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ISSN: 2178-4744

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Fabricio Flores Fernandes Maria Heloísa Martins Dias er Jaime Ginzburg Adriana Aguiar 2 José Luiz Foureaux de Souza Jr. Juliana da Costa Teodolino ent

Julio Jeha Rinaldo Fernandes ent Lajosy Silva Eduardo Sterzi tudos Lit Márcio Seligmann-Silva Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Nivaldo Medeiros Diógenes Cláudia Souza Roberto Ferro Moacyr V. Godoy Moreira

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narrativas da violência Edições ISSN 2178-4744

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AMAZONENSE DE ESTUDOS LITERÁRIOS Contr ContraCorrente Revista de Estudos Literários

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Narrativas da Violência

UEA Edições | 2011 Cátedra Amazonense de Estudos Literários A revista ContraCorrente é impressa anualmente pela Cátedra Amazo- nense de Estudos Literários, grupo de pesquisa vinculado à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas. Recebe contribuições para publicação em fluxo contínuo ou por meio de chamadas específicas.

José Aldemir de Oliveira Reitor

Marly Guimarães Fernandes Costa Vice-Reitora

Otávio Rios Diretor da Editora Universitária

Juliana Sá Editora Assistente

Colegiado da Cátedra (2008-2011) Allison Leão, Carlos Renato R. de Jesus, Gleidys Maia, Juciane Cavalheiro, Mar- celo Seráfico, Mauricio Matos, Michele Eduarda Brasil de Sá, Otávio Riose Veronica Prudente.

Endereço para correspondência: Revista ContraCorrente/Universidade do Estado do Amazonas Av. Djalma Batista, 2470, Flores – Manaus AM CEP 69.050-010 Tel.: (92) 3878.4463 E-mail: [email protected]

Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje. On demande l’échange. Man bitter um Austausch. ContraCorrente Revista de Estudos Literários

Comissão Editorial Allison Leão, Carlos Renato R. de Jesus, Juciane Cavalheiro, Otávio Rios

Comitê Científico Benjamin Abdala Júnior (USP/CNPq/Capes) Cleonice Berardinelli (UFRJ/PUC-Rio/Academia Brasileira de Letras) Edson Rosa da Silva (UFRJ/CNPq) Ettore Finazzi-Agrò (Università di Roma La Sapienza) Francisco Ferreira de Lima (UEFS) Gilda da Conceição Santos (Real Gabinete/UFRJ) Helder Macedo (King’s College University of London) José Rodrigues de Paiva (UFPE) Luci Ruas (UFRJ/UGF) Luiz Costa Lima (PUC-Rio/CNPq) Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ/CNPq) Maria Zilda Ferreira Cury (UFMG/CNPq) Mário César Lugarinho (USP/CNPq) Paulo Sérgio Vasconcellos (Unicamp) Pedro Eiras (Universidade do Porto) Ricardo Sternberg (University of Toronto) Roberto Vecchi (Università degli Studi di Bologna) Socorro Simões (UFPA) Teresa Cerdeira (UFRJ/CNPq)

Editores deste número Allison Leão, Juciane Cavalheiro, Otávio Rios As ações da Cátedra Amazonense de Estudos Literários contam com o apoio do Instituto Camões, via Centro Cultural em Brasília.

Editores deste número Allison Leão, Juciane Cavalheiro, Otávio Rios

Revisão Aline Neves, Débora Renata Braga, Fadul Moura, Isadora Xavier, Jeiviane Justiniano, Juliana Sá, Lorena Nobre, Mariana Marques, Priscila Lira, Renata Nobre, Valquíria Luna, Yasmin Serafim

Revisão final Juliana Sá

Diagramação e Capa Francisco Ricardo Lopes de Araújo

Esta revista adotou a ortografia em acordo com os originais dos autores.

Ficha catalográfica elaborada na Universidade do Estado do Amazonas Responsável: José Messias Costa de Azevedo – CRB 11a/650

ContraCorrente: revista de estudos literários. – v. 2, n. 2 (2011)-. – Manaus: Universidade do Estado do Amazonas, 2011.

Anual. Título da Capa. Publicada pela UEA Edições, Editora da Universidade do Estado do Amazonas. ISSN: 2178-4744 1. Estudos Literários – crítica e interpretação. 2. Literaturas de Língua Por- tuguesa. 3. Literaturas Estrangeiras Modernas. 4. Literatura Comparada. 5. Teo- ria da Literatura. I. Universidade do Estado do Amazonas. II. Pró-Reitoria de Pós- Graduação e Pesquisa. III. Cátedra Amazonense de Estudos Literários – CAEL. CDU 821.134.3 (05) Sumário

Nota editorial ...... 09

DOSSIÊ NARRATIVAS DA VIOLÊNCIA

Literatura em armas: guerrilha, violência e revolução em Mayombe Aulus Mandagará Martins ...... 11

As estratégias discursivas de perpetradores: reflexões sobre a ditadura militar brasileira Fabricio Flores Fernandes ...... 23

A unidade brasileira e a forma sem síntese Jaime Ginzburg ...... 43

As paralelas que se encontram: elucubrações acerca da leitura de “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu José Luiz Foureaux de Souza Júnior ...... 53

Literatura criminal: uma narrativa da violência urbana Julio Jeha ...... 89

Violência, performance e o simulacro urbano em Amor e restos humanos, de Brad Fraser Lajosy Silva ...... 103

O testemunho na era biopolítica: reflexões sobre a exclusão, a violência e a vida nua Márcio Seligmann-Silva ...... 121

Do cortiço à favela: a violência na literatura brasileira em perspectiva Nivaldo Medeiros Diógenes ...... 141

Ciencias morales de Martín Kohan: una pedagogía de la vigilancia Roberto Ferro ...... 159 Restos indissolúveis da crueldade: considerações sobre violência, mal e escrita literária Roberto Vecchi ...... 173

As cicatrices da censura na nova narrativa galega Maria Teresa Bermúdez Montes ...... 187

PRÊMIO DE CRÍTICA LITERÁRIA FERREIRA DE CASTRO – EDIÇÃO 2010

Revisitando os emaranhados d´A selva Maria Heloísa Martins Dias ...... 205

A selva: romance e testemunho na Amazônia Adriana Aguiar ...... 217

Memória e escrita na obra de Ferreira de Castro: uma leitura possível d’A selva Juliana da Costa Teodolino ...... 233

INÉDITOS & DISPERSOS

O assalto Rinaldo Fernandes ...... 241

Salvo-conduto Talvez de amor Eduardo Sterzi ...... 242 -243

CONTRACORRENTE ENTREVISTA

Ondjaki Por Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco ...... 245 RESENHAS

Uma nova edição de Canções – António Botto Cláudia Souza ...... 255

Escritas da violência: apresentação dos anais dos colóquios de 2007 e 2010 Moacyr V. Godoy Moreira ...... 259

Uma adega de livros Vinícius Carvalho Pereira ...... 267

Nota Editorial

A Cátedra Amazonense de Estudos Literários (CAEL) tem a satisfação de trazer a público o segundo número de seu periódico – ContraCorrente: revista de estudos literários. Com este, a CAEL consolida um de seus veículos de debate mais importantes, fazendo par com os colóquios poéticas do imaginário já realizados e, neste ano de 2011, com o Simpósio Internacional Margens & Periferias. Nossa intenção, ao promover esta revista, é dupla. Primeiramente, buscamos ampliar e consolidar a rede de debates e trocas intelectuais e institucionais a fim de que a UEA e, por extensão, o Amazonas participe ativamente do cenário brasileiro de pesquisa científica na área dos estudos literários. Acreditamos que isso seja possível na medida em que, tanto quanto produzirmos e “exportarmos” nossas reflexões, estejamos receptivos a outras vozes, das mais diversas procedências, oportunizando um verdadeiro trânsito de ideias e um debate qualificado. Tão importante quanto a intenção acima descrita é o objetivo de, a cada novo número, organizarmos um debate coeso em torno de um tema que, ao mesmo tempo em que derive de pesquisas dos membros da CAEL, seja atual e dinâmico. Foi assim com o tema que gerou o presente número – “Narrativas da violência”. Em que pese a aparente restrição de gênero pelo termo “narrativas”, o conjunto de textos ora apresentados amplia necessariamente a noção: tanto quanto a narratividade literária, a organização narrativa da própria História como os povos a têm contado e – talvez principalmente no caso do tema proposto – como não a têm contado. Além disso, a prismatização da proposta também atingiu o designativo “da violência”. Contando com contribuições de pesquisadores de diversas procedências geográficas e diversificados interesses dentro do tema, a revista acabou se constituindo ao mesmo tempo coesa e heterogênea, uma vez que, da memória coletiva ao testemunho subjetivo, da violência afetiva aos

9 episódios ditatoriais, da representação teórica à representação literária, sem falar do circuito geoistórico percorrido pelo tema – Brasil, América Latina e do Norte, Europa e África –, a potencialidade reflexiva do tema ampliou-se conforme as origens e interesses dos colaboradores também se mostraram diversos. Neste viés, o número conta com as contribuições literárias de Eduardo Sterzi, com dois poemas inéditos, e de Rinaldo Fernandes, com um conto, também inédito. A partir desta edição, damos início a uma seção dedicada a entrevistas com importantes nomes das literaturas em língua portuguesa. Inauguramos a seção com a entrevista que o escritor angolano Ondjaki concedeu a ContraCorrente. Além disso, divulgam-se os três textos vencedores do 1º Prêmio de Crítica Literária Ferreira de Castro, promovido pela CAEL com o apoio do Instituto Camões, que teve como tema, em sua primeira edição, a obra do autor de A selva. Esperamos que essa “heterogênea coesão” contribua para que este número de ContraCorrente não seja apenas um protocolo teórico que, como tantos, apenas se resignasse silencioso aos índices de produção científica estéril, hoje tão criticados. Para os interessados no tema, acreditamos estar entregando um dos conjuntos de textos mais significativos a respeito do atual debate acerca das representações literárias da violência. E por isso, agradecemos imensamente a todos aqueles que contribuíram neste empreendimento.

Allison Leão

10 LITERATURA EM ARMAS GUERRILHA, VIOLÊNCIA E REVOLUÇÃO EM MAYOMBE

Aulus Mandagará Martins (UFPel) 1

Introdução

Este artigo pretende discorrer sobre a pertinência das ideias de Frantz Fanon, defendidas em Os condenados da terra (1961), na leitura de Mayombe (1980), de Pepetela, indagando de que forma a posição ideológica do romancista, bem como a violência histórica, na confluência da guerrilha e revolução colonial, se relacionam com a construção do texto literário. Trata- se, pois, mais de um “estudo de caso” do que propriamente uma discussão teórica sobre os temas em questão. Nesse sentido, aponta-se a hipótese de uma convergência de Fanon na percepção de Pepetela a respeito da guerrilha, da violência e da revolução, temas que recebem, por assim dizer, uma solução literária, e que permitem considerar em Mayombe uma determinada “estética da violência” ou “estética da guerrilha”. O que possibilita, de início, uma aproximação entre Frantz Fanon e Pepetela é evidentemente o pano de fundo histórico. Ambos se inserem no contexto das guerras de libertação africana, que eclodiram no continente a partir dos anos 50 e se estenderam até meados da década de 70. Mayombe foi escrito entre 1970-1971, em plena guerra de libertação angolana, sob o influxo de tantos outros levantes armados que eclodiram na África apartir dos anos 50. É no contexto dessas guerras de libertação colonial, decorrentes da consolidação de um pensamento anticolonialista, que surge, em 1961, Os condenados da terra. Acrescente-se, ainda, que tanto Pepetela quanto Fanon participaram em maior ou menor grau dos conflitos armados, o que nos permite estabelecer a hipótese de uma articulação dessa experiência direta e factual com a reflexão do sentido histórico desses episódios violentos, um no âmbito da narrativa literária, outro no do ensaio.

11 Fanon, a primazia do vivido e a violência

Frantz Fanon nasceu em Fort-de-France, Martinica, em 1925. Formado em medicina, trabalhou em um hospital psiquiátrico na França por quinze meses, antes de ser designado, em 1953, para o hospital de Blidá, na Argélia, um ano depois da publicação de seu primeiro livro, Pele negra, máscaras brancas. Na África, depara-se com uma máquina colonial impulsionada pelo racismo e pela violência. Exercendo as funções de médico psiquiatra, observou o cotidiano da violência física e psicológica do colonialismo e as identificou como as causas da alienação e despersonalização de seus pacientes. Na esteira dessa prática profissional, intensifica sua militância política, organizando uma rede clandestina de apoio aos combatentes, escrevendo textos e proferindo palestras, em que denunciava a estrutura colonialista e seus efeitos sobre o colonizado. Em 1960, Fanon descobriu que sofria de uma leucemia mielóide. Foi nesse período em que lutava contra a doença, com a consciência de que lhe restavam poucos meses de vida, que Fanon redigiu Os condenados da terra, publicado em novembro de 1961, algumas semanas antes de sua morte. O traço fundamental dos escritos de Fanon é, segundo Alice Cherki (2005, p. 13), que “o desenvolvimento da argumentação é fundado não sobre o teórico mas sobre o vivido”. Essa ênfase na experiência, da qual se retira a matéria da reflexão teórica, propicia tanto um maior comprometimento com a causa abraçada, abandonando, desse modo, pelo menos em parte, o distanciamento crítico que costuma pautar o debate intelectual, quanto uma tomada de posições ideológicas mais explícitas e, talvez, radicais. Segundo a mesma autora, Fanon “escreve a partir de sua experiência singular, a partir da história imediata, do seu mergulho nessa história, experiência que lhe é necessário elaborar e transmitir.” (CHERKI, 2005, p. 13) Essa postura talvez ilumine a própria estrutura de Os condenados da terra, texto que se caracteriza pela mistura de gêneros e discursos, num entrelaçamento de filosofia, política, cultura, psicologia.

12 A primazia do vivido sobre o teórico pode deixar a escrita maleável a eventuais excessos retóricos. Parece ser esse o caso de Os condenados da terra, em que “afirmações irresponsavelmente grandiosas” (ARENDT, 2009, p. 36) conferem ao texto uma dicção febril e apaixonada. De fato, não é difícil encontrar nas páginas de Fanon exemplos dessa retórica: “o colonizado é um invejoso” (FANON, 2005, p. 56), “o colonialismo só desiste com a faca na garganta” (FANON, 2005, p. 78) ou “a existência da luta armada indica que o povo decide só confiar nos meios violentos” (FANON, 2005, p. 102). Essas e outras tantas declarações no mesmo tom valeram-lhe a acusação ou pelo menos a desconfiança de que seu pensamento celebra a violência. Grande parte da fama de apologista da violência, Fanon deve-a a Jean-Paul Sartre, que, em seu famoso prefácio à primeira edição de Os condenados da terra, parece exaltar a violência pela violência, como nesta conhecida passagem: “Leiam Fanon: saberão que a loucura assassina é o inconsciente coletivo dos colonizados” (SARTRE, 2005, p. 35). De qualquer forma, talvez a evidente retórica não tenha sido a única causa da repercussão de Fanon, cuja obra inspirou uma geração de intelectuais e ativistas, que não só encontraram nas páginas de Pele negra, máscaras brancas ou Os condenados da terra um preciso diagnóstico da situação imperialista, como, sobretudo, um programa de ação para combater o racismo e violência inerentes àquele contexto. Já no parágrafo de abertura de Os condenados da terra, o autor lança o polêmico pressuposto, cuja análise encontra-se no centro de sua reflexão: “a descolonização é sempre um fenômeno violento” (FANON, 2005, p. 51). O termo violência, no pensamento de Fanon, segundo a observação de José Luís Cabaço e Rita Chaves, envolve uma gama de situações e sentidos, incluindo tanto a violência física quanto a psicológica, a força bruta, o poder, a coerção, o embate armado, a contraviolência e a autodestruição (CABAÇO; CHAVES, 2004, p. 83). Embora não seja fora de propósito dizer que a violência em Fanon cumpra uma função catártica, pelo revide do colonizado, também é verdadeiro afirmar que a violência não pode ser entendida tout court como

13 uma manifestação em si, sem outra finalidade além do exercício da vingança. Na descrição de Fanon, o colonialismo originou-se e manteve-se graças a uma série de procedimentos violentos, que contribuíram, em sua forma mais extrema, na cisão do mundo, não em duas classes, mas em duas “espécies”. Fruto de um complexo e constante processo de despersonalização e bestialização, o colonizado é banido a uma “espécie” totalmente outra, estranha, que, enquanto tal, deve ser mantida afastada (espacial e simbolicamente) da “espécie” colonizadora. Entre o mundo do colonizado e o do colonizador há um abismo somente transposto pelos mecanismos da violência. Para dar conta dessa situação, Fanon elabora o conceito de “atmosfera de violência” (ou “violência atmosférica”) a fim de designar a violência permanente, entranhada em todas as relações, e que se manifesta sob diversas formas, como a já citada bestialização e decorrente alienação do colonizado. Nas malhas da violência a que sempre foi submetido, coube ao colonizado ou a petrificação despersonalizante diante do colonizador ou a violência pulsional, manifestada através de atitudes de autodestruição, como o suicídio ou as guerras tribais, ou outras atitudes agressivas que somente dão vazão à violência episódica e catártica, e que, sendo gesto individual, não promove a libertação do sistema opressivo. É, pois, na passagem dessa “atmosfera de violência” para uma “violência em ação” (FANON, 2005, p. 89) que se opera a descolonização. Assim, Fanon destaca a dimensão histórica e política da violência como a “mediação real”, possível, para a “libertação” (FANON, 2005, p. 104), e apregoa uma “práxis violenta totalizante” (FANON, 2005, p. 112). Não mais a violência do indivíduo contra si próprio ou contra os da sua “espécie”, mas a violência organizada que, unificando os “condenados da terra” em um projeto de libertação, tem por objetivo “demolir” e “desmantelar” o mundo colonial.

14 Mayombe, o útero da revolução

Conforme já mencionado, Mayombe inscreve-se no debate político que mobilizava o contexto africano e, no caso específico, a sociedade angolana, assumindo inequívoca posição ideológica, anticolonialista e revolucionária. É importante observar que esse posicionamento ideológico não atuava apenas no plano político (pela reivindicação da libertação nacional) mas na articulação com uma esfera mais abrangente, a cultural (pelo resgate ou construção de uma cultura pela perspectiva do colonizado). É nesse cenário, portanto, que Mayombe se insere, atuando nestas duas “frentes”: na “trincheira política”, definindo posições e posturas de combate armado ao colonialismo, ena “trincheira literária”, propondo substituir as narrativas do colonizador por narrativas do colonizado. Desse modo, a leitura do romance de Pepetela pretende verificar a relação dessa ideologia (anticolonialista, revolucionária, guerrilheira, convergindo, em parte, com o pensamento de Fanon) com a construção do universo diegético. O título do romance indica o cenário predominante da narrativa, não apenas como o lugar em que as ações transcorrem, mas principalmente como o lugar em que o guerrilheiro é formado, tanto do ponto de vista militar (através do treinamento de manobras e táticas guerrilheiras), quanto moral, ético e intelectual (através de um amplo debate a respeito dos valores e ideais inerentes ao indivíduo que adere à luta armada). Daí que uma das imagens recorrentes na construção de seu espaço narrativo é a percepção de Mayombe como útero, símbolo não apenas de acolhimento e proteção dos guerrilheiros, mas gestação do ideal e da práxis revolucionária:

O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele abriram uma clareira. Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata tentando loca- lizar nela a presença dos guerrilheiros. [...] E os homens, vestidos de verde, tornaram-se verdes como as folhas e castanhos como os troncos colossais. [...]

15 Assim foi parada pelo Mayombe a base guerrilheira (PEPETELA, 1982, p. 70)

As manobras guerrilheiras, o intenso debate político entre as personagens, seus impasses ideológicos e conflitos pessoais configuram um processo de formação e, propriamente, amadurecimento do guerrilheiro como agente da transformação política. A opção pelas armas como instrumento revolucionário não elimina a necessidade de uma “descolonização do ser”, como alerta Fanon. Mayombe será, pois, o espaço em que essa descolonização é gestada, cumprindo-se, dessa maneira, o quesito fundamental da gênese do herói guerrilheiro.

O triunfalismo guerreiro e a queda trágica

O herói que protagoniza a revolução é definido no paratexto do romance, que desempenha a função de dedicatória:

Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta escura, Vou contar a história de Ogun, o Prometeu africano. (PEPETELA, 1982, p. 1)

Numa leitura mais “pós-colonialista”, a referência Ogun e Prometeu poderia significar a articulação de dois pólos ou vertentes culturais: a cultura africana e a europeia. Aponta para a miscigenação cultural inerente ao colonialismo e procura legitimar a cultura africana pela universalização, equiparando um de seus mitos a um mito fundador da cultura ocidental. Noutra direção, é possível destacar três aspectos: (a) ênfase positiva nos guerrilheiros do Mayombe, cujas ações são postas no mesmo plano de Ogun e do gesto de Prometeu; (b) o tom épico conferido à narrativa e (c) a construção de um auditório.

16 Por essa perspectiva, não importa tanto a legitimação da cultura africana, de seu nivelamento com a cultura europeia, mas a construção de uma imagem acerca da ação política dos guerrilheiros, que é qualificada, significativamente, com a força dos mitos de Ogun (deus africano do ferro e da guerra) e de Prometeu (deus grego que concedeu o fogo aos homens). Essa articulação é um pouco paradoxal ou ambígua, pois aponta para conteúdos que não se equivalem, como “sinônimos culturais” (ou seja, Ogun não está para a mitologia africana como Prometeu está para a mitologia grega), mas que se justapõem e inter-relacionam para compor uma rede de significados que nem Ogun nem Prometeu dariam conta sozinhos. O paradoxo, contudo, funde o triunfalismo guerreiro com a queda trágica. Herói armado e herói vencido; herói viril e herói subjugado. Ao entrelaçar simbolicamente o guerrilheiro do Mayombe a Ogun e Prometeu, Pepetela concebe um modelo ideal do herói combatente. De um lado, retoma um conteúdo inserido na cultura africana ancestral, a virilidade e a índole guerreira de Ogun, e o atualiza para o contexto político da época; assim, o apelo a Ogun é também o apelo à luta armada, em uma perspectiva revolucionária. É interessante, ainda, observar que Ogun é um mito do sistema ioruba, não pertencente, pois, ao território angolano, o que sugere que Pepetela não está pensando apenas na questão pontual de Angola, mas sim numa perspectiva mais abrangente, o continente africano. Assim, a opção por Ogun é uma espécie de solução africana para os problemas africanos. De outro lado, a referência a Prometeu indica uma diferente dimensão do herói guerrilheiro. Da mesma forma que seu antecessor mítico, eles tomaram partido do mais fraco, diminuíram, através de seu gesto revolucionário, a distância entre os dois lados e inauguram uma nova era.

O rapsodo político

Mayombe assume um tom épico, nem tanto por sua temática bélica, mas principalmente pela dicção que o narrador adota na dedicatória (a fórmula

17 “vou contar” remete ao relato dos feitos exemplares dos heróis). À maneira do rapsodo épico, Pepetela costura as mais variadas vozes que se cruzam dialeticamente na trama narrativa, vozes que propõem teses e perspectivas a respeito da guerrilha e que são postas em relação de antítese, até se formular, no epílogo, a síntese do herói revolucionário, como veremos a seguir. A fórmula narrativa “vou contar” atualiza também a materialização do narrador diante de um auditório. Esse recurso já denominado de “dimensão griótica” por Ana Mafalda Leite (apud SALGADO, 2001, p. 172), ou seja, a presença do griot, o detentor da palavra na tradição africana. Acrescentaríamos a essa interpretação que se trata de uma politização da palavra e do espaço; o auditório como lugar político, ou seja, de trocas discursivas entre os membros de uma comunidade. A diegese de Mayombe é dominada por um narrador onisciente, cujo discurso é às vezes interrompido por manifestações, em primeira pessoa, de alguns guerrilheiros que compõem o elenco de personagens do romance – Teoria, Milagre, Mundo Novo, Muatiânvua, André, Chefe do Depósito, Chefe de Operações, Lutamos, Comissário Político. Essas intervenções dos narradores homodiegéticos, anunciadas em fragmentos nominados em caixa-alta e texto em itálico, rompem (inclusive graficamente) com o domínio do narrador onisciente, que, por assim dizer, abre mão de sua prerrogativa para dar aos guerrilheiros o direito de auto-expressão, conferindo ao texto um efeito de polifonia, pelo confronto de vozes que concorrem à narrativa:

EU, O NARRADOR, SOU MILAGRE

Vejam a injustiça. Eu, Milagre, vim de Quibaxe, onde os homens atacavam o inimigo só com catanas e a sua coragem, eu vim de longe, o meu pai foi morto, a cabeça levada pelo trator, para ver agora um dos nossos, amarrado, seguir para o Congo, amarrado, porque ficou com cem escudos dum traidor de Cabinda! Eu, Milagre, nasci para ver isso! (PEPETELA, 1982, p. 67)

18 Cada uma dessas vozes traduz uma perspectiva ideológica acerca dos temas centrais do romance, indicando a multiplicidade de pontos de vista presentes no debate histórico-político, desde questões mais conceituais (o sentido da revolução, a moral do guerrilheiro) quanto contextuais (o tribalismo, o sexismo, o dogmatismo). Desse modo, cria-se um efeito de polifonia, em que as “verdades” das personagens entrecruzam-se, problematizando uma suposta enunciação autoritária, seja por parte do narrador heterodiegético, seja por parte das personagens que desempenham, mesmo que temporariamente, o papel de narradores. Contudo, a respeito dessa multiplicidade de vozes, é preciso observar que nem todas as personagens adquirem o estatuto de narradores, e que, se a voz é dada a alguns, uns falam mais do que outros e em posições diferentes na narrativa. Desse modo, é relevante atentar não apenas para o que as personagens falam, mas também para a organização de suas falas na estrutura narrativa. Assim, o romance, no primeiro capítulo, apresenta seis manifestações, oriundas de dois narradores homodiegéticos, Teoria e Milagre, e, na última página, no Epílogo, a fala do Comissário Político. Observa-se, ainda, que as vozes dos guerrilheiros vão se tornando cada vez mais raras ao longo da narrativa, o que marca o domínio, cada vez mais acentuado, do narrador onisciente. O quadro abaixo ilustra as intervenções dos narradores guerrilheiros ao longo da narrativa:

Cap. 1 Cap. 2 Cap. 3 Cap. 4 Cap. 5 Epílogo

Teoria 3

Milagre 3

Mundo Novo 2

Muatiânvua 1

André 1

Chefe do Depósito 1

Chefe de Operações 2

Lutamos 1

Comissário Político 1

19 Desse modo, é possível concluir que as vozes são submetidas a uma dialética, que se estende de Teoria ao Comissário Político. A voz que fecha o romance, depois de ouvidas todas as opiniões e perspectivas, funciona como a síntese da dialética do guerrilheiro, a palavra final, a voz que nenhuma outra rebate, nem mesmo a do narrador onisciente. Além de tudo, é interessante observar que o último narrador altera a fórmula pela qual os narradores se apresentavam: “Eu, o narrador, sou...” para “O narrador sou eu, o Comissário Político”, sugerindo a resolução do debate acerca da voz narrativa mais pertinente ao relato: O NARRADOR SOU EU, O COMISSÁRIO POLÍTICO

A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose. Só me apercebi do que perdera (talvez o meu reflexo dez anos projetado à frente), quando o inevitável se deu. (PEPETELA, 1982, p. 268)

O “elo violento da grande corrente”

De fato, no arco que se estende do discurso de Teoria ao do Comissário Político, é possível vislumbrar a construção do ideal revolucionário, que, na visão dialética a que a discussão é submetida, evolui de uma postura mais centrada no verbo utópico (que, entretanto, mal disfarçam os sentimentos mesquinhos, sectários ou individualistas dos guerrilheiros) para a práxis transformadora da realidade. Os codinomes dos guerrilheiros parecem apontar para essa trajetória, que supera a “teoria”, o “milagre”, o “mundo novo” em direção a uma tomada de consciência mais coletiva e organizada do movimento revolucionário. Nesse sentido, as perspectivas defendidas por Teoria, Milagre e Novo Mundo (o racismo, o tribalismo e o dogmatismo ideológico) não passam pelo crivo crítico tendo em vista a construção do que Fanon chama de “práxis da violência totalizante”:

20 Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono. [...] Mas acontece que, para o povo colonizado, essa violência, porque ela constitui o seu único trabalho, reveste características positivas, formadoras. Essa práxis violenta é totalizante, pois cada um se faz um elo violento da grande corrente, do grande organismo violento surgido como reação à violência primeira do colonialista. Os grupos se reco- nhecem entre si e a nação futura já é indivisa. A luta armada mobiliza o povo, isto é, ela o joga numa única direção, de mão única. (FANON, 2005, p. 111-12) Os narradores em primeira pessoa iniciais de Mayombe, sobretudo Teoria e Milagre, encontram-se naquele estágio da “atmosfera de violência”, em que o ideal revolucionário ainda não se desprendeu do desejo de vingança do colonizador ou puro e simples revide da violência sofrida. Os guerrilheiros em cujos codinomes é possível ler uma consciência mais coletiva e organizada da violência, como Chefe de Operações e Lutamos, preparam a tomada de consciência verdadeiramente revolucionária, aquela expressa pelo Comissário Político e da qual se fala explicitamente em “metamorfose”. A síntese realizada pelo Comissário Político assinala a passagem da percepção difusa da violência como mero instrumento de fins revanchistas para a sua compreensão (da luta armada) como caminho para a libertação do povo subjugado. Por esse prisma, é significativa a posição ocupada na diegese pelo personagem André. Trata-se do único narrador que não se encontra em treinamento na base do Mayombe; sua função é servir de ponto de contato entre os guerrilheiros embrenhados na floresta e as organizações que forneciam apoio ao movimento armado, recolhendo fundos e provendo a base dos recursos necessários para o seu funcionamento (armas, alimentos). No entanto, André (também o único narrador a não possuir um codinome de guerra, registre-se) logo corrompe os ideais revolucionários, desviando para proveito próprio os recursos angariados para o movimento. A intervenção narrativa de André cinde a diegese em dois momentos, separando os discursos dos narradores que, embora engajados na luta armada, ainda possuíam uma

21 visão limitada do movimento revolucionário, devido a seus interesses pouco coletivos, dos discursos dos narradores que apontam para a superação dos impasses individualistas, em direção à metamorfose final, o herói guerrilheiro ciente de seu papel revolucionário. Desse modo, sugere-se que as perspectivas individualistas dos guerrilheiros Teoria, Milagre, Mundo Novo e Muantiânvua desembocam na postura corrupta de André, e que a compreensão dos demais guerrilheiros (Chefe do Depósito, Chefe de Operações, Lutamos e Comissário Político) indicam, inversamente, o ideal revolucionário capaz de sustentar a luta armada, no plano militar, político e ético.

