Aulas Multimídias – Santa Cecília Profº. Pecê Realismo/Naturalismo

PROFESSOR: PECÊ CONTEXTO HISTÓRICO (2ª metade do século XIX e início do século XX): Europa: •2a Revolução Industrial, desenvolvimento tecnológico. •Uso do petróleo como matriz energética. •Surgimento da indústria automobilística •Mobilizações da classe proletária por melhores salários e condições de trabalho. •Crescimento do pensamento socialista e anarquista.

Brasil: •Abolição da escravidão •Fim do período imperial e início da República. CONTEXTO FILOSÓFICO: I – POSITIVISMO – Concepção de que nenhum conhecimento pode ser considerado verdadeiro se não for testado e comprovado cientificamente. O rigor científico permitiria o controle dos fenômenos (ordem) em função do desenvolvimento (progresso). II – DETERMINISMO – Ideia de que o comportamento humano é condicionado por 3 forças contra as quais o ser humano não pode lutar: herança genética, meio social e momento histórico. III – EVOLUCIONISMO – Ideia de que as espécies não são imutáveis, elas sofrem um processo de evolução determinado pelas condições impostas pelo ambiente. Os indivíduos com características adaptadas a essas condições vivem mais, transmitindo essas características aos descendentes. Os outros precisam migrar ou serão aniquilados. IV – MARXISMO – Compreensão da história da humanidade a partir da ideia da luta entre as classes sociais por poder e liberdade.

CARACTERÍSTICAS DO REALISMO/NATURALISMO Racionalismo, a arte nasce do trabalho intelectual, e não do sentimento. Os fatos narrados são verossímeis, com relações de causa e efeito bem definidas. Os personagens tendem a agir e fazer escolhas racionais, e não sentimentais. Objetividade, preocupação com o “não-eu”, ou seja, com a representação “fiel” da sociedade. Crítica à sociedade burguesa e às principais instituições da época: Igreja; Família/casamento; Monarquia. Personagens não idealizados, complexos, imprevisíveis, esféricos. Linguagem direta, objetiva, sem o excesso de adjetivos da literatura romântica. Contemporaneidade, o escritor retrata sua época, evitando as narrativas históricas. Arte “engajada”, voltada para a realidade social. Preocupação com as camadas oprimidas da sociedade e com as contradições impostas pela Revolução Industrial. Pessimismo NATURALISMO Não é uma escola literária autônoma, e sim uma extensão do Realismo, com algumas características bem específicas. De modo geral, os escritores naturalistas, como Aluísio Azevedo, por exemplo, pertencem ao grande movimento do Realismo, mas nem todo escritor realista pertence ao Naturalismo. , por exemplo, é realista, mas não naturalista.

CARACTERÍSTICAS: Abordagem da dimensão natural, biológico do ser humano, com personagens comparados a animais, vegetais ou mesmo a vermes. Personagens agindo por instinto. Cenas de sexo e violência. Linguagem desumanizante (“fêmea” em vez de “mulher”, “berrar” em vez de “gritar etc.) Linguagem mais “crua”, agressiva, menos polida e elegante. Temas considerados tabus para a época, escandalosos, como a homossexualidade. Personagens com comportamento patológico, como alcoolismo ou distúrbios mentais. Cenas com aglomerados humanos Romances de tese – busca de demonstrar, através da ficção, alguma teoria científica, como o Determinismo social ou biológico. Cientificismo, personagens tratados como cobaia de experiência. REALISMO NO BRASIL (1881 – 1922) MACHADO DE ASSIS Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908)É considerado o maior escritor do Realismo e da literatura brasileira como um todo. Nascido no morro do Livramento (RJ), era mulato, gago, epiléptico e ficou órfão ainda na adolescência. Precisou abandonar os estudos ainda no ginásio para trabalhar e se sustentar. Como funcionário de uma biblioteca, ocupava o tempo livre com leituras diversas. Aprendeu como autodidata idiomas como Inglês, francês, italiano e latim, bem como alto conhecimento de História, Filosofia, Literatura universal, mitologia etc. É fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Considerado uma das mentes mais privilegiadas da cultura brasileira. PRODUÇÃO LITERÁRIA: 1ª Fase – romântica: Textos escritos antes de 1881, de características românticas, com os elementos comuns a esse movimento, como personagens idealizados, morte por amor, sentimentalismo etc. A mão e a luva; Iaiá Garcia; Helena; Ressurreição 2ª fase – realista: Corresponde a sua produção a partir de 1881, quando inaugura o movimento realista no Brasil com Memórias Póstumas de Brás Cubas. Considerada a melhor parte de sua produção, em que se encontram as obras que o consagraram. Pode-se afirmar que Machado de Assis ainda teria a mesma grandiosidade se não tivesse escrito os livros da 1ª fase, somente os da 2ª. Além de Memórias Póstumas de Brás Cubas, também pertencem a essa fase os romances Quincas Borba; Dom Casmurro (considerado sua obra-prima); Esaú e Jacó e Memorial de Aires, assim como vários contos notáveis, como A Cartomante; O Alienista; Missa do Galo; Pai contra mãe; A causa secreta; Teoria do medalhão; Na arca, entre outros.

