todas essas categorias de transporte ao longo da BR. No final da tarde, as pessoas costumam sentar-se à porta de casa. Os meninos jogam futebol nos campos improvisados e redes de vôlei são montadas em vários pontos da cidade. As mesas de bilhar e sinuca sempre estão ocupadas nesse horário e permanecem ocupadas à noite. Adultos montam o tabuleiro e jogam dominó (Figura 55). Meninas pulam corda e brincam com bonecas na porta de casa. Crianças e adolescentes aproveitam para nadar no rio, onde algumas pessoas também pescam. No Bairro Novo, uma pracinha reúne a vizinhança. O chamado Campo de Bola (estádio de futebol) do Bairro da Mangueira é ocupado por crianças, jovens e adultos, sobretudo do sexo masculino (Figura 56). Na área do baixo (alagado), uma das mais pobres da cidade, crianças brincam de matar passarinhos com baladeiras.

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Figura 55 - Pessoas jogando dominó. Figura 56 – Campo de Bola da mangueira.

A sede da Assembléia de Deus, situada na BR, oferece cultos diariamente. Sua estrutura interna é bem maior do que se imagina quando vista de fora. No início da noite os fiéis para lá se dirigem, saindo por volta das vinte e duas. A Igreja católica só celebra missa aos Domingos, mas a lanchonete da paróquia, ao lado, é ponto diário de encontro dos fiéis. Para quem normalmente a sociabilidade passa ao largo das Igrejas, há, durante toda a semana, além das barraqueiras, bares abertos à noite, onde podem buscar diversão. A rua dos bordéis, a mesma do mercado municipal, tem sempre movimento. Festas e serestas acontecem nos finais de semana. Muitas são organizadas alternadamente, ora em Maracaçumé, ora no Encruzo.

5.3.4. Da rua para as casas

A maior parte das ruas de Maracaçumé não oferece conforto para os pedestres. Praticamente a totalidade não é calçada e as águas que escorrem dos quintais, onde tarefas como lavagem de roupa e louça são executadas, ficam empoçadas por todos os cantos. Soma-se a essa situação a dos animais soltos e a do lixo, que é jogado diretamente na rua, nos terrenos baldios ou em suas proximidades, se espalhando por todos os lados (Figuras 57a, 57b e 57c).

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Figura 57 – (a), (b) e (c) – O lixo nas ruas e a água que escorre dos quintais.

O casario de Maracaçumé tem uma tipologia clara, que se mistura na paisagem: casas de madeira, taipa e alvenaria (Figuras 58a, 58b e 58c). Quase a totalidade tem energia elétrica. É comum os cômodos serem divididos com tecidos (Figura 58d) e a existência de redes montadas ou recolhidas nos tetos.

Figura 58 – (a), (b) e (c) – Tipologia das casas, (d) – Divisória de tecido no interior de uma casa.

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O Sistema de Informação de Atenção Básica – SIAB (ano 2005, incluindo zonas urbana e rural) nos fornece os seguintes dados sobre os tipos de casas em Maracaçumé:

Tabela 9 – Tipo de construção das casas Famílias Cadastradas: 4.066 Fonte: SIAB - 2005. Tipo Número de casas Freqüência (%) Tijolo 1884 46,34 Taipa revestida 580 14,26 Taipa não revestida 875 21,52 Madeira 656 16,13 Material aproveitado 64 1,57 Outros 7 0,18 Total 4066 100

A cozinha, quando instalada dentro de casa, sempre é aberta para o quintal. Contudo, há uma preferência pelas cozinhas externas. A comida normalmente é preparada nos quintais em fogões que, embora apresentem grande variedade de formas (Figura 59a e 59b), são movidos pela mesma mecânica, funcionando a carvão ou a lenha, pois estes são combustíveis bem mais baratos que o gás de cozinha comercializado, muito caro diante do poder aquisitivo da maior parte da população. Ainda nos quintais, observa-se o cultivo de hortas e criação de víveres para o consumo próprio (porco e galinha, geralmente), mas não são práticas extensivas a toda a população, como quase o é o ato de cozinhar do lado de fora das casas.

Figura 59 – (a) e (b) – Fogões. 94

Notas de Campo

Na casa de Dona Firmina, uma panela de arroz estava sendo cozida no quintal. Numa bacia, próxima ao fogão, havia cerca de uma dúzia de peixes bem pequenos (dez a doze centímetros). Os peixes haviam sido pescados pelas crianças, seus netos, no rio Maracaçumé, perto da ponte. Hoje o almoço da família, segundo ela, seria composto de arroz, farinha e de uma carne que estava de molho na água para a retirada do sal. Os peixes eram das crianças e seriam fritos. A dieta da família numerosa no dia-a-dia, exceto a carne, não é muito diferente disso. Como o peixe custa caro, raramente é comprado. As galinhas são compradas. Come-se feijão de vez em quando. A família costuma almoçar e jantar. As crianças, além das refeições de casa, comem também a merenda escolar. A merenda esteve suspensa por aproximadamente um mês, mas voltou a ser servida nas escolas. [...] Dona Conceição estava começando a preparar o jantar. O fogão a lenha estava aceso no quintal e havia uma panela de arroz sendo cozido. A família costuma jantar por volta das seis horas, mas hoje, como é feriado, iam comer um pouquinho mais tarde porque os meninos ainda estavam na rua. O jantar seria arroz com farinha grossa. Tinham consumido carne no almoço.

É também comum a existência de um cantinho dentro de casa reservado para a água de beber (Figura 60a, 60b, 60c e 60d). Os filtros são bastante utilizados, mas algumas pessoas, quando não os têm, dizem que coam ou fervem a água que bebem; outras que fazem cloração.

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Figura 60 – (a), (b), (c) e (d) – O cantinho da água de beber. Contudo, o Sistema de Informação de Atenção Básica – SIAB (ano 2005) revela a precariedade da situação do tratamento da água em Maracaçumé, onde mais da metade da água consumida não recebe qualquer tipo de tratamento.

Tabela 10 – Tratamento de água Famílias Cadastradas: 4.066 Fonte: SIAB - 2005. Tipo Número de casas Freqüência (%) Filtração 1471 36,18 Fervura 62 1,52 Cloração 243 5,98 Sem tratamento 2290 56,32 Total 4066 100

Em Maracaçumé, assim como nos municípios vizinhos, as camadas populares constroem as instalações sanitárias de suas casas nos quintais. Há um cercado para o banho, que é chamado de banheiro, e um cercado para a privada (fossa seca ou apenas o cercado), que pode ser chamada de sintina, mas o nome não é usual. Os cercados são feitos de ripas de madeira ou com folhas de babaçu e a privada pode ser coberta com um plástico. O banheiro sempre se situa próximo a casa, enquanto a privada é colocada mais afastada, normalmente nos fundos do terreno ou numa de suas laterais (Figuras 61a, 61b, 62a, 62b, 63a e 63b). 96

Figura 61 – (a) e (b) – Privadas.

Figura 62 – (a) e (b) – Banheiro (banho).

Figura 63 – (a) Privada (fossa seca). (b) Banheiro (banho).

Notas de Campo

Na casa de Dona Maria a privada foi trocada de lugar uma vez. A atual tem dois anos e ela acha que ainda durará mais uns quatro anos, pois, depois de usado, o papel higiênico é recolhido em sacos e queimado para que o buraco (da fossa) demore a encher. Foram utilizados tijolos e cimento para a construção da base da privada porque “antes arriava tudo”. O filho “conseguiu umas madeiras pra cercar”, mas antes a privada era de palha. [...] 97

Na casa de Dona Firmina a privada fica perto da cerca, na extremidade oposta da torneira que abastece a casa com água da prefeitura. Trata-se de uma fossa seca, cercada com tábuas velhas. Segundo Dona Firmina, a privada tem quatro anos, mas já é hora de fazer outra. O problema é que seu quintal é pequeno e ela não tem mais lugar para cavar um novo buraco. Quando a privada encher, restará como alternativa ‘fazer por aí’”.

Quando não há privada, as pessoas costumam fazer suas necessidades fisiológicas (xixi e coco) nos fundos dos quintais: por aí mesmo, disse uma informante, apontando para a zona limite de seu lote, colada a rua. Também há casos de quintais extremamente pequenos, o que leva à construção de privadas coletivas.

Notas de Campo

Dona Aparecida e duas de suas vizinhas construíram uma privada coletiva, pois os seus quintais são minúsculos: “fizemos uma privada grande. Compramos a madeira na serraria e fizemos a privada juntas, uma privada de quase dez metros de fundura”. Ela mostra a ponta do nariz para dizer onde bate o buraco da fossa. Certamente, não tem “dez metros de fundura”. A privada foi construída em julho e ela e suas vizinhas acreditam que a fossa durará até janeiro porque muita gente dela faz uso, inclusive os fregueses do “Restaurante Fé em Deus”, que pertence à sogra de Dona Aparecida. [...] A casa de Dona Gil é de uma simplicidade austera: uma taipa gasta pelo tempo, piso velho cimentado, divisórias de pano. No quintal, muito pequeno, não há privada, apenas um pequeno cercado para o banho. Ela divide a privada com mais dois vizinhos. Esta privada foi construída, faz um ano, na extremidade de um quintal de um deles. Antes usava o mato, fazia “por aí”.

Geralmente os informantes afirmavam que utilizavam papel higiênico para o asseio, palavra utilizada para se referirem à limpeza após fazerem suas necessidades fisiológicas. Mas raramente papel higiênico foi visto perto das privadas visitadas. Já no caso dos banheiros, na maioria foi encontrado sabonete. Contudo, o mesmo não é utilizado todas as vezes que se banha. Como o calor é grande em Maracaçumé, as pessoas têm o hábito de procurar refresco na água muitas vezes por dia, o que não é necessariamente acompanhado do ato de ensaboar. Entre a população um pouco mais abastada, banheiro e privada se situam dentro das casas. Mas, também entre essa camada social, não é raro a apropriação dos quintais para o banho de refresco, além de no mesmo ainda ocorrerem a realização de parte de atividades ligadas à cozinha (lavagem de louça, por exemplo) e a lavagem de roupa. 98

Mais uma vez o Sistema de Informação de Atenção Básica – SIAB (ano 2005, Tabela 12) nos fornece dados sobre a precária situação do destino das fezes e urina em Maracaçumé (zonas urbana e rural).

Tabela 11 – Destino de fezes e urina Famílias Cadastradas: 4.066 Fonte: SIAB - 2005. Tipo Número de casas Freqüência (%) Esgoto 22 0,54 Fossa 2173 53,44 Céu aberto 1871 46,02 Total 4066 100

Este esgoto provavelmente refere-se a ligações das fossas de casas comerciais da BR 316 a uma tubulação – implantada por uma antiga gestão da prefeitura – que desemboca no rio. No entanto, assinala-se que as fossas da maioria dos estabelecimentos da rua grande não possuem essa ligação. No Censo do IBGE de 2000, na tabela “Proporção de Moradores por tipo de Instalação Sanitária”, aparece o percentual de 0,1% para rede geral de esgoto ou pluvial. Em relação à rede pluvial, o dado provavelmente refere-se ao sistema de escoamento de água também construído na BR. É importante assinalar que a maioria da fossas é rudimentar (seca) e não séptica. Estas últimas são construídas apenas quando se tem banheiro e cozinha com água encanada, o que não é o padrão predominante em Maracaçumé.

5.3.5. Abastecimento de Água

Em Maracaçumé existem cinco poços artesianos construídos e gerenciados pela prefeitura: dois foram feitos na gestão anterior a da prefeita Elisa Batista, dois durante a sua gestão (2000-2004) e um pela atual administração de João do Povo (2005-...). A água desses poços é distribuída para as escolas, hospital, postos de saúde, mercado público, barraqueiras e algumas casas em suas proximidades. A CAEMA, Companhia de Água e Esgoto do Maranhão, não atua no local. 99

Notas de Campo

Hoje o prefeito esteve na prefeitura. Havia uma reunião com uma comissão da CAEMA, vinda de São Luís. O Carlos, da Secretaria de Ação Social, é quem está à frente das negociações de um convênio que visa à implantação do sistema de abastecimento de água e melhoria sanitária em toda a cidade. Segundo Carlos, no início da gestão do “finado Paulão” havia recursos para implantação do sistema de água de abastecimento em toda a cidade, só que a Irmã Elisa não fez nada. Atualmente o prefeito estaria tentando negociar recursos para esta finalidade e trazer a CAEMA para o município. A reunião era apenas o início das negociações com a CAEMA e não havia nada de concreto. Mas o prefeito também já estava em negociação com candidatos a deputado nas próximas eleições: quem implantar a água em Maracaçumé terá o voto dele (ou seja, de todo o município).

Segundo informações obtidas na representação da FUNASA70 no município, não há nem cem casas em Maracaçumé que recebem água diretamente dos poços da prefeitura. Quando não se tem água encanada fornecida pela prefeitura, os poços são geralmente cavados nos quintais (Figuras 64a, 64b, 64c, 64d, 65a e 65b).

70 A FUNASA já possuiu um escritório em Maracaçumé, com sede própria. Segundo informações obtidas neste local, ainda há trabalhando ali dois funcionários vinculados empregaticiamente ao órgão. Segundo um deles, Sr. Dalton, que ocupa o cargo de coordenador, o trabalho da FUNASA consiste basicamente numa ação voltada para a prevenção da malária e da dengue. Os dezoito Agentes Vetoriais que executam este trabalho junto à população são contratados diretamente pela prefeitura. Na percepção do Sr. Dalton, as mudanças na política de atuação da FUNASA, determinadas pelo nível federal, trouxeram prejuízos para a população do município: ter deixado por conta da administração local a contratação de pessoal e a gestão das ações executadas pela FUNASA teria sido um erro porque a prefeitura não contratou o número de funcionários necessários para cobrir todo o município e os agentes não passaram por nenhum treinamento (o de saber burrifar, por exemplo). O cargo de agente teria sido distribuído pelo prefeito para cumprir promessas de campanha, sendo a maioria dos contratados composta de jovens. Outro problema apontado pelo Sr. Dalton teria sido a apropriação por parte da prefeitura do pouco que sobrou da estrutura da FUNASA no município. A FUNASA hoje não conta com carro, que fica na prefeitura, e nem com a voadeira, que foi emprestada pela prefeitura para não se sabe quem e nunca foi devolvida. Há também a questão da aparelhagem para o exame de esquistossomose. A gerência estadual mandou o equipamento para Maracaçumé, mas a aparelhagem está guardada por falta de técnico capaz de operá-la. A prefeitura nunca enviou para São Luis uma pessoa para fazer um treinamento. Ainda segundo Sr. Dalton, a FUNASA não faz nenhum trabalho com a comunidade direcionado para a questão do uso e tratamento da água. Também não tem feito aplicação de cloro porque há muito não recebe o produto. Além disso, os açudes artificiais construídos pela ex- prefeita no quadro de um projeto social ligado a piscicultura, hoje completamente abandonados, acabaram se tornando um problema para o município que a FUNASA não tem como solucionar. 100

Figura 64 – (a), (b), (c) e (d) – Poços nos quintais.

Figura 65 – (a) e (b) – Poços nos quintais.

Há aqueles que o constroem na frente de casa. Na gestão anterior da prefeitura foram distribuídas, entre uma pequena parte da população, manilhas de cimento para o acabamento desses poços (Figura 66).

Figura 66 – Poços na rua.

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O regime de abastecimento da água distribuída pela prefeitura para as residências particulares é intermitente, ou seja, uma rua de cada vez e em horários pré-estabelecidos. Por isso, mesmo tendo água encanada, os moradores que usufruem desse serviço costumam armazená-la. E, às vezes, têm problemas com a água distribuída pela prefeitura, que pode não vir diretamente de um de seus poços.