Referências

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Civili- zação Brasileira, 2009.

CABAÇO, José Luís; CHAVES, Rita. Frantz Fanon: colonialismo, violência e iden- tidade cultura. In: ABDALA Jr., Benjamin (org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismos & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.

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Notas

1 Doutor e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Programa de Pós-Gra- duação em Letras da Universidade Federal de Pelotas. Este texto retoma, de forma ampliada, comunicação apre- sentada no IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social, realizado em 2010 na Universidade Federal da Santa Maria (RS), onde o autor realiza estágio pós-doutoral sob supervisão da Profa. Dra. Rosani Umbach.

22 AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE PERPETRADORES REFLEXÕES SOBRE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA

Fabricio Flores Fernandes (UESPI) 1

O guarda, vejo-o, estará a pensá-lo também? Não é provável, um guarda não pensa, guarda o que pensam os outros. Vergílio Ferreira, Nítido nulo

Desde O que é isso, companheiro? e Os carbonários, passando por Retrato Calado, Ousar lutar, Memórias do esquecimento, O baú do guerrilheiro e tantos outros, os leitores brasileiros têm tido a possibilidade de conhecer um pouco melhor o que pensavam os opositores da ditadura militar no Brasil e, em alguns casos, de entrar em contato com suas reflexões atuais sobre aquele período. Levando em conta a evidência de que os relatos memorialísticos referem- se constantemente a um período histórico específico e, principalmente, travam um diálogo, por vezes implícito, com a versão oficial dos acontecimentos de então, é lícito procurar conhecer um pouco melhor a visão que têm dos fatos os representantes do poder. Do ponto de vista da evocação das memórias, é interessante perceber como alguns tópicos principais da questão do estabelecimento de um regime militar no país são negligenciados e/ou minimizados nas palavras dos militares. De modo geral, as pessoas têm necessidade de exprimir sua vida e de ler sobre vidas alheias. Não é à toa que existem incontáveis autobiografias (além de, em número muito maior, várias biografias). O impulso de narrar (-se) pode não se materializar em relato escrito, mas atinge a todos. Prova disso são as abundantes narrativas cotidianas, ao redor da mesa ou em reuniões de família, que, a despeito de serem parciais, cumprem a função de confessionalidade salutar ao equilíbrio mental.

23 No processo de rememoração dos fatos vividos, entretanto, o que fazer quando há pontos vergonhosos? Como narrar episódios polêmicos da própria vida? É possível que o arrependimento, o reconhecimento de algum equívoco ou mesmo uma convicção que não encontre respaldo na sociedade não sejam verbalizados. Especialmente nos depoimentos escritos, longamente elaborados, o resultado final talvez tenha a intenção de construir uma imagem coesa, ainda que tal imagem não encontre correspondência na figura do escritor empírico. Consequentemente, orgulho, teimosia, companheirismo, vergonha, lealdade e esquecimento são características inerentes a essas construções linguísticas de tempos sombrios. Algumas saídas, portanto, apresentam-se: esconder, falsificar ou justificar os fatos. O caminho escolhido, além de dizer muito sobre o caráter do narrador, determina a importância do episódio em sua vida. Essas considerações vêm a propósito das memórias de militares. Especificamente, trata-se de memórias daqueles que viveram o período em que vigorou o regime militar no Brasil (1964-1985). Ao lado de autobiografias, adquirem importância os diários, as entrevistas e os depoimentos publicados ao longo dos anos por alguns dos representantes do poder militar. Medos arraigados pela doutrinação ideológica e suposições inspiradas em convicções compartilhadas ocasionaram o golpe de 1964 e, quatro anos depois, o “fechamento” completo da ditadura, potencializando-se as punições a contestadores do regime e mesmo a quem não tinha relação nenhuma com grupos de esquerda. Nos anos em que os generais estavam no poder, o povo brasileiro pouco sabia do sistema de interrogatórios largamente utilizado e das situações de “desaparecimento” súbito de “elementos subversivos”. Somente a partir de 1979, com a promulgação da lei da Anistia e a volta de exilados ao Brasil é que se começou a difusão, de maneira ampla, dos relatos de torturas e maus-tratos perpetrados nos anos anteriores. Em contrapartida, houve a reação dos militares, comentando e contestando os fatos apresentados nas narrativas de seus opositores em declarações à imprensa, depoimentos, entrevistas e livros. Ainda hoje, não

24 há consenso público sobre os malefícios da ditadura ao país. Ainda se leem defesas discretas, ou mesmo entusiasmadas, da necessidade de os militares terem assumido o poder e travado batalhas contra os militantes de esquerda. Tendo em vista o objetivo de esclarecer aspectos das narrativas engendradas na ditadura, torna-se fundamental conhecer um pouco do pensamento dos membros da repressão, suas estratégias discursivas, suas tendências negacionistas, suas convicções e suas dúvidas. Não há exatamente um diálogo com os relatos produzidos pelas vítimas, mas sim monólogos que se contradizem.

Entrevistas, artigos e depoimentos – diante da voz dos outros

Não são poucos os militares que, ao comentarem os anos da ditadura, procuram convencer o interlocutor/leitor da inevitabilidade da intervenção armada naquele momento e do inédito processo de crescimento econômico a que o Brasil teria então chegado. Em sua fala, o discurso é estruturado como acusação aos opositores, qualificados com termos vários, que contribuem para a sua “demonização” – o inimigo passa a ser visto, então, como o outro absoluto, o “ateu, comedor de criancinhas”, não um igual – e como afirmação de justificativas para seus feitos. Tergiversam quando são questionados sobre torturas e assassinatos. Alguns, ainda, afirmam que o povo brasileiro desconhece os fatos, devido à existência no país de uma imprensa tendenciosa e mal-informada. Como o exército repressor de um outro contexto autoritário, no momento de recordar o passado, “cada um subseqüentemente reprimiu ou esqueceu certos aspectos daquela experiência ou lhe deu nova forma em sua memória” (BROWNING, 1992, p. 28). Na disputa pelo domínio da “verdadeira história” do período, o poder militar produziu suas versões, das quais é imprescindível conhecer os argumentos, com o fim de auxiliar na tarefa de aproximação aos eventos em questão. Com o título “Um golpista convicto”, a revista Caros amigos, numa edição especial de março de 2004, reproduz trechos de uma entrevista dada

25 à TV Senado por Jarbas Passarinho, coronel reformado e participante ativo do período ditatorial. Explica, então, Passarinho que o exército, desde 1962, já pressentia o crescimento comunista e a preparação de uma revolução socialista. Admite estar correto o qualificativo de “golpe” ao que aconteceu em 1964: “analisado[sic] a partir de uma definição de sociologia política, a ação de 31 de março de 1964 foi um golpe de Estado, ninguém pode negar isso, pois depôs um presidente que havia sido eleito pelo voto popular” (CAROS AMIGOS, 2004, p. 27). Afirma que o golpe se deu, principalmente, pelo medo de que João Goulart fechasse o Congresso e elaborasse uma nova Constituição. É questionado, então, justamente sobre a efetivação de tais atitudes por parte dos militares. Sua resposta é típica dos que se acostumaram com o vocabulário belicista: “aí a diferença é muito grande entre o que a gente faz no Exército, pois lá a gente planeja a ação, o resto é conduta de combate. Você faz um plano e o combate leva para outro” (CAROS AMIGOS, op. cit., p. 27). Sua justificativa dá ao ato arbitrário o caráter de estratégia de ataque contra um inimigo perigoso. Antes dessa entrevista, o ex-ministro, ex-governador e ex-senador já tinha prestado depoimentos para uma série de documentários televisivos, reunidos posteriormente em livro (Histórias do poder: 100 anos de política no Brasil). Em suas respostas, justifica o golpe e o endurecimento repressivo como resposta a atos terroristas. Exprime a opinião, corrente nas forças armadas, de que a ditadura só se prolongou devido aos ataques da esquerda: “a luta armada só proporcionou o prolongamento no tempo do regime autoritário” (DINES et. al., 2001, p. 333). Essa justificativa para a repressão é recorrente no discurso militar (como se poderá perceber adiante). É argumento encampado, inclusive, por determinados filmes sobre o período, como O bom burguês, 1979, de Oswaldo Caldeira. A visão de que os atos arbitrários seriam apenas reação é uma questão problemática, abordada criticamente nos relatos de algumas vítimas (Retrato calado, de Salinas Fortes, por exemplo). Na mesma obra, alguns outros militares deslindam seus pensamentos sobre pontos polêmicos da ditadura. O general Octavio Costa, por exemplo,

26 que trabalhou no governo Médici, justifica a violência do exército: “gostaria de dizer que acho que a repressão foi violenta como uma conseqüência, não porque tivesse que acontecer mas porque as coisas foram acontecendo, e isso se tornou inevitável” (DINES et al., op. cit., p. 173). Sobre os atos terroristas da direita, ocorridos durante o governo Figueiredo, responde:

a participação de pessoas de mais alto gabarito teria sido mais de omissão. Mas eu não chegaria a acusá- -los de responsabilidade nesses fatos. Mas é óbvio que essas manifestações são todas intoleráveis. Por que in- toleráveis? Porque ocorridas depois da anistia. (idem, p. 178)

Conclui-se, na esteira de sua argumentação, que, além de a falta de atitude por parte dos oficiais não lhe parecer irresponsabilidade – o que vai de encontro aos próprios fundamentos hierárquicos da instituição –, os atos terroristas de direita anteriores à anistia seriam toleráveis. Assim, ao procurar demonstrar uma reflexão justa e equilibrada, condenando os atos de alguns radicais exaltados (“manifestações intoleráveis”), acaba por revelar o que realmente pensa: antes de 1979, tudo se poderia aceitar, inclusive a colocação de bombas em locais públicos. Certamente não era isso que gostaria que seu interlocutor concluísse, mas a fixação da resposta espontânea em texto escrito revela as estratégias utilizadas para uma convivência saudável com a própria consciência. Em diferente ocasião, porém, reconhece a brutalização do exército, decorrente de seu emprego como força policial (CONTREIRAS, 1998, p. 97). O general Leônidas Pires Gonçalves, que integrou o gabinete militar de Castelo Branco, tem, por sua vez, plena convicção de que o “Movimento de 64” era uma revolução democrática e não se arrepende de seu passado: “porque nós estávamos convencidos, e eu sou até hoje convencido, de que o ideal democrático, que começou com a revolução de 64, foi válido e salvou o Brasil de coisas muito graves” (idem, p. 353) e, para completar: “eu tenho

27 o orgulho de dizer que pertenci ao Estado-Maior revolucionário do general Castelo” (DINES et al., op. cit., p. 353). Repete o que parece ser a resposta padrão dos militares sobre a violência:

Costumo dizer e tem gente que não gosta da frase: a repressão foi conseqüência da subversão. Se não hou- vesse subversão, não teria repressão. Nós nunca pren- demos ninguém que não tivesse feito nada. Isso não é uma realidade. Pode ser um clichê repetido, mas isso não é uma realidade. (idem, p. 354)

O ministro do exército de José Sarney desconsidera as informações de que os primeiros atos de violência se deram no próprio dia 1° de abril e de que o espancamento do comunista Gregório Bezerra em Recife, no dia seguinte, é o exemplo mais famoso2. Quanto à afirmação de que não houve prisões de inocentes, cabe aqui o questionamento da sua concepção de inocência, já que testemunhos de vítimas divergem dessa informação, relatando casos de pessoas que foram presas pelo simples fato de conhecerem alguém suspeito de ser comunista, ou mesmo por manifestarem ideias contrárias às prevalecentes no poder. Nessa concepção, relações de amizade implicariam a culpa? Um ponto merece atenção no trecho citado: o uso do pronome “nós”. Ao utilizá-lo, Leônidas naturalmente se posiciona, colocando-se ao lado de todos os militares do período, assumindo, por conseguinte, as responsabilidades de seus atos. É, entre outros fatores, contra essa forma de registrar o passado, negando o aprisionamento de indivíduos alheios ao embate ideológico da época, que se escreveram e continuam a ser escritos testemunhos no Brasil. Por ser a transcrição de uma entrevista, constata-se, na fala do general, uma fluência de pensamentos que se mostra rica em deslizes, em concepções sub-reptícias. Do fluxo contínuo das palavras surgem as ideias que embasam os argumentos. A linguagem oral não permite a rasura como a linguagem escrita. Uma leitura atenta, portanto, revela muito mais do que o entrevistado

28 gostaria. Quando questionado sobre os órgãos de repressão e sua propalada violência, o general se apressa em dizer: “desafio agora alguém a provar que era inocente e que tenha sido torturado, ou que tenha sofrido qualquer restrição maior do que as técnicas nos prometiam, que era o isolamento” (idem, p. 354). Segundo o general, portanto, quem não era inocente poderia muito bem ser torturado. Essa é uma clara admissão da prática da tortura, tantas vezes negada por seus colegas. Ao afirmar, ainda, que o máximo que acontecia aos presos era o isolamento, subestima a inteligência dos leitores (e do entrevistador). Para completar, no trecho anterior havia negado que quem “não tivesse feito nada” fora detido, e agora deixa subentendido o contrário. Sobre o atentado no Riocentro, ele entende que foi organizado sem a participação dos altos escalões das forças armadas, mas não gosta de falar a respeito: “agora, eu acho que nós estamos cometendo esse equívoco atual. Não chega de mexer nisso?” (idem, p. 356). Relembra o igualmente criminoso atentado no aeroporto de Guararapes, no Recife, idealizado e realizado por elementos da esquerda armada. Conseqüentemente, afirma que deveriam investigar esse ato terrorista também. Porém volta atrás: “Então, fazem umas pesquisas históricas e remexem em coisas do passado muito unilateralmente. Não gosto de ver isso. Então, vamos mexer, mas mexer para quê?” (idem, p. 356). Ora, quem tem a convicção de que o ato do Riocentro foi um episódio isolado não deveria temer uma investigação criteriosa. Pelo contrário, deveria incentivá-la, uma vez que, levando adiante seu argumento, aquele ato comprometeria a credibilidade das forças armadas, e sua elucidação poderia restabelecer a “verdade”. O atentado de Guararapes já teve sua autoria esclarecida – como relata Gorender, na edição revista de seu livro (2003, cap. 16) –, mas os atentados da direita ainda jazem sob a névoa que encobre o período. De resto, ao negar interesse em “mexer” no passado, revela uma postura favorável ao esquecimento e à conciliação superficial. Referindo-se a um seu depoimento anterior, publicado em outra ocasião, afirma: “eu disse o que eu posso” (idem, p. 356). A questão que

29 se apresenta então é: o que ele não pode dizer? E por quê? Soma-se essa indagação à conclusão exposta no parágrafo anterior. Entende-se, portanto, que o general Leônidas não quer que se vasculhe o passado do país e que há fatos ignorados pela história sobre os quais não pode falar. Ele, no entanto, não vê razão para que os acontecimentos de então venham à tona. Assim, explica: “Tenho dúvidas sobre a validade de remexer essas coisas do passado, mesmo no sentido histórico, isso não presta serviço nenhum” (idem, p. 356). Tal postura não lhe é exclusiva. Pelo contrário, é um tópico recorrente no discurso de perpetradores. Quanto às atividades do passado recente das forças armadas, o general implicitamente deixa entender que há motivos para críticas. Afirma que elas vêm sendo punidas sistematicamente “depois de quinze anos de um comportamento impecável” (idem, p. 356). Como ele mesmo percebe na continuação de sua fala, o que se conclui desse desabafo é que ele está admitindo que o comportamento daquelas instituições nos anos anteriores teve, no mínimo, falhas e, portanto, é passível de ser criticado, o que de resto deixa escapar em outro momento: “depois de 85, não há nada que possa ser criticado no Exército” (idem, p. 357). Mas, se sabe das falhas, não as externaliza. Talvez a fidelidade corporativista o leve a não fornecer argumentos aos “inimigos”, já que o confronto de interpretações é incessante. Outra passagem importante em que o entrevistado se trai é ao comentar o caso do jornalista Vladimir Herzog, morto no DOI-Codi de São Paulo em 1976. Como todo militar questionado sobre o episódio, Leônidas também não sabe de nada. Isso, todavia, não o impede de tirar suas conclusões, a despeito da consolidação internacional dos movimentos em prol dos direitos humanos e da consequente condenação da tortura:

Bom, primeiro de tudo: se realmente esse senhor nun- ca se meteu em nada, acho que foi uma injustiça o que fizeram. Mas eu não tenho certeza que ele nunca te- nha se metido em nada. O que acontece é o seguinte:

30 numa época era modismo bancar o heroizinho, querer fazer isso e aquilo. O que acontece é que o Herzog não era um homem preparado para isso. Não tenho con- vicção de que Herzog tenha sido morto. Não é cinismo meu. (idem, p. 357)

A conjunção condicional empregada na frase deixa bem claro que só há injustiça na aplicação da tortura e do assassinato se se supõe que a vítima seja inocente, isto é, se nunca manifestou um pensamento de oposição ao regime. “Mas eu não tenho certeza que ele nunca tenha se metido em nada”, diz ele, estabelecendo, em sua lógica, o espaço para a dúvida e para a legitimação da repressão. Consequentemente, seguindo essa linha de raciocínio, justifica- se a tortura em suspeitos de subversão. Assim, um general participante do Governo ditatorial admite publicamente, em palavras que não consegue deter, a prática de atos extremos de violência. De resto, sua opinião a respeito de contestadores da ditadura está expressa no diminutivo – empregado com tom pejorativo – “heroizinho”. É de se registrar, ainda, o argumento final do entrevistado. Segundo ele, ao ser preso, um homem despreparado e assustado – situação na qual inclui Herzog – é capaz de qualquer coisa, inclusive de suicidar-se. Em sua ótica, há algo como uma preparação prévia às sevícias, ausente em Herzog. Ora, aceitando-se, ao menos, essa hipótese, a pergunta que lhe deveria ter sido formulada então é: por que uma pessoa se suicidaria no cárcere se seus direitos e integridade física estivessem sendo respeitados? Caberia o questionamento também ao general Bayma Denys, que comenta o mesmo episódio em sua entrevista. Sua explicação para a morte do jornalista é semelhante à de Leônidas. Consiste em afirmar que Herzog (assim como o operário Manuel Fiel Filho, que morreu em circunstância semelhante) teria se arrependido por confessar informações sigilosas e, portanto, tirado a própria vida. Mais uma vez, implícita está a admissão do emprego de técnicas de tortura na obtenção de confissões. Adiante na entrevista, o que estava implícito vem à tona: “agora, a questão do interrogatório eu não entro no

31 mérito da violência do interrogatório. Porque isso é uma técnica que não é só nossa, isso foi aplicado em todos os países por aí afora, na Itália foi muito aplicada, em toda parte foi aplicada.” (idem, p.37). Entre os fatores que legitimam a “técnica”, na concepção de Denys, destaca-se o seu emprego em “todos os países”. Dessa forma, justifica-se o “mérito” da violência. Como se percebe, a escolha lexical é significativa. “Técnica” é um eufemismo que evoca o célebre vocabulário de outro período autoritário. O emprego de “mérito” – palavra de sentido positivo, utilizada para referir-se a “violência” – é um lapso linguístico que trai as intenções conciliatórias do general. Um tom um pouco diferente é usado por Leônidas no depoimento dado a Hélio Contreiras, publicado em outra coletânea de confissões de militares. Ali, diz ele: “admito que houve tortura na repressão da década de 70, mas ela não estava prevista nos regulamentos militares nem na orientação adotada pelos alto-comandos” (CONTREIRAS, 1998, p. 73). O leitor fica imaginando se o general realmente acredita que o fato de a prática de torturas não constar nos regulamentos militares é uma desculpa, pois é óbvio que a violência não poderia ter uma contrapartida oficial, já que os documentos poderiam servir de prova no caso de uma acusação formal às forças armadas. Lê-se, nas entrelinhas, que a tortura teria sido iniciativa dos subordinados. Mesmo nesse caso, segundo os rígidos padrões hierárquicos da instituição, os oficiais seriam responsáveis, porque seus comandados estariam agindo à revelia de suas ordens. Sobre certa mudança no tom de suas respostas, pode-se creditá- la a contingências diversas, que levam a objetivos diferenciados. Como afirma Wieviorka, “as testemunhas sempre dão a suas histórias objetivos [outros] além do escopo da história particular. Esses objetivos mudam com o tempo.” (WIEVIORKA, 2006, p. 138). Nos depoimentos da coletânea, avulta a condenação da tortura e de outros atos arbitrários da ditadura, como o impedimento do vice-presidente Pedro Aleixo, em 1969, por exemplo. No entanto, nenhum dos entrevistados admite que o golpe não deveria ter sido dado e só um fala em arrependimentos pessoais, o almirante Júlio de Sá Bierrenbach, antigo membro da “linha dura”

32 militar. Revela o almirante: “confesso que me arrependo de algumas coisas (...) confesso que fiz uma avaliação errada do que se passava no Brasil em 1964.” (CONTREIRAS, op. cit., p. 86). Semelhante declaração não é comum nos textos aqui estudados. Para Izquierdo (2004), o ato mesmo de confessar arrependimentos demonstra uma relação saudável com as memórias, que, em muitos casos, não são nada abonadoras. Em matéria de louvor à ditadura militar, porém, nenhum escrito se compara à edição do jornal Inconfidência, de Belo Horizonte. De circulação restrita – é distribuído somente nos meios militares – e concebido pelo assim chamado “grupo Inconfidência”, o informativo conta com a participação de um grande número de articulistas. Na sua “edição histórica” de 31 de março de 2004, artigos e reportagens versam todos sobre o mesmo assunto, o “40° aniversário do movimento cívico-militar de 31 de março de 1964”. Tal periódico – em cuja primeira página se leem os dizeres: “1964 – Brasil soberano”, juntos à bandeira nacional – não procura esconder a admiração por militares e pelo período ditatorial. Pelo contrário, o elogio ao militarismo é a sua tônica. Se, no plano do conteúdo, a publicação se pauta pela louvação incondicional; no plano da forma, caracteriza-se por ser mal-escrito, mal- revisado e, em alguns casos, não apresentar indicação de data de publicação original de textos reproduzidos de outras fontes. Desse último problema, cita- se, como exemplo, o artigo de Gilberto Freyre (INCONFIDÊNCIA, 2004, p. 25). Faz parte da edição a reprodução de textos como o editorial do jornal O Globo, de 2 de abril de 1964, afirmando que o povo brasileiro deveria ser grato aos militares, por ter-lhe prestado um grande favor. Outros textos, assinados por membros das forças armadas, são representativos da tendência à negação ou justificação da violência extrema de então. O artigo do coronel reformado Carlos de Souza Scheliga (idem, p. 3), por exemplo, baseia seus argumentos na afirmação de que a esquerda, durante todos esses anos, tem-se colocado no papel de vítima. Ele, aliás, homogeneíza aqueles que não têm simpatia pela ditadura. Redução em que cai, também, Olavo de Carvalho, que, além disso, ao comentar a repressão oficial, utiliza expressões como “brandura de sua

33 conduta”, “mínimo de violência” e “preço modesto que esta nação pagou”, em termos de vidas perdidas e em contraposição às benesses do Regime. (idem, p. 11). Seu artigo, de resto, propõe-se a esclarecer a “história oficial de 1964”. Jarbas Passarinho aproveita mais uma oportunidade para afirmar que não se arrepende de nada e que tem orgulho do resultado econômico da ditadura. Metade de seu artigo apresenta números, que comprovariam, segundo ele, as virtudes do período militar. Por fim, encerra seu texto admitindo implicitamente que, para enfrentar guerrilhas comunistas, é necessário sacrificar os direitos fundamentais de todos: “Resta-nos comparar com a Colômbia. Não sacrificou as liberdades fundamentais, mas enfrenta até hoje, passados 40 anos, guerrilhas comunistas.” (idem, p. 5). Ainda entre os militares, agora numa página destinada a depoimentos, leem-se os maiores elogios à “revolução” e, inclusive, uma proposta entusiasta de novo golpe, nas palavras do coronel Reynaldo De Biasi Silva Rocha:

neste momento difícil em que vivemos, sob nova ameaça marxista que busca aceleradamente a tomada do poder, que o espírito que nos norteou em 1964 inspire o povo e suas Forças Armadas a novas [sic] “31 de março”, para as quais estarei pronto a participar. (p. 18)

Como se percebe, parece que as lições tiradas dos anos da ditadura militar no Brasil não foram as mesmas para todos. Enquanto pouquíssimos se arrependeram outros estão prontos para um novo golpe. Declarações como essa amplificam um problema expresso nos testemunhos das vítimas: não há debate público eficiente em relação ao passado. A história não assimilada corre o risco da repetição. Na interpretação de ex-opositores da ditadura militar, o retorno de um regime de exceção – e da conseqüente carga de violência dele derivada – deveria ser extinto do âmbito das possibilidades. Enfim, como contraponto aos depoimentos em que o depoente afirma não ter conhecimento sobre muitos fatos, ou àqueles em que a repressão é

34 defendida como uma consequência natural da oposição ao regime ditatorial, é necessário que se dê atenção à entrevista com o coronel Élber de Mello Henriques, realizada por Consuelo Dieguez para a revista Veja de 3 de novembro de 1999. Sob o título “Eu vi a tortura”, a entrevista reproduz as confissões do coronel, que ousou denunciar a tortura a seus superiores e exigir a punição dos torturadores. Como resultado, foi afastado de suas tarefas. O coronel, como a maioria de seus colegas, apoiou o golpe de 64, mas considera que o AI-5 foi “uma desgraça” (HENRIQUES, 1999, p. 15), já que deu ao exército uma autoridade “acima da lei” (idem, p. 15). Fundamentais em seu depoimento, entretanto, são os detalhes de seu contato com presos torturados. Ele admite textualmente ter visto a violência extrema dentro dos quartéis: “não esqueço até hoje o que vi. O homem estava pendurado num pau-de-arara, totalmente destruído. Era uma coisa de dar dó. Ele gemia, urinava, defecava. Não pude nem falar com ele porque estava fora de si.” (idem, p. 14). Diante dessa situação, ele pediu para que tirassem o preso dali, pois deveria interrogá-lo na segunda-feira (era sexta). No dia marcado, chegou ao seu conhecimento que ele tinha falecido. Convém destacar que Élber teve sua conduta exemplar descrita no livro de Flávio Tavares (Memórias do esquecimento), em que o autor admite ter sido salvo pelo coronel. Sua postura digna não era, infelizmente, regra, já que a maior parte dos militares e policiais se acreditava em guerra, na qual tudo valia. É grande a possibilidade de que, se houvesse mais militares como o coronel Élber, a divergência de ideias ficasse apenas no âmbito discursivo e que a exacerbação ideológica e o fanatismo não dominassem o comportamento. Tanto de um lado quanto de outro. É de se esperar que haja muitas explicações ao “esquecimento”, por parte de alguns militares, de fatos acontecidos entre 1964 e 1985. Há razões políticas e ideológicas para que atos fora do comum — e, portanto, marcantes — não sejam lembrados. Mas há também razões pessoais. O enfrentamento com a memória do passado recente pode ocasionar as mais diferentes atitudes, desde o arrependimento sincero até a mais veemente negação.