CARACTERÍSTICAS DO ESTILO MACHADIANO: Linguagem elegante e concisa (econômica) Capítulos curtos Humor sarcástico e refinado Grande número de narrações em 1ª pessoa (incomum no Realismo) Referência a obras literárias, fatos históricos, mitologia, Bíblia, filosofia etc. (intertextualidade) Diálogo com o leitor e metalinguagem narrativa. Personagens femininas fortes, marcantes (ex.: Capitu) Crítica à mediocridade humana, às relações sociais oportunistas e interesseiras. TEXTOS PARA ANÁLISE: 1 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - Capítulo XXIV CURTO, MAS ALEGRE Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a vertigem... Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação... Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados. 2: Dom Casmurro - Olhos de ressaca Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha. — Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto. Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta: —Há alguma cousa? (...) Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei- me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. NATURALISMO NO BRASIL (1881 – 1922) ALUÍSIO AZEVEDO Considerado o maior escritor naturalista brasileiro (obs.: Machado de Assis era apenas realista, nunca utilizou as características específicas do Naturalismo). Inaugurou o Naturalismo brasileiro com o livro O Mulato (1881) Escreveu também Casa de Pensão, baseado na história real de um crime envolvendo um estudante no do segundo império, e O Cortiço, considerado o melhor livro do Naturalismo brasileiro, em que o ambiente (cortiço) é o elemento principal e determina o comportamento dos personagens (Determinismo social) Escreveu também, paralelamente aos livros naturalistas, obras de menor qualidade, repletas de clichês românticos, para agradar ao grande público e obter maiores vendagens. Outros autores e obras naturalistas: Júlio Ribero (A Carne); Adolfo Caminha (O Bom Crioulo; A Normalista); Antonio Sales (Aves de Arribação) O CORTIÇO (1890) Considerado o melhor livro naturalista brasileiro, narra a história do nascimento, crescimento e morte de um cortiço (conjunto de casebres de aluguel para pessoas pobres, muito comum no século XIX). O próprio cortiço pode ser considerado como o elemento principal da narrativa, pois representa o ambiente social degradante que molda a vida de seus habitantes, em consonância com a teoria do Determinismo social. Vários personagens têm sua vida e seu comportamento determinados pelo ambiente do cortiço, como, por exemplo, o português Jerônimo, a adolescente Pombinha, a portuguesa Piedade de Jesus, a mulata sensual Rita baiana. O cortiço é a principal ferramenta de seu proprietário, o ambicioso Joao Romão, em sua obsessão por riqueza. Representa também um estorvo para Miranda, o rico comerciante que mora em um casarão ao lado dos casebres e que vê em seus vizinhos miseráveis uma mancha em sua posição social elitista. A história se passa na segunda metade do século XIX, e entre seus personagens, temos, portugueses, escravos, negros ou mulatos livres, imigrantes italianos, uma prostituta francesa, entre outros. O CORTIÇO – CAPÍTULO VII: Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas. Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro. E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher. Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando. Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre. O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante. E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados. Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. RAUL POMPEIA (1863 – 1895) O escritor Raul Pompeia é um caso raro de autor que se torna célebre por uma única obra, assim como Manuel Antônio de Almeida e . Seu livro O Ateneu tem caráter autobiográfico, e narra em primeira pessoa, os dramas de um menino durante os anos em que viveu em um colégio interno. As memórias que perturbam a mente do narrador-personagem nos são transmitidas com uma carga de subjetividade que configura o que se denomina “Impressionismo” na literatura. Entretanto, também há um forte teor naturalista na narrativa, em que o ambiente do Ateneu, à semelhança do Cortiço, de Aluísio Azevedo, molda o caráter e o comportamento dos meninos que lá habitam. O menino Sérgio é levado ao colégio aos 10 anos, mesma idade em que o autor, Raul Pompeia, ingressou no famoso colégio interno Abílio, em que estudava grande parte da burguesia carioca do século XIX. Raul Pompeia foi um homem de personalidade complexa, que entre vários dramas, cometeu suicídio numa noite de natal. A história narrada no romance O Ateneu é uma provável coletânea de memórias do próprio autor, que teria passado pelas mesmas angústias que seu personagem. O desfecho do romance traz a destruição do colégio, num incêndio causado por um dos alunos. Seria uma forma de o autor expurgar, pela ficção, as memórias que o atormentavam? O autoritarismo e a intransigência estão personificados na figura do diretor do Ateneu, Aristarco Argolo, homem vaidoso que, diante dos pais dos alunos, procura passar uma imagem positiva, acolhedora e paternal de si e do colégio, entretanto aplica castigos humilhantes aos alunos que desobedecem às regras da instituição. O contraponto a esse autoritarismo é sua esposa Ema, que procura proteger os meninos indefesos, como Sérgio. O ATENEU - CAPÍTULO II: Vi então, de dentro da brandura patriarcal do Rebelo, descascar-se uma espécie de inesperado Tersito, produzindo injúrias e maldições. "Uma corja! Não imagina, meu caro Sérgio. Conte como uma desgraça ter de viver com esta gente." E esbeiçou um lábio sarcástico para os rapazes que passavam. "Ai vão as carinhas sonsas, generosa mocidade... Uns perversos! Têm mais pecados na consciência que um confessor no ouvido; uma mentira em cada dente, um vicio em cada polegada de pele. Fiem-se neles. São servis, traidores, brutais, adulões. Vão juntos. Pensa-se que são amigos... Sócios de bandalheira! Fuja deles, fuja deles. Cheiram a corrupção, empestam de longe. Corja de hipócritas! Imorais! Cada dia de vida tem-lhes vergonha da véspera. Mas você é criança; não digo tudo o que vale a generosa mocidade. Com eles mesmos há de aprender o que são... Aquele é o Malheiro, um grande em ginástica. Entrou graúdo, trazendo para cá os bons costumes de quanto colégio por ai. O pai é oficial. Cresceu num quartel no meio da chacota das praças. Forte como um touro, todos o temem, muitos o cercam, os inspetores não podem com ele; o diretor respeita-o; faz-se a vista larga para os seus abusos... Este que passou por nós, olhando muito, é o Cândido, com aqueles modos de mulher, aquele arzinho de quem saiu da cama, com preguiça nos olhos... (...) "Viu aquele da frente, que gritou calouro? Se eu dissesse o que se conta dele... aqueles olhinhos úmidos de Senhora das Dores... Olhe; um conselho; faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se. "Isto é uma multidão; é preciso força de cotovelos para romper. Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo de longe; mas vejo. Não pode imaginar. Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a melhor das vidas, com o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso, estão perdidos... Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores." Ia por diante Rebelo com os extraordinários avisos, quando senti puxarem-me a blusa. Quase cai. Voltei-me; vi a distancia uma cara amarela, de gordura balofa, olhos vesgos sem pestanas, virada para mim, esgarçando a boca em careta de riso cínico. Um sujeito evidentemente mais forte do que eu. Não obstante apanhei com raiva um pedaço de telha e arremessei O tratante livrou-se, injuriando-me com uma gargalhada, e sumiu-se. "Muito bem", aplaudiu Rebelo. E à pergunta que fiz, informou: aquele desagradável rapaz era o Barbalho, que havia de ser um dia preso como gatuno de joias, nosso companheiro da aula primária, do número dos esquecidos nos bancos do fundo.