A prefeita anterior me deu a água do colégio, só que eles trancam o registro lá na delegacia. [...] A encanação é dentro da delegacia e, quando eles trancam, a gente fica três dias sem água. A pessoa pra banhar, tem que banhar no poço mesmo, mas a água não presta. [...] Tem dia que das crianças chegarem desse jeito aí, arriadas, e irem dormir sem banhar porque não tem água.

Funcionários da prefeitura informaram que as bombas ficam ligadas vinte e quatro horas – não sei como agüentam, disse um deles – e os poços não passam por nenhuma limpeza. Falaram também que a prefeitura não possui recursos para fazer a ligação dos poços com todas as residências, mas que se dispõe a instalar água para quem quiser, basta a pessoa comprar os canos e a torneira. Assim justificam o fato de, na mesma rua, existirem casas com água encanada e casas sem o abastecimento de água da prefeitura71. Um técnico da Secretaria de Agricultura Meio Ambiente descreve toda essa situação:

São poucos os poços que não têm poluição. Acho que é porque não tem um saneamento básico, as fossas são muito próximas aos poços e muita gente não usa fossa privada. Sabemos que existe muita dificuldade que esses poços da prefeitura não têm horário de funcionamento, quer dizer, não funcionam o tempo todo [...]. Sabemos que é uma verdadeira ação de economia, porque eles não têm uma caixa grande.Então, quando eles fornecem para uma rua, eles fecham para outra. Mas a bomba é ligada direto. Não existe caixa d’água grande para acumular e descansar a bomba. Eles ficam direto mandando água para as ruas, o que não tem é caixa. Agora é que temos um poço maior, mas mesmo assim a caixa é pequena.[...]. De manhã, (a água) é para uma parte do bairro, e à tarde, é para outra. Na minha casa também é assim [..]. Acho que há muita resistência nessas caixas, nessas bombas que funcionam vinte e quatro horas direto [...]. Em alguns bairros daqui foram colocados bicos de torneira em todas as casas. Agora, em alguns bairros, era a pessoa quem

71 Um de nossos informantes, que exercia o mandato de vereador a época da nossa segunda permanência em campo, afirmou que o critério de locação dos poços da prefeitura e de distribuição de água sempre foi político e que muitos dos beneficiários dessa água não tiveram que comprar material para fazer a instalação. Daí a estranheza de encontrarmos uma casa com água abastecida pela prefeitura rodeada de inúmeras sem esse serviço. Certamente, segundo o informante, esse morador tinha boas relações com representantes do poder público local. 102

solicitava. O cano geral passava na rua, então você tinha que comprar o cano e a torneira para fazer a ligação na sua casa. Você pode solicitar a água da Prefeitura, mas o cano e a torneira é por sua conta. Essa é a razão de nem todos terem a água. (Para solicitar), é só você dar o endereço que a Prefeitura manda as pessoas para fazerem a instalação.

Em agosto de 2005, havia um movimento de trinta e quatro moradores do bairro da Mangueira que encaminharam ao prefeito, no dia vinte e oito deste mês, um abaixo-assinado reivindicando a instalação de água encanada.

Abaixo- assinado

Os moradores abaixo-assinado, moradores da Rua Tiradentes, localizados no quarteirão próximo a Delegacia da polícia Militar, solicitam à V. Sra. a encanação de água potável, ao quarteirão acima citado. Comunicamos a Vossa Excelência que a distância máxima de conexão com a rede hidráulica na Almirante Tamandaré é de cento e cinqüenta metros.

A líder do movimento, Dona Clemilda, explica a reivindicação, revelando que a instalação da água encanada não é tão simples:

Queremos que o prefeito dê o cano geral, entende? O cano que sai da Delegacia até ali, que ultrapassa a minha casa. Para a casa da gente, a gente arruma um dinheirinho e puxa a água. A gente quer que ele cave a vala e puxe com o cano grosso. Estamos torcendo pra dar certo.

O Sistema de Informação de Atenção Básica – SIAB (ano 2005) confirma as observações sobre a limitação do alcance da rede pública de abastecimento de água.

Tabela 12 – Abastecimento de água – Proveniência Famílias Cadastradas: 4.066 Fonte: SIAB - 2005. Proveniência Número de casas Freqüência (%) Rede pública 701 17,24 Poço/Nascente 2873 70,66 Outros 492 12,10 Total 4066 100

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5.3.6 Lixo e Limpeza Pública

Desde fevereiro de 2005, a prefeitura contatou vinte e cinco pessoas para a varrição (Figuras 67a e 67b). Antes este serviço estava restrito à rua grande, onde também havia e ainda há pontos de coleta. Contudo, apenas esta rua – ou seja, os dois lados BR 316 – é varrida diariamente. Na segunda-feira, por causa da feira e do final de semana, a equipe só trabalha nesta área. Na terça-feira, quarta- feira, quinta-feira, sexta-feira e sábado pela manhã varrem as ruas de dentro, mas apenas as mais próximas do centro (rua grande).

Figura 67 – (a) e (b) – A turma da varrição. Um trator com carroceria percorre a cidade recolhendo o lixo e a poda. (Figura 68). Tudo é levado para o lixão. A caçamba da prefeitura, novinha e própria para este fim, não recolhe lixo. O caminhão freqüentemente circula pela cidade, mas a prefeitura o utiliza para outras finalidades como, por exemplo, transportar argila e areia para os oleiros, sempre a pedido do prefeito, que utiliza o veículo para fazer favores pessoais.

Figura 68 – Trator de coleta de lixo.

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O lixo de Maracaçumé, inclusive o hospitalar, que tem alguns cuidados especiais nas unidades de saúde, é jogado a céu aberto e é todo misturado quando chega ao lixão. Segundo informação de um dos funcionários da FUNASA, na época das chuvas todo o lixo vai parar no rio. O mesmo relata também que fizeram limpeza em algumas fossas da cidade e jogaram as fezes no lixão. Com a cheia tudo foi parar no rio e, embora a prefeitura tenha proibido o seu uso por causa dessa calamidade, as pessoas, como de hábito, continuaram a freqüentá- lo. O lixão situa-se afastado das áreas residenciais da cidade e é freqüentado por algumas mulheres que catam lenha e madeira para fazer carvão, usado para consumo próprio. Essas mulheres construíram um forno ao lado da área onde o lixo é despejado. Para ter acesso ao forno é preciso atravessar uma montoeira de lixo em companhia de bandos de urubus (Figuras 69a e 69b).

Figura 69 (a) e (b) – Lixão.

Em dias de festa e de muito movimento na cidade, adultos e crianças percorrem as ruas em busca de latinhas vazias de cerveja e refrigerante. Há um comprador na cidade que as leva para vender em Santa Helena, de onde o intermediário envia a mercadoria para São Luís. Em Maracaçumé, embora haja serviços de coleta e varrição públicos em algumas áreas, o lixo se espalha pelas ruas. Não há sequer uma lixeira pública, e quanto mais se caminha em direção aos limites da cidade, mais essa situação salta aos olhos. Toda sorte de lixo – restos de comida, papéis, plásticos, vidros – é jogada em terrenos baldios e nas ruas, freqüentemente se misturando às águas que escorrem dos quintais.

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A queima e o enterramento do lixo são práticas habituais. O mais comum é que essas operações sejam realizadas no próprio domicílio, mas podem também ser feitas em outros locais. Temos, por exemplo, o caso de moradores de uma área perto do rio que utilizam um terreno baldio da vizinhança para despejar o lixo e depois queimá-lo, quando este se acumula.

Notas de Campo

Dona Maria mora pertinho do rio e reclamou que não existe vasilha para botar o lixo. Segundo ela, essa área da cidade não existe (para a prefeitura). Depois das eleições, a coleta passou duas vezes na rua e nunca mais voltou: Eles só andam aí no tempo da política, depois não aparece mais. Agora só fazem benfeitoria pra dentro da rua... Já pedi a vasilha pra o lixo, mas nunca que eles colocam. Pediu para quem? Para a assistente social, respondeu. Ela e a vizinhança costumam colocar o lixo na rua, perto de um terreno baldio, e toca fogo de tempos em tempos, principalmente antes do inverno porque senão o lixo todo acaba parando no rio. Disse que no inverno sua casa não inunda.

Deparamo-nos também com um caso em que o proprietário aproveitava o lixo para tapar um buraco cavado para um poço cuja água não deu boa. Constatamos que a mesma solução estava sendo utilizada para resolver o problema dos buracos das fossas não construídas cavados pela empresa contratada para realizar as obras dos kits de Melhoria Sanitária Domiciliar – MSD72. O Sistema de Informação de Atenção Básica – SIAB (ano 2005) nos fornece os seguintes dados sobre a situação do lixo em Maracaçumé:

72 Como ação ligada ao Projeto Alvorada estava prevista a construção, no Bairro Cidade Nova, na sede do município, de quatrocentos e cinqüenta e quatro kits de MSD, dos quais apenas cento e cinqüenta foram implementados, no primeiro semestre de 2003. Como ação da FUNASA foram implementadas sessenta e uma unidades no povoado Cajueiro, construídas na mesma época. A má execução dessas obras, deixadas inacabadas, é bastante criticada pela população beneficiária e pelo poder público local. Para maiores detalhes ver Apêndice 7. 106

Tabela 13 – Destino do lixo Famílias Cadastradas: 4.066 Fonte: SIAB - 2005. Destino Número de casas Frequência (%) Coleta pública 1695 41,69 Queimado/Enterrado 982 24,15 Céu aberto 1389 34,16 Total 4066 100

Cabe observar que, embora o percentual da coleta pública pareça alto, esse serviço, como foi dito, cobre apenas algumas áreas da cidade. A população dos bairros mais pobres não conta com a coleta pública.

5.3.7. Saúde – estrutura do município

A saúde é percebida, principalmente por parte dos representantes do poder público do município, como um problema sério, grave. Contudo, há um consenso de que a Secretaria de Saúde é o melhor setor da prefeitura, a mais bem equipada e preparada para enfrentar os problemas que desafiam a administração municipal. Em agosto de 2005, o município contava com cinco equipes do Programa Saúde na Família – PSF73. Ao todo deveriam estar trabalhando vinte e cinco pessoas, cinco em cada equipe (um médico(a), um enfermeiro(a), um auxiliar/técnico de enfermagem, um dentista e um agente comunitário), mas as equipes ainda não estavam completas. Só havia três médicos e um dentista contratados. Ainda, pela prefeitura, estavam contratados dezoito agentes vetoriais que executavam as ações da FUNASA e cinco agentes de saúde vinculados à Vigilância Sanitária. A Secretaria de Saúde possui uma boa estrutura, tanto humana quanto material. Diferentemente do restante das secretarias, que funcionam no turno da manhã e em expediente corrido adotado pela prefeitura, a de Saúde costuma estender o horário de trabalho e funciona internamente durante a tarde

73 Para um breve comentário sobre a atuação do PSF no município, ver Apêndice 9. 107

praticamente todos os dias da semana. A secretária de Saúde, Dona Leonice (Leo), ex-presidente da Associação dos Moradores de Maracaçumé e Adjacências, assumiu o cargo em janeiro de 2005. Embora, como afirmou, não estivesse tecnicamente preparada para exercer tal cargo, pode sempre contar com uma boa assessoria. A Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão oferece- lhe total apoio. Uma técnica da Secretaria Estadual, com experiência em gestão, passa a semana em Maracaçumé orientando a equipe da prefeitura. Dona Leonice, depois que assumiu o cargo de secretária, empregou duas filhas na Secretaria de Saúde. A distribuição de cargos públicos entre parentes e amigos, ou seja, o nepotismo, é uma prática trivial e naturalizada pelos moradores do município. A maior parte do quadro da prefeitura é renovada a cada gestão. Além de bem equipada em veículos, que possibilitam a fácil mobilidade de seus funcionários e técnicos, a Secretaria de Saúde também possui cinco computadores ligados on-line com o Ministério da Saúde e a Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão – as “tecnologias do governamental” chegaram a Maracaçumé74. Quanto ao atendimento da população, há três Postos de Saúde na sede municipal e uma Unidade Mista, conhecida como Posto da Mangueira (Figuras 70a e 70b). Na área rural existem os Postos de Saúde dos povoados Cajueiro e Jacy (Figura 71a). Há também um hospital privado, o Hospital São Francisco (Figura 71b). Este tem uma estrutura física relativamente boa, mas está largado e os equipamentos apresentam sinais de deterioração. O hospital é conveniado com o SUS e faz atendimento cirúrgico (basicamente partos e pequenas cirurgias), ambulatorial e odontológico (este só particular). Não há plantão e

74 Chatterjee (2004), resgatando noções foucaultinas, chama a atenção para o fato de que, ao longo do século XX, a proliferação do governamental implicou na adoção de “tecnologias governamentais”, um dispositivo de poder, para promover o bem estar da população. As atividades do governamental demandaram cada vez mais classificações múltiplas, entrecruzadas e variáveis da população enquanto alvo de inúmeras políticas públicas. Produziu-se, assim, uma diferenciação entre “populações” e “cidadãos”. Distintamente do conceito de cidadão, portador de uma conotação ética na soberania do Estado, o conceito de população habita o domínio das múltiplas políticas públicas de segurança e bem estar. Populações são identificáveis e classificáveis, são objeto de técnicas estatísticas. Desse modo, o conceito de população possibilita ao governo acessar a uma série de instrumentos racionalmente manipuláveis tendo em vista a alcançar largos setores de habitantes de um país enquanto alvo de suas políticas públicas. Não se trata de habitantes da jurisdição territorial do Estado, tidos necessariamente como cidadãos, membros da sociedade civil, mas de populações visadas e controladas pelas agências governamentais. 108

atendimento emergencial. Dr. Francisco, ginecologista, dono do estabelecimento hospitalar e ex-prefeito da cidade, em agosto de 2005 era o único médico do hospital. Ele também é contratado pelo PSF e atende no Posto de Saúde do bairro Carioca duas vezes por semana.

Figura 70 – (a) e (b) – Unidade mista – Posto de saúde do bairro Carioca.

Figura 71 – (a) Hospital e (b) Posto de saúde do Cajueiro (área rural).

Notas de Campo

Logo na entrada da Unidade Mista, havia afixado na parede uma nova lista com nomes de mulheres que deveriam procurar o posto para buscar o resultado dos exames citológicos (preventivos). A fila para marcação de consultas, que começara a se formar antes do sol nascer, estava enorme e também os bancos de espera para atendimento estavam todos ocupados. No edifício ainda existem algumas salas vazias, sem uso. Há, em funcionamento, a farmácia, o laboratório, a sala de marcação de consultas, a sala da administração, a sala de curativos, a sala de imunização, dois consultórios médicos e um gabinete odontológico. Nas paredes estavam espalhados cartazes do IEC (Informação, Educação e Comunicação) de campanhas de amamentação e de prevenção da hanseníase. Existe uma sala especial, um pouco isolada, para os portadores desse mal. O Posto da Mangueira é o principal centro de controle da doença. A Unidade Mista é equipada para realizar exames oftalmológicos e ginecológicos. A sala de cirurgia, com alguns equipamentos encaixotados, não funciona. O lixo hospitalar é colocado em sacos de plásticos e trancado com cadeado num depósito do lado de fora. A prefeitura o recolhe uma vez por dia.