35 Tais considerações se colocam em respeito da pertinência de textos teóricos sobre a memória, elaborados em outros contextos, para a relação com os casos aqui analisados. Teorias e estudos sobre os fenômenos da memória e do esquecimento podem contribuir para a compreensão dos acontecimentos estudados neste trabalho. Quando se afirma que, nos depoimentos de militares, somente parte do passado vem à tona, é interessante constatar a contrapartida teórica desse fato. Michael Pollak escreve, num texto em que trata de história oral, que a memória é seletiva (POLLAK, 1992, p. 203). Não se gravam nela todos os fatos (ou não se lhes tem acesso de maneira consciente, segundo Freud); há um processo de escolha das informações que serão registradas. Esse processo faz parte da constituição da identidade coletiva que se assumirá a partir de então. Ou seja, a memória é um dispositivo construído não apenas de forma consciente, mas também inconscientemente. Para o autor, há estreita ligação entre memória e identidade: “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva” (POLLAK, op. cit., p. 204). Em relação aos militares, a imagem que constroem de si mesmos e a explicação que elaboram para os acontecimentos de que participaram são caudatárias da necessidade de criação de representações críveis no (e para o) convívio social. Ou seja, sua identidade como grupo é constituída pelas memórias que compartilham e pela importância que atribuem a si mesmos no panorama social. Como temos visto, qualquer reminiscência que destoe da construção coletiva “oficial” permanece nos porões da memória. Não encontrando brecha para se manifestar, o conteúdo de algumas lembranças permanece “desaparecido”, isto é, só os próprios militares sabem onde está.

Reflexões e propostas

Ainda hoje, em incontáveis batalhas pela memória, leem-se cartas de leitores a jornais ou artigos de militares reformados, pedindo maior respeito às forças armadas, maldizendo comunistas e enaltecendo o desenvolvimento econômico alcançado com os governos militares. Ainda hoje, comemora-se,

36 dentro dos quartéis, o aniversário do “movimento cívico-militar de março de 1964” (cf. jornal Inconfidência, 31/03/04), momento de orgulho de oficiais saudosos dos tempos em que os militares tinham muito mais relevância na mídia, ao ponto de serem conhecidos pelo nome pela maioria dos cidadãos. Tristemente, ainda hoje se ouvem, em entrevistas televisivas, pessoas lembrando o tempo dos generais como um tempo em que “as coisas funcionavam”, desejando a volta de um regime ditatorial, para eliminar a “bagunça e a corrupção”. Os civis que atuaram no Governo também se esmeram na defesa dos militares. Armando Falcão, ministro da justiça de Geisel, escreveu um livro de memórias pródigo em elogios ao período ditatorial, no qual o discurso argumentativo segue as deturpações e eufemismos de seus companheiros de farda: “todos os presidentes da República, sem exceção, – de Castelo a Figueiredo – foram eleitos, por via indireta, pelo sufrágio majoritário de um colégio eleitoral originário da livre escolha popular” (FALCÃO, 1989, p. 403). Conclui-se desses fatos que as atrocidades cometidas pela ditadura ainda não foram objeto de um debate sério e profundo. Se ainda há a vontade de que o Brasil volte a ser controlado por regimes autoritários é porque a informação sobre o que acontecia nos porões das delegacias e centros de interrogatórios das forças armadas não chegou a todos, ou não sensibilizou a todos, o que é pior. A liberdade individual não parece ser considerada um direito inalienável. E a interpretação dada pelos militares aos acontecimentos daquele período é ainda a versão privilegiada por considerável parcela da população. Cabe aqui, ademais, uma constatação. Ainda não vieram a público, salvo engano, memórias de membros da força policial que atuaram na repressão aos movimentos de esquerda durante o período ditatorial. As denúncias atuais sobre a agressividade dos agentes repressivos de então quase sempre recaem sobre os militares, negligenciando o papel central que a polícia atuante nos DOI-Codis e os órgãos como os DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) tiveram. Seria interessante delinear as possíveis estratégias de narração utilizadas por esses sujeitos. Por fim, o estudo do Regime pós-

37 64 provoca inúmeras indagações. Uma delas consiste no interesse em saber por que os militares presidentes – comandantes, portanto – não puniam exemplarmente quem cometia excessos, já que argumentam não ter sido, a tortura, uma política oficial. Mesmo quando um coronel (Élber de Mello Henriques) fez denúncias, ninguém foi punido. Este texto se limita a comentar tópicos recorrentes no discurso militar, sem a pretensão de exaurir as possibilidades de análise. Semelhante tarefa pediria uma dedicação que não é possível neste espaço. Entretanto, como forma de apontamentos a trabalhos subseqüentes, indicar-se-ão algumas questões não contempladas aqui. A trilogia de depoimentos orais “A memória militar”, composta de Visões do golpe (2004 [1994]), Os anos de chumbo (1994) e A volta aos quartéis (1995), é valiosa no sentido de fornecer subsídios para a análise do discurso de oficiais de Armas e áreas diversas, formando um mosaico de informações muitas vezes divergentes. Em seus testemunhos, percebem-se pontos de vista antagônicos e ressentimentos contra colegas. A diferença de opinião, aliás, quase levou à quebra da disciplina e da hierarquia em alguns momentos (como nos episódios da reação ao sequestro do embaixador estadunidense, Charles Burke Elbrick, e da exoneração do ministro Sylvio Frota, por exemplo). Como se sabe, a mesma quebra de hierarquia por parte do então presidente João Goulart foi uma das desculpas para o golpe. O testemunho de Carlos Alberto Brilhante Ustra é uma fonte produtiva para a pesquisa das estratégias discursivas utilizadas por membros da repressão dos anos 70. Ele foi acusado, em agosto de 1985, pela atriz e deputada federal Bete Mendes, de ter sido seu torturador no DOI-Codi (do qual foi o comandante de setembro de 1970 a janeiro de 1974). Na ocasião, a atriz escreveu uma carta aberta ao presidente José Sarney, solicitando o afastamento de Ustra do cargo de Adido Militar no Uruguai. A querela foi amplamente divulgada pela imprensa. Em 1987, o militar publicou Rompendo o silêncio, no qual procura dar a sua versão aos fatos, negando que tenha praticado torturas e acusando a esquerda armada de várias ações prejudiciais

38 ao país. Não satisfeito, publicou ainda A verdade sufocada, com a intenção de revelar as “verdades” que a esquerda não quer que o Brasil descubra. As duas obras do ex-coronel merecem um estudo detalhado, pois contemplam as respostas e argumentos preferenciais dos homens por trás da repressão. Outra questão interessante é a que contrapõe Geisel e Sylvio Frota, tendo como coadjuvantes Golbery do Couto e Silva, Hugo Abreu e outros militares de alta patente. São difundidas muitas versões sobre a antipatia mútua que nutriam o ditador e seu ministro do exército e sobre as intrigas que culminaram na chamada “crise de outubro de 1977” (substituição de Frota, acusado de armar, nos bastidores, um novo golpe contra a abertura política, idealizada por Geisel e por Golbery). Esse período crítico dos governos dos generais ainda não foi devidamente investigado, e ajudaria a esclarecer alguns aspectos do discurso militar e de seus interditos. Se, por um lado, a versão que se cristalizou sobre Geisel é a de que era um homem aberto ao diálogo, íntegro e honesto, por outro, os relatos O outro lado do poder (1979) e Tempo de crise (1980), de Hugo Abreu, que foi seu chefe de gabinete, e a publicação póstuma de Sylvio Frota, Ideais traídos (2006), fornecem uma perspectiva bastante diversa3. Por fim, a leitura dessas obras e de vários artigos constantes em sítios4 da rede de computadores leva à conclusão de que os militares, ao se defenderem de acusações de autoritarismo e excesso de violência, legitimam seus atos através de uma contraposição aos da esquerda revolucionária, qualificada invariavelmente de terrorista. Pouco (ou nada) é dito sobre os civis que não pegaram em armas, sobre os suspeitos alheios a tudo e que foram interrogados e mesmo sobre aqueles que se opunham ao Regime apenas no campo das ideias, por princípios diferentes das convicções militares. O processo de envelhecimento de personagens atuantes na época conduz a um balanço da vida e da pertinência de ideias com tanto afinco defendidas. A avaliação do passado, materializada em relato escrito, é estruturada com vistas a uma explicação coerente de atitudes condenadas mundialmente, ou, o que é mais comum, à negação de sua existência. É possível

39 ler as memórias buscando entender os motivos por que tantos homens foram capazes de torturar seus semelhantes – ou de encobrir a tortura. Mas, como lembra Christopher Browning, em seu estudo sobre memórias de perpetradores, “explicar não é desculpar; entender não é perdoar” (BROWNING, 1992, p. 36). Os caminhos pelos quais a história é feita e – o que nos interessa aqui – escrita passam por divergências pessoais, casualidades, intrigas e revanchismo. As narrativas subterrâneas do período são pródigas em versões e visões merecedoras de estudos detalhados. Acreditamos, enfim, que um dos papeis do trabalho acadêmico é o de dar atenção a novas versões de fatos constantemente sonegados do grande público, fatos ainda contestados ou relativizados, aos quais não se atribui a relevância necessária. Além disso, muito ainda há para ser descoberto. Como vários participantes da ditadura militar lançaram mão daquelas estratégias comentadas no início, os episódios escondidos precisam ser revelados; os falsificados, elucidados; e os justificados, criticados.

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Notas

1 Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2008) e Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (2003). Pós-doutor pela Universidade Federal do Piauí (2009). Professor de Literatura da Universidade Estadual do Piauí. Este texto é uma versão modificada do segundo capítulo de minha tese de doutorado, intitulada “A escrita da dor: testemunhos da ditadura militar”. 2 Elio Gaspari registra: “Afora os sete mortos do dia 1° de abril, morreram mais treze pessoas ao longo de 1964” (GASPARI, 2002a, p. 131, nota 8). 3 A boa-imagem de Geisel foi fortalecida tanto pela entrevista ao CPDOC da FGV (D’ARAUJO & CASTRO, 1998) quanto pela série de livros de Elio Gaspari (2002a, 2002b, 2003 e 2004). Hugo Abreu foi detido pelo exército por mais de 20 dias, em decorrência de seu primeiro livro (FROTA, op. cit., p. 605). Em O outro lado do poder, ele escreveu, sobre Geisel, expressões como “temperamento autoritário e centralizador” e “fui para o Governo convidado por um Presidente em quem pensava poder confiar” (ABREU, 1979, p. 36 e 8, respectivamente). Em Ideais traídos, há muitas referências ao Presidente, a começar pela própria capa, que coloca Frota e Geisel ao lado um do outro, indicando, nas entrelinhas, o papel de traidor que o primeiro deseja imputar ao segundo. 4 Há várias páginas destinadas a “restaurar a verdade” e a contradizer a esquerda “mentirosa” e a imprensa “fa- laciosa”. Entre as mais combativas e exaltadas, podem-se citar: http://www.ternuma.com.br; http://www.paginas. terra.com.br/educacao/acontinencia/index2.html

42 A UNIDADE BRASILEIRA E A FORMA SEM SÍNTESE

Jaime Ginzburg (USP) 1

Tema constante dos debates de historiografia literária, a identidade nacional ocupa frequentemente a atenção do campo intelectual brasileiro. Heranças dos projetos românticos, que atravessam o século XX e chegam ao presente, estão constantemente associadas a princípios conservadores, de acordo com tradições que propõem como valor determinante para a identidade nacional a categoria da unidade. Para esse horizonte, a maneira adequada de interpretar o país é como uma totalidade. O Brasil, assim entendido, se caracterizaria por uma essência. Brasileiros teriam características estáveis. Não há dúvida de que, para os adeptos dessa atitude, há vantagens epistemológicas, analíticas e cognitivas, pela enorme simplificação de raciocínios e pela homogeneidade com que o objeto se apresentaria à percepção. Contrária a essa tendência, estaria a posição de uma diversidade constitutiva do país. Transformações históricas, conflitos sociais, variantes raciais, religiosas, étnicas, em um contexto de complexidade geopolítica. Nessa perspectiva, por mais constantes que as vivências nesse país permitam observar, o isolamento de uma essência nacional seria falseadora do que se apresenta em sua trajetória. A organização do problema em polos indicaria, nesse sentido, dois extremos: uma “brasilidade” especificada por traços definidores; e uma diversidade constitutiva do país, que inviabilizaria uma identidade nacional com uma definição fácil, totalizante e linear. Em termos políticos e sociais, está articulada uma polarização que penderia entre a ideia de uma identidade estável, fixada, e uma identidade processual, em permanente reelaboração. A primeira alternativa é conveniente para pontos de vista metafísicos, que contam com perspectivas temporais pautadas pela continuidade (tomemos como referência a Fenomenologia do Espírito, de Hegel), e para

43 a pressuposição filosófica de que qualquer elemento interno que possa ser considerado estranho à essência, de fato, pode ser assimilado a ela. A segunda alternativa é oportuna para pontos de vista materialistas, que contam com descontinuidades e irrupções de mudanças históricas (tomemos como referência a Dialética Negativa, de Adorno), e para a pressuposição de que não há nenhuma necessidade a priori de que as condições de existência de um país permaneçam em continuidade estável ao longo do tempo. A permanência do debate no momento presente não surpreende. O contexto contemporâneo está caracterizado pela forte presença, em diversos continentes, de movimentos nacionalistas e fundamentalistas. A concepção de identidades puras, homogêneas e resistentes ao contato com o outro tem renovado suas conotações políticas, inclusive pelas ampliações do impacto do terrorismo e pela redefinição da geopolítica econômica. Muito recentemente, as ações do Estado no que se chamou de ação de controle do tráfico no estado do Rio de Janeiro foi um exemplo em uma série de casos de exploração política do ideário nacionalista em favor de interesses circunscritos. No campo dos estudos literários, a ideia de unidade brasileira atua de vários modos, sendo constante sua presença como mitologia política, tal como entende Raoul Girardet. O nacionalismo literário foi fundamental na constituição do cânone estético do país. As articulações dos critérios de elaboração do cânone com princípio como o elogio do patriarcado, a modernização conservadora, a desigualdade e a violação de direitos humanos são hoje temas de alcance importante. No Romantismo, com o início do Império, a identidade nacional assumiu um papel construtivo, imaginativo, com mistificações funcionais em uma sociedade contraditória. A obra de Álvares de Azevedo permite observar com clareza e argúcia crítica as dificuldades desse momento do nacionalismo brasileiro, como tentamos expor em uma pesquisa anterior sobre história e melancolia no ensaio Literatura e Civilização em Portugal. O problema ganha novo contexto no campo republicano a partir dos anos de 1930, com a intensificação da modernização econômica e das

44 migrações, quando a diversidade social fica muito mais nítida do que já era nos núcleos urbanizados, que crescem em maior velocidade. Para além da existência de um Hino Nacional, de fronteiras territoriais consideradas soberanas ou de um dicionário de consulta comum, a ideia conservadora de uma essência brasileira consiste em um modelo de condição humana, um “tipo humano”. Ela foi reforçada na primeira metade do século XX por esforços de purificação, com requintes ideológicos. O integralista Plínio Salgado, por exemplo, planejava: ele “será, incontestavelmente, dos mais superiores e inteligentes” (SALGADO, 1955, p. 58). Além dele, outros intelectuais autoritários tiveram perspectivas para a purificação do homem brasileiro, com uma depuração para qualificá-lo – Oliveira Vianna e o branqueamento, Gustavo Barroso e o anti-semitismo, Miguel Reale e o fascismo, entre outros. Em 1960, o Estado brasileiro faz uma tentativa olímpica de propor materialmente uma metafísica da unidade nacional, com a fundação de Brasília. A interpretação de James Holston ajuda a compreender o fenômeno. Criando um centro geopolítico no interior, com uma cidade em que as ruas não poderiam ter nomes humanos, e os segmentos urbanos não poderiam se desviar de funções eficientes, o Estado propôs um planejamento deum contexto de excelência autoritária para a unidade nacional. Brasília teria de ser o máximo, não apenas em simbologia, mas em realização, de servidão de homens brasileiros a uma única ideia. O fracasso do projeto não se deveu apenas à corrupção política ou à tradição de autonomia de certos governos estaduais; também ao fato de que algumas pessoas adoeceram por não conseguirem se adaptar ao regime disciplinar definido por Brasília. Como explica Holston, paradoxalmente, a capital que deveria ser sede da identidade nacional negava o que era o país (cf. HOLSTON, 1993, p. 32). Na literatura brasileira, a concepção de unidade foi defendida em diversos momentos, entre eles, no Modernismo, no Movimento da Anta. Artistas e intelectuais elaboraram projetos nacionalistas pautados pela integração do país em movimentos direcionados para a unificação, rumo a um Brasil caracterizado pela identidade definida. Idioma, pele, credo religioso,

45 orientação sexual, vestuário e alimentação já fizeram parte dos debates em torno das maneiras de estabelecer essa unidade. Os interesses políticos por estas modalidades de configuração do país se acentuaram nitidamente em períodos como 1938-1942 e 1964-1978. A história do autoritarismo brasileiro em seus desdobramentos recentes, muito bem relatada por Paulo Sérgio Pinheiro, é acompanhada pela mistificação da unidade do país. Um livro como Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, irrompe na década de 70 e coloca em questão o princípio da unidade brasileira desde sua raiz, envolvendo as relações entre terra, família, sacralidade e autoridade. E encontra o personagem ideal para sua encarnação: uma figura paterna. A inteligência estética de Nassar, cuidadosa e habilidosa, apresenta no líder da família deste romance uma figura que caracteriza a ordem como elemento constitutivo. O pai controla a ordem familiar por meio de rigor, de sustentação de valores e de uma condução hierárquica da convivência da vida na casa. O vocabulário empregado e a sintaxe articulada indicam um princípio de orientação disciplinada de pensamento. Em seus sermões e em suas manifestações, o pai expressa sua percepção organizada do universo. A enunciação da estória, no entanto, vem de André, filho que se caracteriza de modos estranhos aos princípios paternos. Filho epiléptico, possesso, demoníaco. Rapaz que admite desafiar o domínio da disciplina familiar. Responde à fala do pai não apenas com a diferença, mas se apropriando do vocabulário paterno e reelaborando suas propriedades2. No capítulo 29 do romance, ocorre a descoberta pelo pai de que André teve um envolvimento amoroso com Ana. Como o incesto não é compatível com a medida de sua ordem, o pai imediatamente mata a própria filha, com um golpe, em cena construída pelo autor com rigor formal e precisão impecável. É então que o leitor compreende, por mediação deste narrador que se avalia de modo incerto, que o fundamento sólido desse cosmos, dessas leis, dessas terras, essa figura paterna tão segura, com a mesma solidez que enuncia o critério de verdade, usa o braço para o ato de matar.

46 A interpretação alegórica, entendida aqui em termos benjaminianos, permite ler a morte de Ana, motivada pela leitura de seu corpo como impuro, como uma imagem articulada com o debate sobre identidade nacional. A unidade social pura não admite riscos, não pode tolerar, no extremo, aquilo a que atribui o traço de diferença intolerável. Assim é que a honra, na brutal tradição patriarcal, é superior ao afeto, e o pai faz prevalecer o princípio da ordem através da violência, diante do anúncio do tabu do incesto. Como poucos, o livro de Raduan Nassar permite ver um processo forte, insistente, na cultura brasileira dos anos 60 ao presente, em literatura, cinema, música, artes plásticas, que consiste em expor, colocar em visibilidade imagens da unidade, da totalidade, como essa figura paterna. Fazer isso, muitas vezes, por uma perspectiva crítica, pondo em questão ideologias nacionalistas e autoritárias que ainda circulam, e que estiveram no âmbito midiático das eleições recentes, em 2010. O problema não é apenas a definição de uma imagem do “brasileiro” singular ou plural, essencial ou mutante, harmoniosa ou contraditória. Um livro como Lavoura arcaica permite formular a inserção da crítica nas condições de realização do debate, nos termos em que se desenvolve. Se a figura paterna, que sustenta a própria hierarquia política do sistema todo, é também quem pode subitamente matar, não basta perguntar qual é a ordem representada pelo pai, mas – como inteligentemente sugere Raduan Nassar – que posições de narração são possíveis diante de um pai que é ao mesmo tempo gerador e destruidor. Nesse sentido, com esses critérios, ganha valor de obra-prima o conto Os obedientes, de Clarice Lispector. Um casal vive na rotina, e passa a esperar mais, ter fantasias. Tanto o marido como a esposa se envolvem em expectativas de mudanças; ele, com várias mulheres, ela, com outro homem. Em certo momento, ela quebra um dente e se olha no espelho. Joga-se da janela do apartamento. O marido, posteriormente, é levado a uma queda. Tudo o que caracteriza o casal na base do seu comportamento inicial, desde o título, indica um sistema de regras, referências e valores. Para esse sistema, esses personagens sem nome são cumpridores, tendo uma trajetória

47 de lealdade. É através da voz da narração, muito mais elaborada do que a própria consciência dos personagens, que entendemos o abismo entre expectativas e limitações. Passagens como “‘Ser um igual’ fora o papel que lhes coubera” e “Talvez entendessem mais se lhes dissessem: ‘vocês simbolizam a nossa reserva militar’” contribuem para acentuar a identificação entre o modo de vida rotineiro dos personagens e o ideal de que eles façam parte de um conjunto social estabelecido como ordenado, adequado e legítimo. O conto de Lispector, alegoricamente, permite compreender o pertencimento à unidade social como confinamento. Esses personagens despreparados para mudança em suas vidas configuram metonimicamente a inabilidade de transformação em um contexto de hegemonia autoritária do senso de ordem disciplinar, em que os seres humanos não são capazes de verbalizar ou viabilizar seus desejos. O suicídio da protagonista feminina leva ao extremo o estado-limite em questão. Não há no horizonte desses personagens percepção de condições concretas de transformação, e o que se apresenta no espelho é o abjeto. Clarice Lispector e Raduan Nassar estão elaborando, com inteligência estética, uma crítica da imagem da sociedade como unidade fechada. Com isso, contribuem muito para uma reflexão sólida sobre identidade nacional. Longe da afirmação metafísica do essencialismo, seus textos nos propõem uma pergunta difícil: como viver em um país que nunca se harmoniza? O suicídio de uma mulher e o assassinato de outra indicam que dentro do universo da identidade coletiva unificada há algo de intolerável que conduz à irrupção da morte, à destruição. A disciplina ordenada tem uma aparência que disfarça uma carne assustadora, um silenciamento perigoso. Os dois escritores encontraram brilhantismo formal para elaborarem essa crítica, em tensões formais. Em Lavoura arcaica, ocorre o antagonismo entre filho e pai que, no caso, é também entre o narrador e o personagem do pai. A construção do romance emprega uma série de recursos voltados para uma estética do choque. Em Os obedientes, Clarice Lispector rompe com a linearidade com elementos de descontinuidade sintática e lexical, e

48 fragmentação temporal e espacial, com referenciais que põem em questão os limites da consciência, e movimenta de modo dissociativo o campo semântico da palavra “realidade”. As tensões formais internas dos textos correspondem, pensando com Theodor Adorno, a uma necessidade estética: demolir a imagem de um mundo ordenado pela imagem estereotipada da unidade, implodindo a imagem do Brasil como totalidade homogênea. Ao apresentar um país que não está em ordem, e nele integrar essas mortes impactantes, constituem um discurso que desafia, no vocabulário, na sintaxe, no conjunto, qualquer expectativa de homogeneidade. Lispector e Nassar escrevem em formas sem síntese.

A arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. [...] Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra de arte pode já manifestamente concluir de modo convincente, enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como se os momentos singulares se associassem com o ponto final para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da modernidade que, entretanto, foram objeto de ampla recepção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a unidade da forma já não lhes era garantida. A má infinitude, o não-poder- concluir, torna-se princípio livremente escolhido de procedimento e expressão. Nas suas peças, ao repetir literalmente um excerto em vez de o interromper, Beckett reage a tal fenômeno; há quase cinqüenta anos, Schönberg procedeu de modo semelhante na marcha da serenata: após a supressão da repetição, retorno desta por desespero. [...] A unidade das obras de arte não pode ser o que ela deve ser, a unidade da variedade: ao sintetizar, ela viola o sintetizado e prejudica nele a síntese. (ADORNO, 1988, p. 169)

49 Esse “não-poder-concluir” tem direta relação com a temporalidade de um mundo impregnado por mortes impactantes. Mundo que nenhuma metafísica explica por completo, e em que nenhuma essência de brasilidade é suficiente, pela carga forte de conflitos históricos e desigualdade. As mortes da esposa em Lispector e de Ana em Nassar são indicadores de que a concepção metafísica de uma totalidade brasileira é uma configuração autoritária que guarda em seu interior algo de assustador. No presente, em muitas instâncias do cotidiano, da vida midiática e da produção cultural, as ideologias nacionalistas continuam em circulação. Na publicidade, na política, nos esportes, no consumo, no militarismo, na escola e na universidade, reforçando constantemente a ideia da homogeneidade essencialista do país. Essa continuidade só aumenta a importância de textos como Lavoura arcaica e Os obedientes.

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Notas

1 Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1997) e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1993). Atualmente é Professor Livre-Docente de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, e bolsista 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 2 Como explica Ana Carolina Sá Teles: “a pedra monolítica do discurso autoritário paterno apresenta-se como extremamente modelável às mãos do filho pródigo, permitindo a André empreender as mais inusitadas for- matações e interpretações dos sermões do pai.” TELES, Ana Carolina Sá. Crítica ao patriarcalismo e ao discurso autoritário em Lavoura arcaica de Raduan Nassar. Literatura e autoritarismo. UFSM, Nov. 2008.

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AS PARALELAS QUE SE ENCONTRAM ELUCUBRAÇÕES ACERCA DA LEITURA DE “SARGENTO GARCIA”, DE CAIO FERNANDO ABREU

José Luiz Foureaux de Souza Júnior (UFOP) 1

Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. Caio Fernando Abreu

O “texto dramático” é constituído de “atos e cenas”. Um ato representa os momentos de uma obra em que corresponde a tudo o que acontece em um mesmo período de tempo. Os atos podem se dividir em cenas que são indicadas pelas entradas e saídas das personagens e as reviravoltas na trama – ainda que em número reduzido. As cenas também podem ser marcadas por elementos que, às vezes, “escapam” da própria composição da trama. Em se tratando de cenas, não há regra pré-estabelecida quanto a quantidade delas num “drama”: serão tantas quantas forem necessárias. O que vai ficar, de fato, é o discurso a famigerada “mensagem”! Com o tempo, a estrutura de uma peça foi sendo modificada. Na Grécia clássica, por exemplo, a obra se dividia em episódios apresentados pelo coro. Já nos séculos XV e XVI d.C., a divisão da peça era feita em três atos: exposição (nesse momento, as personagens eram apresentadas e eram passadas as informações para que a platéia se situasse na história); desfecho ou clímax (o conflito era desenvolvido nessa parte); desenlace (o público já sabia como se resolveria o conflito). No século XVII, houve a necessidade de aumentar o número de atos. É nessa época que são escritas peças com até cinco atos, como as tragédias de William Shakespeare.

53 Esse tipo de abordagem pode ser considerado aqui como uma espécie de epígrafe interna: raciocínio inicial que ilumina o caminho de leitura do artigo que segue. De fato, o texto de Caio Fernando Abreu, em geral, é comumente associado a um tipo de escrita “cinematográfica”, logo, por extensão de sentido, “dramática”. No caso específico de “Sargento Garcia”, a trama do conto aponta para uma sequência dramática que flui pela pena do escritor, pela voz narrativa de Hermes. Em muitas “sequências”, essa voz narrativa se faz in off – herança do efeito causado pelo fluxo de consciência, procedimento caro a muitos escritores. O meu objetivo é mais que aproximar cinema e literatura e/ou teatro, violência e conto – ainda que essa aproximação seja exercício instigante de comparatismo. O artigo tem como objetivo principal mais uma leitura de um dos textos de Caio Fernando Abreu. A obra dele já está suficiente e consolidadamente chancelada pela crítica. Os dois argumentos se sustentam na ideia de que a primeira parte do conto desenha um pano de fundo para a leitura que proponho: o cenário. A segunda parte do artigo tenta esboçar linhas de força de uma proposta de leitura calcada na ideia de violência. A verticalidade dessa perspectiva será, aqui, substituída pelo referido esboço: alternativa a mais, no inumerável universo que a leitura vai criando. A terceira parte desenvolve a leitura que faço do conto em si mesma – mais uma! –, chamando a atenção para aspectos que considero importantes para o desenvolvimento da ideia: a assimetria que marca as relações de poder, sem especificação particular, articulada pela articulação de termos, expressões e imagens. Identifico esse conjunto de elementos discursivos como “dêiticos”. Deve ficar claro que não faço defesa desta ou daquela escola linguística, procurando atacar e/ou defender teorias acerca dos “dêiticos”. O que importa é tentar “ler” as relações que aqui são ficcionalmente prenunciadas. Por fim, na quarta parte do artigo, acrescento algumas considerações, no sentido de “amarrar” ideias num feixe que, incendiado pelo “fogo” da leitura, complementem as considerações anteriores. Falar em “conclusão” me parece um tanto premeditado. Penso que leitura alguma pode ser considerada “conclusiva”, a não ser que seja tomada

54 como um passo a mais na direção de alguma coisa considerada resposta. Há sempre uma pergunta a responder, sempre. O artigo que aqui apresento vai seguir esse pressuposto – que pode estar “errado –, para ler um conto de Caio Fernando Abreu que considero “dramático”. Quem vai poder dizer que não? Mais uma pergunta...

Contexto

Dizem que duas retas paralelas não se encontram. Os adeptos de outras teorias dizem que a relatividade é responsável pela possibilidade desse encontro. De outro lado, há os que acreditam que a sincronicidade é a responsável por essa possibilidade. Pelo sim, pelo não, as comparações continuam, o cálculo ajuda a equacionar o problema e as histórias continuam a ser contadas. Aqui, mais uma experiência de leitura que parte da ideia de que é possível estabelecer relações assimétricas de poder. O eixo é o texto. A matéria, a ficção de Caio Fernando Abreu, o instrumento é o olhar homoerótico que mira os dêiticos que gritam: poder! A palavra “assimetria”, no dicionário, expressa tudo o que é ausência de simetria. Ponto para a etimologia, apoio indiscutível da semântica. Acrescenta, o verbete, a ideia de grande diferença; disparidade, discrepância. Esse é, talvez, o argumento de quem vê entre o sargento e Hermes, os dois protagonistas, relação de antagonismo. Será mesmo? Ao final, talvez, seja possível afirmar uma ou outra coisa. Além disso, o antônimo do termo destacado, expressa a ideia de conformidade, em medida, forma e posição relativa, entre as partes dispostas em cada lado de uma linha divisória, um plano médio, um centro ou eixo. Aqui começa a se esboçar outro caminho de leitura. Nessa direção, o dicionário acrescenta a ideia de semelhança entre duas metades, semelhança entre duas ou mais situações ou fenômenos; concordância, correspondência. Destaco esses acréscimos por conta de “correspondência” – palavra que encobre o sentido de relação, essa sim, palavra-chave desta minha proposta de leitura.

55 Em alguns de seus momentos, o homoerotismo pode apontar para os articuladores de minha leitura. Os seus dêiticos são evidentes e vão costurando as ideias que fazem do conto a demonstração clara das relações de poder alegorizadas pela narrativa de Caio Fernando Abreu. A assimetria da relação entre o sargento e Hermes é indicativo de um poder que circula por entre as frases curtas trocadas entre as duas personagens. O passeio que começo a fazer funciona como roteiro de uma viagem processada pela leitura da história um tanto amarga e cínica. A simultaneidade de sentimentos dá sabor especial ao que se passa. A caminho do passeio, então! As boas maneiras, a educação formal e a elegância são apenas algumas das qualidades de Azevedo, personagem de O demônio familiar, peça de autoria de José de Alencar. Acrescente-se certo cosmopolitismo, uma vez que, ao residir na Europa, esse jovem aristocrata brasileiro teve acesso ao melhor do pensamento europeu de seu tempo. Entretanto, não foi essa a abordagem escolhida por Alencar para o desenvolvimento do papel da personagem na peça. Amaneirada, misturando de forma gratuita Francês e Português, a personagem é desenhada como caricatura da juventude abolicionista brasileira: “casta” de jovens que estudaram no exterior. Para Alencar, o filho de um padre metamorfoseado em senador do império e sua inserção social é o suficiente para justificar o alerta à sociedade sobre os perigos de expor jovens moralmente fracos aos maus costumes de sociedades carcomidas pelo vício. Entretanto, o autor não colocou as palavras de advertência na boca de uma personagem respeitável, responsável. Pedro, o garoto escravo, é que personifica o demônio do título da peça, sugerindo que havia a existência de algo de errado com Azevedo: “Rapaz muito desfrutável, Sr. môço! Parece cabeleireiro da Rua do Ouvidor!” (ALENCAR, 1960, p. 91). Para o enfant terrible do Romantismo brasileiro, o teatro foi mediação suficiente e eficaz para a promoção de valores morais na sociedade. Consciente das qualidades especiais da linguagem dramatúrgica, Alencar buscou, no Realismo francês, os moldes para sua teatralidade, habilidosamente executada pelo reasonair: personagem que apresenta comentários e tece juízos morais. Na

56 peça de Alencar, Eduardo, médico, sucessor do patriarca falecido, proprietário do escravo Pedro é a personagem que sustenta o discurso do reasonair. Para defender a ideia de que a abolição da escravatura deveria ser o resultado da humanização das relações entre senhores e escravos, espécie de emancipação espontânea, Alencar mostrou o perigo que a presença do escravo poderia representar aos valores morais da família burguesa. Desencontros e fofocas, insolência e mentiras são apenas algumas das consequências da ação de Pedro, movido pelo desejo de ser alforriado para tornar-se cocheiro. A mente infantil, ou diabólica, do negro passa a representar argumento favorável à futura alforria voluntária. Daí a desqualificação do interlocutor representado por Azevedo, ao caracterizá-lo como moralmente frouxo, superficial e desfrutável. O texto de José de Alencar demonstra abordagem superficial, transversal, e supressora de qualquer debate no que respeita ao homoerotismo, limitadamente sugerido na descrição de um possível sujeito não qualificado para ser levado a sério. Nessa direção, ele foi seguido por dois outros romances: O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, e O Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha. Esses não se furtaram a dar nomes a atos e afetos inefáveis. Entretanto, o rancor pode ser tomado como sentimento motriz de ambos. Ainda que discutível, a referência à “motivação do autor”, a menção ao contexto humano e o entorno existencial em que as obras foram produzidas e recebidas reforçam a abordagem aqui observada. O texto de Raul Pompéia pode ser considerado “acerto de contas” com o passado, denúncia do meio escolar hostil (o internato), palco para da dramatização do exercício de relações assimétricas e degradantes de poder. As práticas homoeróticas são, aqui, apenas consequências do ambiente. Já para Adolfo Caminha, a questão seria o ressentimento em relação à armada, onde havia trabalhado, tendo sido forçado a pedir demissão de seu posto, o que livrou a marinha de um jovem politicamente engajado e com histórico de problemas morais: o envolvimento com a esposa de um oficial do exército. Há que se chamar a atenção para outra gama do espectro interpretativo: a “negociação”, princípio operacional

57 de possível discurso político agenciado pelo romance. O autor, dizem, teria tido a ideia de sustentar, pelo romance, o referido discurso, numa implícita defesa de Dom Pedro. Mas esse assunto fica para outra oportunidade. Inseridos no cânone literário brasileiro, os autores citados: Alencar, Pompéia e Caminha iluminam as abordagens e representações iniciais percebidas pelo olhar homoerótico de que trato em meu livro: Herdeiros de Sísifo. Seja pela insinuação preconceituosa ao homoerotismo, seja pela apresentação de atos homoeróticos como resultantes da degradação moral causada pela brutalidade do regime de internato; ou pela denúncia rancorosa dos maus tratos sofridos pelos marinheiros da armada, não é possível falar em elaboração identitária homoerótica, ao mesmo tempo socialmente autônoma e responsável. Coube a Machado de Assis, no conto “Pílades e Orestes”, a dissecação dos interesses, das motivações, e da mecânica que tornou possível a dois membros de estratos sociais mais elevados a manutenção de uma união afetiva em pleno século XIX. O “silêncio” autoral do autor, nas referências explícitas à amizade dos dois advogados é contundente no discurso homoerótico que, à sua revelia, se espraia diante dos olhos do leitor. Inserido no livro de contos Relíquias de casa velha (1906), o referido conto ganhou especial importância por apresentar uma abordagem machadiana para a questão do homoerotismo.2 No texto de Machado, as identidades erótico-afetivas são efetivadas segundo as regras do jogo de interesses de classe que somente pode se realizar plenamente sob o domínio do cânone “heteronormativo”, compreendido como lei. Há oscilação entre desejo e realidade, que molda a conformação discursiva dos sujeitos. Na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX, época em que se passam os fatos narrados, o relacionamento erótico entre dois homens poderia ser interpretado basicamente de duas formas distintas conforme a localização espacial, social e temporal dos sujeitos envolvidos. A primeira abordagem do fato, que pode ser chamada de religiosa, correspondia à sua interpretação sob os valores católicos tradicionais, que identificavam as práticas homoeróticas com o pecado de sodomia, definido durante boa parte

58 do período de vigência da Inquisição, como a prática do coito anal. Parece que isso não mudou muito, apesar de “certos” esforços, aparentemente denodados... Outra abordagem, que se afirmou de maneira convincente após a revolução burguesa na França, manteve a noção de uma ordem natural para as práticas sexuais cuja transgressão poderia ser interpretada como manifestação patológica. Em “Pílades e Orestes”, Machado de Assis lança mão da referência a um mito grego transposto para o teatro, ainda na Antiguidade, sob forma de tragédias compostas por três grandes nomes do período de ouro do teatro clássico: Ésquilo, Eurípedes e Sófocles. A esse respeito, o narrador machadiano faz referência ao citar Sófocles. Entretanto, nessa narrativa o autor apropria-se habilmente do mito para a elaboração do texto que exprime elementos de sua própria cultura pelo recobrimento da significação dos referenciais diegéticos: o mito de Orestes, cujos elementos podem ser colhidos na Odisséia, no Catálogo das heroínas, no poema “Oresteia”, e na Pítica XI. A narrativa do mito relata acontecimentos que se seguiram ao retorno do rei Agamêmnon a Argos. Após o assassinato do monarca e comandante da guerra de Tróia, Egisto e sua cúmplice, a rainha Clitemnestra, voltaram-se para Orestes, o filho caçula do rei morto, uma vez que eliminado o herdeiro legítimo do trono, ambos estariam seguros e livres da vingança pelo sangue derramado. Salvo da morte por sua irmã Electra, Orestes foi levado para a corte de Estrófio, rei de Crisa, onde cresceu seguro e conquistou a amizade de Pílades, filho do rei. Atingida a maioridade, Orestes obedeceu às ordens de Apolo e retornou para Argos com Pílades, amigo inseparável, para vingar o terrível crime cometido por Egisto e por sua própria mãe, Clitemnestra. Ajudado por Electra, que o introduziu no palácio, e pelo inseparável Pílades, que o animou a agir no momento em que hesitava diante dos seios desnudos da mãe suplicante, Orestes executou a justiça de Apolo. Surge, então, no relato do mito, o “trágico” que inspirou a tantos outros relatos na Antiguidade: a condição do homem frente às demandas de potências que estão além de seu controle, levando-o às ações cujas consequências esmagadoras não podem ser evitadas. Diante da

59 execução da mãe, sobrevém a loucura e o tormento das Fúrias, vingadoras dos crimes contra consanguíneos: Orestes havia cometido matricídio! Purificado do crime por Apolo em Delfos e livrado das Fúrias após um julgamento em Atenas, presidido pela própria deusa Atena, Orestes recebeu ordem de partir em busca de uma estátua de Ártemis, guardada em Táuris, que o poderia livrar da loucura. Depois da aproximação com a mitologia, merece atenção a posição de classe social privilegiada das personagens centrais do conto de Machado de Assis. Há, no discurso ficcional, incontestável desenvoltura na ilustração homoerótica da relação entre Gonçalves e Quintanilha, inclusive por força da sugestão da existência tática do casamento por interesse: recurso de camuflagem para a natureza da união afetiva de ambos. No século XX, Mário de Andrade também cria ficcionalmente uma porta aberta para o homoerotismo, valendo-se dele para criticar valores patriarcais fora de lugar: a imposição de determinado (e determinista!) papel social masculino para o adolescente, levado a vivenciar a esterilização de suas relações afetivas. Em Contos novos, publicado postumamente, obra da maturidade do autor, lê-se “Frederico Paciência”, exemplo de notável adensamento psicológico. Esse detalhe consolida mudança na relação de poder, implícita na narrativa, conforme se pode ler na seguinte passagem:

Em termos temáticos, há alguns eixos fundamentais na construção dos dois livros de contos. Dentre eles, cabe destacar o problema do patriarcado. Os livros contêm várias marcas da base patriarcal da formação social brasileira. Nessa base, a liderança social é representa- da por um perfil específico: o homem branco, adulto, heterossexual, com posses. Todos os outros segmen- tos sociais devem, em termos sócio-políticos, estar em uma posição submissa. (...) No Brasil, o patriarcado configurou uma das expressões mais presentes do au- toritarismo, articulando macropoderes e micropode- res. (GINZBURG, 2003, p. 40)

60 Acrescente-se que os latifundiários, fazendeiros, políticos e os senhores de escravos delimitavam os graus variáveis de liberdade de mulheres, negros e crianças, além de organizarem a vida econômica e o mercado. Constituíam na vida privada estruturas de regras de obrigação e obediência. Esse pano de fundo que permite contextualizar boa parte da obra de Mário de Andrade é o cenário dos resquícios do patriarcado que devem ser superados. A crítica ao patriarcado, configurada pelo discurso ficcional de Mário de Andrade, tem enorme importância política e social. O sustento da perspectiva de leitura da abordagem agenciada pelas possíveis relações de poder ficcionalizadas, também, por Mário de Andrade pode ser lido em dois trabalhos de Antonio Candido – “O serviço de inteligência” e “O direito à literatura”. Ambos sinalizam a importância estratégica do trabalho de Mário: intelectual de matiz antifascista, antiautoritarismo. O autor paulista pode ser destacado por várias marcas, dentre elas, seus valores políticos. A ficção, em seus livros de contos, tem um papel libertário: trilha de emancipação, procurando encontrar focos de ruptura em meio à dominação patriarcal e expor as fragilidades e contradições do sistema. Daí a plausibilidade de enfocar o homoerotismo como uma das variáveis de leitura de sua obra. A contestação da figura patriarcal, nos contos de Mário de Andrade, é possibilitada pelo recurso a elementos da experiência cotidiana para criticar a figura autoritária nas pequenas práticas sócio-afetivas. Exemplo dessa abordagem é o papel que o autor dá à personagem Juca, no conto “Peru de Natal”, de Contos novos. Atuando como agente da libertação dos familiares, Juca fez do peru da ceia de Natal uma arma para superar a imagem repressora do pai falecido que sobrevivia na memória familiar. Trata-se de uma ceia diferente, em que todos puderam comer o melhor, o que foi em si um ato libertário. Com a ceia, simbolicamente, a família escapa da repressão do patriarca, ao mesmo tempo em que mantém uma memória simpática e reelaborada do velho, de fato, sovina e repressor. O “tema” do homoerotismo ganha espessura nos contos de Mário de Andrade, como é o caso de “Frederico Paciência”. Antecipando Caio Fernando

61 Abreu, o escritor paulista encena ficcionalmente a dificuldade de dois rapazes lidarem com o afeto que sentiam um pelo outro. Logo no início do texto, o narrador manifesta a sua impressão sobre o rapaz como quem inicia uma amizade: admiração pela perfeição moral e física de Frederico Paciência; uma pitada de inveja. Nas palavras do narrador: “(...) Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos”. A elaboração da relação homoerótica entre o amor e a amizade pode ser lida como o recurso usado por Mário de Andrade para representar ficcionalmente, a pauta ética e política antipatriarcal. Apesar do final, em que os sentimentos homoeróticos foram recalcados, pelo menos o autor, introduziu o motivo do desprendimento, usando o amor como expressão de espontaneidade da abordagem alternativa da sociedade patriarcal. Nesses termos, o amor é expressão de espontaneidade. Na sociedade brasileira, na primeira metade do século XX – contexto de aparências e rigidez moral cultivadas pela elite dominante –, o texto de Mário de Andrade aponta para a existência de fissuras no sistema patriarcal. A imagem de homens rígidos, poderosos e confiáveis, desenhada e alimentada pelo patriarcado, é associada, através do enredo do conto, a um aspecto diferente então inesperado da masculinidade, do companheirismo entre homens. Tal associação leva a repensar valores e processo de formação social. A personagem principal da narrativa é Juca, que narra em primeira pessoa. O conto pode ser lido como relato de memória por enfeixar recordações de adolescência na forma da amizade entre dois jovens estudantes. Frederico Paciência, a personagem que empresta o nome ao título do conto, descrito como possuidor de certa “solaridade escandalosa”, exercia sedução sobre seu colega Juca, misto de qualidade física e moral. Frederico Paciência tinha “olhos grandes bem pretos”. O tipo é descrito em termos de sedução visual: “na boca larga, na musculatura quadrada da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde, uma ausência rija de segundas intenções” (ANDRADE, 1999, p. 76).

62 A imagem do outro ideal – par opositivo nas possíveis relações de poder, na assimetria de narrativas e experiências vivenciais – gera clima de sedução pelo desejo de emulação do objeto admirado, sendo o primeiro passo na relação que descortinaria a sexualidade agenciada pela leitura de textos como os aqui comentados. As narrativas sobre a descoberta do amor através do beijo, por exemplo – como o que se pode ler no conto de Caio Fernando Abreu – realçam a castidade de personagens que buscam desarmar o leitor de suas reservas quanto às suas motivações dado que um futuro beijo entre homens passa a funcionar como um tipo de consequência um tanto “natural”, na economia de narrativas congêneres. Aqui cabe um adendo. Ressalta aos olhos o fato de que não se trata, aqui, de textos de autores assumidamente homossexuais, como no caso de Caio. No entanto, essa mesma “diferença” alimenta a abordagem de relações assimétricas de poder. Em outras palavras, o olhar homoerótico pode agenciar leituras de textos que, de fato, não tematizam a atração afetiva entre sujeitos de mesmo sexo. Esse tipo de dicotomia alimenta as assimetrias que se espraiam para além do(s) texto(s) ficcional(ais). Elas chegam a consolidar abordagens crítico- interpretativas como a que aqui se ensaia. Traço comum às obras citadas é o caráter “canônico” de seus autores. Entretanto, ressalta-se a limitação das imagens e grafias dos sujeitos homoeróticos nelas e a ausência da assim chamada “homocultura” – em que pesem as dificuldades hermenêuticas e discursivas de delinear esse conceito – compreendida como espaço e veículo de valores simbólicos compartilhados por sujeitos que partilham a mesma atração afetiva. A exposição da multiplicidade de práticas e de sujeitos homoeróticos, no contexto cultural, constitui elemento importante na economia do conto de Caio Fernando Abreu, consideradas as ideias até aqui desenvolvidas como pressupostos. Tornar-se canônico ou não constitui vantagem pois, para sê-lo, parece inevitável tornar- se digerível para a maioria pela preferência por retratos com cores débeis ou traços distorcidos. Penso que, nos dias que correm, esse critério não é mais uma “garantia” (como se, em algum momento, tenha sido!). No entanto, com

63 argumentações diversas, ainda permanece como elemento de ratificação. Em outra oportunidade posso voltar a esse assunto. Na apresentação dos dramas humanos, abundantes em um momento de busca por novos rumos, destaca-se a condição precária dos sujeitos, cujas identidades são apresentadas sempre em estado de crise. Essa é uma das características marcantes da elaboração narrativa de Caio Fernando Abreu. Pode-se nomear tal característica como “pós-identitária”, compreendida como visão problematizada das identidades, tomadas como papeis identitários assumidos com grau maior ou menor de autonomia pelos sujeitos. Portanto, para Caio, as identidades, ou papeis de subjetividade, não seriam fixos, definidos negativamente contra o pano de fundo de uma identidade padrão centralizadora, produto de uma lei heteronormativa. O autor é sutil, fazendo o texto mostrar de forma lenta os eventos definidores dos dramas existenciais ficcionalizados. O autor gaúcho costuma desenvolver estratégia diferente para a expressão do desejo homoerótico, estratégia feita de renúncia a identidades fechadas, fixas, estanques. No conto em questão, tal característica pode parecer apagada, dado o embate entre o civil e o militar, entre o rapaz intelectual e a força viril do sargento. Hermes e Garcia são os protagonistas de diversos eixos assimétricos de poder que, no entanto, confirmam a ausência de necessidade de reforçar “papéis”. Constitui-se a escrita de Caio Fernando Abreu uma verdadeira proposta pós-identitária, por recusar o congelamento do ser em termos historicamente datados, adotando a expressão dos sentimentos como valor de revelação de uma realidade interna e afetiva. Está-se, assim, “efetuando uma completa desconstrução das perspectivas identitárias” (HALL, 2004, p. 103), em (...) áreas disciplinares que criticam a ideia de uma identidade total, unívoca. Para as personagens de Caio, a confusão em sua caminhada na busca de um sentido outro para a vida se deve à dificuldade em preencher o espaço vazio criado pelo desejo. O aceitar-se como contraparte de uma relação afetiva com outro homem é sempre reiterada pela denegação, em que pesem as resistências iniciais à fisicalidade do amor. As resistências são

64 frágeis, estratégia para gerar empatia pelo sujeito abandonado a seus dilemas. Não há descompasso entre sujeito e desejo, o que pressupõe a aceitação da multiplicidade de formas assumidas pelo desejo nas performances do prazer, o que novamente está em harmonia com o sentido presente para a identidade, ou seja, “As perspectivas que teorizam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez, a existência de um ‘eu’ inevitavelmente performativo” (HALL, 2004, p. 103). Nesse contexto, até mesmo o sexo é visto por alguns teóricos como resultado de uma lei reiterada:

A categoria do “sexo” é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatório”. Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regu- latória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir – demarcar, fazer circular, diferenciar – os corpos que ela controla. [...] Em outras palavras, o “sexo” é um construto ideal que é forçosamente materializado através do tempo. (BU- TLER, 2001, p. 153-154)

Seguindo o rastro deixado pelas ideias de Judith Butler, o conto Sargento Garcia é exemplar. A relação (inacabada) de sexo entre Hermes e Garcia é bem a imagem da “construção” a que se refere a autora da citação. O “ato” não se consuma, mas Hermes experimenta toda força da novidade, antepondo-se à realização do desejo de Garcia. Este, por sua vez, rende-se à fúria do próprio desejo, consentindo com a saída do rapaz. Nessa ausência, a construção se dá pela “representação” que o desejo toma, no cenário, um tanto decadente, do prostíbulo enredado pelas canções melancólicas que rodeiam o ambiente na voz do travesti. Esse pequeno detalhe, em sua escritura, na pena de Caio, compreende e aceita que: “a identidade é um desses conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma idéia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões

65 não podem ser sequer pensadas” (HALL, 2004, p. 104). Não sendo mais possível pensar a identidade como questão redutível a um núcleo orientador, responsável por definir o valor dos sujeitos de forma automática, Caio mostra, através de subjetividades destroçadas, o resultado que a falta do outro, o amado, faz na definição de si mesmo, compreendendo o caráter de processo a que as categorias do ser estão reduzidas hoje, facetas de uma relação assimétrica de poder, ainda que implícita no texto ficcional:

Parece que é na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas que a questão da identidade – ou melhor, a questão da identificação, como se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das práticas discursivas) e a política de exclusão que essa subjetivação parece implicar – volta a aparecer. (idem, 2004, p. 105)

Uma outra maneira de ver as coisas é aquela apontada por uma visada mais ampla, como a desenvolvida por Linda Hutcheon. Nesta, a constatação de que não há fixidez dos sujeitos em suas identidades constitui uma crise, não de um sujeito qualquer, pois tem sexo, cor e origem definida: é masculino, branco e europeu (e claro, também é heterossexual). Tendo monopolizado os discursos por séculos, esse mesmo sujeito serviu para fundamentar e legitimar relações de poder as quais vêm sendo contestadas por políticas pautadas na lógica do descentramento, promovido pelas famigeradas “minorias”: negros, mulheres, gays, e todos os que se dispõem à tarefa de historicização e desconstrução da narrativa do sujeito. É esse momento de crise que Caio Fernando Abreu apresenta em Sargento Garcia, como em outros textos seus. Diante da crise da concepção de uma identidade essencial para os sujeitos, ao mostrar os muitos lugares contraditórios ocupados pelos sujeitos em um cenário de ruínas emocionais, Caio Fernando Abreu explicita dupla recusa: não há identidade cartesiana e fixa que suficientemente potente para explicar e hierarquizar os muitos sujeitos, por um lado. Por outro, não há que

66 se arrogar a submissão da diversidade inerente ao sujeito, pela acomodação a um modelo que reduza os discursos a um só. Afinal, processos de identificação – abandonada o approach que sustentava a existência de identidades fixas – são suscetíveis de desintegração, por força de sucessivos descentramentos promovidos, pela teoria social, pela psicanálise, etc. A expressão “identidades unificadas e não problematizadas” transforma-se, discursivamente, em argumentação favorável à manutenção de fronteiras engessantes, como aquelas construídas à sombra do conceito de “gueto”. Ao mostrar as consequências que a ausência do amor acarreta na estabilização de identidades performáticas, a obra do autor gaúcho encara os efeitos da perda de certezas que o descentramento político promovido pelos minoritários talvez pudesse vir a acarretar. Este apresenta, de fato, a trama político-discursiva em que se constituem e se enredam os sujeitos. É necessário lembrar que descentralizar não é negar. Daí, a historicização do sujeito e dos alicerces (centralizadores) habituais desse sujeito problematiza a noção de subjetividade, voltando-se diretamente para suas contradições dramatizadas, como acontece em seus contos3. Uma dessas problematizações é, exatamente, a possibilidade de leitura de relações assimétricas de poder, principalmente aquelas agenciadas por dêiticos comuns articulados numa ambiência ficcional peculiar.