109

Parte do atendimento da população de Maracaçumé se dá no município vizinho, Governador Nunes Freire (Encruzo), onde existe o Hospital PROEBEM, que é particular, mas conveniado com o SUS75. O hospital também atende outros municípios próximos e recebe casos de emergência, mas não dispõe de UTI.

5.3.8. Saúde – quadro epidemiológico

A hanseníase é apontada pelos técnicos da Secretaria de Saúde como a doença mais preocupante no município, principalmente porque, segundo eles, há uma dificuldade das pessoas afetadas pelo mal de aderirem ao tratamento. Geralmente, trata-se de pessoas que passaram alguma temporada em área de garimpo. Em julho de 2004, segundo informação da então Secretária de Saúde, dos cinqüenta e nove casos identificados na cidade, apenas trinta estavam em tratamento. Nesta ocasião, medidas extremas estavam sendo tomadas: a polícia, por instrução da Secretaria de Saúde, chegou a prender um portador da doença para que iniciasse o tratamento. Dados colhidos na prefeitura revelam que, de 1994 a 2005, duzentas e trinta e sete pessoas passaram pelo sistema. No mês de agosto de 2005, havia o registro de quarenta e sete casos em tratamento. Contudo, técnicos da Secretaria de Saúde fizeram questão de assinalar que o registro no sistema não correspondia à situação real, pois existiam pessoas que já tinham terminado o tratamento e que ainda constavam como infectadas. Na prefeitura, cartazes abordando o tema da hanseníase são encontrados por todos os lados. O IEC (Informação, Educação e Comunicação) costuma

75 As cotas do SUS para atendimento de pacientes de Maracaçumé em Governador Nunes Freire são as seguintes: Raio X = 151; Ultra-sonografia = 30; Patologia clínica = 881; Fisioterapia = 178; Cardiologia – 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Cirurgia geral = 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Oftamologia = 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Ortopedia = 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Psiquiatria = 6 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Pré- anestesia = 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês); Urologia = 22 (atendimento apenas 2 vezes ao mês). Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Maracaçumé. 110

organizar palestras sobre a doença e distribuir material informativo enviado pelo Ministério da Saúde76. Quanto à tuberculose, de 1994 a 2005, setenta e quatro casos foram registrados no sistema. Em agosto de 2005 havia o registro de trinta e cinco casos. Os casos de malária, segundo informação obtida junto aos agentes vetoriais que se ocupam do controle e prevenção da doença, não são muitos. Quando existem, são “exógenos”, ou seja, são pessoas que, saídas principalmente das áreas de garimpo, vão para Maracaçumé em busca de tratamento. A malária já chegou a ser preocupante no município, mas na atualidade é considerada uma doença absolutamente controlada. Dados oficiais sobre a ocorrência de diarréia/desidratação em crianças revelam que as taxas de morbidade em decorrência desse mal são mais elevadas em Maracaçumé do que no estado do Maranhão e no Brasil (Tabela 14). O farmacêutico local, Sr. Rubens, confirma essa situação, relatando que no inverno, período das chuvas, os casos de diarréias causadas por verminoses são inúmeros. Tal informação também foi confirmada informalmente por técnicos da área da saúde da prefeitura e por moradores da cidade, principalmente os que têm filhos ainda crianças, que tanto podem recorrer aos postos de saúde como ao farmacêutico em casos emergenciais.

Notas de Campo

Segundo Sr. Rubens, as verminoses (principalmente ameba e giárdia) e as doenças a elas associadas são o que mais levam as pessoas a o procurarem. O quadro se agrava com a chegada das primeiras chuvas, em meados de novembro: as mães chegam aqui com as crianças quase morrendo... não chegam a morrer, mas ficam muito mal. Até nas galinhas dá diarréia. Nesta época chega a vender mil unidades de remédio para verme por mês. Segundo Sr. Rubens, no inverno a água de Maracaçumé fica imunda [...] Poucos usam o filtro, o povo aqui é ignorante, você sabe. E ninguém educa. São poucos os que tratam a água. Em tom jocoso, disse que se a água em Maracaçumé fosse tratada, teria que fechar o seu comércio. Sr. Rubem lembrou do açaí, referindo-se ao fruto como um grande veneno por causa da água utilizada para fazer a poupa. Nesta época do ano (agosto) o açaí ainda está verde e o consumo é baixo.

76 O IEC foi o responsável pela implementação do PESMS no município, mas não houve uma ação continuada e o programa desapareceu. Sobre o IEC/PESMS, ver Apêndice 8. 111

Tabela 14 – Indicadores de moralidade e morbidade – Município de Maracaçumé Fonte: Ministério da Saúde INDICADORES EPIDEMIOLÓGICO DE MORTALIDADE Maracaçumé Maranhão BRASIL SIM/SINASC - 2003 Número de óbitos de menores de um ano 1 2.461 57.372 Número de nascidos vivos e notificados 312 127.920 3.033.829 Taxa de mortalidade infantil (%) 3,21 19,24 18,91 Número de óbitos de mulheres em idade fértil notificados 3 1.907 63.902 Taxa de mortalidade materna (%) 320,51 68,79 50,66 MORTALIDADE PROPORCIONAL POR GRUPO DE CAUSAS SIM/SINASC – 2003 Algumas doenças infecciosas e parasitárias 5,88 6,33 5,15 Neoplasias (%) 5,88 9,08 14,88 Doenças do aparelho circulatório (%) 52,94 25,30 30,26 Doenças do aparelho respiratório (%) 5,88 7,85 10,79 Algumas afecções originadas no período perinatal (%) 11,76 17,58 7,38 Causas externas (%) 5,88 14,17 13,99 Mortalidade proporcional por causas mal definidas (%) 46,88 35,06 12,88 MORBIDADE SINAN 2003 (1) / SIAB - 1o SEM/2004 (2) / SIH 2003 (3) Taxa de incidência de tuberculose (1) (%) 63,53 46,87 41,74 Taxa de prevalência de hanseníase (1) (%) 59,09 20,17 6,75 Prevalência de desnutrição em menores de 2 anos (2) (%) 9,39 6,13 Risco nutricional em crianças de 6m a 6 anos (modelo 23,53 16,16 13,08 preditivo – 2000) (%) Taxa de internação: por acidente vascular cerebral (3) (%) 75,58 55,80 51,66 por cetoacidose e coma diabético (3) (%) 0,64 1,39 1,22 por diarréia/desidratação em menores de 5 anos (3) (%) 25,45 22,01 18,17 por IRA em menores de 5 anos (3) (%) 27,73 31,68 32,39

5.3.9. Do acesso à água por parte da população: vivendo sob o signo da adversidade

Não restam dúvidas, diante das informações até aqui apresentadas e respaldadas por dados fornecidos por órgãos governamentais, sobre a precariedade da infra-estrutura de saneamento básico – água, lixo, esgoto – no município. Representantes do poder público local reconhecem o problema e suas repercussões sobre a saúde da população, sendo que principalmente a má qualidade da água é apontada como motivo de inquietação. Alguns fazem referências a provas científicas – resultado de exame laboratorial – para dar legitimidade a um discurso baseado em observações empíricas: excrementos humanos e animais entram em contato com a água, tornado-a imprópria para o consumo.

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Embora tenhamos ouvido falar, nunca tivemos acesso ao exame da água de Maracaçumé e do seu resultado indicando um elevado índice de coliformes fecais. Inclusive a ex-prefeita, em entrevista que nos concedeu ainda no exercício do cargo, fez várias referências a esse exame laboratorial. Todas as vezes que pedimos para ver o exame o assunto foi desviado. Saímos de seu gabinete com a promessa de que receberíamos uma cópia, o que não chegou a ocorrer. Sobre a água de Maracaçumé, declarou a ex-prefeita naquela ocasião:

Todos os poços da cidade estão contaminados. Eu lhe digo como prefeita municipal que o meu poço, da minha casa, é um cacimbão. Bem apegado ao meu poço, não dá três metros, tem a fossa da minha vizinha. Então eu vou lhe dizer com toda a clareza: a gente bebe suco, pra não dizer a palavra, de ameba. Entendeu o que eu quis dizer?

Nas percepções do poder público local, a maior parte da população de Maracaçumé consome água contaminada e ignora que nela há a presença de microrganismos maléficos, causadores de doenças.

Água: percepções de técnicos, gestores e decisores locais

“(Os cinco poços da prefeitura) não atendem às necessidades da água. Outra coisa: a pior água da região está em Maracaçumé. A água aqui é grossa e amarela [...]. Já foi comprovado através de laboratórios e a prefeita (ex-prefeita) dizia isso com muita freqüência, mas a história não mudou. O índice de verminose aqui é muito alto. Aqui tem pessoas com problemas intestinais, com problemas renais [...]. Em Maracaçumé há um surto de complicações renais como em nenhum outro lugar. Temos, no mínimo, seis casos de pessoas que já estão condenadas à morte por conseqüência da água” (Vereador, ex-coordenador do IEC).

Você vai pegar a água e colocar num copo. Por mais que você não tenha nenhuma informação, você vai perceber que é uma água grossa, pesada. [...]. Todo mundo aqui apresenta problemas. É isso que eu chamo de péssima qualidade da água (Coordenadora do IEC).

A nossa água não tem boa qualidade. Tem um alto índice de coliformes fecais. Pelo que os agentes de saúde trazem para a gente, a questão das principais doenças, que são as verminoses, são questões ligadas à água em si, à falta de tratamento (Assistente Social).

Aqui cada qual faz o seu poço, mas a água não é tratada não. O poço da prefeitura, cavado bem fundo, distribui água do jeito que vem da terra, mas não é água tratada não. [...]. A gente bota água na vasilha, vai indo, vai indo, ela assenta, aquele horror de coisinha assim, chega mexe, cheio de coisinha amarela dentro da água. E a água é fedorenta, aquele cheirão de uma coisa como se fosse uma urina, tá com três dias no vaso. Meu poço tem doze metros de fundura, mas quando você tira água de dentro do poço, é mesmo que você tocar fogo num monte de fósforo. É limpinha, limpinha, limpinha, mas o cheiro...Quando ela tá caindo lá na caixa, a gente fica tomada por aquele cheiro. [...]. No meu quintal já foi cavado quatro lugar e a água dá cor de chocolate, fedorenta. Quando dá limpinha, é com mau cheiro” (Secretária de Saúde e ex- presidente da Associação de Moradores de Maracaçumé e Adjacências) foto

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A água de Maracumé é ferrosa e passa o gosto para a comida. A água daqui só serve para tomar banho. [...] Tá vendo como a água é transparente? Mas tem um gosto muito ruim. Jogo água sanitária no poço, mas não adianta (Técnico Administrativo do INCRA).

As condições de saúde em Maracaçumé são associadas, desse modo, à qualidade da água e à falta de saneamento básico. Corroboraria para agravar a incidência de doenças no município costumes culturalmente arraigados, evocados por uma assistente social:

Temos alguns casos graves relacionados aos hábitos da população com relação aos cuidados com a alimentação, cuidados com a água. A população aqui não tem o costume de tratar a água. Culturalmente, a pessoa ainda está meio assim, a achar que não é necessário. Eles caem no cúmulo de achar que se botar a água na geladeira, a água está tratada. Eles não têm o cuidado de ter um filtro em casa, embora a gente faça campanha, distribua informações sobre esse problema.

A população, em geral, considera que a água em Maracamumé não é muito boa, mas o maior problema não seria exatamente as doenças por ela veiculada, sobre o quê não costumam fazer alusões, e sim as suas características físicas, como gosto, cheiro e cor. A proximidade dos poços e cisternas é uma das razões apontadas pelos moradores para o fato de a água muitas vezes apresentar gosto ruim, mau cheiro e coloração escura. A partir das características físicas apresentadas pela água estabelecem os seus usos – lavar roupa, cozinhar, beber, tomar banho, entre outros. Observa-se que muitos sabem que é recomendável manter a fossa distante do poço, mas ter água boa não dependeria apenas desse cuidado; seria também uma questão de sorte: a água dá e, dependendo de onde se cava, pode ser melhor ou pior. E quando a água não dá boa, a tendência é abandonar o poço cavado e tentar furar outro em um novo lugar ou buscar a solidariedade da vizinhança para se abastecer de água boa. Encontramos em Maracaçumé muitas situações como essa em que, após cavado o poço, a água encontrada pelo morador não foi considerada boa. Foi o caso de Dona Gilda, moradora de um dos bairros mais pobres da cidade, num casario próximo aos seus limites, que mantinha um poço na frente de sua casa, rodeado de piso cimentado, e que, segundo ela, não era muito utilizado porque a

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água dá ruim, amarela e no verão seca. A roupa podia ser lavada com aquela água amarela, mas não servia para outros usos: pra tomá, cozinhá, banhá, pego água da vizinha, que ela tem água de torneira. Dona Gilda costumava pegar água com a vizinha de frente, pois ela tinha água encanada, água de beber, água muito boa, limpinha, vinda de um dos poços da prefeitura. Ao visitarmos a casa da vizinha, constatamos que, na verdade, não se tratava de “água encanada”, e sim de um cano ligado ao poço da prefeitura situado no quintal e no qual havia sido instalado uma torneira. Como a torneira estava quebrada, a água não parava de jorrar e o balde, posicionado para apará- la, transbordava, fazendo empoçar todo o solo ao seu redor. Aproximadamente dez famílias da vizinhança utilizavam esse ponto de água. Quem tem água da prefeitura, se sente privilegiado, embora a água seja distribuída em regime intermitente e não seja tratada, como informaram pessoas ligadas à administração municipal. Dona Firmina, moradora do Bairro da Mangueira, próximo ao centro, tinha água de torneira em casa e a considerava muito boa. A água encanada vinha de um dos poços da prefeitura. Havia uma única torneira que ficava instalada no quintal, bem perto da porta dos fundos. Costumava armazenar a água para beber num filtro. Para cozinhar, lavar louça, lavar roupa e tomar banho, Dona Firmina usava a água de balde, que é aquela que, após recolhida da torneira, fica mais exposta. Há, no entanto, muitos casos em que toda a água consumida é apanhada na vizinhança, como o de Dona Aparecida. Em sua casa não existe poço, pois o quintal é muito pequeno. Ela busca a água de beber e a de cozinhar num vizinho que limpou o poço há pouco tempo. A utilizada para banhar, lavar louça e lavar roupa é trazida do poço de um outro vizinho que não limpa o poço faz muito tempo. Dona Gil, que também tem um quintal minúsculo e alega ser este o motivo de não ter cavado poço, apanha água no vizinho, que tem um quintal maior. Ela côa a água de beber e a armazena num pote de barro: a água tem um cheiro ruim... é amarela. Costuma lavar a louça e a roupa no rio, que é próximo a sua casa. Onde morava, antes de se mudar para Maracaçumé, a água era distribuída pela CAEMA: lá tinha uma água boa. Nesta outra localidade, pagava pela água que consumia. Ela afirma que não se importaria em pagar pela água em 115

Maracaçumé, desde que ela fosse boa – quando paga, a gente aprende a economiza a água –, e que utilizaria a água da CAEMA para beber, banhar, lavar louça, roupa, enfim, para tudo. Mas continuaria usando o rio porque gosta de sua água, que é água grande. Dona Clemilda, líder do movimento de moradores do bairro da Mangueira que reivindica à prefeitura a instalação de água encanada em suas residências, não possui poço e justifica-o pelo fato de no seu terreno já terem sido cavadas muitas fossas. Sua mãe, há alguns, anos teria mandado cavar um poço, mas a água não prestou encheu de bagulho: é lata é pau. D. Clemilda se abastece de água para cozinhar utilizando uma mangueira que é ligada a torneira do quintal da vizinha, usuária da água da prefeitura (Figuras 72a e 72b).