Violência

Na Literatura – encarada aqui como fenômeno cultural de amplo espectro discursivo – a representação da violência tem sido percebida e qualificada como rica e variada. No âmbito do “mundo das letras”, a violência encontra representação em obras dos mais variados matizes, desenhando experiências – ficcionais ou não, há de se dizer – as mais variadas. Fiodor Dostoiévski, Franz Kafka, Ernest Hemingway podem ser nomes citados como referências abrangentes e muito instigantes – considerando-se a época de sua aparição no referido “mundo” e a representatividade que sustentam no que se

67 refere à tematização da violência. No Brasil, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos são nomes que diuturnamente são citados quando se fala em violência – que fique bem claro que não há aqui a tentativa de redução de suas obras a esse eixo temático, obviamente! Jorge Amado, para os propósitos do presente artigo, já aponta para certa evidência sexualizante da narrativa, principalmente se se pensar em Jubiabá e Capitães de areia, para reduzir a dois os referentes. Essas balizas sustentam a hipótese de que, na Literatura Brasileira, é possível não apenas constatar a presença constante da violência, bem como apontar para uma de suas facetas: o conflito do homem que sofre alguma restrição, alguma coação ou alguma rejeição social, econômica ou cultural e tenta inutilmente reverter esse quadro. Nesse campo semântico-discursivo, incluo a sexualidade e o desvio, como já mencionados, entre as possibilidades dêiticas de leitura da narrativa curta de Caio Fernando Abreu. Trata-se, como já disse, de narrativa que alimenta os relatos possíveis da convivência com um mundo violento e cruel. Implicitamente, no caso do escritor gaúcho, revela-se nas entrelinhas, uma espécie de exercício metafórico de exorcismo: do narrador/protagonista. Hermes é uma personagem que desvenda alguns mistérios, através de experiência – por que não! – violenta com a sexualidade perturbada e estereotipada do Sargento. Este, por sua vez, figura-se como espécie de “mentor”. Os nomes – Hermes e Garcia – ajudam a fundamentar o caráter violento da experiência vivida pelo jovem estudante, no embate carnal – epifânico – diria eu, como em Clarice Lispector – com o sargento autoritário e machista. O primeiro remete explicitamente à mitologia clássica, pela identificação de uma divindade ligada à interpretação, ao entendimento, à hermenêutica – em termos etimológicos. A personagem, então, nessa leitura, identifica- se com o papel de esclarecedora de uma verdade subjacente às atitudes próprias e de seu “parceiro”, o sargento. Já o nome deste, variante de “graça”, na língua de Cervantes, revela camada semântica instigante: a experiência, ainda que “violenta”, concede ao estudante a possibilidade de se identificar

68 e de vislumbrar um futuro em que, implicitamente, não seria manchado pela violência do presente: instrumento mesmo da revelação. O conto apresenta problemas sociais através da perspectiva intimista de suas personagens. É evidente que o autor está longe, em escrita, de performar um discurso proselitista. Sua narrativa dista anos-luz do panfletário; tem-se o retrato íntimo de existências profundamente marcadas pela própria existência em sociedade. A voz narrativa predominante é a do jovem da década de 1970, sem rumo, mas em busca de algum momento de conforto. O cenário é até cinzento: relacionamentos conflituosos, preconceito, hipocrisia. Não há final feliz nesse relato. A aparente leveza da sequência final pode ser abordada por outro ângulo: o da falta de perspectiva para a solução dos embates existenciais que a história narra. Daí o tom subliminar de violência que, para além da experiência sexual de Hermes, trai a violência engrendrada por aquele que parece “iniciar” o jovem na descoberta de prazeres, até então, ocultos. Histórias, sim, momentos de sublime beleza e amor. Essa profusão de emoções é permeada por imagens poéticas de riqueza rara no quadro da Literatura Brasileira: ainda assim respira-se certa atmosfera de violência. Principalmente no embate carnal entre o sargento e o estudante. A descrição, naturalista – no que de melhor esta estética deixou de herança para a cultura do Ocidente – sublinha os aspectos de uma relação. Caio Fernando é um artífice da prosa, empenhado em construir metáforas complexas e transbordantes. O conto compõe um painel inusitado no livro que é dividido em três partes, “O mofo”, “Os morangos” e “Morangos mofados”; esse último dá título ao volume, que é dedicado a amigos do autor e a artistas que o influenciaram, como: John Lennon, Elis Regina, Caetano Veloso. Nele, destaco “Sargento Garcia”, que recebeu o Prêmio Status de Literatura 1980. Essa narrativa pungente e lírica, apesar do já referido acorde da violência, conta a história de um jovem que passa pelo alistamento militar e inicia sua vida sexual com um sargento. Em certa medida, trata-se de uma espécie de fotografia da contracultura brasileira na década de 1970, guiada pelos ideais dos

69 movimentos negro, gay e feminista, da ideologia “paz e amor” e da revolução sexual. Contracultura que se encontra, entretanto, sufocada pelo cenário das ditaduras latino-americanas, pelo imperialismo norte-americano e pela Guerra do Vietnã. Ler esse conto é como levar um soco no estômago. No entanto, suas imagens proporcionam alguns segundos de puro êxtase.

Drama

A trama do conto “Sargento Garcia” é muito simples. Um rapaz universitário (implicitamente relacionado à burguesia gaúcha, em plena década de 70, do século XX) comparece a um posto do exército. O sargento o trata com deferência e deboche, simultaneamente. Depois da apresentação, o sargento oferece uma “carona” ao rapaz educado e o leva a um prostíbulo, onde tenta ter relações sexuais com ele. Ao final, o rapaz decide mudar alguma coisa em sua vida. A ambiguidade a que me refiro, de início, inaugura a perspectiva assimétrica da relação de poder entre o militar e o civil: o poder de determinar o que fazer, como fazer, quando fazer:

– Ficou surdo, idiota? – Não. Não, não, seu sargento. – Meu sargento. – Meu sargento. – Por que não respondeu quando chamei? – Não ouvi. Desculpe, eu... – Não ouvi, meu sargento. Repita. – Não ouvi. Meu sargento. (ABREU, 1982, p. 74)4

O diálogo, bem no início do relato, já indica o nível de assimetria no poder que o Sargento quer impor a quem fala com ele. “Idiota” é o dêitico que marca esta assimetria. Tal sentido vai ser confirmado e continuado com outros similares: “lorpa” (p. 74), “pamonha” e “bocó” (p. 75), “molóide” (p. 76)5, “perobão”(p. 77), “analfabetos” (p. 80), “bagualada” (p. 82), “putedo”

70 (p. 83), “puto” (p. 88). Os termos se referem não apenas a Hermes, mas a todos os rapazes que se aglomeravam na sala de apresentação, diante do sargento. Os termos têm sabor de erotismo e preconceito ao mesmo tempo. A referência ao grupo se faz de maneira a degradá-lo, sob a batuta do poder militar que se impõe, mas abre espaço para o universitário com nome sintomático – Hermes. Há o prenúncio de algo a ser compreendido, que escapa à imbecilidade da “tropa”, intuída pelo sargento. A descrição das atitudes do sargento constroem uma imagem viril e animalesca. O rapaz (voz narrativa, em off) pontua sentimentos, cheiros, imagens e reações, gerando um clima quente e carregado, em que a potência dos hormônios explode em reações fisiológicas simples: “E moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro de bosta quente de cavalo e corpos sujos de machos” (p. 74). A imagem do cavalo (simbolicamente associado à virilidade e à sexualidade vibrante) opõe-se à modorra fedorenta, salpicada de moscas, numa associação assimétrica de prazer e sujeira, desejo e pecado. Esse clima é acompanhado pelo fascínio que a imagem do sargento exerce, ainda (mesmo) que inconsciente:

(...) o olho verde frio, de cobra, quase culto sob as sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo rastejando em volta da boca, cortina de veludo negro entreaberta sobre os lábios molhados. ( p. 75)

A oposição de ideias continua: o ângulo formado pelas sobrancelhas é “agudo”, numa referência implícita à masculinidade em oposição à “linha” natural das sobrancelhas, que estão “unidas” sobre o nariz (simbolicamente e “folcloricamente” também associado à virilidade). O bigode é grosso como “manduruvá”, animal repelente que “queima”, como o desejo, que “rasteja”. O detalhe final: a boca – “cortina de veludo negro”, ao mesmo tempo sensual e trágico, macio e tétrico. Os lábios molhados concluem a primeira impressão

71 que, de imediato, causam ódio no protagonista. Ódio esse que se opõe ao que pensa Hermes, ao final da história:

(...) uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa, entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim. (p. 89-90)

Uma virada e tanto! Hermes sente que alguma coisa mudou depois do encontro com o sargento. Desde a sala quente e fedorenta, durante a apresentação, até o desfecho num quarto de prostíbulo, o rapaz se dá conta de uma faceta identitária com a qual vai tomando contato, lenta e modorrrentamente, ao longo do próprio relato. A ideia de “acordar alguma coisa que não devia acordar nunca” perturba o rapaz, sem, no entanto, desfazer a sensação de prazer – latente em cada uma de suas elucubrações. Sob a pena aguda de Caio, Hermes descobre prazeres escondidos, como “bicho numa jaula fedida”. A “jaula” pode ser a sala de apresentação e, simultaneamente o quarto sujo. O desejo oculto de manter essa descoberta “amordaçada ali no fundo pantanoso de mim”, como diz Hermes, funciona como chancela da leitura aqui realizada. A “língua estrangeira” fala uma língua que Hermes apenas pressentiu, entre assustado e fascinado, desde os primeiros contatos com o sargento. Na sequência do prostíbulo, a narrativa enfatiza a descoberta de Hermes: “Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde” (p. 90). Falando em dêiticos, há algumas passagens do conto que me fazem

72 pensar no processo de identificação que ocorre com Hermes. Ainda que não tenha buscado a experiência pela qual passa, o relato não deixa dúvida sobre o progresso de aceitação do que está acontecendo. De fato, a narrativa ilustra bem as idas e vindas do desejo, na construção de uma subjetividade ainda latente já manifesta, contraditoriamente, na adolescência da percepção do protagonista. O que ocorre é que, de maneira similar ao relatado anteriormente aqui, a ficção de Caio Fernando Abreu, neste caso, é argumento irrefutável de que o desejo já se manifesta na latência das dúvidas de Hermes. O sargento, de certa forma, nesse processo, é o famoso “relé” de um sistema de ações e reações contundentes. Estas colocam o protagonista em contato com realidades afetivas insuspeitadas que, simultânea e ambiguamente, o fazem refletir e “goza” (A sombra do pensamento de Lacan, aqui, é refrigério para o intelecto!). Alguns exemplos, apresentados aqui na sequência da minha leitura, em direção ao referido ponto de fuga, podem ser:

(...) o horizonte começava a ficar avermelhado. (p. 77) ...... (...) parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências. (...) o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte. (p. 79) ...... (...) meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tarde. (p. 80) ...... Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. (p. 81) ...... (...) tinha que dizer ou fazer alguma coisa, só não

73 sabia o quê, meu coração galopava esquisito, as mãos molhadas. Olhei para ele. Continuava olhando para mim. (p. 83) ...... Traguei fundo. Uma tontura me subiu na cabeça. (p. 85) ...... Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. (...) imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta. (p. 88) ...... (...) uma língua estrangeira, como uma língua molhada, nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que devia permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim, feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens, quieta, domada, fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.. Embora eu soubesse que, uma vez desperta, não voltaria a dormir. (p. 89-90) ...... (...) algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo e cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. (...) uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia. (p. 90)

Pois bem. A sequência dos “acontecimentos”, aqui, parece-me clara. Como quero mostrar uma leitura, no lugar de provar uma tese, vou tentar

74 reorganizar os elementos. Para começar, presto atenção a algumas palavras (dêiticos) que aparecem como elos de uma corrente de sentido! As cores do céu e do horizonte, por exemplo, remontam ao campo semântico ambíguo do desejo e da danação, pólos assimétricos de um jogo de poder subliminar ao texto: “horizonte avermelhado”, “céu avermelhado sobre o rio”, “rosa sobre o roxo e cinza, até o azul (...) escuro e o negro da noite”. Vermelho é paixão, mas é sangue: purificação e sensualidade juntas numa mesma coloração de tom quente, que um tanto líquido, um tanto pastoso, alimenta o sentido. “Horizonte” e “céu” apontam para desejo e sonho, infinito, possibilidade: era bem o “estado de espírito” do protagonista, ainda que conscientemente não se tenha dado conta, até o desenlace, no prostíbulo. A sequência “rosa” – “roxo” – “azul escuro” – “negro” faz pensar numa “decadência” que pode significar pecado e sujeira, danação que, implicitamente atormenta o sujeito em estado de desejo intenso e puro. A sexualidade, implícita grita a sua demanda que, na gradação cromática, faz o protagonista quase delirar, na percepção, inconsciente, do que está por vir: a “alegria maldita”. A frase que fecha o trecho da página 90 é a chave de ouro do processo que faz Hermes concluir que esse desejo não mais o abandonará: “uma vez desperta, não voltaria a dormir”. A “fera” do desejo é indócil... A imagem da fumaça que evola (p. 85) confirma o estado de espírito de Hermes, no caminho da descoberta de prazeres recônditos, despertos pela tentação da língua do sargento, réptil indócil que rasteja lúbrico pelo “mais recôndito de mim”. O estremecimento de “gozo” é também experiência carnal e, por que não, espiritual – o eterno dilema do sujeito – do “nojo ou medo”. O sujeito não “sabe”, experimenta e não consegue dizer o que vivencia, de maneira satisfatória. Um processo praticamente platônico de conhecimento, a experiência do saber de si, o “cuidado de si”, como já disse Foucault. Hermes se sente invadido ambígua e assimetricamente por duas “forças”: o prazer e o tormento. É como se pode ler a outra imagem contundente: “lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondidam (...) uma caverna secreta”. A força do verbo “rasgar” é mais que alegórica, na “iniciação”, Hermes se sujeita

75 ao “poder” do prazer propiciado pelo contato com a boca do sargento. Muita sensualidade, muito prazer e a explosão da sexualidade que “con-funde” o garoto ao poder viril do sargento: jogo de poder assimétrico, porque não há igualdade de desejos. O sargento impõe e Hermes aprende. A Paideia se repete reafirmando o poder do macho que domina seu igual. É a Paideia do erotismo que faz o protagonista comentar: “meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde”. Constatação entre “heróica” e “fracassada”. A submissão que gera prazer e a verdade que salta da carne ferida por um “Punhal em brasa, farpa, lança afiada” (p. 88). A força da metáfora dispensa comentários por redundância do elemento fálico reproduzido nos objetos alegóricos. A complementação dessa “epopeia” se faz pela voz de Isadora – a perversão de um símbolo de leveza e desbravamento, arte e transgressão – por uma rememoração de músicas que no cancioneiro popular celebram amores malditos pela perda, pela marginalidade. Ambas as situações podem transitar entre o Bonfim e a Azenha: bairros conhecidos da cidade, caminhos e espaços urbanos por onde se escondiam os prazeres desconhecidos do protagonista. O cinema Castelo remete à imagem de cena, figura, sequência, roteiro da sexualidade que desperta e revela, renova e submete na constatação de que “Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo”. Uma novidade que, num ritmo de eterno retorno, agencia a dicção mitológica da experiência existencial do sujeito comum: “Zeus. Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas- Atena ou Minerva, Posseidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. (p. 90). Os binômios divinos da mitologia remontam à ideia de assimetria de poder aqui evocada. Eles estão sempre em disputa pelo poder de decidir sobre a vida humana que a eles se submete. O destaque das divindades, dado pelo protagonista, confirma a ideia de uma paideia que o faz porta-voz de uma verdade escondida, que a ninguém é dado conhecer, como ele mesmo intui “E ninguém me conhecia” (p. 90). As deusas do conhecimento e do amor, por um lado, e os deuses do poder de controle da natureza, por outro, simbolizam

76 aqui o eterno embate entre o conhecimento e o prazer que influenciam no trajeto existencial do sujeito. Por outro lado, o nome do protagonista faz dele o portador de uma verdade por ele mesmo “desconhecida”. Corrobora a lição mitológica que teve um “bom fim” – outra forma de grafar o nome do bairro (Bonfim) por onde Hermes passa, depois da “revelação” dinamizada por sua experiência. Sua decisão final é mais um ponto de abertura para as possibilidades interpretativas do conto: “amanhã sem falta começo a fuma”. A pitada de ironia que faltava...

Epílogo

Tratou-se, aqui, de fazer um exercício de leitura de um dos contos de Caio Fernando Abreu, privilegiando a perspectiva homoerótica, como lupa, sem perder o foco da análise ou considerar questões extraliterárias. Quando o assunto envolve homoerotismo, o risco se amplia, dado que a abordagem, diuturnamente, gera equívocos interpretativos passíveis de reduzir obra ficcional a texto supostamente panfletário. Tal ressalva faz pensar que, para dar consistência a esse exercício não se deve descurar de aspectos propriamente estéticos. É o que desenvolvi aqui, por meio da proposta de análise do conto “Sargento Garcia”. Tal exercício é fruto do esforço para a demonstração do rendimento literário do processo de transformação e “identificação” de Hermes, o protagonista, a partir de sua “iniciação sexual”, guiado pelo “sargento”. Antes de mais, é necessário salientar que não se deve confundir a apreciação de material ficcional com tentativa de proselitismo estreito e tendencioso a qualquer valoração ética ou moral. O cuidado que se tem de tomar é não confundir os dois planos – ético e estético. Faltando isso, todo tipo de equívoco e exagero se faz viável e, consequentemente, danoso. A crítica literária, nesse sentido, não pode subordinar-se a um ou a outro: o caminho mais fértil é a articulação entre, por exemplo, os dois princípios aqui destacados. O texto erótico, entre outras expressões que pode assumir, caracteriza- se por representar o fenômeno cultural da sexualidade através do trabalho

77 com a linguagem. O erotismo não imita a sexualidade, esta é metaforizada pela linguagem ficcional. Assim, o texto é sua representação material. Ao se vincular à representação metafórica, a manifestação do erotismo se distingue radicalmente da pornografia. Esta, por sua vez, é limitada à descrição de atos, sem outra preocupação, ainda que escrita de forma cuidada e, por assim dizer, “estética”. Isso não quer dizer que possa vir a sustentar abordagem interpretativa do texto que dela decorre. Essa discussão não cabe aqui, entretanto, sua consideração é necessária, para que não se incorra em intolerância e/ou preconceito nos exercícios de leitura possíveis. Narrado em primeira pessoa – numa espécie de relato in off –, o conto de Caio Fernando Abreu evidencia um desdobramento do narrador, estabelecendo certa mediação em que os eventos vividos se organizam por meio da consciência do narrador no momento da enunciação. O relato das experiências é feito em tom confessional, mediante o qual o enunciador descreve percepções provocadas pela experiência no contato com o elemento externo. Não seria exagero pensar, aqui também, na anunciada assimetria nas relações de poder alegorizadas pelo relato ficcional. Neste caso, a “duplicação” de vozes narrativas seria o instrumento de viabilização representacional da referida assimetria. A favor dessa argumento, pode-se buscar em Foucault sustentação interessante: “Para nós, é na confissão que se ligam a verdade e o sexo, pela expressão de um segredo individual. (...) A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado” (FOUCAULT, 1988, p. 61). Em “Sargento Garcia”, a consciência do protagonista marca fundamentalmente a expressão de sua subjetividade e o leva a confessar, por meio do discurso interior, as sensações e efeitos provocados pela experiência. Os diálogos entre as personagens – inteligentemente camuflados no discurso duplicado do narrador/protagonista – confirma a importância da voz interna do sujeito narrador. É por intermédio da verbalização do pensamento do sujeito narrador que se percebe a natureza empírica da realidade exterior, a experiência transformada em discurso. A confusão causada pela mistura de

78 desejo e angústia, evidenciada pela personagem em sua iniciação mundo inferido, mas não dito, revela o conflito entre desejo e repulsa. Tal fato se torna mais visível nos momentos em que há confluência de ações, memórias e percepções: juntas, conferem densidade ao discurso, ratificando a desordem provocada pela experiência transgressora. O desenvolvimento da manifestação erótica atinge seu auge a partir do efetivo enlace de Hermes com o sargento. O uso de recursos estilísticos ligados ao campo dos sentidos – o conjunto de termos a que denominei dêiticos – se soma à assunção da perspectiva narrativa de Hermes para construir a atmosfera em que a intensidade dos acontecimentos se revela através de sensações decorrentes da entrega ao outro. A representação metafórica manifesta o encontro do “eu” com sua própria identidade, num momento de autodescoberta. As imagens transformadas em metáforas se tornam símbolos a relacionarem experiência externa e sensações interiores. A imagem da lanterna, envolvida em um campo semântico de luz, claridade e razão, contrapõe-se à imagem da caverna, em que as trevas representam a ignorância e o desconhecido. À medida que a luz penetra a obscuridade, Hermes passa a visualizar o que antes pertencia a um mundo desprezado. Da mesma forma, as representações simbólicas da realidade exterior revelam o estado de espírito do protagonista, que, a partir da entrega ao outro, demonstra naturalidade, como se se sentisse livre do peso que sua confusa consciência carregava até então. É possível, portanto, observar que a experiência de entrega ao outro se torna motivação para um movimento de mudança dos aspectos narrativos, fazendo do homoerotismo uma temática com grande potencial literário. Para além da simples representação, Caio Fernando Abreu se mostra ficcionista imune a rotulações, o que permite perceber plenamente o valor de sua verve. Quando um escritor é chancelado por um cânone particular, geralmente recebe designações que o destacam por isso ou por aquilo. O “fato” da leitura desse autor é que, de fato, vai consolidar essa chancela. Esse é o caso de Caio Fernando Abreu. De cara, dois aspectos se destacam: a linearidade e o

79 “psicologismo”6. A construção ficcional em contos de estrutura mais linear oferece mais facilidade de abordagem. Em outros casos, a efabulação exige do leitor certa dose de inventividade, imaginação e interferência em sua conformação. Sem essa coparticipação, o “sentido” da “história” não chega a se constituir. Parece bem o caso do presente conto do autor gaúcho. “Sargento Garcia” demonstra a maestria, a maturidade e a delicadeza com que, usando eufemismos e elipses, o autor consegue transmitir suas observações sociais. Caio Fernando Abreu, no conto “Sargento Garcia”, conta com duas fortes armas que transmitem “força” ao seu texto: o lirismo de sua linguagem e a competente seleção de imagens sensoriais. Sua narrativa deliciosamente ritmada, repleta de artifícios e recursos, como o fluxo de consciência, facilitam a transposição de suas obras para o cinema. A linguagem audaciosa e agressiva projeta as personagens para além da margem. Esse conto retrata a questão do homoerotismo sem se deixar levar por um olhar puritano; pelo contrário, devassa as diversas abordagens da “homoafetividade”7: a descoberta da potência de sua própria sexualidade. O encontro entre o sargento e o jovem Hermes é mutuamente transformador, ambos saem “outros” da experiência. Por via de consequência, mesmo o leitor sai modificado da experiência de leitura. Neste artigo, os caminhos percorridos foram extensos e sinuosos e, durante o percurso, inúmeras brechas foram abertas. Algumas podem levar a “lugares” especiais, que podem, inclusive, ser descartados. Nenhum estudo sobre a contística de Caio Fernando Abreu pode ser considerado definitivo. Os instrumentos são vários e, aqui, o termo homoerotismo é o vetor principal da articulação de ideias. Uma possibilidade é tatear pela Queer theory, o que demandaria outra perspectiva de abordagem. O registro aqui fica como um alerta para outras leituras. Uma espécie de convite! O debate sobre a existência de uma arte homoerótica, essencialmente distinta das demais formas de manifestações artísticas, é tema polêmico: envolve questões teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos.

80 Homoerotismo é o termo que é mais adequado, pois atende a mecanismos baseados na noção de desejo e não necessariamente de sexo e visa afastar o senso comum das noções imputadas à palavra homossexual. A literatura, em suas manifestações ficcionais, tem tratado do tema, da Antiguidade aos dias atuais. Mesmo em momentos de censura e restrição, o relacionamento sexual e amoroso entre pessoas do mesmo sexo sempre foi contemplado pela arte da palavra. No final dos anos 70 e início dos 80, críticos e leitores norte-americanos passaram a considerar a possibilidade da existência de uma arte homoerótica específica e distinta das demais formas artísticas. Isso ocorreu por força da influência de movimentos como o Black power e a segunda onda do Movimento feminista. A partir desses movimentos, outros grupos marginalizados vislumbraram a possibilidade autônoma de seus próprios movimentos: desconstrução e Queer theory, por exemplo. Esta tornou-se o espaço de questionamento produtivo, não apenas da construção cultural da sexualidade, mas da própria cultura tal como o feminismo e algumas versões dos estudos étnicos: obtém energia intelectual de sua ligação com os movimentos sociais de libertação e dos debates no interior desses movimentos sobre estratégias e conceitos apropriados. O texto de Caio Fernando Abreu recebe o rótulo de literatura gay devido à abordagem temática do homossexualismo, na mesma medida em que é abordada como discurso pessoal da vivência de Caio enquanto homossexual. Muito embora a produção literária homoerótica possa ser, na voz de seus leitores, um referencial possível da subjetivação gay, nem sempre o testemunho que se tem por parte dos escritores implica admitir a relação coextensiva entre a sua identidade gay e os textos que escreve. O autor gaúcho, segundo suas próprias ideias, não se enquadraria como escritor que busca confirmação da sua identidade sexual por meio de seus textos. De fato, ele não precisou disso! São recentes os estudos sobre arte homoerótica, seja na literatura, seja em outras manifestações artísticas. Vários romances, contos e poemas podem ser considerados canônicos, na tradição ocidental, quanto à abordagem do homoerotismo, quanto ao modo como este se processa pela dicção de

81 cada autor ou época. O debate sobre a existência de uma arte homoerótica distinta das demais formas de manifestações é tema polêmico, verdadeiro campo minado, que envolve questões éticas e teóricas, preconceitos sociais e interesses mercadológicos, sobretudo esses, infelizmente! O verbo é a palavra em sua plenitude. Ao ler o conto de Caio Fernando Abreu com o “olhar homoerótico”, celebro a natureza primacial do conto, uma das mais antigas formas de relato. O ato de contar uma história, do latim computare, é atividade oral, em sua origem. Sua forma escrita é bem posterior. No terceiro passo em seu processo evolutivo, essa forma narrativa abre espaço para o sujeito narrador: espécie de contador-criador-escritor de contos. O conto é narrativa unívoca, univalente: constitui unidade dramática, célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação, tomada esta como a sequência de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos nos quais se envolve ficcionalmente. No conto, cada palavra ou frase tem sua razão de ser na economia global da narrativa, a ponto de, em tese, não poder substituí-la ou alterá-la sem afetar o conjunto. Por esse motivo, os ingredientes narrativos convergem em uma única direção, ou seja, em torno de um único drama ou ação. É uma narrativa curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens. Com esses argumentos, o conto de Caio Fernando Abreu poderia ser taxado de “tradicional”, na acepção mais estreita do termo. Todavia, sua “tradicionalidade” é outra, pelo simples fato de que sua escrita instaura novo vetor de orientação na “leitura” de um fenômeno cultural, a literatura, tematicamente consolidada na versão homoerótica das relações subjetivas: tópico caríssimo ao autor. Caio Fernando Abreu (1948-1996) é considerado um dos mais importantes contistas de nosso país, um dos grandes nomes da expressão homoerótica na/da Literatura Brasileira. Referência para jovens escritores, por seu niilismo poético e por sua visão de mundo sem tantos compromissos formais, o autor gaúcho comove e incomoda, questiona e delata, faz

82 poesia e imagem com a palavra. É, da mesma forma, considerado autor pesado e afeito à melancolia, com uma escrita passional e intertextual. Isso se deve ao fato de o escritor ter dado um grande espaço, em sua obra, a temas considerados “pesados” e/ou “não-literários”. Temas que podem ser identificados como sua marca registrada: explicam, em parte, certo silêncio da crítica (principalmente dos estudos acadêmicos). Sua ficção se desenvolve acima de convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando temática própria, juntamente com linguagem fora dos padrões convencionais de seu tempo. Em seus contos, percebe-se certa velocidade na/da escrita, associada tanto à construção de imagens rápidas, instantâneas, substantivadas, quanto à forma com que essas imagens interagem, se complementam ou se chocam. Há quem diga que sua narrativa é cinematográfica. Há que destacar a preferência do autor por certos tipos humanos, inseridos no rol dos socialmente excluídos: prostitutas, travestis, michês, entre outros. O autor procura integrá-los à “realidade” através de sua ficção. “Sargento Garcia” foi escrito e dedicado à memória de Luiza Felpuda, travesti conhecido em Porto Alegre que, no período militar, era responsável por um bordel que soldados frequentavam para se prostituírem. O autor insere, em sua narrativa, a personagem de Isadora Duncan, outro travesti. A criação dela é uma homenagem à Luiza Felpuda. Embora Isadora seja um travesti, em nenhum momento da narrativa de Caio percebemos a intenção de ridicularizar a imagem do homossexual; não o reduz à caricatura, mas o integra à narrativa, sem intenção de ridicularizá-la. O narrador, um dos protagonistas, tenta organizar seus pensamentos e sua memória em busca de sua própria compreensão, da compreensão do outro a quem se dirige e com quem se identifica, refletindo esse processo no leitor. As assimetrias são muitas, como delineado ao longo deste artigo. O poder, como elemento de articulação das relações estabelecidas, segue esse mesmo direcionamento. O fluxo de consciência é outro instrumento discursivo que faz dinamizar a ficcionalidade dos argumentos do narrador em sua “epopeia”: expressão direta dos estados mentais de Hermes, desarticulada,

83 em que é perdida a sequência “lógica” e em que aparece a manifestação direta do inconsciente. Sua dinâmica dá ao conto aparência de fragmentação: característica comum à contística brasileira que se desenvolve a partir dos anos 70 do século XX. O conto alegoriza a caça, nesse garoto, que Garcia observa como um predador: acompanha os passos de sua presa. Hermes tem plena consciência de seu papel de caça. A utilização do pronome possessivo meu indicando o grau de autoridade/obediência imposta pelo sargento ao garoto é um dêitico incontestável da assimetria que caracteriza as relações de poder, implícitas no texto. Ao repetir diversas vezes o pronome, Hermes sugere sua submissão voluntária, em relação ao sargento. É impossível para o leitor não se solidarizar com a ansiedade das sensações de Hermes. A “dor” da descoberta da sexualidade na adolescência, seguida da solidão imposta pelo segredo: eis o limite vencido pelo rapaz e seu algoz, seu sedutor, o sargento. A questão tratada nesse conto constitui tema recorrente na literatura gay, que, por sua vez, retrata o sofrimento pelo qual os adolescentes têm de passar por imposição dos papeis cobrados pela sociedade. O reconhecimento do próprio nome, no final do conto, é exatamente o que subverte o universo de personagens anônimos de Caio Fernando Abreu, uma espécie de paideia erótica. Os mecanismos de ativação da memória e resgate do passado, que lançam Hermes aos seus limites, acabam se tornando, também, um sentido para a própria existência. Tendo sido superada a crise de identidade, Hermes resolve começar uma nova etapa em sua vida, ciente de sua sexualidade. O artigo pressupôs a análise de um texto sob a perspectiva do olhar homoerótico. Em termos de linguagem, o homoerotismo manifesta uma poética do olhar, na insinuação de formas, na dança dos gestos e na possibilidade do encontro. A tradução desses dêiticos para a ficção é o passo a mais dado por Caio Fernando Abreu: expressão do desejo por meio de palavras ainda que a violência possa ser inferida...

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Notas

1 Doutor em Estudos Literários/Literatura Comparada, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995) e Pós- doutor em Literatura Comparada, pela Universidade Federal Fluminense (2004). Professor Adjunto de Literatura Luso-Brasileira na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 2 O uso do termo homoerotismo sustenta conotação a ele atribuída por Jurandir Freire Costa, em sua releitura de Sandor Ferenczi. 3 Cf. HUTCHEON, 1991, p. 204. 4 Todas as citações do texto do conto de Caio Fernando Abreu são retiradas da edição registrada na lista de referências bibliográficas. A partir daqui, indico, no corpo do texto, apenas o número da página em que se encontra a citação. 5 Nas citações, mantenho a grafia original usada pelo autor do conto, o que, às vezes, vai desobedecer ao novo acordo ortográfico. 6 Uso esse termo consciente dos problemas que pode causar. De qualquer maneira, no contexto em que se insere, o termo diz exatamente o que pretendo na leitura que realizo. 7 As aspas, aqui, servem apenas para deixar claro que o termo não é por mim eleito, mas apropriado de outros discursos que derivam de meu próprio posicionamento sobre a questão da representação literária de cunho homoerótico.

87 88 LITERATURA CRIMINAL UMA NARRATIVA DA VIOLÊNCIA URBANA

Julio Jeha (UFMG) 1

A literatura criminal dos Estados Unidos, em sua forma hard-boiled, atingiu o seu ápice com os romances de Dashiell Hammett, Paul Cain e Raoul Whitfield, que, nas décadas de 1920 e 1930, descreveram, num estilo intenso e realista, um mundo brutal e hipócrita, habitado por personagens que traem umas as outras antes de desaparecerem. Essas narrativas densas, caóticas, ao mesmo tempo selvagens e refinadas, foram lançadas no papel com uma urgência e um ritmo que não mais se repetiria nesse gênero. Marcadas por uma violência exacerbada e escritas em linguagem quase telegráfica, elas colocam em cena o paradoxo tensional entre modernização e embrutecimento que dilacerava a sociedade norte-americana da época. Correntes tão poderosas quanto contraditórias agitaram os Estados Unidos dos anos 1920. De um lado, um dinamismo inigualável produziu a emancipação da mulher americana, os arranha-céus de Nova York e Chicago, a civilização do automóvel, os milhares de novos milionários e multimilionários, a mecanização do trabalho e da vida cotidiana, os feitos de Charles Lindbergh ou o sucesso do star system hollywoodiano2. A essa vitalidade opunham-se a inquietação dos soldados de volta da guerra, a violência das lutas sindicais, a histeria anticomunista, os distúrbios raciais, a corrupção generalizada na política e, símbolo tanto quanto motor de muitos dos desvios da época, a 18ª Emenda Constitucional, que impedia a produção, a venda ou o transporte – mas não a compra nem o consumo – de bebida alcoólica em território norte-americano. Essa medida absurda teve consequências funestas: o desenvolvimento veloz do crime organizado e a sua imbricação com a política e a economia. Mais grave ainda, ela levou a população a burlar e solapar suas próprias leis. Um Estado que promulga uma norma ao mesmo tempo em que encoraja a população a desrespeitá-la abala a noção de lei assim como a sua

89 própria autoridade: foi a idade da hipocrisia e da desordem. A hipocrisia se encontrava por toda parte, nos discursos tanto de políticos vendidos como nos de gângsteres que os compravam. O maior deles, Al Capone, que gastava fortunas para eleger os seus candidatos à prefeitura de Chicago, não hesitava em fustigar a hipocrisia que assolava os Estados Unidos: “Corrupção é uma palavra comum na vida dos americanos hoje em dia. É uma lei onde nenhuma outra lei é obedecida. Ela está solapando este país. Podem-se contar nos dedos os legisladores honestos de cada cidade. (...) Virtude, honra, verdade e lei desapareceram da nossa vida” (VANDERBILT JR., 1931)3. A desordem era representada pelas forças criminosas que alcançavam o topo da sociedade, atingindo até mesmo suas figuras mais notáveis, como Charles Lindbergh. Ao fazer o primeiro voo solo de Nova York a Paris sem escalas, Lindbergh tornou-se um herói nacional, mas nem isso impediu que fosse vítima do crime mais midiático da época da Proibição: o rapto e assassinato do seu bebê em 1932. A comoção provocada por esse incidente logo transpareceu nos textos da época. Alguns romances, como Santuário, de William Faulkner, que narra o sequestro de uma jovem herdeira por um gângster, adquiriram outra dimensão, conforme a crítica de Wyndham Lewis (1987, p. 50):

Mas a essência do romance (...) está em buscar no pes- simismo gerado em todo americano inteligente pelo (...) extraordinário esfacelamento da lei provocado pela Proibição, culminando com o célebre caso do bebê Lindbergh, que deu a oportunidade a Popeye e à sua prole (os violentos pequenos Césares de sarjeta do baixo-mundo)4. Pois não é por acaso que o gângster de William Faulkner seja o mais insignificante e incapaz dos homens, içado às alturas pela expansão do caos no coração da sociedade (...).

O caso Lindbergh cristaliza, para o público, a impressão de que a sociedade está naufragando, uma visão apocalíptica transmitida pelas diversas

90 mídias, que exploravam a imagem de um universo se desintegrando sob o impacto esmagador de um tsunami de crimes e corrupção5. O editor da Black Mask, Joseph T. Shaw, se dispôs a usar a revista para expor a ligação entre o gangsterismo e a política: “Acreditamos estar prestando um serviço público ao publicar as histórias realistas, fiéis à realidade e muito esclarecedoras de autores como Hammett, Whitfield e [Frederik] Nebel sobre a criminalidade moderna” (MCSHANE, 1978, p. 46). A ficção criminal nascente se alimenta desse clima de inquietação, amplificado pela imprensa com suas manchetes escandalosas, suas reportagens chocantes e sua perspectiva que se torna a mesma das notícias policiais em detrimento do contexto ou da explicação possível. Por isso, compreende-se melhor a poética do gênero se o confrontarmos com as representações da criminalidade, o grande espetáculo da década de 1920.

Um novo esporte de arena

Impulsionado pela Proibição, o crime organizado se torna um problema de costa a costa nos Estados Unidos. Dois fatos contribuíram para isso: primeiro, o contrabando de bebidas implicava quadrilhas com mais alcance do que aquelas da criminalidade amadora de até então, com territórios limitados; segundo, a integração em rede nacional de jornais, nos anos 1920, apresentava as atividades criminais como um flagelo que atingia o país inteiro (POWERS, 1975). A integração nacional se dava agora pela contravenção e ocupava a primeira página não só dos tabloides, mas também da grande imprensa. A concorrência entre gangues pelo controle da venda ilegal de bebidas (e outros artigos proibidos) aparece nos jornais como uma guerra, elevada a um nível mitológico. O gângster se torna uma figura lendária, no mesmo nível que o aviador, o capitão de indústria ou a estrela de cinema. O impacto dessa mitologia sobre o público se liga à sua visualização, iniciada com a exibição, na imprensa, das primeiras fotografias de gângsteres mortos. Até o massacre do Dia de São Valentim, em 1929, quando um confronto de quadrilhas viti-

91 mou sete dos seus membros, a imprensa ocultara os cadáveres nas imagens com um X, mas esse episódio pedia uma estratégia de acordo com os no- vos tempos. As fotografias horrorizaram e marcaram o imaginário dos norte- -americanos por muito tempo. “Os editores se deram conta do poder que uma imagem de cadáver podia ter para fixar, na mente do público, a lição de que o submundo tinha a sociedade em suas garras”, como escreveu uma publicação da época, X marks the spot: Chicago gang wars in pictures (1930, p. 1)6. Se os editores justificam a sua posição com um argumento moral (as fotografias levariam o público a compreender a gravidade do gangsterismo), eles acentuam, ao mesmo tempo, a ligação entre a visualização do crime e a sua mutação em uma narrativa, a da “civilização” que cai nas “garras” de gângsteres. Eles escondem essa transfiguração apocalíptica atrás de supostas intenções pedagógicas, mas, na verdade, gratificam um voyeurismo de massa ao tornar a morte violenta provocada pela guerra das gangues um espetáculo nacional. Georges Bataille (1930, p. 438) acertava ao comentar a nova política editorial de publicação das fotografias dos cadáveres:

Esse novo costume (...) representa certamente uma transformação moral considerável na atitude do públi- co para com a morte violenta. Parece que o desejo de ver acaba vencendo a repulsa ou o pavor. Assim, com a publicidade aumentando tanto quanto possível, as guerras de gângsteres americanos poderiam exercer a função social conhecida como os jogos do circo na Roma antiga (e as corridas na Espanha atual).

A transformação moral de que fala Bataille, marcada pelo início da me- diatização do crime organizado pelos meios tecnológicos, está na gênese da ficçãohard-boiled . A imagem da guerra de gangues como um jogo de arena moderno aparece nessa literatura desde o seu início. No romance que Raoul Whitfield escreveu sob o pseudônimo Temple Field, Killers’ carnival (1932), a cidade se torna uma “arena de aço” onde os assassinos se enfrentam sob o olhar da

92 imprensa sensacionalista. Ao fim de uma longa série de acertos de contas, o livro termina com o espetáculo do protagonista, Van Cleve, e sua companheira, Dale Byrons, entregues aos jornais:

Ele não conseguia parar a imprensa. Eles apareciam espetacularmente em manchetes, em fotografias, em histórias sentimentais. Todos os dias. (...) Então chegou o dia em que se tornaram notícia de segunda página. Então dois homens e uma mulher foram metralhados contra uma parede de tijolos perto do cais de East Side. Van Cleve e Dale Byrons foram enterrados na página 20. Outras pessoas estavam na arena de aço; outras pessoas tinham sido jogadas à imprensa. (FIELD [WHITFIELD], 1932, p. 274).

Essa tendência ao voyeurismo perpassa a ficção hard-boiled. A representação da violência ali é sempre ambígua e parece responder a um desejo do público. É o que sugerem tanto as capas das revistas baratas (as pulp magazines), que, como outros meios do gênero no século 20, atraem o leitor com ilustrações violentas e eróticas, quanto as próprias narrativas. Se o romance de enigma, ao focar aquilo que o crime oculta, apaga a violência gráfica com um discurso sobre motivo, oportunidade e meio, o texto hard- boiled satisfaz, com o auxílio de detalhes hiper-realistas, o “desejo de ver” do leitor voyeur. Pode-se dizer, assim, que, em geral, no romance de enigma, o cadáver é pretexto para a produção de uma narrativa, ao passo que na ficção hard-boiled, a narrativa é pretexto para a produção de cadáveres (TADIÉ, 2006, p. 71). Aqui, a morte é exibida logo no início, por vezes como um ato violento e como uma presença física e crua. Encontra-se, ao longo da história da literatura hard-boiled, o voyeurismo mórbido indicado por Bataille, uma vontade de enquadrar a morte em close-up, de revelar o cadáver sob o X, restituindo-lhe sua materialidade de corpo dilacerado pela violência. Note-se, também, que a imprensa, como os primeiros romances do gênero, parece resistir a toda tentação de interpretar,

93 ao colocar em cena, de forma espetacular, a criminalidade. A violência é mais chocante quando permanece enigmática. Como está escrito em X marks the spot sobre Al Capone:

Este livro examina o rei Al de um ponto de vista puramente objetivo. O que se passa sob o seu chapéu, ou sob o chapéu de outros da sua espécie, é um mistério profundo até onde diz respeito a este livro. E, como as declarações de Capone foram poucas e curtas, elas serão de pouca utilidade para revelar os seus processos mentais. (...) Assim, este livro levará seus leitores pelo caminho tomado por Capone para atingir a sua posição atual. Ele lhes mostrará O Quê e Como e Quando e Onde, mas não Por Que.

Esse “ponto de vista puramente objetivo” vai orientar a perspectiva tanto da imprensa quanto a dessa literatura. Tal estratégia implica uma visão de mundo em que o crime é, sempre, misterioso, porque ninguém sabe o que se passa “sob o chapéu” dos criminosos e porque o mundo que torna possível a sua ascensão e os seus golpes parece negar toda lógica. A cobertura neutra, espetacular e, por vezes, apocalíptica da guerra das gangues na imprensa norte-americana da década de 1920 reaparece na obra dos autores que dominaram o gênero desde os seus princípios: Dashiell Hammett, Raoul Whitfield e Paul Cain. Mas, além da sua projeção no universo da Proibição, ela continuaria a fundar a poética da ficção hard-boiled: um corte de cenas que privilegia momentos de conflito violento, uma tipologia de personagens que apresenta os habitantes da selva urbana como seres pulsionais, primitivos e predatórios, e um ponto de vista narrativo que exprime o divórcio entre a consciência individual e o mundo (TADIÉ, 2006, p. 72).

94 Traição, violência e velocidade

Os primeiros romances hard-boiled quase podem ser definidos ou circunscritos pela exploração da violência. O combate físico, o assassinato, o acerto de contas são as cenas primárias dessa ficção. Elas constituem a mo- tivação primeira dos seus enredos e da sua estética: é nelas que a escrita dos autores atinge sua intensidade máxima. Em geral, elas indicam um mundo imprevisível, cujos paradoxos, tensões, conflitos e traições se concretizam na violência brutal. Tal como a reviravolta das tragédias, a cena de violência in- verte subitamente as relações entre as personagens, sugerindo a destruição de um laço social que, de qualquer maneira, nunca é sólido. Se no romance realista a violência é apenas uma forma marginal de relação entre os indiví- duos, na ficção hard-boiled ela funda e, no mesmo movimento, desintegra as relações humanas. “Parlor trick”, um conto que Paul Cain escreveu para a revista Black Mask em 1932, exemplifica o título acima: em três cenas narradas em apenas quatro páginas, cinco personagens cometem ou sofrem dois assassinatos e um espancamento. A cada cena, o sistema de alianças ou, melhor dizendo, de traições, visto que os pactos existem apenas para excluir um terceiro e se desintegram em seguida, vira de ponta cabeça. No centro desse jogo de permutas e eliminação estão o sexo e o poder: uma mulher sedutora e a luta pelo controle de uma rede de contrabando. Nesse mundo, as palavras nada valem; todos mentem, a traição está por toda parte e as diferenças se resolvem com assassinatos. Além da traição, segundo Dashiell Hammett, a estética hard-boiled se caracteriza pelo ritmo da narrativa, pela velocidade dos eventos narrados. Num discurso para o Third American Writers Congress em 1939, Hammett comentou que “o trabalho do romancista contemporâneo é pegar pedaços da vida e arranjá-los no papel. E, quanto mais direta a sua passagem da rua para o papel, mais vívidos eles se mostrarão” (DOOLEY, 1984, p. 75). O romance precisa de ritmo, de acordo com ele, não para entulhar a página, mas para dar

95 a impressão de que a narrativa é contemporânea, que os eventos acontecem aqui e agora, para dar ao leitor uma sensação de imediatismo. A transposição direta de “pedaços da vida” para o papel relembra a ontologia da narrativa jornalística, fundada, ela também, na ilusão de um imediatismo, de um apagamento da duração que separa a ação do seu relato. Na obra de Hammett, o acontecimento parece explodir na página, “aqui e agora”, descontínuo, sem começo nem fim. Sua obra culmina em cenas de violência bruta que revelam um mundo sem lógica, opaco, que não foi arranjado pelo olhar em retrospecto do narrador. Em geral, essa visão desordenada se justifica pela percepção deformada do protagonista, como quando ele leva um golpe na cabeça e cai na baía de San Francisco (“Tenth clew”) ou se embebeda com láudano e sonha com assassinatos (Red harvest). Qualquer que seja a justificativa na história narrada, o texto de Hammett existe apenas para esses momentos que concretizam uma forma de retorno ao caos, não como apocalipse, mas como júbilo. As personagens e as coisas parecem se dissolver numa atividade intensa; daí a ênfase nos verbos em detrimento dos adjetivos e advérbios e até mesmo dos substantivos. Torna-se impossível identificar os objetos; extinguem-se os pontos de referência espaciais; existem apenas os acontecimentos, assombrados pelo espectro da violência. Na esteira de Hammett, vários autores fizeram experimentos com uma escrita baseada em verbos, entrecortada, num ritmo staccato, sugerindo que tudo acontece rápido demais para ser anotado de outra maneira. No conto de Paul Cain, “Murder in blue”, o protagonista, meio desfalecido pelo golpe que levou na cabeça, assiste a uma luta entre dois gângsteres: “Doolin estava deitado de costas e o quarto rodava à sua volta. Mais tarde, ao lembrar- se do que acontecera em seguida, era como pedaços de filmes separados pela escuridão” (CAIN, [1933], p. 90). Esse efeito estroboscópico, justificado aqui pelo estado semicomatoso do protagonista, marca também a prosa de Whitfield. Em Green ice, de 1930, as cenas de luta parecem sequências curtas, sem continuidade, para formar uma narrativa com sintaxe no mínimo abrupta. As passagens monossilábicas, entrecortadas por travessões, parecem

96 ilustrar o princípio de Hammett, de que o autor contemporâneo tem de mostrar o que está acontecendo aqui e agora. O acúmulo de verbos de ação faz os acontecimentos se entrechocarem, apagando as personagens. Esse desequilíbrio desvela um mundo que pode, a qualquer momento, passar da ordem ao caos. Dessa possibilidade iminente de esboroamento social vem o ritmo frenético dos romances hard-boiled escritos entre 1920 e 1930. O único livro de Paul Cain, Fast one, cujo título pode significar tanto “golpe rápido” quanto “traição”, conta a tentativa de um gângster misterioso, Gerry Kells, de controlar o tráfico em Los Angeles. Fast one é representativo de um gênero nascido sob o signo duplo da velocidade e da traição. Como sugere o título ambíguo, a velocidade se refere tanto aos diálogos e à narrativa (ambos telegráficos), quanto aos golpes baixos, à traição entre as personagens, característica de uma sociedade em colapso. Nesse romance como nos de Hammett e Whitfield, as personagens falam rápido, agem rápido, morrem rápido, depois de terem esgotado todas as formas de traição possíveis, numa velocidade tamanha que o leitor mal tem tempo de se ajustar aos acontecimentos antes que outras ocorrências impulsionem a narrativa adiante.

Violência: direção e controle

Ao contrário do que pode parecer, não se postula aqui buscar a origem da violência como tema na ficção hard-boiled, ou mesmo fora dela, pois tal ato simplificaria em excesso a sua relação com a narrativa. O romance hard- boiled tem antecedentes tanto histórico quanto literários, como vários críticos já notaram7. Embora a corrupção da cidade grande após a Primeira Guerra Mundial e os efeitos nocivos da Proibição tenham influenciado o surgimento desse tipo de ficção, a tematização da violência na tradição literária europeia remonta aos épicos homéricos e reaparece, no contexto norte-americano, nos romances de fronteira.

97 No entanto, a violência foi capaz de dar direção e forma ao gênero. Representar a dureza do detetive e do submundo, dos políticos e dos empresários, por exemplo, tornou-se o objetivo do autor de literatura hard- boiled (PANEK, 1987, p. 152). A violência lida com necessidades e desejos; ela abre a possibilidade de motivações primitivas. Embora desejos sejam unicamente humanos (até onde sabemos), quando a violência ocorre, as sutilezas desaparecem. Processos complexos podem levar à resolução brutal, e o escritor competente consegue mostrar isso, mas a descarga destrutiva cria um problema para o autor, se ele a emprega com muita frequência. De fato, uma crítica constante e consistente dos primeiros romances hard-boiled era o uso excessivo da violência para resolver problemas de enredo (MOORE, 2006, p. 50). O famoso conselho de Chandler (1960, p. 6) para o escritor iniciante – “Na dúvida, faça um homem entrar pela porta com uma arma na mão” – é um reconhecimento da simplificação provocada pelo confronto físico, mas é, também, uma reflexão sobre o apetite dos leitores por ações violentas. No mesmo ensaio, Chandler escreve que “o cheiro de medo” gerado por essas histórias era evidência da resposta do público às condições modernas:

As suas personagens viviam num mundo que dera errado, um mundo onde, bem antes da bomba atômica, a civilização tinha criado o mecanismo da sua própria destruição e estava aprendendo a usá-lo com o mesmo prazer idiota de um gângster experimentando a sua primeira metralhadora. A lei era algo manipulado para obter lucro e poder. As ruas eram escurecidas por algo mais do que a noite. (CHANDLER, 1960, p. 5)

A ficção hard-boiled começou a se tornar popular no rastro de uma guerra devastadora e atingiu a maturidade nas duas décadas que terminariam num segundo conflito global. Nas suas narrativas mais características, algum acontecimento traumático altera, de maneira irrecuperável, as condições de vida e cria, para as personagens, um abismo experiencial entre a sua depen- dência de padrões estáveis e regulares, de um lado, e, de outro, a percepção

98 de que a vida é, na verdade, moralmente caótica, sujeita ao acaso e ao deslo- camento mais absoluto. Esse sentimento de desilusão nos anos entre as guerras mundiais foi ampliado por desastres políticos e econômicos que pegaram as pessoas completamente despreparadas. Nos Estados Unidos, houve a loucura da Proibição e o consequente gangsterismo, assim como evidências cada vez maiores das conexões entre o crime, os negócios e a política. Crises afetaram a economia europeia e a norte-americana, provocando a quebra dos mercados de ação em 1929 e a Grande Depressão, talvez a pior catástrofe dos tempos modernos. Com o fracasso dos governos parlamentares na Europa e a ascensão de governos totalitários, surgiu o espectro de outra guerra. Na ficção hard- boiled da época, a ansiedade fatalista se liga, em geral, à convicção pessimista de que as circunstâncias econômicas e sociopolíticas retirarão das pessoas o controle sobre as próprias vidas, ao destruir suas esperanças e criar nelas a fraqueza de caráter que as marcarão como vítimas. Esses romances exageram traços reais da vida nos Estados Unidos das décadas de 1920 e 1930 para dar ao leitor uma visão do outro lado do Sonho Americano, a sua faceta do pesadelo angustiante de uma sociedade economicamente injusta e fragmentada.

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Notas

1 Doutor em Literatura Comparada, o autor é professor na Universidade Federal de Minas Gerais. Este trabalho conta com o apoio do CNPq, por meio de bolsa de pesquisa. 2 As informações deste parágrafo e dos próximos foram retiradas de The timetables of history, de Bernard Grun, e Mapping America’s past, de Mark C. Carnes e John A. Garraty. 3 Al Capone usa a palavra “graft”, que pode significar corrupção, suborno, fraude, logro, politicagem, trapaça, aliciação e tramoia, entre outras acepções. Optei pela primeira por ser a mais geral e cobrir os outros significados, de um modo ou de outro. 4 “Pequeno César” se refere ao romance Little Caesar (1929), de W. R. Burnett, sobre um criminoso que se muda do campo para a cidade e recebe a alcunha que deu título ao livro. Adaptado para o cinema em 1931, tornou-se o primeiro grande filme americano de gângster. No Brasil, o filme se chamou Alma no lodo. 5 O Crime do Século, como o caso Lindgergh ficou conhecido, reapareceria várias vezes na literatura criminal, em obras tão diferentes como After dark, my sweet (1955), de Jim Thompson, e Assassinato no Expresso do Oriente (1974), de Agatha Christie. 6 O site MyAlCaponeMuseum afirma que o repórter Harold “Hal” Andrews teria criado a revista X Marks the Spot, em vista do sucesso da brochura. O autor teria se mantido anônimo por segurança. 7 Ver, por exemplo, CAWELTI (1977), GEHERIN (1985) e GRELLA (1988), entre outros.