Ela sempre me dá água, graças a Deus. Eu encho os dois pneus, encho os baldes, encho os litros todos e vou cozinhando com essa água. Não tem filtro, né? Isso fica por uns dois ou três dias.

Para o banho,

as pessoas vão se banhar na casa dos vizinhos, ou então eu saio pedindo. A gente fica agoniada pra banhar as crianças. [...] (Para lavar roupa) eu sempre lavo ali no poço da vizinha [...].O pessoal é todo meu amigo.

Dona Clemilda considera que a água de poço, ao menos daqueles que utiliza,

não é muito boa. Bom é água encanada: a água (de poço) tem um travozinho, não sei se é por causa das fossas. (...) Tem um gosto ruim, um gosto travozinho. O jeito é ir tomando, fazer o quê?.

Figura 72 – (a) Filhos de D. Clemilda apanhando água da vizinha através da cerca. (b) D. Clemilda lavando os peixes do jantar com a água da vizinha.

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Dona Raimunda tem no seu quintal um poço sem revestimento, com água turva e bastante fedorenta77. Ela utiliza esta água para tudo: beber, cozinhar, lavar louça, lavar roupa e banhar. O poço, segundo ela, havia sido limpo no final do inverno (final de julho e início de agosto). Durante o inverno o quintal alaga, pois a casa foi construída no baixo. Neste período, a água do poço se mistura com a que inunda o quintal e Dona Raimunda pega água em outras casas da vizinhança: de torneira, de poço, tanto faz78. Ela considera uma luta pegar água de balde. A água de torneira foi prometida, mas nunca que eles colocam. Quem prometeu? Eles, os político. Eles prometi tudo na eleição. Contudo, considera sua água boa. Aponta o inverno, quando o poço enche, e o fato de ter que puxar manualmente a água do poço como grandes problemas. Já Dona Maria, não precisa recorrer a vizinhos. Embora não tenha água da prefeitura, a de seu poço, segundo ela, é bem limpinha [...]. Dei sorte porque a água deu boa. Tem uns vizim que aí que a água dá amarela, com cheiro ruim. O poço era revestido de tijolos, o que normalmente não se faz quando a água não é considerada boa. No inverno, época das chuvas, o poço de Dona Maria costuma encher, mas não derrama. Segundo ela, uma das pessoas da prefeitura que veio aqui pra faze uma ficha. Prometeram fazer um banheiro de tijolo e colocar água de torneira: nunca que fizeram. Conquanto tenha água boa, Dona Maria deseja a água encanada da prefeitura, não por ser melhor que a sua, mas porque, não tendo bomba, isso a pouparia da fadiga do trabalho de puxar o balde manualmente do poço. Dona Conceição, que também não recorre a vizinhos para se abastecer de água, possui um poço em seu quintal, mas sem revestimento porque não teve

77 A visita a casa de Dona Raimunda foi realizada em companhia de duas agentes vetoriais. Segundo as técnicas, há casas em Maracaçumé com água em muito pior estado do que aquele observado na casa de Dona Raimunda: a gente encontra aquela água amarela, com uma camada grossa de sujeira em cima. 78 Em Maracaçumé, os usos e práticas relacionados à água devem também ser pensados em termos sazonais. Ou seja: existem práticas associadas especificamente ao inverno (chuva) e ao verão (seca). O verão é tempo de limpar os poços, construir novas fossas, plantar e colher (na transição das estações), por exemplo. Não é um tempo bom para pescar e nem para andar pelo rio, pois as águas baixam. Já o inverno é tempo de inundação. Alguns poços transbordam, as olarias submergem, a água para o consumo humano reduz ainda mais a sua qualidade, implicando no aumento de doenças (verminoses, malária, dengue etc.). É tempo em que o rio enche, facilitando a sua navegabilidade e aumentando o número de peixes. Observa-se que o período de maior permanência em Maracaçumé para a realização da nossa pesquisa de campo deu-se no verão.

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dinheiro para fazê-lo. Ela fornece água para alguns vizinhos e a considera muito boa: graças a Deus eu posso dizer que a água que eu tenho é boa. Por ser limpinha, as roupas ficariam muito bem lavadas. A água do poço é utilizada para tudo e não é submetida a nenhum tratamento. Dona Conceição, como Dona Raimunda e Dona Maria, também gostaria de ter água encanada da prefeitura, pois não tem que ficar puxando água do poço. No final do dia tô com os braços doendo de ficar puxando água do poço. É o esforço físico de puxar o balde e não a água em si que é visto como um grande problema. Chama a atenção o modo como a maioria da população de Maracaçumé lida com a adversidade da qualidade da água e com as precárias condições de acesso a ela. Nem sempre a má qualidade da água é percebida como tal, inviabilizando o seu uso. A partir de uma classificação prévia, baseada em características físicas aparentes, os moradores no dia-a-dia se pautam por uma racionalidade para o seu consumo e criam estratégias para contornar o problema do acesso, como nos mostram os relatos anteriores. Além disso, a comunidade maracaçuenense se sente confortável no local de residência e considera bastante agradável a vida no município.

Aqui é muito bom, é agitado o ano inteiro.

A vivência aqui hoje é muito boa, muito melhor do que há vinte anos. Chega gente em Maracaçumé todo o dia e a cidade ainda vai se desenvolver muito mais.

Aqui é um lugar tranqüilo, sem violência, bom pra viver.

Embora reclamem da falta de rede pública de abastecimento de água e da ausência de outros serviços públicos urbanos, costumam enfatizar o quão se identificam com a cidade. Para alguns, não haveria outro local melhor no mundo. Observa-se também que, geralmente, não há na fala dos moradores da cidade menção à qualidade vida, tema que, no registro contemporâneo, está fortemente associado ao saneamento, sempre conectado à saúde e ao meio ambiente. As pessoas costumam falar não da qualidade, mas da vida, de como ela é, de suas rotinas, de suas labutas, de seus desejos e sonhos. Apenas gestores e decisores, representantes do governo local, fazem referência a uma

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qualidade de vida comprometida pelas precárias condições de saneamento. Nas palavras da ex-prefeita,

Aqui não temos qualidade de vida, se não temos água tratada, saneamento básico. A gente fala muito de qualidade de vida, e a minha declaração à senhora esta manhã é dizer: jamais teremos uma saúde de qualidade, uma qualidade de vida ou uma população em desenvolvimento, se não tiver saneamento básico. Você pode ter as melhores escolas, o melhor salário para dar vida boa à seus filhos, mas se não tiver saneamento básico em sua cidade, isso tudo vai por água abaixo, todos esses investimentos.

Realmente podemos nos perguntar: como alguém que bebe suco de ameba pode ter qualidade de vida? Como alguém que faz xixi e coco no quintal pode ter qualidade de vida? Como alguém que convive no cotidiano com lixo nas ruas, com esgotos escorrendo nos quintais, pode ter qualidade de vida? Afinal, o que vem a ser qualidade de vida? Parece claro que a noção de qualidade de vida possui subjetividades implicadas e, nesse sentido, a definição da Organização Mundial de Saúde – OMS, ao reconhecê-lo, provoca uma desestabilização nas idéias sedimentadas nos discursos e imaginações contemporâneas. O Grupo de Qualidade de Vida da divisão de Saúde Mental da OMS define qualidade de vida como “a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Esta definição baseia- se nos pressupostos de que “qualidade de vida é um construto subjetivo (percepção do indivíduo em questão), multidimensional e composto por dimensões positivas (p. ex. mobilidade) e negativas (p. ex. dor)”79. A definição de qualidade de vida da OMS pode de algum modo nos fazer entender o porquê não seria adequado afirmar que os moradores de Maracaçumé não têm qualidade de vida, posto que esta pode se expressar por uma pluralidade de formas. Contudo, da parte dos agentes governamentais, qualidade de vida é freqüentemente tratada de maneira que já supõe um significado consensual e fundamental. A noção, por parte desses agentes, é delimitada e balizada dentro do restrito contorno da saúde e saneamento.

79O Grupo de Qualidade de Vida da divisão de Saúde Mental da OMS é formado por pesquisadores ligados ao Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tivemos acesso, via internet, pesquisando no site da OPAS, à definição de “qualidade de vida” estabelecida pelo grupo. 119

Em Maracaçumé ouvimos por mais de uma vez: Dizem que quem bebe da água de Maracaçumé volta. Nota-se que, neste caso, a referência à água é extremamente positiva, vinculando-se a um modo de vida.

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6. Conclusão A cidade de Granjeiro, como vimos, tem sua paisagem marcada por um grande açude que parece dominar não apenas seu horizonte espacial, mas, sobretudo, sua vida cotidiana. Construído em meados do século passado, sua existência recente não impede que já tenha adquirido uma profundidade temporal que se perde na memória local. Não havendo referências aos tempos anteriores ao açude, o açude ganha humanidade a partir da lenda de que uma mulher ao ter um filho indesejado, o teria jogado dentro do açude antes de ser batizado, tendo a criança virado um mago, uma cobra enorme que puxa as pessoas para dentro das águas do açude80. Neste sentido, os granjeirenses chamam o açude de criminoso, dizem que ele chama a morte, que quando o açude geme, alguém vai morrer. O açude adquire, assim, uma personalidade quase humana, ele tem agência (geme, puxa e mata as pessoas) e a ele são atribuídos adjetivos morais (criminoso); sendo a ele, ou à cobra que nele reside e que com ele se confunde nas narrativas, atribuídas muitas mortes. É com relação às águas do açude que as demais águas em Granjeiro são classificadas, sendo a oposição entre açude e chafariz a dominante. Cada uma delas é possuidora de virtudes e perigos; estando longe de qualquer definição de qualidade da água nos termos físico- químico que orienta sua propriedade para o consumo humano. A água do açude é a água que após passar por tratamento da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE), é encanada e chega à casa de quase todos os moradores de Granjeiro. Contudo, esta água não é considerada de boa qualidade pelos moradores, sendo isto uma unanimidade entre os moradores da sede do município, enquanto entre os que residem nos povoados (os sítios) do município o mesmo não se verifica, pois a água encanada chegou há cerca de um ano e, diferente da sede onde o chafariz é outra possibilidade para o consumo, não há água alternativa considerada de qualidade. A água encanada continua sendo chamada de água do açude, sua qualidade por vezes não parece ter sido muito alterada, na opinião dos moradores, pelo tratamento da CACEGE e, quando tal transformação é apontada o é negativamente pela presença do cloro.

80 Cabe destacar que, segundo duas informantes adolescentes, este encantamento só se quebrará quando a criança vier a se encontrar com a mãe. 121

O manancial não é protegido e porcos e outros animais freqüentam suas margens, tais como, jumentos, gado e cachorros que bebem água, banham-se e defecam nas proximidades. Mas talvez sejam as lavadeiras e o lazer no açude que mais se destacam no sujar suas águas. Aqui é importante destacar que o preço da água não era o argumento principal nas falas dos moradores e, segundo os pesquisadores puderem averiguar, a água custa R$9,30 (nove reais e trinta centavos) se o consumo for até dez mil litros. Assim, apesar da água do açude ser tratada pela CAGECE e apresentar qualidade adequada para o consumo humano esta é usada principalmente para lavar louça e tomar banho e não para beber e cozinhar. Se o açude é a grande atração lúdica da cidade, sendo o lugar onde as pessoas se encontram para caminhar, tomar banho e pescar em suas águas, beber e comer nos bares às suas margens e, com menor freqüência, passear de barco, há um sentimento ambíguo com relação a esta utilização do açude, pois é ao mesmo tempo prazerosa, perigosa e poluidora, mas parece impossível imaginar os fins de tarde e os finais de semana na cidade sem estas atividades de lazer. A sugestão de cercar o açude, feita por uma adolescente, parece ser totalmente deslocada no contexto granjeirense; embora todos sejam críticos ao seu uso da forma como vem sendo realizado, nem sempre o banho em suas águas é considerado poluidor ficando numa categoria liminar expressa pela idéia de banho consciente. Desta perspectiva, qualquer proteção ao açude ou, dito de outra forma, de restrição ao seu uso, embora possa ser considerada apropriada do ponto de vista técnico há que levar em consideração sua centralidade na vida local, sob o risco de não obter os efeitos almejados. Contudo, existe uma atividade humana poluidora que não se enquadra nas abordadas até o momento e que tampouco o é assim considerada do ponto de vista sanitário: a cloração da água. Claramente reconhecida pelos moradores como uma ação que visa a melhorar a água, não é vivida desta forma por eles. É uma unanimidade em Granjeiro que o cloro faz mal: resseca a pele, prejudica o estômago e o fígado, provoca dor de barriga. Tais características não surgiram como inerentes ao cloro, mas ao seu uso em grande quantidade. Seria o excesso de cloro que faria com que a água adquirisse essas propriedades, levando as pessoas a rejeitarem não apenas a água clorada pela CACEGE, mas por vezes 122

também o cloro distribuído para ser posto na água de poços e cacimbas que forem para consumo. Muitos disseram não usar este cloro e foram vistos frascos de cloro às margens do açude nos locais onde as lavadeiras trabalham, indicando seu uso para o clareamento das roupas. O cloro usado para o tratamento da água apareceu como o principal foco de mal estar físico relacionado à água na perspectiva dos moradores. Diante deste conjunto de percepções comportamentais, afetivas, sensitivas e morais, a água do açude, mesmo após o tratamento da CACEGE, é considerada de qualidade muito inferior à do chafariz. A chamada água do chafariz é oriunda de um poço nas proximidades da cidade e que foi canalizada pela prefeitura para algumas bicas agrupadas em diferentes pontos na sede do município. Esta água, como apresentado anteriormente, é gratuita, sendo considerada de muito boa qualidade81. Precisa, contudo, ser buscada nas bicas em baldes ou latas e transportadas até as casas, havendo alguns rapazes que cobram para fazer este transporte82. Esta água é usada também para lavar calçadas, carros e motos, fazer a limpeza das casas e aguar plantas, às vezes, conectando-se mangueiras diretamente nas torneiras, mas em oposição à do açude, a água do chafariz é tida como boa para beber e cozinhar. Não é usual a prática de ferver-se a água, que é diretamente armazenada nos filtros de barro ou em recipientes grandes nos domicílios para o consumo. O fato de ser oriunda, segundo reza o conhecimento local, de uma profundidade de 25 metros explicaria sua qualidade (paladar e transparência), pois o contato humano e dos animais é tido como o componente principal de poluição das águas em Granjeiro e, neste caso, a água estaria fora de seu alcance. Não há críticas a esta água, que só não é usada por aqueles que moram longe das bicas e cujo esforço para trazê-la para a residência não compensa a sua preferência. Contudo, observamos que no transporte a água entra em contato com recipientes e mãos sem que estes passem por uma limpeza cuidadosa. Nas casas, grande parte dos recipientes de água não tem torneira na base, sendo a

81 Não foi possível saber se esta água é tratada antes de ir para as bicas; alguns moradores afirmaram que sim e outros que não, devendo o cloro distribuído ser usado nesta água também. Não conseguimos levantar informações técnicas junto à prefeitura, nem em campo nem posteriormente. 82 O transporte de dois baldes ou latões, carregados nas pontas de uma madeira sobre os ombros, custava cinqüenta centavos. 123