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VIOLÊNCIA, PERFORMANCE E O SIMULACRO URBANO EM AMOR E RESTOS HUMANOS, DE BRAD FRASER

Lajosy Silva (UFAM) 1

A peça Unidentified Human Remains and The True Nature of, Love do autor canadense Brad Fraser, procura mapear o cotidiano de habitantes de grandes centros urbanos ao descrever a solidão e o isolamento das personagens, assombrados pela AIDS e pela presença de um assassino em série. Traduzida no Brasil como Amor e restos humanos, trata-se de uma peça do final dos anos oitenta, que busca representar esse mundo ‘pós-AIDS’. A ação se passa num grande centro urbano do Canadá, Edmonton, na província de Alberta, descrevendo o cotidiano de David e Candy, colegas de quarto e ex-amantes. David é ator, mas trabalha como garçom num restaurante, enquanto Candy é crítica literária num jornal local. Há ainda cinco personagens que complementam esse mosaico urbano: Benita (uma paranormal, prostituta e traficante de cocaína), Jerri (professora lésbica e apaixonada por Candy), Kane (colega de David no restaurante), Bernie (velho amigo de David) e Robert (dono do bar, de quem Candy tenta uma aproximação amorosa). Aparentemente, a peça se concentra nas desventuras amorosas desses dois amigos. David procura sexo anônimo com homens, enquanto Candy se divide entre um relacionamento homossexual com Jerri e encontros com Robert, em busca de uma satisfação sexual e amorosa. Durante a peça, um serial killer assombra a cidade e corpos de mulheres são encontrados mutilados e abandonados em locais desertos. Esse resumo é a representação do cotidiano prosaico, sem heróis e heroínas que povoam um centro urbano. A metáfora dos restos humanos não-identificados seria a maneira como o dramaturgo constrói a ação narrativa a partir da fragmentação das cenas, assim como a disposição dos sentimentos e das angústias vividas pelas personagens.

103 Fraser utiliza uma estrutura semelhante ao do coro grego quando dá voz às personagens que se movimentam no palco, narrando fatos como se quisessem descrever um sentimento coletivo de angústia e desespero. Essas vozes podem ser ouvidas como pedaços não-identificados de um corpo. Em alguns momentos, as frases são compostas por palavras que devem transmitir sentimentos de angústia, repressão ou desejo: sozinho, escuro, morrendo, dentre outros fragmentos ao longo da peça. No início, antes mesmo que as personagens se apresentem caracterizadas e individualizadas, a rubrica sugere pontos de luz sobre os atores que nomeiam partes do corpo humano como introdução: pele, sangue, peitos, cabelo, pés, mãos (FRASER, 1996, p. 31). Essas partes sustentam a escritura dramatúrgica da peça numa tentativa de representá-lo como uma estrutura orgânica pulsante, com ações simultâneas e quebras constantes de continuidade dramática como a edição de um filme. As personagens da peça movem-se pelo palco, dialogam, estabelecem elos que ora se juntam, ora se partem como um fluxo contínuo, que não leva a qualquer lugar. Nesse engendramento, não existe espaço para reflexão das ações que constituem uma espécie de contínua repetição do cotidiano, um ato constante de circular por espaços mínimos (apartamentos, clubes, academias) até o seu esgotamento. A estrutura formal da peça é fragmentada e busca diluir a ação dramática a partir de pequenas cenas alinhavadas. A representação é “picotada” e interrompida ao romper com as estruturas formais do drama aristotélico de tempo e espaço. Em Drama in Performance, Raymond Williams afirma que a palavra drama é utilizada para designar duas acepções: o trabalho literário (o texto de uma peça) e a performance, entendido aqui como a encenação desse texto (WILLIAMS, 2000, p. 170). Para Williams, é importante ressaltar que o ato de escrever e o de encenar são distintos, embora uma peça de teatro, comparada ao romance, seja um trabalho literário escrito para ser encenado. A tessitura de uma peça de teatro é, antes de mais nada, uma extensão da visão que o dramaturgo busca sugerir na sua escrita, uma vez que toda peça de teatro tem

104 em vista uma representação visual sugerida ao longo do texto. Como já foi dito, David é garçom e ex-ator que abandonou a profissão, decepcionado com a qualidade do seu trabalho, reduzido a um galã de telenovelas. Ele aspirava a trabalhos mais sérios, com um comprometimento artístico maior. A personagem reitera a mesmice do meio gay quando afirma que tudo parece ser a mesma coisa: a música, os rostos dos frequentadores e o preço das bebidas, descrevendo o cotidiano de homossexuais que só falam de suas relações sexuais e desencontros amorosos (FRASER, op. cit., p. 39-40). O vazio das relações do meio gay incomoda David, porém ele não consegue se livrar desse meio que acaba sendo seu único espaço de atuação, exceto lugares públicos escusos e isolados, onde encontra prazer sexual com estranhos. Candy é a imagem da mulher solitária que trabalha como editora de livros e tenta superar suas frustrações amorosas, quando conhece uma colega de academia, Jerri, e decide investir numa relação homossexual pela primeira vez. Num primeiro momento, Candy parece ser o estereótipo heterossexual do simpatizante gay. A personagem se apoia no amigo homossexual, David, na tentativa de encontrar afeto e superar suas frustrações com os homens. Fraser utiliza Candy para reforçar a ideia de que só heterossexuais marginalizados podem se aproximar de gays, porém, a tolerância de Candy é colocada à prova quando ela tenta se envolver com Jerri. O dramaturgo descreve essas personagens, alimentadas pela profusão de imagens como um subproduto da cultura de massas da Geração MTV, reduzidas a reinventar um cotidiano que não atende às suas expectativas primárias, como um bom parceiro sexual, roupas e bens de consumo. É nesse limiar de alienação - e por que não de autocomiseração - que as personagens de Amor e Restos Humanos desfiam sentenças vazias num cenário tão opaco quanto suas vidas. Nesse caso, o serial killer que amedronta a cidade parece ser o único momento em que esse cotidiano se torna menos monótono e irreal. Nas introduções das peças feitas pelo próprio dramaturgo, observa- se muito o sentimento do artista autocentrado, quando ele comenta as dificuldades de montar suas peças nos circuitos teatrais. Ele desabafa que

105 os únicos que poderiam estar interessados no seu trabalho seriam “the grand-happy” ou “ex-hippies” que – após verem seus sonhos fracassarem no movimento da contracultura – enxergariam no teatro de Fraser uma espécie de refúgio para seus conflitos diante da massificação da indústria cultural (FRASER, op. cit., p. 1). Em Amor e restos humanos, as personagens não buscam uma solução, nem caminham para um desfecho trágico e condenatório, quando elas reiteram o movimento circular da ação dramática que se faz e se encerra em sim mesma. A consciência do aprendizado parece se ater à ideia de que existe uma “verdade” (a AIDS) que reintegra as personagens no desenlace da peça, quando estas são obrigadas a encarar o vazio e o condicionamento aos quais estavam aprisionadas. Nesse momento, a identidade do serial killer também é revelada. Existe uma mistura híbrida na peça que procura dialogar com o cinema, quando observamos a fragmentação das cenas como um fotograma de um filme; sendo os pedaços dos corpos, uma metáfora para a violência causada pelo serial killer. Esse hibridismo se sustenta a partir de uma miscelânea de linguagens (literatura, cinema, teatro, TV) que se transforma numa maneira tradicional de se representar (ou mesmo narrar) episódios que, retirados do seu aparente “caos dramático”, podem ser vistos como convencionais. Esse recurso acaba por ressaltar a crise do drama burguês - consolidado no final do século XIX, conforme Peter Szondi – e encontra seus ecos na dramaturgia contemporânea, quando a ação dramática deve se sustentar ao utilizar diversos recursos imagéticos tais como projeções de cinema, ruídos e aparatos técnicos modernos; que acabam por descrever os limites da dramaturgia, o texto como pretexto para a encenação. Portanto, os dramaturgos contemporâneos parecem obcecados por elementos como a violência, a sexualidade e a degradação humana numa tentativa de provocar uma catarse derradeira num espectador bombardeado por informações. Dessa forma, a violência tornou-se uma espécie de títere, elemento que se manipula num espaço de alternâncias ao movimentar conflitos cotidianos,

106 assim como o vazio existencial das personagens descreve o fracasso da ideologia dos hippies, ávidos por um mundo libertário em sua plena acepção, convertidos a imagens congeladas de um sistema mercadológico que fazem dos hippies um elemento exótico, devidamente assimilados pela indústria cultural. Na introdução à edição de Amor e restos humanos, Fraser utiliza inúmeras vezes a expressão “edited” como se a revisão da peça fosse uma espécie de edição de um filme ou roteiro. Mais adiante, o autor comenta a mistura de referências que reuniram Children of the Damned2, The Crucible, de Arthur Miller, e Quem tem medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, para a composição de suas peças, comparadas a um “mixmaster recheado com os corações e outros órgãos vitais” das pessoas que participaram do processo de criação de Amor e Restos Humanos (FRASER, op. cit., p. 13). A questão “orgânica” levantada pelo dramaturgo nos faz pensar numa dramaturgia que apenas consegue sobreviver graças a inúmeras referências tomadas de empréstimos das mais inusitadas fontes que abrangem desde cânones da literatura, passando por histórias em quadrinhos, cinema e noticiários de TV. O discurso das personagens soltas na contracena pode interferir na ação principal, quebrando a unidade dramática. Esse recurso favorece a ação dramática com um elemento performático que deve prender a atenção do espectador, quando a ação principal não consegue dar um panorama dos conflitos das personagens. O mosaico humano é constituído de vozes como um painel para dar unidade aos restos humanos espalhados, sugeridos através dos atores que se afastam da persona (entendido aqui como personagem que interpretam) nas cenas e contracenas. No seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis não cita o verbete contracena, mas parece sugerir um sinônimo para essa palavra no verbete contraponto quando fala de “duas ou mais séries de imagens de linhas temáticas ou de intrigas paralelas que se correspondem de acordo com um princípio de contraste” (PAVIS, 1999, p. 70). O que nos faz pensar na possibilidade de um painel criado pelo dramaturgo para compor várias cenas em pontos dispersos no palco,

107 interligadas por uma ação principal, mas que ocorrem paralelamente ao longo da peça. Quanto a essa técnica, Pavis comenta que

O uso do contraponto exige do dramaturgo e do es- pectador a capacidade de compor ‘espacialmente’ e de agrupar, de acordo com o tema ou o lugar elementos a priori sem relação; exige ainda a capacidade de con- siderar a encenação como orquestração muito precisa de vozes e instrumentos diversos. (PAVIS, op. cit., p. 71)

A dramaturgia de Brad Fraser procura estabelecer um retorno à valorização do diálogo como se ele fosse autossuficiente no que diz respeito às indicações cênicas (as rubricas). Não há a utilização de recursos como o registro das intenções ou da intensidade das falas de determinada personagem, para que o ator possa desenvolver determinado tipo de registro vocal e gestual (forte, alto, baixo, submisso, dentre outros). A descaracterização da rubrica contribui também para um apagamento de outras referências como subtexto para a construção da personagem, sua classe social e seu passado para entender os desdobramentos da ação no presente. Embora tome emprestado certos elementos do teatro de Tchekhov, como a sensação de paralisia das personagens ou a ideia de que a ação nunca “decola”, as personagens de Fraser estão concentradas no ato contínuo de viver o presente sem estabelecer, no entanto, qualquer motivação anterior para suas ações. A ação dramática tornou-se uma espécie de camisa de força, uma ação débil que não contribui para nenhuma movimentação, a não ser quando a violência se exercita como performance ao buscar o choque e a degradação das personagens. Elas querem agir, mas padecem de uma motivação que não as alcança, quando se está em jogo entre abrir mão de um status econômico e o ideal romântico de viver a vida. O cotidiano aqui ganha contornos de uma valorização artificial da existência humana reduzida a sobreviver nos grandes centros urbanos,

108 ao sufocamento das ambições pessoais e da recusa a qualquer tipo de aprendizado que permita uma insurgência de novos valores, de crescimento profissional e intelectual. A maioria das personagens já passou dos trinta anos, mas elas ainda guardam resquícios de uma adolescência mal vivida em termos de aspirações, pobre em realizações e perspectivas. David é o ator frustrado que aspirava a grandes papéis no cinema e no teatro, enquanto Candy resenha livros de auto-ajuda e abomina a representação de uma felicidade artificial sugerida por esses livros. A tipificação dos “restos humanos” – enquanto metáfora do desmembramento das instituições como a família e a religião - não consegue esconder que suas personagens desejam vislumbrar uma visão romântica do amor. A motivação de Candy e David não é nada mais do que o antigo desejo de compreensão que se estabelece ao longo da peça, pois as personagens parecem filhos da intolerância e da violência do mundo moderno. Ao inserir Bernie na peça, o amigo de David e Candy, é possível observar que ele fala, assim como várias personagens da peça, a partir de uma secretária eletrônica. Esse aparelho é um recurso formal que o dramaturgo utiliza para construir dramaticamente os desencontros das personagens que nunca estão presentes, embora estejam em cena ao longo da peça. A secretária eletrônica representa a mecanização dos desencontros entre as personagens, pois ela parece estabelecer o que não é dito e confessado. Trata-se de um confessionário pós-moderno como os emails que substituem as cartas escritas, nesse caso, as “mensagens” podem ser apagadas; e consequentemente, a memória perde sua função na sociedade contemporânea. As personagens operam a partir de “chaves”, uma vez que ternura, paixão, ódio, sofrimento são abstrações construídas a partir dessa pintura narrativa. David, por exemplo, é o estereótipo do “gay blasé”, alguém que está embotado pelo excesso de estímulos sensoriais, afetivos, intelectuais ou de prazeres, e que se tornou insensível ou indiferente a eles. Seu tédio é demonstrado pela afetação, espécie de humor camp presente nas suas falas que ressaltam sua

109 mordacidade e sarcasmo. Ele não acredita numa coletividade e seu papel na sociedade. O hedonismo é uma clara representação dessa filosofia do culto a si mesmo, ao prazer ou fuga a responsabilidades. Por outro lado, os “homens” de Candy estão sempre abaixo das suas expectativas. A personagem descreve e reforça certo estereótipo da mulher independente moderna que estabelece um distanciamento do modelo heteronormativo (constituir família, dar continuidade à espécie, tornar-se mãe) e afirma que o orgasmo tornou-se seu único objetivo: “Eu preciso de alguém que me faça gozar” (FRASER, op. cit., p. 41). A narração de sonhos e experiências passadas interfere na construção de uma unidade dramática na peça quando esses diálogos são entrecortados por outras cenas, interrompidos, por exemplo, no momento e que Benita canta Lavander Blue Dilly, uma canção de ninar do século XVIII que surge como fundo musical para pontuar o final de algumas cenas. A utilização dessa canção nos faz pensar numa tentativa de contemporizar com a brutalidade dos assassinatos, quando a violência parece encontrar ecos num pesadelo do qual as personagens não conseguem acordar. Para manter a estrutura convencional do thriller ou do romance policial, Brad Fraser “planta” inúmeros índices para despertar o interesse do espectador sobre a identidade do serial killer que ataca a cidade: Bernie com as mãos sujas de sangue, o brinco na casa de Robert, as saídas misteriosas de David, dentre outros. As narrações dos assassinatos, feitos por Benita, a paranormal prostituta, também integram essa estratégia de criar suspense, contudo, o que mais chama atenção é como a juventude parece ser o alvo dos assassinatos, como se o fato de ser jovem tivesse a simbologia da morte da juventude, portanto, da transformação daquela sociedade degradada. Os assassinatos pontuam a ação dramática como pequenos blocos narrativos aparentemente dispersos. A pergunta seria: qual é a função dessas pequenas inserções que duram cerca de segundos em oposição à cena principal? No caso, parece sugerir que as ações são múltiplas e fragmentadas como se fossem filtradas por uma máquina fotográfica.

110 O dramaturgo parece reiterar a própria violência aqui revestida em forma de espetáculo:

Benita: O caso do namorado sem-cabeça. Essa é uma boa história. Uma garota e o namorado dela estão indo para o baile de formatura. Todos bem vestidos, mas estão atrasados, certo? Então, eles estão nessa estra- da quando de repente a gasolina acaba. O rapaz pede para a garota esperar no carro. Ele sai para pedir ajuda. Ela não quer ficar sozinha, mas com seus sapatos de salto alto... ela diz ‘vou esperar’. Mas está assustada. Jerri: Sozinha. Benita: Então o rapaz diz para ela ficar no banco de trás e se cobrir com um cobertor e não aparecer até que ele bata na janela do carro. Robert: Escuro. Benita: Ela se tranca e faz o que ele disse. E ela espera, espera, espera por ele. Então, depois de muito tempo, ela ouve esse som. Ela acha que é ele. Batendo na jane- la por ela. Então, ela levanta o cobertor e não consegue ver nada. Mas o som ainda está lá... Algo gotejando. Kane: Úmido. Benita: Ela não consegue ver de onde esse som está vindo. Então ela se esconde debaixo do cobertor e fica lá a noite inteira chorando. Bernie: Morrendo. Benita: Finalmente, de manhã uma batida na janela. Ela olha para fora. Tem um policial dizendo “Saia do carro e nos acompanhe, moça”. Candy: Por quê? Benita: Ele pede para ela não se virar. Ela caminha até o carro da polícia mas não resiste e olha para trás. David: (alto) NÃO! Benita: O namorado dela está dependurado numa ár- vore acima do carro. Todo sem pele, sem cabeça. O som que ela ouvia era o sangue caindo no capô do carro a noite inteira. Eles tiveram que colocá-la num

111 hospício até o fim de sua vida. Minha mãe me contou essa estória. Ela disse que aconteceu com uma amiga dela quando elas eram jovens. (FRASER, 1996, p. 31-32)

Essas narrativas de Benita constituem uma tentativa de descaracterizar o indivíduo a partir das lendas urbanas, ou seja, histórias sobre assassinatos que podem ter acontecido ou não ao remeter às narrativas policiais. A única justificativa para essa narrativa de Benita parece residir no fato de que há um serial killer em Edmonton, mas “o caso do namorado sem cabeça” parece descrever uma pálida tentativa de utilizar o grotesco como inserção da violência pela violência. É um recurso comum na produção do teatro alternativo contemporâneo, uma vez que a violência é utilizada como forma de expressão ou reiteração do seu modus operandi ao girar em torno de si mesma, sem apontar para um posicionamento crítico. É como se a banalização da violência fosse a própria violência que se mostra despida como um gesto débil aos olhos do espectador. Szondi afirma que “na medida em que o caminho subjetivo toma o lugar da ação objetiva, as categorias de unidade de tempo e de lugar também caducam” (SZONDI, 2003, p. 63), ou seja, tempo e espaço se mostram conflitantes na peça, quando as personagens vivenciam o simulacro da alienação e da violência. Dessa forma, a violência se torna performática, pois é preciso estilizá-la como numa instalação ou como um liquidificador de sensações comuns à era do videoclip e da profusão de imagens. Para Guy Debord, o sistema econômico do isolamento é uma produção que recria um simulacro de sensações para uma multidão solitária que alimenta sua própria violência e solidão: “do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento” (DEBORD, 2003, p. 22). Esse processo de isolamento não é mais do que uma valorização da perda da unidade do mundo, porque o indivíduo torna-se mera representação de uma individualidade abstrata e vazia.

112 A definição da palavra simulacro não é espacial como discutimos aqui, mas sim uma representação abstrata ao utilizar palavras como sombra, imagem, aparência, espectro, retrato. Do latim, simulacrum, existe uma junção entre semelhança e representação que nos faz refletir sobre a longevidade da palavra. Contudo, na sinonímia da palavra, encontramos também o fingimento em oposição à realidade que talvez seja o aspecto mais interessante, quando tratamos da negação da realidade (não confundir com Realismo), porém, da totalidade que essa realidade propõe em todos os âmbitos das relações interpessoais (social, política, econômica, cultural, noções de classe, dentre outras). É nessa dicotomia entre a realidade do sistema capitalista e o simulacro representativo, falso e espetacularizado que Guy Debord constitui suas reflexões sobre a sociedade do espetáculo. Debord comenta que “a origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno revela a totalidade dessa perda” (DEBORD, op. cit, p. 23). Dessa forma, podemos atribuir à construção de um simulacro, a simulação de sensações que transformou a sociedade contemporânea num amálgama das “multidões solitárias”. Assim como as personagens da peça, uma boa parte da população mundial se alimenta do vazio difundido pelos meios de comunicação como internet, blogs, grupos de discussão, Facebook e Orkut, salas de bate-papo, dentre tantos mecanismos utilizados para aproximar as pessoas, fortalecendo um espetáculo de solidão e perda da experiência humana. O autor discute a “separação generalizada” nas relações de trabalho que reproduzem esse distanciamento entre o que se produz, o que se consome e a comunicação social direta que o indivíduo possa ter com esses bens. A abstração generalizada do que não se pode nomear torna qualquer luta, qualquer rebelião impossível contra a sociedade do espetáculo: como enfrentar o que não se explica e não se nomeia? O simulacro pode ser entendido aqui como simulação, espaço artificial da ação, palavra ligada à imagem ou a sombra do que é ou poderia ter sido. A dissimulação também parece ser uma derivação dessa palavra, assim como a idéia de que é uma

113 imagem enganosa. Amor e restos humanos reproduz esse simulacro das sensações e do espetáculo ao mostrar um painel “orgânico” dos restos humanos como metáfora da fragmentação do mundo moderno. A dinâmica do voyeurismo ressalta “a alienação do espectador em favor do objeto contemplado” (FRASER, op. cit., p. 24), pois o voyeur não age; ele apenas observa o que acontece, sem interferir ou constituir qualquer tipo de ação ou transformação social. O olhar do voyeur de Amor e restos humanos está na construção de cenas isoladas e fragmentadas como os restos humanos. O ato isolado das personagens de narrar ou verbalizar sensações como medo, angústia e solidão encontram sua configuração no painel de imagens que a peça constrói: o caos da vida urbana, o esmaecimento do afeto e dos sonhos das personagens, a ausência de compreensão, a alienação. Quanto mais as personagens contemplam a ação, o desenrolar do presente, mais limitados seus movimentos se tornam diante das “imagens dominantes” (termo de Debord) que correspondem à fragmentação e a valorização da banalidade do mal e da violência, a degradação humana nos reality shows e espetacularização da morte nas redes sociais. No caso de Amor e restos humanos, o Estado desapareceu e o Neoliberalismo estabelece a destruição da noção de classes e uma vaga noção de mobilidade social na qual as personagens gravitam, porque gostariam de acreditar que dias melhores viriam. Existe um aspecto flutuante nas relações econômicas e sociais, quando as personagens transitam de um emprego para outro, sem jamais criar vínculos ou qualquer tipo de reflexão sobre as relações de trabalho. Os empregos de David e Candy são temporários: garçom e crítica de uma revista. A palavra temporário (ou temp job em inglês) reflete essa incapacidade de insurgência e a insatisfação das personagens com suas funções no sistema. A problemática do simulacro levantado por Debord aponta para a evidente “perda de qualidade, em todos os níveis, dos objetos que a linguagem espetacular utiliza e das atitudes que ela ordena apenas traduz o

114 caráter fundamental da produção real que afasta a realidade” (DEBORD, 2003, p. 28). O simulacro cria sensações irreais, falsas, a reprodução pela reprodução, a sensação de dejá vu predominante de uma cultural referencial já apontada nesse trabalho. O vazio de Candy e David é a constatação de que nada parece mudar, de que qualquer tentativa de encontrar o amor ou a felicidade parecem ser imagens desbotadas de um romantismo degradado. Ao criar sensações irreais que não estariam ao alcance de todos, o simulacro “bebe na fonte” de todo o cabedal de imagens constituído ao longo dos séculos, momentos históricos do ocidente e oriente, em diferentes épocas. Para as personagens, parece que tudo já foi vivido e experimentado, de modo que não há muito o que fazer no que diz respeito a questionar sua realidade. Guy Debord publica La Societé du spetacle em 1967, e sua leitura nos afeta até hoje ao dialogar com outras publicações como A Era do Vazio de Gilles Lipovestky. No prólogo à edição de A Era do Vazio, o autor nos chama atenção para a desagregação da sociedade, dos costumes, do indiví- duo contemporâneo da época do consumo de massa, a emergência de um modo de socialização e de indi- vidualização inédito, em ruptura com o instituído des- de os séculos XVII e XVIII. (...) Nosso tempo só logrou evacuar a escatologia revolucionária levando a cabo uma revolução permanente do cotidiano e do próprio indivíduo: privatização alargada, erosão das identida- des sociais, desafecção ideológica e política, desestabi- lização acelerada das personalidades, eis-nos vivendo uma segunda revolução individualista. (LIPOVETSKY, 2002, p. 7)

Lipovetsky nos chama atenção para a pulverização das regras racionais coletivas, quando o ideal de subordinação individual e da relação pessoal suplantou as questões políticas e históricas. Esse ideal de subordinação está na prática da rigidez com que as grandes corporações e a política neoliberal das privatizações privam o indivíduo de um contato com o coletivo. Segundo

115 o autor, a ideologia individualista faz parte de uma lógica que prega o direito supremo à liberdade, associado à revolução do ato de consumir (Lipovetsky, op. cit., p. 9). As personagens de Amor e restos humanos são amálgamas dessa lógica individualista, que defende uma tendência à diversificação, e da psicologização dos comportamentos agora estudados sob uma perspectiva microscópica como num laboratório. Isso ocorre também com uma série de produções para o teatro e cinema que buscam descrever os centros urbanos e sua marginalidade, nem sempre com a possibilidade de sugerir leituras que apontem as contradições desse sistema. Os marginalizados ora são simpáticos; ora representam a liberdade projetada dos espectadores que convivem com a violência e a alienação sem se questionarem. Em todo caso, a peça de Fraser parece estabelecer uma leitura do final do século XX como a catarse do hedonismo e a sobreposição do indivíduo sobre o coletivo, a busca da individualidade em detrimento da universalidade, a valorização extrema do star system, os quinze minutos de fama de Andy Warhol e sua pop art. A política passa pelo crivo da mercadoria, baseada no marketing pessoal, o sucesso e a ascensão social, o culto à celebridade, o narcisismo, dentre outros. A deserção política e crítica descreve esse fin-de-siècle, quando a geração dos anos oitenta e noventa é rendida pelas imagens e a canonização das celebridades instantâneas. Portanto, não nos surpreende as angústias das personagens de Amor e restos humanos que espelham uma espécie de Narciso ainda mais oco e vazio de sentimentos. O Narciso aqui, para além do mito, espelha-se no que Lipovetsky chama de narcisismo que dialoga não com um capitalismo autoritário, mas um capitalismo hedonista e permissivo (Lipovetsky, op. cit., p. 48). A sedução agora é a partir da imagem, não somente a procura por privilégios garantidos pelo bem estar, isto é, a garantia dos privilégios e dos bens materiais como queriam os burgueses no século XVIII, mas do valor imagético e fetichizado desses mesmos privilégios como estar “antenado” com os ditames da moda, frequentar lugares sofisticados, expor-se

116 em programas de TV e se incluir nas inúmeras imagens postadas no Youtube. Mais adiante, Lipovetsky fala da despolitização e do processo gradativo da dessindicalização, da descrença no Estado e no poder público como reflexos dessa nova espécie de capitalismo permissivo, cujo enfoque é valorizar o ambiente corporativo. Para o autor, “a contestação estudantil” desapareceu, “a contracultura” esgotou-se como parâmetro político. Dessa forma, questões filosóficas, econômicas, políticas e militares tornam-se tão interessantes quanto a banalização da intimidade alheia num reality show (Lipovetsky, op. cit., p. 48). As personagens de Amor e restos humanos tentam “dar as costas” para esse processo de alienação e caminham para uma desintegração emocional. Para elas, viver no presente, sem qualquer relação com o passado, é premissa para o futuro, significa perder o sentido da continuidade histórica, dos efeitos do mundo exterior no gueto ou no minúsculo apartamento que habitam. Esse presente é contínuo e reciclado, pois qualquer ameaça ao conforto doméstico da classe média, da liberdade de consumir é encarado como o conflito essencial da individualidade. O ato contínuo de Candy de ir à academia pode ser o avanço da cultura ao corpo ou a idealização de um corpo que apenas se encontra nas revistas e na propaganda, imagens, por sua vez, alteradas digitalmente pelo photoshop. Por sua vez, David tem, nos seus encontros sexuais com estranhos, uma válvula de escape para uma autonomia temporária do Eu. Contudo, quanto maior a busca pelo prazer, mais a incerteza e a interrogação acumulam o indivíduo de uma overdose de hedonismo que terminam por destruí-lo, pois a experiência individual tende a neutralizá-lo com o excesso de informações e possibilidades que o cercam. As obsessões da sociedade pós-moderna parecem encontrar seu esgotamento no início do século XXI, quando questões coletivas como o terrorismo, a guerra do Iraque, a falta de água no planeta e os escândalos econômicos das grandes corporações apontam para a insurgência de uma retomada política e histórica, mesmo que essa retomada possa ser solapada

117 pela massificação e a interferência da mídia. O subtema do serial killer em Amor e restos humanos é outro aspecto que precisa ser observado além das teorias psicológicas que tentam explicar um assassino em série. Aqui estamos no campo da ficção, da representação teatral, mas o serial killer é metáfora por excelência da violência urbana que persegue as personagens. Ele pode ser visto como uma representação demoníaca de uma vingança individual contra o coletivo, a valorização do ‘anti-herói’ do capitalismo tardio que transforma a morte como experiência única, filtrada pelas lentes da câmera no cinema. Os filmes sobre serial killers são explorados para intensificar esse fascínio pela cultura do terror e da vingança do homem comum; o vizinho inofensivo e insignificante ao lado pode ser um assassino em série, inalcançável no seu isolamento. É como se o homem comum se cansasse da mediocridade à qual é condenado por não se enquadrar nos padrões vigentes de beleza e sucesso, ao buscar uma tentativa de significado na morte dolorosa e lenta das suas vítimas, compartilhando isso com a plateia, atraída pela repugnância da violência, e aceita como representação de um desejo irrefreável pelo sofrimento alheio. É certo que a imagem mais famosa do serial killer no cinema se deve ao filme O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme, quando Hannibal Lecter, um psiquiatra renomado, transforma a persona do serial killer em algo atraente apesar das atrocidades cometidas pela personagem. Essa relativização do mal – transformado em algo atraente - é muito frequente no gênero policial, quando a plateia tende a criar um vínculo de repulsa e atração diante das imagens mostradas pelo cinema a ponto dos filmes sobre serial killers terem se transformado em subgênero no cinema após o sucesso de bilheteria de O Silêncio dos Inocentes. O desdobramento dessa cultura resulta em Dexter, um seriado americano sobre um serial killer que mata serial killers, tornando o culto à morte uma espécie de redundância e eco da violência internalizada com a qual convivemos.