água para consumo retirada por canecas ou outros utensílios que são imersos na abertura superior do pote – que em geral está coberta. O meio de transporte e armazenamento da água, porém, não é visto como elemento contaminador importante, não havendo muita preocupação com o manejo. Se o tratamento pelo qual a água do açude passou após ser retirada não logrou alterar sua qualidade original, tampouco o manejo posterior da água extraída do poço da prefeitura parece ter a capacidade de modificar significativamente sua pureza. Assim a observação destes procedimentos e da própria estrutura física dos chafarizes revelou serem pontos vulneráveis à poluição da água, agravados pelo fato de a população não concebê-los como tais. Tampouco as autoridades locais o fazem, pois somente as bicas que foram construídas no centro da sede do município são protegidas por paredes laterais e superiores e por portas gradeadas, que em geral permanecem abertas; os demais chafarizes que ficam nos bairros pobres consistem apenas de torneiras. Deste modo, os chafarizes ficam na maioria das vezes expostos e os animais podem ter acesso às torneiras, embora isto não seja visto com freqüência, cuja água será bebida sem cloração, fervura ou filtragem prévia pelos moradores. A água da chuva não é muito tematizada e na hierarquia das águas parece ocupar um lugar secundário em relação ao açude e ao chafariz. Seu estatuto especial parece ser que a chuva possui, devido à sua mobilidade, tanto a capacidade de limpar quanto a de sujar. A chuva limpa o telhado, ficando conseqüentemente suja, mas suja o açude ao levar lixo e ao passar pelo cemitério arrastando consigo elementos impróprios. Originalmente limpa, a água da chuva não resistiria à exposição que sofre nos caminhos por onde passa; diferentemente das outras águas, sua qualidade originária não seria o elemento principal na sua classificação como pura ou impura, mas sim sua trajetória. Já os cacimbões são muito comuns e de uso intenso, mas raramente para consumo humano segundo nos informaram. Se sua água não é reconhecidamente de boa qualidade, isto não era considerado um problema, já que é usado para os animais e para a agricultura e os granjeirenses não relacionam estes usos com o adoecimento humano de qualquer espécie. Diante das diversas fontes e seus variados usos e práticas em função da qualidade atribuída à água e ao tipo de oferta disponível, verificamos como uma 124

característica de Granjeiro certa “atomização” hierarquizada das práticas envolvendo a água nas suas diferentes localidades. No caso da sede e das regiões abastecidas pelas águas do açude do Junco encontramos a seguinte preferência: Chafariz e açude. Em relação a sua utilização na Serrinha observamos maior apreço à água encanada, captada da vizinha Caririaçu, em seguida os poços. Em Serra Nova, temos: poços e água de chuva. Em outras localidades, onde há apenas a água de poço e cacimbões, o primeiro é preferido83. A pesquisa de campo em Granjeiro, recortada neste relatório sob o ângulo do sistema classificatório das águas e de seus usos, nos permitiu mapear as dimensões morais, simbólicas e relacionais dos recursos hídricos que são manejados pelas políticas públicas; revelando, assim, a importância de considerá- las na concepção e execução destas ações. Não basta implementar as obras de engenharia sanitária e posteriormente desencadear ações educativas junto à população. Granjeiro havia passado por campanhas educativas e de conscientização acerca do que, da perspectiva dos gestores públicos, seria o principal problema a ser resolvido no uso da água: o desperdício. A observação em campo indicou, contudo, que este não seria o problema central e, principalmente, que existe um gap entre a aquisição discursiva de idéias e sua incorporação costumeira. Claramente focada na economia de água as atividades educativas desenvolvidas foram eficazes em gerar uma fala padronizada sobre os malefícios do uso excessivo da água entre os moradores. Os pesquisadores ouviram de diferentes pessoas opiniões sobre a necessidade de se economizar água, observando, ao mesmo tempo, a lavagem de carros, calçadas e residências e o aguar de plantas sendo feitos com mangueiras abertas por longos períodos de tempo ou com muitos baldes de água. Pudemos inserir tal descontinuidade também no padrão de limpeza local que preconiza o lavar com água, em detrimento do uso de panos úmidos.

83 Os poços já foram a principal forma de abastecimento em Granjeiro, mas com a chegada das novas águas vêm perdendo importância e permanecem como alternativa principalmente nas localidades mais distantes da sede do município. 125

Embora seja preciso considerar que Granjeiro vivera meses atrás a estação de chuvas, muita fraca como foi ressaltado no local, a imposição de uma problemática exterior à vida da cidade parece ter sido decisiva neste descompasso. Por um lado, a principal questão para os moradores era a água do açude, sua poluição e seu gosto clorado, o que não foi sequer abordado nas campanhas. Por outro, a tradição campanhista das políticas sanitárias em nosso país peca por falta de continuidade e não se consegue mudar condutas e comportamentos por ações pontuais. Mas, principalmente, os moradores não foram considerados na concepção do sistema de abastecimento de água local. As representações em torno do açude deram a ele uma qualidade moral negativa que não logrou ser modificada pelo processo de tratamento da CAGECE, que veio na verdade agravar sua negatividade somando a esta a qualidade sensitiva ruim atribuída ao cloro excessivo e o custo financeiro advindo do uso desta água. Se considerarmos a perspectiva do sanitarismo, tampouco o desperdício de água seria considerado o problema mais relevante a ser sanado. A questão do desperdício faz parte do que vem sendo chamado ambientalização da vida social e integra um conjunto de ações desenvolvidas no âmbito dos organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas (LOPES, 2004). Com pretensões universalistas, esta agenda verde não logra contemplar as especificidades nacionais e regionais e, principalmente, não toma como foco o indivíduo, mas sim o meio ambiente. Como vimos, em Granjeiro a recusa da água tratada, o manejo da água feito no transporte e no próprio domicílio e a forma como as bicas dos chafarizes foram construídas surgiram com relevância indiscutível no que se refere ao uso adequado dos sistemas de abastecimento de água disponíveis e suas possíveis conseqüências para a saúde dos granjeirenses. Assim, não apenas a abordagem por meio de campanhas educativas que não logra enraizar padrões de comportamento por ser pontual, centrada no discurso e na chamada conscientização revelou-se inadequada, mas a sua ênfase no combate ao desperdício de água também. Em Maracaçumé (MA) a gestão da infra-estrutura da água é de responsabilidade municipal. A realidade local revelou-se muito mais precária do que a de Granjeiro (CE), pois o sistema de abastecimento de água da prefeitura reduz-se a cinco poços artesianos que fornecem água encanada a uma parcela 126

ínfima da população (501 domicílios do total de 2.941) e em condições inadequadas: o abastecimento é intermitente (num rodízio de ruas ao longo do dia) e se dá por meio de torneiras no quintal de algumas casas (que pagaram os custos do encanamento até o local), nos quais os moradores e vizinhança recolhem água para armazenar em baldes e latões. Esta situação seria agravada, segundo a declaração de um supervisor da FUNASA no local, pelo fato de não mais poder fazer a desinfecção da água nos reservatórios domésticos devido à interrupção do recebimento do cloro. A maioria das casas se utiliza de poço perfurado no próprio terreno que, segundo os moradores, dá água boa ou não. A classificação das águas em Maracaçumé é marcada por um forte elemento de imponderabilidade, o dar água boa ou não não é atribuído a qualquer critério como, por exemplo, localização da residência, pois em uma mesma rua a água pode dar boa e limpinha ou salobra, pesada, amarela e com cheiro ruim. Esta variação aliada ao frágil sistema de abastecimento municipal levou ao desenvolvimento de estratégias complexas e cansativas para obtenção de água mais adequada a cada atividade. Em uma única casa encontramos o uso simultâneo de diferentes fontes de água: pegar a água de beber num vizinho que limpou o poço faz pouco tempo; utilizar para banhar e lavar louça a água do poço de outro vizinho que não limpa o poço faz muito tempo; e lavar roupa no rio. Este uso estratégico das águas revela uma aguda consciência da qualidade diferenciada que a água pode ter para o consumo humano. O foco aqui, diante da precariedade do sistema, está na maximização da relação entre qualidade e consumo e não no tipo de tratamento, pois não há nenhum tipo, ou na preferência por uma ou outra água – como em Granjeiro. Estas estratégias, porém, ficam prejudicadas pela proximidade entre os poços e as fossas na maioria dos terrenos, principalmente na estação de chuvas quando alguns poços transbordam e os quintais (na parte baixa da cidade) são inundados. Nesta época a incidência de diarréia atinge níveis muito altos, embora não sejam registrados pelas estatísticas, pois os doentes não são necessariamente levados ao posto ou ao hospital, ficando a orientação terapêutica a cargo do farmacêutico local. Na percepção da relação entre doenças e água, a água é considerada responsável também por doenças renais das quais 127

vários moradores se queixam. Se em Granjeiro a falta de saneamento num passado recente foi apontada como a causa das diarréias e a água é associada a alguns desconfortos físicos que não chegam a ser denominados doenças (coceira e ressecamento da pele, por exemplo), em Maracaçumé a água é considerada a principal fonte de doenças – em que pesem a ausência de coleta de lixo e de esgotamento sanitário. É também a água que representa um estilo de vida do qual os habitantes de Maracaçumé muito se orgulham: Dizem que quem bebe da água de Maracaçumé volta; numa metáfora que logra inverter as propriedades materiais negativas da água inserindo-as num horizonte em que a qualidade de vida transcende as condições de habitabilidade. Ainda, foi possível observar uma acurada percepção da dimensão política das ações públicas acerca da água. Enquanto em Granjeiro ouvimos alguns comentários esparsos sobre o uso político do açude, aqui o acesso à água de torneira, por parte dos moradores, e a entrada da CAEMA no município, na perspectiva das autoridades locais, são claramente relacionados ao maior ou menor sucesso na negociação em torno de um capital político: o voto, respectivamente, de um eleitor frente aos políticos locais e do conjunto dos eleitores frente aos políticos estaduais. Desta forma os moradores de Maracaçumé revelaram, em meio a uma situação de carência aguda, uma compreensão abrangente dos problemas e do potencial da água que, reconhecendo a importância e as conseqüências de suas propriedades físico-químicas, reafirmaram o contexto político em que essa baixa qualidade se insere e não reduziram a sua qualidade de vida aos padrões do saneamento ambiental. A contextualização da água nos dois estudos de caso nos levou a refletir privilegiadamente sobre os diversos eixos classificatórios que podem operar nas práticas diferenciadas que ao mesmo tempo instituem a pluralidade das águas e delas resultam. Desta reflexão, outras ponderações se colocaram ao longo da pesquisa e merecem ser aqui destacadas: (i) a complexidade das noções de sujo e limpo; e (ii) a tensão universalismo e particularismo nas políticas públicas relativas à água. A investigação em Granjeiro foi especialmente profícua no que se refere às elaborações sobre a qualidade de limpeza de suas diferentes águas. Invertendo a 128

classificação desenvolvida sob a égide da razão técnica, os granjeirenses rejeitaram a água que atendia aos padrões de potabilidade e elegeram para o consumo humano outra fonte de água considerada mais pura. Isto não porque desconhecessem a qualidade físico-química da água fornecida pela CAGECE, mas porque a ela agregaram outros valores: gosto, aparência e, acima de tudo, relações sociais. A mistura de seres lendários, humanos (vivos e mortos) e animais em interação no açude, o manancial de origem da água encanada, não pôde ser neutralizada pela CAGECE que ainda teria agregado a esta água mais um elemento negativo: o cloro excessivo. As linhas de separação que parecem ter sido rompidas pela mistura mencionada, resultando consequentemente em poluição, não foram restabelecidas por sua ação que focalizou exclusivamente a dimensão físico-química. Já a realidade da água em Maracaçumé por sua precariedade radical nos revelou o manejo relacional da água a partir de uma classificação sobre os aspectos físicos da água, atribuindo à transparência e cheiro a qualidade de boa. Os moradores de Maracaçumé selecionavam as águas mais ou menos sujas ou limpas em função do uso que dela fariam, muito de acordo com os padrões técnicos: a menos suja para beber e cozinhar, a seguir banhar-se, lavar roupa etc. – operando segundo uma lógica da prática que combinava grau de sujeira e maior ou menor invasão ou contato corporal. Assim, tanto em Granjeiro quanto em Maracaçumé, em meio a farturas diferentes de água, as pessoas faziam combinações distintas entre sujo e limpo, uso e disponibilidade (quantitativa e qualitativa), razão cultural e razão técnica, sem nunca desconsideraram nenhum dos termos, pois que vividos como parte da totalidade abrangente que dá sentido prático e lógico à água em cada uma das localidades. Se a dimensão sistêmica das águas surgiu do diálogo entre pesquisadores e dados coletados em campo, ela encontrava-se latente nos discursos sobre a água e seus usos avessos a operarem o seu isolamento e a abordá-la como uma coisa em si, sempre a remetendo a uma estrutura de pensamento e de ação nas quais se encontravam conectados: sensações corporais, necessidades, valores, conhecimentos incorporados e apreendidos verbalmente, espaços físico-morais, tempos cíclicos, seres humanos e não- humanos, poderes públicos e privados.

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A pesquisa em Maracaçumé ao possibilitar uma maior visibilidade da politização do acesso à água, como dito anteriormente uma realidade delicada no momento em que estivemos em Granjeiro, nos possibilitou a reflexão sobre a orientação particularista das políticas públicas de prestação deste tipo de serviço. Os critérios que lá operavam não eram o de acesso universal aos parcos serviços da prefeitura nem tampouco os de focalização na população mais carente, mas sim algo próximo ao censitário - pois haveria de ter recursos para pagar o material necessário ao encanamento – e às relações personalistas de troca do serviço por certa lealdade política materializada na expectativa do voto. Embora menos elaborado discursivamente, em Granjeiro, assim como em Maracaçumé, a desconfiança sobre o sorteio que teria levado à seleção de determinadas moradias para receber a melhoria sanitária domiciliar indicou um horizonte político de implantação de ações públicas semelhante. Esse tipo de relação de poder entre políticos profissionais e políticos ocasionais (os eleitores), embora ocorresse em meio à existência de organizações da sociedade para diferentes fins (sindicatos, pastoral da criança, associações de moradores etc.), não tinha como elemento constitutivo ou contrapartida qualquer fórum de participação e controle social atuante, sendo objeto por vezes de ações reivindicatórias, como no caso do abaixo assinado em Maracaçumé. Em ambos os municípios não havia conselhos ou instituições formais às quais pudéssemos nos dirigir para investigar esta dimensão. Contudo, se tal ausência é em si uma informação de não participação, não tivemos condições de aprofundar o que opera em seu lugar devido à duração da pesquisa de campo que não propiciou a inserção local e a relação de confiança entre pesquisadores e moradores necessárias a tal investigação84. Embora o projeto Alvorada tivesse como critério de investimento público em saneamento o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos municípios, as mediações políticas particularistas e personalizadas não se fizeram ausentes como se pôde observar tanto em Granjeiro quanto em Maracaçumé; tendo ainda como agravante o fato de os mecanismos de fiscalização e acompanhamento da execução dos serviços terem sido frágeis, visto a qualidade das obras executadas

84 Na entrevista, o Prefeito comentou sobre reuniões com a comunidade para definir as necessidades do município. No entanto, junto aos moradores não nos foi dada nenhuma informação sobre o assunto. 130

na construção dos banheiros domiciliares. Os limites da construção de uma cidadania que preconize a participação e o controle nas políticas de governo impuseram-se ao nosso olhar nos contextos de profunda desigualdade e precariedade social investigados, revelando a superficialidade das abordagens das ações que buscam superar tais limites via conscientização da população em meio a intermediações tão complexas e concepções de cultura política particularistas compartilhadas, por vezes, também pelos que delas encontram-se excluídos – como vimos na naturalização do emprego de parentes na prefeitura de Maracaçumé. Nossa hipótese, que mereceria investigações mais aprofundadas, é de que não se trataria apenas dos limites impostos pelas condições materiais de existência, mas que estaria em jogo também uma definição cultural de base pessoal de como politicamente solucionar tais condições em meio a recursos que não são suficientes para atender a todos. Desconsiderar essas definições políticas é tão danoso ao sucesso de uma ação governamental quanto o é o fato de implantar ações de saneamento desarticuladas, como, por exemplo, vimos em Granjeiro quando encontramos residências em ruínas e abandonada na qual havia sido construído um banheiro externo à época do projeto Alvorada. Assim, observamos que a complexidade de elementos a serem considerados quando se atravessa os diferentes níveis de implantação de políticas de saneamento e as relativas à água, que é nosso objeto central, se modifica adquirindo mediações, atores, valores e instituições distintos, bem como dimensões que, tal qual o sofrimento e as alegrias da população beneficiada, são invisíveis quando nos afastamos da experiência vivida e as transformamos em números.

7. Recomendações para utilização dos resultados pela Funasa

Baseados no exposto acima, recomendamos que a Funasa se empenhe para que: 1. As ações de educação em saúde e saneamento sejam precedidas de uma pesquisa realizada de forma conjunta com os moradores, de modo a serem identificados os pontos frágeis das cadeias de causalidade relacionadas ao 131

elemento em foco (água, esgotamento sanitário, lixo etc.) e as ações adequadas a sua transformação – não se assumindo qualquer agenda de conscientização ou sensibilização a priori; 2. As ações de educação em saúde e saneamento sejam continuadas e construídas de modo que as metas a serem alcançadas e a responsabilidade de cada um dos agentes envolvidos (moradores, agentes do poder público e da concessionária) sejam estabelecidas, a fim de que se possa identificar ao longo do seu desenvolvimento os avanços obtidos e os responsáveis por eventuais sucessos e fracassos nas ações; 3. A população participe das discussões para definição das ações em saúde e saneamento a serem implantadas em sua localidade e que, no caso da água, seja considerada em especial a disponibilidade e acessibilidade das várias fontes de água no local, sua classificação em termos de qualidade e uso privilegiado pelos moradores; 4. A limpeza das caixas d’água seja objeto de algum tipo de ação do poder público ou da concessionária, pois a ação de tratamento da água encanada para melhoria das condições de saúde e bem-estar da população pode se tornar inócua pelas condições inadequadas de armazenamento doméstica; 5. O poder público (município ou estado) garanta as condições necessárias à instituição de conselhos, ou outras formas, de participação e controle social; 6. A construção dos equipamentos de abastecimento de água (ou outras ações como aterro sanitário, por exemplo) seja objeto de fiscalização do órgão financiador, de modo que a liberação de recursos a cada etapa não seja feita sem que de fato a obra tenha atendido os padrões de qualidade definidos em convênio; 7. A utilização do cloro no tratamento da água para consumo humano considere e se adeque aos padrões de paladar e de sensibilidade corporal dos consumidores; 8. Os critérios de definição da localidade a ser contemplada e o tipo de ação em saneamento a ser implementada considere (i) a articulação entre as diferentes ações, diante de um diagnóstico quali-quantitativo do local, buscando maximizar a relação entre recursos investidos e o resultado 132

dessas ações em termos de saúde pública; e (ii) as condições políticas locais, de modo a propiciar a expansão da prática de uma cidadania universalista.

8. Justificativa das Alterações do Projeto de Pesquisa

O projeto original previa que a pesquisa de campo fosse feita em duas etapas por um único pesquisador em cada município. Os pesquisadores deveriam fazer uma viagem de trinta dias no recesso universitário de final do ano e outra de mesma duração no recesso universitário de meados do ano. Contudo o atraso na liberação dos recursos do projeto não permitiu que mantivéssemos esta programação. A coordenação do projeto optou, então, por empreender uma única viagem em meados de 2005, mas aumentou o número de pesquisadores em campo. Os pesquisadores deveriam trabalhar em dupla, a fim de buscarem obter o maior número de informações no local, já que não teriam a possibilidade de retornar posteriormente para complementar os dados primários. Esta decisão foi tomada em um processo que envolveu consulta aos responsáveis pelo acompanhamento do projeto na Coordenação Geral de Cooperação Técnica em Saneamento do Departamento de Engenharia de Saúde Pública da Fundação Nacional de Saúde (Cgcot/Densp/Funasa). Tal arranjo se realizou na pesquisa de Granjeiro (CE), porém devido a problemas pessoais de um dos pesquisadores bolsistas, o mesmo não foi possível de ser implementado em Maracaçumé (MA). Felizmente, a pesquisadora que precisou viajar sozinha é aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília e possui vasta experiência em pesquisa de campo.

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9. Referências Bibliográficas

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137

APÊNDICE 1

PLANEJAMENTO E ESTRATÉGIAS OPERACIONAIS PARA A REALIZAÇÃO DA PESQUISA DE CAMPO

Como estratégias operacionais para a realização da pesquisa de campo, serão desenvolvidas as seguintes atividades:

1- Preparação das Visitas Exploratórias aos Municípios

Esta etapa implica em:

 pesquisa preliminar em fontes secundárias: levantamentos bibliográficos e documentais; pesquisa em banco de dados e sites; levantamento de dados obtidos junto a órgãos da administração pública estadual e municipal; pesquisa histórica. O objetivo deste levantamento inicial é instrumentalizar os pesquisadores com informações já disponíveis sobre os municípios, devendo ter continuidade durante as outras etapas da pesquisa;  encontros da equipe para a organização dos dados obtidos por meio de levantamento em fontes secundárias;  preparação dos instrumentos de coleta de dados a serem utilizados: roteiros das entrevistas individuais estruturadas e dos grupos de discussão, roteiro de observação;  levantamento das necessidades dos pesquisadores para o trabalho de campo: carta de apresentação institucional, gravador, fita cassete, máquina fotográfica, filme, etc

2- Visitas Exploratórias aos Municípios

Nas visitas exploratórias serão testados os instrumentos de coleta de dados. Esta etapa do trabalho de campo pressupõe a realização de:

 contatos, reuniões e entrevistas com decisores e gestores locais;  contatos, reuniões e entrevistas com profissionais e técnicos dos serviços de saneamento;  contatos, reuniões e entrevistas com moradores das cidades;  levantamento de dados secundários;  levantamento de informações obtidas por meio de conversas informais individuais e/ou grupais;  observação de eventos e comportamentos não verbais relacionados ao objeto de estudo.

Durante a realização das visitas será estabelecida uma rotina de sistematização dos dados obtidos em campo. É próprio da tradição antropológica a utilização do diário de campo, no qual são registradas descrições detalhadas de situações, 138

eventos, pessoas, interações e comportamentos observados, citações textuais dos indivíduos sobre suas experiências, atitudes, crenças e pensamentos.

ATIVIDADES DURANTE AS VISITAS EXPLORATÓRIAS

Objetivos:  reconhecimento do terreno;  obtenção de informações sobre as ações de saneamento, características socioeconômicas e culturais da população; captar percepções da população, gestores e técnicos dos serviços de saneamento, decisores locais;  testar instrumentos de coleta de dados.

Estratégias de coleta de dados:  entrevistas com informantes chaves (técnicos, gestores e decisores locais);  entrevistas com moradores;  levantamento de dados secundários.

Instrumentos de coleta de dados:  observação e registro em diário de campo;  gravação;  documentação escrita, tais como atas, recorte de jornais, informes periódicos, etc.  registro fotográfico.

3- Pesquisa de Campo

A flexibilidade inerente ao método antropológico de pesquisa de campo não significa improvisação. Ao contrário, o caráter aberto desses estudos, assim como a variedade de situações exploradas, exige uma programação clara e uma preparação dos pesquisadores visando a empregar eficientemente o tempo e os outros recursos disponíveis para o estudo. Nesse sentido, foram pensadas estratégias operacionais específicas para a pesquisa de campo nos municípios.

Etapa 1: Preparação

 treinamento da equipe. Leitura dos instrumentos; simulações de entrevistas; discussão sobre posturas a serem adotadas pelos pesquisadores durante a estadia em campo. A equipe fará o esforço de visualizar e prever possíveis situações que se apresentarão durante sua permanência em campo;  elaboração de um planejamento das atividades a serem desenvolvidas, podendo, no campo, o mesmo ajustar-se de acordo com as dinâmicas diárias;  elaboração de estratégias para informar a comunidade sobre o estudo e envolvê-la no decorrer do processo;  organização da viagem: cartas de apresentação, passagens, equipamentos (gravador, máquina fotográfica, etc), contatos com os municípios.

Etapa 2: Campo

139

 contatos e reuniões no sentido de garantir a aceitação dos pesquisadores na comunidade;  realização de entrevistas e grupos de discussão com moradores das áreas objeto das intervenções, com lideranças comunitárias, profissionais e técnicos dos serviços de saneamento, saúde e educação, com gestores e decisores em vários níveis;  levantamento de informações obtidas por meio de conversas informais individuais/ou grupais;  observação de eventos e comportamentos não verbais relacionados ao objeto de estudo;  levantamento de dados secundários.

Etapa 3: Balanço e sistematização dos resultados

 relato para a equipe da experiência dos pesquisadores (dificuldades, facilidades, surpresas, etc);  análise da relação entre as atividades programadas e as efetivamente realizadas;  organização e análise dos dados primários e secundários levantados.

ATIVIDADES DURANTE A IDA A CAMPO

Objetivo:  obtenção de informações visando a compreender as ações de saneamento público em suas conexões e desdobramentos no modo de vida e nas condições de saúde da população envolvida.

Estratégias de coleta de dados:  entrevistas com líderes comunitários;  entrevistas com setores representativos da comunidade;  entrevistas com moradores das áreas objeto de intervenções;  entrevistas com profissionais e técnicos dos serviços de saneamento, saúde e educação;  entrevistas com decisores e gestores em vários níveis;  observação direta: levantamento de informações obtidas por meio de conversas informais; observação de eventos e comportamentos não verbais relacionados ao objeto de estudo.  levantamento de dados secundários.

Instrumentos de coleta de dados:  observação e registro em diários de campo;  gravação;  documentação escrita, tais como atas, recorte de jornais, informes periódicos, etc;  registro fotográfico.

140

APÊNDICE 2

ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO

 Paisagem urbana: tipos de casa; espaço interno e localização na cidade; casas próximas a “áreas de risco”; distância entre as casas; ruas e calçadas; praças e jardins; chafarizes e bicas; edificações públicas; edificações religiosas; cemitério; comércio; feiras; organização urbanística; arborização; cursos d’água; presença ou não de animais nas ruas e nas casas; presença ou não de ratos e baratas nas ruas e casas; limpeza urbana.

 Movimentação das pessoas nos diferentes momentos do dia e em diferentes dias: o ir e vir do trabalho/escola; o desempenho das tarefas domésticas (em casa e fora de casa); movimentação das crianças, jovens e idosos.

 Atitudes em relação a água e seus usos: usos coletivos e públicos de água: existência ou não de bicas, rios, poços, etc.; de que maneira, por quem, com qual finalidade, a que horas e em quais dias; uso doméstico da água; sistema de classificação da água (para beber, lavar louça, banhar, etc.; limpa/suja; própria/imprópria para o consumo; etc.).

 Atitudes em relação ao lixo: sistema de classificação; padrões de condutas em relação ao lixo.

 Tipos de convivência com esgotos e suas destinações.

 Hábitos alimentares: o que se come, como, onde, com quem, em que horários e dias (do mesmo modo: o que não se come, etc.); proibição alimentares (ex: determinadas pessoas não podem comer certos alimentos – sempre? Em que ocasiões? Na gravidez, menstruação, luto, etc.?); quem prepara os alimentos (desde o manejo do alimento cru até a higiene dos utensílios utilizados para o preparo e para comer); existência ou não de diferença destes utensílios conforme a ocasião: cotidiano, festas, finais de semana, etc.

 Padrões de higiene: classificação do limpo/sujo; higiene pessoal (banho, coco, xixi) e do ambiente doméstico, uso e tipo de material de limpeza, etc.

 Doenças, práticas curativas e medicina popular: principais doenças, utilização de chás, uso de remédios caseiros, tipos de alimentação e proibições alimentares, rezas e outras práticas de prevenção e cura, práticas de parto (quem faz, como, onde, higiene, etc.), relações atores médico-sanitaristas e clientes. 141

 Formas de lazer e entretenimento: beber, conversar, passear nas ruas e praças, namorar; música, esporte, dança, expressão artística e religiosa.

 Tipos de relações sociais propiciadas pelas ações de saneamento: novas áreas de lazer, mudança na convivência familiar e comunitária, etc.

 Usos dos equipamentos e tecnologias implantados.

 Padrões de sociabilidade: relação de amizade, namoro, conflitos, relações jocosas, festividades, religiosidade, clube (sociabilidade segundo idade, gênero e posição social).

 Tipos de conversa: política, fofoca, família, etc.; quem conversa o quê com quem; os silêncios e tabus (o que se evita falar).

 Linguagem: formas de tratamento, de cumprimento (conforme quem fala com quem; expressões verbais e não-verbais); expressões de inclusão ou de exclusão no grupo, categorias de acusação.

 Relações de distinção: classificações sociais; relações de prestígio; honra/vergonha; discriminação; preconceito; consideração/desconsideração; critérios de valorização e desvalorização social; símbolos honoríficos; diferenciação de prestígio para homens e para mulheres; etnias; aparência física; escolaridade; ocupação; riqueza; padrões de consumo e de moradia; religiosidade.

 Padrões familiares: quem casa com quem, casamentos preferenciais, idade para casar, cerimônia de casamento (religioso, civil, amigados, etc.), vida conjugal, valores e relações entre cônjuges e afins; relações intra-familiares (relações de proximidade entre parentes); padrões de residência (quem mora com quem); relações de compadrio.

 Educação infantil: padrões de conduta para meninos e meninas, amamentação, alimentação, ensinamentos para fazer coco, xixi, tomar banho; ensinamentos de higiene, etiqueta; educação formal, etc.

 Tipos de trabalho: diferentes tipos de comércio, indústria, artesanato, serviços etc.; diferentes tipos de organização do trabalho (assalariado, familiar, se agricultor: meeiro, bóia fria, na própria terra etc.); existência ou não de formas de trabalho cooperativo; relações patrão-cliente (patronagem); unidade de trabalho (individual, familiar etc.).

 Relações políticas: pertença e redes local, estadual e nacional (busca de delimitar fronteiras; consultar possíveis registros de disputas em delegacias, arquivos públicos etc.); relação com os “governos” (programas); demandas; responsável pela resolução dos problemas (a quem é dada esta atribuição?); conflitos; relações com vereadores, 142

deputados estaduais e federais; grupos políticos (partidos, famílias etc.); chefes políticos locais (mecanismos de construção de lideranças, motivações, conflitos, amizades/inimizades).

 Formas de associativismo e de organização comunitária: sindicatos, movimentos sociais, religiosas, artísticas, de gênero, núcleo de partidos políticos.

 Participação da população nas políticas públicas (concepção, implementação e gestão), priorizando aquelas relativas ao saneamento.

 Movimento migratório: quem migra (idade e gênero), por que, como, para fazer o quê, se a migração é sazonal ou não; quem fica e por que.

143

APÊNDICE 3

ROTEIRO DE ENTREVISTA ABERTA COM GESTORES MUNICIPAIS E TÉCNICOS EM SANEAMENTO

Temas a serem abordados:

 Órgão responsável pela prestação dos serviços de abastecimento de água/tipo de operador do serviço.

 Órgão responsável pela prestação dos serviços de esgotos/tipo de operador do serviço.

 Integração do serviço de água e esgotos municipais e a concessionária estadual.

 Integração entre o serviço municipal de água e esgotos com os demais órgãos da prefeitura.

 Existência de regulação sobre os serviços de saneamento no âmbito municipal.

 Processo de adesão do município ao programa de saneamento implantado ou em implantação.

 Participação do município na definição dos investimentos.

 Participação do município na definição das tarifas.

 Data de implementação das ações de saneamento.

 Existência, na ocasião, de outro programa de saneamento no município.

144

 Atuais programas de saneamento existentes no município (Água, MSD, Esgoto).

 Investimentos do município em saneamento.

 Ações de saneamento previstas para longo prazo.

 Existência de algum gargalo na implementação das obras resultante de demoras por parte do Governo Federal/Estadual ou de outras dificuldades.

 Procedimentos e mecanismos adotados pela municipalidade para supervisionar as obras e gastos dos recursos. Modos de acompanhamento e de fiscalização. Participação do município no controle de qualidade das obras.

 Existência de comissão de acompanhamento de obra.

 Existência de conselho municipal ao qual as ações de saneamento estão subordinadas.

 População beneficiada pelas ações de saneamento (característica socioeconômica da população, número de famílias, localização dos domicílios – proximidade de encosta ou barreira instável sujeita a desabamento, proximidade de áreas alagáveis, áreas com urbanização precária, terreno de invasão).

 População subtraída dos serviços de saneamento.

 Nível de distritalização das ações.

 Influência do gestor na definição de localidades de intervenção.

145

 Importância das ações para as famílias beneficiadas e como afeta sua qualidade de vida.

 Impacto e reações da comunidade do município às ações de saneamento.

 Entidades comunitárias que participam e controlam as intervenções.

 Existência de controle social sobre serviços de saneamento (existência de espaço institucional de relação entre o usuário e a prefeitura; existência de canais formais de reclamação em relação aos serviços de saneamento).

 Existência de programas que estimulem a participação e controle no serviço de saneamento.

 Sistema de abastecimento de água: número de domicílios ligados à rede pública de água; número de domicílios não ligados à rede pública em ruas com redes de água; número de domicílios com canalização interna domiciliar; número de domicílios sem canalização interna domiciliar; proporção de clandestinidade no acesso a água; proporção de cortes por incapacidade de pagamento do usuário; número de domicílios que se abastece por carro pipa ou por outras fontes; existência de racionamento de água/intermitência no fornecimento; formas mais comuns de armazenamento domiciliar de água; número de famílias consumindo água contaminada).

 Instalações sanitárias: tipos comuns de instalação sanitária; número de domicílios sem banheiro interno, número de domicílios sem sanitário interno, práticas relacionadas à ausência de instalações sanitárias.

 Esgoto e lixo: existência e freqüência de coleta pública de lixo, proporção de população sem coleta de lixo, existência de lixão; número de domicílios que despeja esgotos em coleção hídrica; número de domicílios que despeja lixo em coleção hídrica, incidência de pessoas em contato com esgoto e lixo;

146

incidência de crianças em contato com esgoto e lixo; incidência de presença de ratos.

 Existência de recursos naturais sob exploração predatória e de recursos hídricos e solos expostos à carga poluidora; população exposta a ambientes aquáticos contaminados.

 Participação do município no acompanhamento do controle de qualidade da água (existência de órgão de controle ambiental; existência de controle de qualidade da água de manancial e de descarga de efluentes).

 Existência de programas inter-setoriais na prefeitura.

 Nível de relação entre os serviços de saneamento e de saúde.

 Existência de programa de educação sanitária e/ou ambiental.

147

APÊNDICE 4

ROTEIRO DE ENTREVISTA ABERTA COM MORADORES DE ÁREAS CONTEMPLADAS COM AS AÇÕES DE SANEAMENTO

Temas a serem abordados:

 Localização do domicílio: proximidade de encosta ou barreira instável sujeita a desabamento, proximidade de áreas alagáveis, áreas com urbanização precária, terreno de invasão; peridomicílio: proximidade de vala negra e lixão/terreno baldio/área de despejo; presença/ausência de ratos e baratas.

 Água: formas de abastecimento, acesso, tempo e mão-de-obra familiar para obter água no domicílio; arranjos comunitários ou familiares para abastecimento de água; distinção do “tipo” de água pelo uso ou pela qualidade; percepções sobre a quantidade de água disponível para seu consumo (qualidade referente aos períodos de seca ou de chuva; existência de racionamento); clandestinidade no acesso à água; percepções sobre a qualidade da água; desconfiança em relação à qualidade da água (desinfetam a água, consomem água mineral etc.); formas de armazenamento de água, existência de água encanada no domicílio.

 Instalações sanitárias: se tem ou não banheiro interno, sanitário interno; onde fazem as necessidades e para onde vão os dejetos; percepções sobre a adequação de suas instalações sanitárias.

 Esgoto: usos e sistema de esgotamento sanitários; arranjos familiares ou comunitários para o trato com o esgoto.

 Lixo: existência de serviço de coleta; freqüência do serviço; disposição do lixo, acondicionamento domiciliar do lixo, distinções entre “tipos” de lixo.

148

 Representações acerca de saúde e doença (o quê entendem por saúde e doença).

 Representações acerca de hábitos de higiene (o quê entendem por higiene).

 Representações acerca de formas de transmissão de doenças (como e o quê, em suas percepções, transmite doença)

 Percepções sobre os programas de educação sanitária e ambiental.

 Participação em entidades comunitárias; participação em espaços institucionais de controle social; participação nas ações de saneamento; existência de entidades comunitárias que participam e controlam as intervenções; percepções sobre em que medida sentem-se representadas nas decisões e acompanhamento das ações de saneamento; existência de canais formais de reclamação em relação aos serviços de saneamento; percepções sobre as respostas institucionais às suas reclamações acerca de falhas no(s) sistema(s); percepções sobre o pagamento dos serviços.

 Percepção sobre os critérios de definição de alocação de recursos; percepções com relação às competências do município com os serviços de água e esgoto.

 Grau de conhecimento sobre: titularidade, poder concedente, vigilância e controle da qualidade da água.

 Percepções sobre os serviço(s) implantado(s): mudanças na vida e no cotidiano.

149

APÊNDICE 5

ROTEIRO DE ENTREVISTA ABERTA COM DIRIGENTES

Temas a serem abordados:

 Processo de adesão do município ao programa de saneamento.

 Participação do município na definição dos investimentos.

 Data de implementação das ações de saneamento.

 Existência na ocasião de outro programa de saneamento no município.

 Atuais programas de saneamento existentes no município (Água, MSD, Esgoto).

 Investimentos do município em saneamento.

 Ações de saneamento previstas para longo prazo.

 Existência de algum gargalo na implementação das obras resultante de demoras por parte do Governo Federal/Estadual ou de outras dificuldades.

 Procedimentos e mecanismos adotados pela municipalidade para supervisionar as obras e gastos dos recursos. Modos de acompanhamento e de fiscalização. Participação do município no controle de qualidade das obras.

 Existência de entidades comunitárias que participam e controlam as intervenções. Existência de comissão de acompanhamento de obra.

150

 Existência de programas que estimulem a participação e controle no serviço de saneamento.

 Existência de conselho municipal ao qual as ações de saneamento estão subordinadas.

 População beneficiada pela ações de saneamento (número de famílias).

 Importância das ações para as famílias beneficiadas e como afeta sua qualidade de vida.

 Impacto e reações da comunidade do município às ações de saneamento.

 Existência de espaço institucional de relação entre o usuário e a prefeitura.

 Participação da população de instâncias de controle social.

 Nível de distritalização das ações da prefeitura.

 Influência do gestor na definição de localidades de intervenção.

 Existência de programas inter-setoriais na prefeitura.

 Nível de relação entre serviços de saneamento e de saúde.

 Características socioeconômicas da população do município.

 Perfil econômico do município.

 Vantagens das ações de saneamento do ponto de vista político.

 Partido político do prefeito.

151

 Distribuição partidária da câmara de vereadores.

APÊNDICE 6:

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezado(a) Senhor(a),

Carla Coelho de Andrade, a realizadora da entrevista, é aluna regular do Curso de Doutorado em Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do projeto de pesquisa “Percepções e Usos da Água em Pequenas Comunidades”. Este projeto é de grande importância para as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. Além disso, o projeto pretende contribuir para uma maior eficácia das políticas públicas, no âmbito do saneamento e da saúde coletiva. As informações colhidas para fins do estudo mencionado poderão ser apresentadas em congressos, publicações em revistas e outras atividades científicas. Em todos os casos de publicização dos resultados da pesquisa a identidade do entrevistado será mantida em sigilo. Esclarecemos que você é livre para responder ou não as perguntas da pesquisadora e que você não será prejudicado se não desejar colaborar. Desejando obter maiores esclarecimentos a respeito de nosso trabalho, por favor entre em contato com:

Profa. Carla Costa Teixeira Departamento de Antropologia Universidade de Brasília Tel/Fax: (61) 3273-3264 E-mail: [email protected]

Respeitosamente,

Profa. Carla Costa Teixeira Coordenadora da Pesquisa AUTORIZAÇÃO

Após ter sido informado(a) sobre o caráter e os objetivos da pesquisa, concordo com a utilização das informações por mim transmitidas à pesquisadora.

Local e data: Nome: Assinatura: Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia 152

APÊNDICE 6

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezado(a) Senhor(a),

Luís Claúdio Moura, o realizador da entrevista, é aluno regular do Curso de Mestrado em História da Universidade de Brasília e pesquisador do projeto de pesquisa “Percepções e Usos da Água em Pequenas Comunidades”. Este projeto é de grande importância para as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. Além disso, o projeto pretende contribuir para uma maior eficácia das políticas públicas, no âmbito do saneamento e da saúde coletiva. As informações colhidas para fins do estudo mencionado poderão ser apresentadas em congressos, publicações em revistas e outras atividades científicas. Em todos os casos de publicização dos resultados da pesquisa a identidade do entrevistado será mantida em sigilo. Esclarecemos que você é livre para responder ou não as perguntas da pesquisadora e que você não será prejudicado se não desejar colaborar. Desejando obter maiores esclarecimentos a respeito de nosso trabalho, por favor entre em contato com:

Profa. Carla Costa Teixeira Departamento de Antropologia Universidade de Brasília Tel/Fax: (61) 273-3264 E-mail: [email protected]

Respeitosamente,

Profa. Carla Costa Teixeira Coordenadora da Pesquisa

AUTORIZAÇÃO

Após ter sido informado(a) sobre o caráter e os objetivos da pesquisa, concordo com a utilização das informações por mim transmitidas ao pesquisador.

Local e data: Nome: Assinatura:

153

APÊNDICE 7

SOBRE OS KITS DE MELHORIA SANITÁRIA DOMICILIAR – MSD

Como ação ligada ao Projeto Alvorada estava prevista a construção quatrocentos e cinqüenta e quatro kits de MSD, no Bairro Cidade Nova, na sede do município de Maracaçumé, dos quais apenas cento e cinqüenta foram implementados, no primeiro semestre de 2003. Como ação da FUNASA foram implantadas sessenta e uma unidades, construídas na mesma época, no povoado Cajueiro, distante doze quilômetros da sede municipal. Funcionários da prefeitura e moradores beneficiários insistem sobre a má qualidade obra. A empresa contratada para a execução dos kits no bairro Cidade Nova, que terceirizou o serviço, é constantemente acusada de roubo e irresponsabilidade. Nenhum kit foi construído com a mesma qualidade do construído pela empresa a título de demonstração. Caminhando pelo bairro Cidade Nova podemos ver lajes de kits despencadas, caixas de água no chão por falta de bomba, além de usos de banheiros distanciados de sua principal função (Figuras 1 e 2). No povoado Cajueiro, os moradores também reclamam do excesso de areia na mistura com o cimento: a cada lavagem, uma parte da parede escorreria junto com a água.

154

Figura 73 - Estado dos banheiros do kit MSD Segundo um atual vereador do município, Irmão Jarede, os próprios operários, durante a construção dos kits, roubavam os materiais de construção e os vendiam pela metade do preço de mercado. Ele narra o que ocorreu na época e assinala algumas das conseqüências posteriores:

Havia muito material abaixo da metade do preço. Hoje conversando com os moradores eles dizem que compraram muito cimento naquela época, que era vendido bem baixo. Tenho amigos que possuem três caixas d’água dos kits. Eles não estavam nem dentro do projeto.

[...] Nós comprovávamos que em muitas obras havia pouco cimento, que era justamente para render. Hoje comprovamos que a maioria das obras já está caída”.

Uma coisa grave que ocorreu na época foi que furaram buracos em todas as 454 casas. Chegou o inverno e aquilo encheu de água, apareceu o mosquito da dengue e seu multiplicador. Havia muita reclamação porque esse bairro (Cidade Nova) sofreu uma epidemia de dengue. Os buracos que seriam as fossas tornaram-se um viveiro multiplicador.

Sr. Dalton, funcionário da FUNASA, também fez menção aos buracos abertos deixados pela empresa construtora no início do inverno, período das chuvas. Afirmou que esses buracos deram muito trabalho à FUNASA, pois contribuíram para aumentar o risco de doenças. Alguns chegaram a ser tampados pela própria FUNASA. Constatamos, a partir da observação de alguns quintais, que alguns moradores os encheram com lixo, uma solução também utilizada quando cavam algum poço e encontram água que não consideram boa.

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O vereador Irmão Jarede era, na época da execução dos kits, o coordenador do IEC (Informação, Educação e Comunicação), responsável pela implementação do PESMS no município. Segundo ele, no início as obras não tiveram acompanhamento da prefeitura e quando o IEC passou a acompanhá-las, por determinação da ex-prefeita, já existiam inúmeras irregularidades:

Quando fomos acompanhar, eles já estavam abandonando o serviço. (...) A empresa fugiu: os funcionários saíram à noite levando o restante do material e não deram satisfação para ninguém (vereador Irmão Jarede).

O vereador afirma que, na época, o IEC foi muito procurado pelos moradores do bairro Cidade Nova, que se queixavam da qualidade da execução das obras. Muitas casas que receberam o banheiro não tinham água encanada. Para utilizá-lo, era preciso levar a água num balde, situação que ocorre até hoje. Alguns moradores, para não terem que carregar a água, continuam fazendo suas necessidades nos quintais, o que pode, em alguns casos, gerar conflitos com a vizinhança. Ouvimos queixas de moradores de uma rua do bairro Cidade Nova de um vizinho que, embora possuísse o banheiro do kit, não o utilizava. Os moradores, com indignação, reclamavam do mau cheiro do quintal do vizinho. Em nenhum momento o IEC chegou a fazer reuniões com os beneficiários dos kits. Contudo, segundo o vereador, o IEC procurou instruí-los sobre como deveriam utilizar o banheiro: “Orientamos sobre como deviam usar a casinha, que ali não servia de depósito para guardar coisas”. Os moradores do Cajueiro discordam da afirmação do vereador de que os banheiros daquele povoado foram melhor executados dos que os do bairro Cidade Nova. Pudemos constatar, em várias visitas àquela localidade, que não havia diferença na qualidade das obras. No povoado Cajueiro os kits também caem e alguns beneficiários, insatisfeitos com a construção, fizeram reforço nas paredes e reforma no banheiro que receberam. Importante assinalar, em relação à implementação dos kits de MSD, que os mesmos não estavam acompanhados da bomba que pressiona a subida da água para a caixa d’água, instalada no alto e sobre uma pequena laje. Quem possuía algum dinheiro, pagou a bomba de bolso próprio. Quem não teve dinheiro para comprá-la, ou deixou a caixa d’água sem qualquer uso no lugar no qual foi

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instalada ou trouxe-a para o solo, fazendo usos variados da mesma. Além disso, como já mencionado, muitas casas não possuíam água encanada, o que tornou inviável a utilização das instalações hidráulicas. Um último ponto deve ser mencionado: o modo como os kits foram distribuídos entre os moradores do bairro Cidade Nova e do povoado Cajueiro. Segundo o vereador Irmão Jarede, os primeiros beneficiados no bairro Cidade Nova foram aqueles moradores que deram dinheiro para os funcionários da empresa executora:

Os que foram beneficiados primeiro foram os ciganos. Eles deram depoimentos de que pagavam as pessoas para que atendessem primeiro as suas casas. Davam gorjetas para os funcionários da empresa, que os priorizavam. [...] Eles construíam os kits aqui nesta casa e deixavam a próxima sem construir, porque não havia gorjetas. Há ruas que possuem só um kit construído.[...]. Por exemplo, deixavam de atender o 2 da seqüência e iam atender o 4.

No caso do povoado Cajueiro, os informantes disseram que houve um sorteio na escola, liderado pessoalmente por um ex-prefeito, o “finado Paulão”, mas que nem todos os 96 moradores sorteados receberam o banheiro. O Sr. Luís, morador do povoado e que não tinha o banheiro da FUNASA, afirmou que foi sorteado, mas que espera o kit até hoje: fui premiado, mas passaram na frente. Isso teria acontecido porque o prefeito morreu e a Irmã Elisa botou pra outro Irmão lá na frente. O Sr. Raimundo, outro morador que, ao contrário do Sr. Luís, foi premiado, assinalou que, embora tivesse recebido o banheiro, a obra era de má qualidade: fizeram tudo muito mal feito; alguns nem terminaram, largaram e foram embora. Só naquele momento, depois de aproximadamente dois anos do kit instalado, havia dinheiro para refazer o piso, uma demanda de sua esposa.

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APÊNDICE 8

SOBRE O IEC – INFORMAÇÃO, EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO E O PESMS – PROGRAMA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E MOBILIZAÇÃO SOCIAL – PESMS

Na nossa primeira visita a Maracaçumé, em julho de 2004, sinais da existência do PESMS foram vistos numa sala da prefeitura onde fica instalada a coordenação e a equipe do IEC: duas folhas de papel ofício com informações sobre o Programa estavam fixadas na parede, além de um calendário de reuniões nos bairros (Figura 1). Na sala do IEC, que é um Programa estadual, com o auxílio de um funcionário da FUNASA, Sr. Miguel, encontramos a lista com os nomes dos moradores beneficiários dos kits de MSD. Tratava-se do único registro sobre a distribuição dos kits. Ao todo, no primeiro semestre de 2003, estava prevista a construção de quatrocentos e cinqüenta e quatro unidades.

Figura 1: sinais da existência do PESMS em 2004

Nessa ocasião, não conseguimos conversar nem com o coordenador do Programa e nem com os integrantes de sua equipe. O coordenador, Irmão Jarede, estava em campanha para vereador. Na segunda visita a Maracaçumé a coordenação do Programa havia mudado e o Irmão Jarede já era vereador. A nova coordenadora, Dalete, havia 158

sido por ele indicada e era sua irmã de sangue. Dalete coordenava uma equipe de dois funcionários temporariamente contratados pela prefeitura, também por indicação do Irmão Jarede: Sidnei e Ivani, membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. A sala do IEC guardava lembranças do tempo em que o PESMS existia: havia cartazes do Programa em todas as paredes. Dalete, que assumiu o IEC em janeiro de 2005, afirmou que nada sabia sobre o Programa. As ações em relação à água e saneamento junto à comunidade haviam sido um trabalho da equipe precedente. Na gestão atual, segundo ela, não existia nada focado nesses temas:

Esse projeto de melhoria sanitária, não o desenvolvemos ainda porque ninguém nos passou essa responsabilidade e nem falou sobre tal assunto. Quando chegamos encontramos esses banners – como você pode ver – anexados, então percebemos que alguém tinha trabalhado, ou pelo menos, que houve esse Programa. Mas não dentro do nosso trabalho, desde quando tomamos posse.

Ainda não trabalhamos (com o tema da água). É uma meta. Inclusive temos vários casos de pessoas com problemas renais. Casos graves. Há um menino que está em Teresina, um pólo que consideramos ter uma medicina mais avançada na nossa região, já há uns três meses e numa situação grave. [...]. Tem muito a ver com a água. Não só ele, mas várias pessoas. Já tocamos nesse assunto na Escola Maria da Conceição, uma escola do estado. Participei como líder numa sala e juntamos todos os livros para levarmos esse assunto da questão da água que, realmente, é de péssima qualidade.

O IEC é vinculado à secretaria de saúde, mas a equipe também trabalha em sincronia com as secretarias de educação e de ação social. Ela não faz nenhum trabalho em conjunto com a secretaria de meio ambiente, que tem em seu calendário a comemoração do “Dia Mundial da Água” e a “Semana da Água”. Na área da saúde, o IEC conduz as campanhas de vacinação, de prevenção da malária e da dengue. Durante nossa segunda visita, a equipe estava desenvolvendo um trabalho direcionado à hanseníase e rodava as escolas fazendo palestras sobre a doença.

O que estamos fazendo aqui? Estamos desenvolvendo campanhas, como essa contra a hanseníase, a qual está bem avançada em nosso município. De 01 a 05 de agosto, tivemos uma capacitação e foi disso que nos incumbiram. Também estamos propagando a campanha sobre o aleitamento materno, que é fundamental tanto para a mãe, quanto para o bebê. Há uma outra campanha voltada para os portadores de necessidades especiais, sobre o combate ao câncer do colo do útero. Então, sempre que aparece algum agravo, estamos 159

levando a informação. Assim, estamos trabalhando na parte educativa, sobre a informação em saúde. É isso que estamos fazendo. E fazemos parceria com a Secretaria de Saúde. (Dalete, Coordenadora do IEC).

O calendário das atividades do IEC voltadas para a educação em saúde segue principalmente o do Ministério da Saúde. O “espírito campanhista” impera. Durante nossa estada em campo, ocorreu a “Semana do Portador de Necessidades Especiais”. O Ministério recomendou ao município que abordasse enfaticamente o tema e enviou cartazes e material informativo. O IEC montou uma programação junto com as escolas, incluindo palestras, mostra de vídeos, representações teatrais, concurso de redação, etc. Algumas dessas atividades ocorrem no Centro Cultural, fora do horário letivo. Quando perguntada se no calendário do Ministério ou se por iniciativa do município havia alguma ação prevista que enfocasse temas relativos ao saneamento, higiene, por exemplo, Dalete acenou negativamente e aproveitou para fazer uma crítica ao trabalho desenvolvido pelo IEC:

Vou ser sincera. Não temos, até porque nós só levamos a informação. Por exemplo, vamos trabalhar sobre a DST. Quando chega o final da palestra, distribuímos os preservativos. A gente coleta informações e não leva a solução. (Dalete, coordenadora do IEC).

Depois que assumiu o IEC, Dalete chegou a receber na prefeitura pessoas que foram contempladas com os kits de MSD. Segundo ela, essas pessoas estiveram ali para se queixar da obra, mas ela, além de na ocasião não conhecer os kits, também não chegou a ir a uma casa para vê-los de perto:

Alguns vieram para reclamar, dizendo que não estava bom. Mas eu não fui olhar. Eles reclamaram que isso não deu certo. Falaram que não foi feito do jeito que era para ser. (Dalete, coordenadora do IEC).

Segundo Dalete, há muita pobreza e desemprego em Maracaçumé. A situação da população teria melhorado na atual gestão da prefeitura, pois o prefeito “deu muita oportunidade às pessoas mais carentes”. Contudo, a maioria dos funcionários da prefeitura não chega a ganhar um salário mínimo. Dalete descreve a situação de pobreza que faz parte da realidade de Maracaçumé: Você vê pessoas que, simplesmente, não têm nada para comer. [...] Pessoas muito carentes, que até moram debaixo de árvores. Não têm casa, 160

cobriram uma árvore com plástico para morarem embaixo.[...]. Fui em uma casa, chego lá no banheiro, que tristeza! Não havia nada. Aí tinha aqueles sacos de fibra. O pessoal puxava e tirava um pedaço para fazer o asseio. (Dalete, coordenadora do IEC).

As duas pessoas do IEC com quem tivemos oportunidade de conversar – Dalete, a coordenadora, e Sidnei, um dos integrantes da equipe – demonstraram um grande entusiasmo pelo trabalho, mas também pouco preparo para lidar com ações comandadas pelo governo. Praticamente nada sabem sobre as máquinas públicas estadual e federal. Seus limites, em matéria de conhecimento de política pública, circunscrevem-se à prefeitura de Maracaçumé. Exercem cargos temporários, aproveitando da situação de proximidade com os detentores atuais do poder local (essa afirmação vale para a maioria dos funcionários atuais da prefeitura). Estão ali, como disse Sidnei, por uma chuva. São, diríamos, “tarefeiros”, cuja tarefa mais importante, em suas visões, como representantes do IEC, é levar informação. Não fazem nenhum trabalho diretamente nos bairros da cidade, nos locais de moradia da população. Fazem palestras nas escolas e no Centro Comunitário; falam na rádio da prefeitura sobre os temas sugeridos pelo Ministério da Saúde; conversam com as pessoas que vão aos postos de saúde para fazer alguma consulta: aproveitamos aquelas pessoas que estão ali para se consultarem e levamos as nossas informações (Dalete, coordenadora do IEC). Dalete disse que, quando assumiu a coordenação do IEC, tinha apenas uma vaga noção do que era o Programa: eu não tinha capacitação. Segundo ela, chegou a passar alguns dias no município vizinho, Governador Nunes Freire (Encruzo), para tentar se inteirar do trabalho. A equipe do IEC do Governador Nunes Freire chegou a lhe dar algum material. Não havia nada por escrito sobre o Programa na prefeitura de Maracaçumé. De fato, constatamos a falta de registro sobre as ações de gestões passadas em todas as secretarias da prefeitura com quem tivemos contato. No caso específico do IEC, não existia nem mais um rastro do cadastro dos beneficiários dos kits de MSD e das ações desenvolvidas com essa população. Segundo o vereador Irmão Jarede, coordenador do IEC na gestão da ex- prefeita Elisa Batista, não há documentação alguma sobre o processo de implementação dos kits de MSD. Tudo teria desaparecido na transição do

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governo, quando uma primeira equipe, anterior a de Dalete, assumiu o comando do Programa: Muitos materiais e muitos documentos que estavam arquivados, quando voltamos, não encontramos mais. Os materiais eram camisetas, ainda há algumas pastas, mas coisas que não interessavam muito a eles (Irmão Jarede, vereador e ex-coordenador do IEC).

Segundo o vereador, um dos motivos do desaparecimento da documentação e materiais utilizados pelo IEC durante o processo de implementação dos kits teria sido o fato de as obras não terem sido executadas em sua totalidade.

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APÊNDICE 9

SOBRE O PROGRAMA SAÚDE NA FAMÍLIA

Segundo a Secretária de Saúde de Maracaçumé, a política na área de saúde no município é basicamente voltada para prevenção e o PSF colabora nesse trabalho. Contudo, o Programa ainda não está com suas cinco equipes plenamente constituídas. Esta é uma expectativa que a prefeitura alimenta desde o tempo da gestão da ex-prefeita, Irmã Elisa Batista. Recrutar médicos para trabalhar naquela região não é fácil. Embora recebam um bom salário, eles não se dispõem a morar na cidade e nem mesmo apenas nela trabalhar alguns dias na semana. À exceção do Doutor Francisco, antigo morador de Maracaçumé, ex- prefeito e proprietário do único hospital ali existente, os médicos (duas médicas) que fazem parte do PSF moram em outras localidades. Também nem todas as enfermeiras do PSF residem em Maracaçumé. O atendimento à população pelos médicos do PSF se dá nos Postos de Saúde. Não há visitas domiciliares. Os casos considerados clinicamente graves são encaminhados para Santa Helena, cidade situada a, aproximadamente, 60 km de Maracaçumé, ou para São Luís, a capital do estado. Os médicos do PSF se ocupam da Atenção Básica: pré-natal, exames ginecológicos, acompanhamento de pressão, taxas de açúcar, colesterol, diarréia, nutrição infantil, exames oftalmológicos etc. Os auxiliares, enfermeira(o) e técnico(a) em enfermagem, complementam o trabalho dos médicos: ajudam na coleta de material para exames citológicos, da entrega dos resultados aos pacientes, do cadastro das famílias, da vacinação e seu controle etc. Estes são, por sua vez, auxiliados pelos agentes comunitários de saúde, que vivem em contato direto com a comunidade atendida. Acompanhamos a equipe rural do PSF numa das visitas que realiza uma vez por mês à comunidade do Igarapé de Areia. A equipe era formada por uma enfermeira e uma técnica em enfermagem, que trabalham de segunda a quinta- feira nas áreas rurais do município. A médica não estava junto, pois não visita essas localidades com a mesma regularidade com que do restante da equipe.

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No Posto de Saúde do Jacy, um pequeno povoado, são guardados medicamentos (para verme, pressão, xaropes, pomadas) e vacinas, que no dia-a- dia ficam sob a responsabilidade de duas agentes comunitárias. O Posto do Jacy segue o padrão dos demais postos de saúde do município: uma sala de atendimento e um consultório. Como equipamento, sempre existe a geladeira para armazenamento de remédios e a balança de pesagem de bebês. Em alguns casos, há balança de pesagem de adultos. Cada cômodo possui uma mesa. A agente comunitária de saúde do Igarapé de Areia vive numa pequena fazenda. A equipe do PSF, depois de apanhar os medicamentos e vacinas no Posto do Jacy, buscou-a em casa e dali seguiu para a escola municipal do Igarapé de Areia, onde é feito o atendimento da população.

Notas de Campo

Chegamos à escola do Igarapé de Areia, onde é feito o atendimento de saúde. Na porta algumas mães, acompanhadas de seus filhos, aguardavam a equipe. As aulas foram suspensas. Hoje era dia de vacinação. Após os preparativos, ou seja, remédios arrumados no chão, sala para atendimento da enfermeira, fichas em ordem alfabética, foi iniciado o atendimento. A enfermeira age como médica e é chamada de doutora por todos. Faz consultas individuais e prescreve medicamentos que são apanhados pelos pacientes na saída. A técnica e a agente comunitária de saúde verificam os cartões de vacinação e, conforme o caso, aplicam a vacina. Presenciamos alguns conflitos entre a técnica e também a agente de saúde com algumas mães porque deixaram passar o prazo de vacinação (não adianta mais vacinar!) ou porque a vacinação estava em dia (não precisa vacinar!). Há uma certa inabilidade por parte das duas em tratar com essas mães: a grosseria e a falta de explicação clara nos envergonharam, mas eles se entendem. Notamos ainda que há um grande desperdício de material descartável”.

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ANEXO 1

Relatório operacional do sistema de abastecimento de granjeiro (CE), Fonte: CAGECE

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ANEXO 2

Qualidade da água do sistema de abastecimento de granjeiro (CE), fonte: CAGECE

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ANEXO 3

Relatório operacional do sistema de abastecimento de água de granjeiro (CE), Fonte: CAGEC

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ANEXO 4

Planilha de controle- Distribuição das MSD

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ANEXO 5

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