118 Em Amor e restos humanos, a identidade do assassino é revelada, quando o espectador descobre que Bernie é justamente o oposto que se espera de um serial killer: vive um casamento estável, sendo funcionário público. Bernie trabalha numa empresa estatal, casado e acomodado, em contraponto com David, o artista que se recusa a fazer TV para trabalhar como garçom em festas. É curioso observar que, embora mais distante da marginalidade, do gueto gay no qual David busca consolo e conforto, Bernie é a representação da mediocridade e do vazio do homem comum que se vinga das mulheres que não consegue manter e conquistar. Em oposição a essa imagem, existe o sentimento de David por Bernie que enxerga no amigo uma espécie de idealização do amor não consumado, dado o seu niilismo e incapacidade de acreditar que os homossexuais podem estabelecer qualquer vínculo afetivo. O serial killer de Amor e restos humanos é a imagem preconizada do individualismo que tortura e escarnece das suas vítimas publicamente ao transformar a morte em espetáculo. Quanto à AIDS, ela é utilizada também como metáfora para o despertar de uma consciência coletiva, quando as personagens se deparam com o seu avanço assim como o do serial killer. Para Sontag, “a metáfora dá forma à visão de uma doença particularmente temida como um ‘outro’ alienígena, tal como o inimigo é encarado nas guerras modernas; e a transformação da doença em inimigo leva inevitavelmente à atribuição de culpa ao paciente” (SONTAG, 1989, p. 16). De fato, a AIDS, como “praga gay”, foi interpretada erroneamente como uma punição pela liberação sexual dos anos sessenta e setenta, quando a promiscuidade atribuída aos homossexuais teria espalhado a doença. Para Sontag, o termo AIDS “requer a presença de outras doenças, as chamadas infecções e malignidades oportunistas”. Não se trata, portanto, de uma doença única, embora tenha sido interpretada como uma invasão e sua transmissão como a disseminação, a “poluição” dentre as relações interpessoais (SONTAG, op. cit., p. 21–22), quando a vulnerabilidade torna-se fator preponderante da desestabilidade emocional e física do indivíduo que, ao ser exposto pela doença, torna-se um corpo estranho no coletivo.

119 Em Amor e restos humanos, a violência e a doença parecem ser dois signos constantes que ora são traduzidos como alertas, ora surgem como imagens para descrever a descontinuidade da experiência humana e sua finitude. A performance é o elemento que une esses dois signos que transitam entre o espetáculo da dor e da angústia ou as solidões assistidas por um público ávido por experiências sensoriais tal como a liquidez sugerida por Zygmunt Bauman (2004) nas relações afetivas da pós-modernidade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido – Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. FRASER, Brad. Unidentified Human Remains and the True Nature of Love. Ed- munton-Canada: Newest Press, 1996.

LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: Ensaio sobre o individualismo contemporâ- neo. Trad. Miguel Serras e Ana Luísa Faria. Portugal: Lisboa, 2002.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. SONTAG, Susan Aids e suas Metáforas Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. Trad.: Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

WILLIAMS, Raymond. Drama in Performance. Victoria: Penguin Books, 2000.

Notas

1 Doutor em Estudos Linguísticos e Literários em Língua Inglesa pela Universidade de São Paulo. Professor efetivo na Universidade Federal do Amazonas. É escritor, autor dos romances O Sexo do Pêssego (2006), Lêda e o Cisne (2007), Confissão (2008) e da coletânea de contos Campos Tristes (2010). 2 Children of the Damned (1964), filme de terror sobre crianças idênticas que dominam uma comunidade ao cometer atos de violência contra seus pais.

120 O TESTEMUNHO NA ERA BIOPOLÍTICA REFLEXÕES SOBRE A EXCLUSÃO, A VIOLÊNCIA E A VIDA NUA

Márcio Seligmann-Silva (UNICAMP) 1

A literatura durante muito tempo foi considerada, de um ponto de vista humanista, como um dos principais meios de formação de um indivíduo voltado para a convivência em uma sociedade calcada na ética e em ideais democráticos. A literatura seria, assim, parte do estudo e estaria do lado da razão na luta contra a obscuridade, o irracionalismo e a força bruta. As Letras também seriam parte essencial na construção e defesa do espírito, em oposição ao sensualismo bruto e às necessidades corporais. Essa visão da literatura como algo antes de mais nada edificante, no entanto, está longe de ser a ótica única sobre o tema. Isso se dá porque a própria noção de literatura é relativamente recente. Ela é uma criação do Iluminismo tardio e sobretudo do Romantismo. O interessante é observar como no mesmo momento em que se delineou essa visão edificante e educativa da literatura, muitas obras da época apontavam justamente para uma superação dessa visão humanista que reduz a literatura a um meio “ortopédico”. Trata-se aqui da famosa dialética entre o conhecimento, ou seja, o conceito, e, por outro lado, o mundo dos fenômenos: o conceito sempre chega “tarde demais”, na despedida do real. Quando se estabelece a moderna noção de literatura como meio de formação do indivíduo e também, não esqueçamos, como importante meio de formação e construção da nação, no início do século XIX, obras literárias cada vez mais já passavam a explorar justamente o elemento que nega a possibilidade de se estabelecer um conceito monolítico de indivíduo e, por tabela, de nação. Desde então, as obras literárias passaram mais e mais a explorar a carne sobre a qual as letras e o próprio espírito se constituem. Esta literatura carnal, que busca expressar o corpo e nega a visão racionalizante e espiritualista das letras, é contemporânea à tomada de consciência do indivíduo moderno como um sujeito que existe não mais a

121 partir de uma série de certezas e locais, culturais e geográficos, inabaláveis que garantiam a sua autoimagem, como ocorria no indivíduo pré-moderno. Esse indivíduo moderno justamente se vê como a própria negação da individualidade: ele é cindido, vive no espaço entre os lugares. Ele tem que aprender a se localizar no mundo, a construir para si uma moradia para abrigar seu frágil Eu. A literatura para esse sujeito moderno é um importante meio de explorar o mundo, de sair de si para penetrar em si, na mesma medida em que constrói esse frágil “si mesmo”. A literatura permite essas expedições ao desconhecido, sobretudo aos dois grandes desconhecidos, o mundo, ou a esfera pública, e o Eu e sua esfera privada. Essas viagens literárias, de modo aparentemente paradoxal, constroem ao mesmo tempo o chão sobre o qual navegam. Nelas, o imaginário e o simbólico se unem para criar fragmentos de realidade que nos abrigam e eventualmente promovem um bem-estar para além do contínuo mal-estar no mundo. Essa visão da literatura a encara como um dispositivo de desenhar e explorar ao mesmo tempo o mundo e o Eu. Não por acaso, esse dispositivo foi estabelecido após uma profunda modificação do que se entendia pelo mundo das belas-letras na época em que as sociedades modernas adentraram um novo modo de vida social e política, no final do século XVIII. O novo sujeito que nasceu então, no ocaso da visão medieval e pré-moderna do homem, da sociedade e da política, sofria de uma terrível vertigem, derivada da sensação de que a história havia, de repente, arrancado o chão sob os seus pés. Ele sofre de uma profunda consciência da relatividade dos valores e daquilo que até então eram consideradas verdades inabaláveis. Esse sujeito fraturado passa a ver na literatura (e nas artes de um modo geral) um importante espaço para experimentar e delinear seus limites e sua identidade. A literatura abandona o registro clásico do prodesse et delectare (ser útil e divertir) para se tornar uma técnica, ou seja, um instrumento e uma extensão do sujeito, na sua luta para construir um espaço no mundo. O que me importa neste texto é pensar em que medida podemos aprender a ler esse novo espaço literário, na medida em que atua como uma espécie de fronteira móvel entre a esfera pública e a privada (ambas

122 profundamente abaladas nesta época), como um arquivo de inscrições desse processo de construção do indivíduo moderno. Aqui já podemos vislumbrar o que significa isso que tenho denominado de teor testemunhal da literatura (e de todo documento de cultura). A possibilidade mesma de olhar o campo literário como um arquivo de inscrições só pôde se configurar depois que o indivíduo abandonou a moradia na qual as certezas ontológicas lhe garantiam um sentimento de pertença ao mundo. Até então, a literatura e as artes eram vistas como momentos plenamente destacáveis e isoláveis da vida cotidiana. Eram produtos de certas mentes privilegiadas e do engenho de grandes artistas. A partir do Romantismo, a literatura e as artes passam a ser vistas como uma parte ao mesmo tempo essencial da cultura e desse novo homem, assim como uma excrescência, tendo em vista a paulatina onipresença do modo de pensar economicista e, portanto, centrado no utilitarismo. Este estatuto ambíguo das artes é análogo à própria autoimagem desse novo homem prometeico e fáustico, que quer competir com o Deus, mas ao mesmo tempo se sente desabrigado e frágil, reduzido à imanência de seu corpo. Com Hannah Arendt, podemos ver esse momento, o final do século XVIII, como coincidindo com o triunfo da necessidade e da política como uma técnica de vender (mais do que gerar) a utópica felicidade (ARENDT, 1988, 2008). A política se resume cada vez mais àquilo que antes era parte apenas da pequena esfera doméstica e privada: a manutenção da vida com seu eterno ciclo de produzir e consumir (ARENDT, 2008, p. 144). O parâmetro para se julgar a ação política segue cada vez mais uma lógica da manutenção e reprodução da vida, trata-se de uma bio-lógica, ou segundo Agamben, de uma lógica da zoe, a vida desprovida de organização, que passou a dominar a ação política. Arendt, falando do processo de automação, afirma que “finalmente, só o esforço de consumir restará das ‘fadigas e penas’ inerentes ao ciclo biológico à cuja força motriz está ligada a vida humana” (2008, p. 144). Ela vê um paralelo entre o ritmo das máquinas e o ritmo natural da vida. Uma sociedade calcada nesse movimento vital seria puro império da necessidade e negação do humano. Como ela recorda, lembrando da antiguidade clássica e

123 sobretudo da Grécia antiga, “tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano” (2008, p. 95). Autores como Arendt, Adorno, Foucault e Agamben concordam em afirmar que nossa sociedade pós Revolução Francesa cada vez mais é uma sociedade voltada para este inumano.2 Mas justamente o grande evento da modernidade é o fim dessa ideia de humano e de humanidade que Arendt, de modo corajoso, para alguns, e conservador, para outros, ainda tentou defender e resgatar. Desde o Romantismo, a literatura e as artes (como todo o chamado campo do estético) sofreram uma profunda ressignificação. O que quero enfatizar é que essa mudança de paradigma foi paralela a essa entronização do processo vital na política. As artes são um momento fundamental nesse contexto, na medida em que procuram justamente inscrever esse inumano, a vida animal, a mera vida. A literatura e as artes se revoltaram contra o racionalismo e o intelectualismo humanistas e iluministas e revelam o indivíduo como um corpo que sofre (SELIGMANN-SILVA, 2005). É essa mesma literatura que desenha e aparelha o homem moderno com um inconsciente. Todo o campo estético, portanto, tem um papel fundamental na construção da era biopolítica. Se essa modernidade é caracterizada por uma hipertrofia da esfera privada, é porque esse indivíduo necessita o tempo todo de se autoafirmar em um mundo onde o público já não lhe garante um solo seguro. O animal laborans, para falarmos com Arendt, habita a esfera privada e desconhece a pública. Ele é o ator da cultura de massas e do espetáculo do pequeno Eu, ou, como Arendt escreve, das “pequenas coisas”, do petit bonheur (2008, p. 61). Não podemos esquecer que a literatura desde o romantismo tem na confissão e no testemunho dois protofenômenos fundamentais. Rousseau, com suas Confissões (ARENDT, 2008, p. 49), e o testemunho (religioso e jurídico) alimentaram generosamente o que se tem escrito em literatura desde o Romantismo. O espetáculo do Eu é em boa parte um ersatz do eu pré-moderno. Ele é tentativa constante de dar forma ao informe, ou seja, à identidade desse ser fraturado moderno. Esse ser é um nômade que vagueia em um limbo entre o inferno da ausência de

124 identidade (de linguagem e de simbolização, que pode o levar à loucura) e a promessa de felicidade, cuja realização se torna seu objetivo principal na vida. A intimidade é a esfera que o indivíduo moderno cria como consolo e compensação do desaparecimento da esfera pública. Mas essa intimidade está povoada por forças que escapam de seu controle. As artes são momentos de autorreflexão sobre este novo estado do ser humano. Nelas, essas forças se metamorfoseiam em fantasmas, monstros, seres bifrontes, mortos-vivos, duplos idênticos e outras entidades estranhas que representam aquilo que Freud batizou com o termo Unheimlich. Freud, que bebeu muito nas fontes do Romantismo e encontrou em Schelling a melhor definição de Unheimlich, foi quem primeiro compreendeu esse novo estado de coisas. Ele reescreveu a história da cultura do ponto de vista desse homem romântico dilacerado. Para esse homem, as forças que antes povoavam os mitos e assombravam as tragédias, invadiram o seu Eu e precisam ser exorcizadas. É essencial aqui lembrar que Hannah Arendt, no seu estudo sobre a condição humana, reserva longas passagens para tratar do labor e do trabalho. Ela vê a sociedade moderna como sendo correspondente ao triunfo do labor como forma de perpetuação de uma vida inumana, sem a preocupação com a durabilidade e com a obsessão pela longevidade. O mundo ideal de Aristóteles – e de Arendt – é o de uma vida acima e para além do labor. A vida pública autêntica só pode existir após a resolução de suas necessidades, mas aquele que fica apenas no universo dessas necessidades é como um escravo e está aquém de um conceito clássico de humanidade. O escravo desconhece a liberdade e portanto, a vida política. O terrível nessa visão de Arendt, é que a sociedade automatizada, que estaria agora cada vez mais livre para se dedicar à esfera pública, ao invés disso, como que rasteja na esfera privada do consumismo. Ao mesmo tempo, a política estaria se resumindo à administração, à burocracia e ao governo de ninguém. Nesse ponto Agamben discorda de Arendt ao reintroduzir, apesar de Foucault, a ideia de poder soberano no quadro da teoria política atual. Mas Arendt, por sua vez, recorda que, na Antiguidade, as cidades-estado gregas, com sua esfera

125 política encenada por poucos e centrada na ação e no discurso, se diferenciava claramente da cultura política da civilização persa, marcada pelo despotismo e pelo automatismo das massas (2008, p. 53).

O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos Impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era freqüentemente comparado à organização doméstica. (ARENDT, 2008, p. 36)

A política, que se dá via ação (praxis) e discurso (lexis), opõe-se à violência, que é muda e não pode ter grandeza (ARENDT, 2008, p. 35). Juntando a visão arendtiana da história da política que se reduz ao pensamento economicista, estatístico e se volta para a reprodução da vida (2008, p. 52) com a ideia de um poder soberano violento que se reproduz em meio ao vazio da esfera pública, podemos facilmente reconhecer um cenário que nos é familiar de muitas obras de ficção científica. Nessas histórias, muitas vezes, ou multidões realizam trabalhos mecânicos, como no filme Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou robôs o fazem, como em Eu robô, de Alex Proias, (2004), baseado no livro de Isaac Asimov, e em Surrogates (Substitutos, 2009), de Jonathan Mostow. Em ambos os casos os humanos estão desprovidos de toda possibilidade de ação e de intervenção em uma esfera pública, que simplesmente ou não existe, ou foi reduzida ao espetáculo da farsa. Esses homens podem ser vistos como o “homem socializado” que Arendt vislumbra na visão de mundo de Marx (2008, p. 52), sendo que, para ela, vale lembrar, também a moderna ideia de sociedade e de social é um fruto da hipertrofia da esfera privada e do modo de pensar biológico. A sociedade de massas não tem

126 lugar para a ação, mas apenas para o controle dos comportamentos (ARENDT, 2008, p. 50). Seus membros são autômatos e não humanos. Nessa sociedade também, onde a política é administração da vida, não existe o que Walter Benjamin chamou de tradição e Arendt de busca de permanência por meio da vita activa do cidadão (ARENDT, 2008, p. 29). Aos membros da massa restou apenas o anseio pelo consumo e pela sua longevidade. Eles estão reduzidos a uma igualdade que também os descarta de toda vida política, que só existe no confronto das diferenças (ARENDT, 2008, p. 16). Em suma, a nossa sociedade das grifes e etiquetas é o próprio cadáver da política. Recordo aqui o gênero ficção científica, que tem suas origens em obras como Frankenstein or The Modern Prometheus, de Mary Shelley, de 1817, nos contos de E.T.A. Hoffman, com suas pessoas autômatos que também evidenciavam uma crise dos limites do humano, e em Dr. Jeckyl and Mr. Hyde, de 1886, de Stevenson. A ficção científica (que tem muitos vasos comunicantes com o gênero terror) tem como uma de suas principais características a reflexão sobre o lado distópico da sociedade de massas. Ela encena o fracasso do pensamento utópico, com sua radical defesa do todo em detrimento das partes, com sua hipervalorização das ideias e ideais, em detrimento dos fatos. A ficção-científica apresenta o indivíduo desubjetivado, massacrado pela técnica e por um governo que controla a vida e, muitas vezes, a própria reprodução e a morte. Nesse gênero, vemos também a aparição dos robôs e uma reflexão sobre o humano. Uma das cenas mais famosas da história da ficção científica e do cinema é parte do filme genial de Stanley Kubrik, 2001: Uma odisséia no espaço. Essa cena a que me refiro consiste na transformação de um osso lançado por um hominídeo – antes utilizado como alavanca e arma para conquistar outra tribo de hominídeos – osso que, ao rodar no ar, de repente se transforma em uma futurística estação espacial. A mensagem aqui é clara, entre a invenção da alavanca-arma e a conquista do espaço era só uma questão de tempo. A técnica é teleológica. Dentro de nossa visão judaico- cristã, ela é também um dos definidores de nosso estar no mundo desde a

127 “Queda”. A técnica visa reduzir as penas da labuta. Ela traz invenções que nos libertam das tarefas mais duras. Neste sentido, o Golem da tradição judaica seria um perfeito antecessor do sonho do robô que faz as tarefas domésticas, como vemos em desenhos animados e em filmes (lembremos do “clássico”Os Jetsons (1962) e, mais recentemente, do filme com Robie Williams,Bicentennial man (1999), baseado em um romance de Isaac Asimov). A ideia de trabalho manual como trabalho aviltante, humilhante, não é superada na modernidade. Hoje temos todo um debate sobre os imigrantes, no chamado primeiro mundo. Essas pessoas, muitas vezes, são tratadas como “cidadãos de segunda categoria” ou mesmo como pessoas sem direito à cidadania que radicalizam a situação do homem moderno e seu estar no limbo. São eles os responsáveis por tais tarefas mais duras e que eram reservadas aos escravos na antiguidade. Esse importante tema biopolítico pode ser articulado à figura do Golem. Ele representaria uma espécie de criado ou escravo “perfeito” já que não seria uma pessoa, não teria uma alma humana. Lembremos ainda que o debate sobre a existência ou não de alma nas populações não europeias foi um dos Leitmotiv da era escravocrata. Mas esta idéia moderna do Golem fâmulo ou robô, no entanto, é evidentemente fruto das mentes modernas e não fazia parte da tradição mística judaica. Foi Karel Capek (1890-1938), em sua peça RUR (que significa a abreviação do nome de uma firma: Reson’s Universal Robots), de 1920, quem introduziu o termo “robô” na cultura moderna. A palavra vem do termo tcheco robota utilizado para expressar o trabalho servil, duro, enfim, o labor. Capek, inspirado na tradição do Golem de Praga, também escreve a sua ficção científica a partir da experiência da Primeira Guerra Mundial que revelou a força destrutiva da técnica. Nesta obra, o robô-Golem é uma metonímia da técnica e, portanto, uma espécie de antecessor da alavanca-arma do filme de Kubrik. Aí, os robôs se revoltam como bons descendentes de Adão, Prometeu e Mefisto. É digno de nota o modo como o diretor da fábrica RUR, o senhor Harry Domin, se refere aos operários robôs:

128 fabricar operários artificiais é a mesma coisa que fabricar motores a diesel. A produção deve ser simplificada ao máximo e o produto o melhor possível. [...] o melhor trabalhador possível [...] [é] aquele que custa mais barato. Aquele que exige menos. O jovem Reson [...] ao simplificar o homem, criou o robô. [...] os robôs não são homens. Do ponto de vista mecânico, eles são mais perfeitos do que nós, eles possuem uma impressionante inteligência racional, mas eles não possuem alma. Você vê [...], o produto Reson é tecnicamente superior ao produto da natureza. (CAPEK, 1997, p. 24)

Na peça, Helene Glory é uma ativista da Liga da Humanidade (CAPEK, 1997, p. 32) – lembremos que em 1918 foi criada a Liga das Nações – que luta para dar consciência aos robôs. Na história ela é apresentada a Sylla, uma robô, e não acredita que não se trata de uma pessoa. Esta passagem se torna depois tópica nas ficções científicas, e reaparece, por exemplo, em Blade Runner com relação à replicante Rachel. A ideia é que o ser humano se tornou um criador tão perfeito quanto Deus. Suas cópias são agora originais. A técnica se emancipa, assim como o homem, criação de Deus, se revoltou e se emancipou dele, até o ponto de matá-lo. Mas Domin, evidentemente, como seu nome indica, quer manter os robôs sob controle. Para provar a Helene Glory que Sylla é um robô ele ordena que ela seja dissecada. Helene se escandaliza diante desta proposta de “matar” Sylla, a que Domin responde que “Não matamos máquinas” (CAPEK, 1997, p. 27). Ora, não se mata máquinas justamente porque não consideramos que elas tenham alma ou vida. Elas não são pessoas: “Um robô é o que existe de mais oposto ao homem” (CAPEK, 1997, p. 34). O Golem também, na tradição judaica, não pode ser assassinado, porque ele não é uma pessoa, mas tem um estatuto de coisa. Robôs e Golens são avatares daquilo que os romanos antigos, como recorda Agamben, denominaram de homo sacer, seres simplesmente matáveis mas sem que sua destruição fosse considerada um assassinato. O engenheiro da RUR, Fabry

129 (um homo faber, criador de animal laborans...), defende que os humanos são máquinas imperfeitas que devem ser substituídas. Para ele, “a natureza não tinha nenhuma noção de eficiência. Do ponto de vista da técnica, a infância é, evidentemente, tempo perdido. Em suma, inútil. Um desperdício inaceitável de tempo” (CAPEK, 1997, 34). Helene Glory, que quer libertar os robôs e tratá- los “como se eles fossem homens” (CAPEK, 1997, 35), atua como uma perfeita defensora dos direitos dos trabalhadores. Ela desenvolveu compaixão por aquilo que deveria estar excluído do círculo compassivo. Em um gesto irônico com relação a essa biopolítica da vida calcada no código de proteção da vida, Capek faz os empresários da RUR declararem seu interesse em entrar para a Liga da Humanidade, pois, afinal, também eles têm interesse e defender as máquinas. Ele ironiza também a ideia de uma sociedade automatizada que poderá suprir plenamente as necessidades de todos – e deixar todos ao mesmo tempo desempregados:

cada um vai tomar aquilo que necessita. Não haverá mais miséria. Sem dúvida que eles não terão mais tra- balho, mas o trabalho não existirá mais. Tudo será feito por máquinas viventes. O homem poderá se consagrar ao que ama. Ele viverá apenas para se aperfeiçoar. (CA- PEK, 1997, p. 38)

Vemos aqui a situação explorada por Arendt da sociedade automatizada pós-trabalho, que afundará na futilidade. Em Capek trata-se também da reversão da ‘Queda”: o homem não precisa mais “quebrar-se por um pedaço de pão”, afirma Domin. Ao que o arquiteto Alquist contesta, recordando a “virtude do trabalho” e da servidão e humildade – conceitos, como mostrou Arendt, caros à Modernidade. Mas Domin insiste em sua visão paradisíaca da sociedade robotizada:

A partir de agora Adão não comerá mais seu pão às custas do suor da sua face, ele não conhecerá nem a

130 sede, nem a fome, nem a fadiga, nem a humilhação, ele voltará ao paraíso onde a mão do Senhor o alimentará. Ele será livre e soberano. [...] Ele será, enfim, o mestre da criação. (CAPEK, 1997, p. 38)

Domin defende uma sociedade totalmente emancipada da necessidade. É como se a espécie descendente de Adão se livrasse de sua origem baixa, da terra (adama) que nos constituiu originalmente. Domin representa o triunfo do homo faber. Como Arendt notou:

só o homo faber se porta como amo e senhor de toda terra. Como a sua produtividade era vista à imagem de um Deus Criador [...], a produtividade humana, por de- finição, resultaria fatalmente numa revolta prometéica, pois só pode construir um mundo humano após des- truir parte da natureza criada por Deus. (2008, p. 152)

Mas, por outro lado, o sonho prometeico de Domin é apenas uma parte da verdade, já que esse paraíso tecnológico tem seus pés de barro. O Dr. Hallmeier, diretor do Instituto de Psicopedagogia de Robôs, lembra à Glory que os robôs não sentem prazer, não têm gostos, não sorriem, em suma, não possuem vontade, paixão, história e não sentem amor ou ódio. Mas o erro que de certo modo desencadeia a autoconsciência dos robôs e os transforma em seres com vontade e, portanto, passíveis de se revoltarem, foi a idéia do Dr. Gall, diretor do departamento de pesquisas fisiológicas da RUR, de introduzir nos robôs a capacidade de sentir dor e de sofrer. Seu objetivo era absolutamente econômico: “prevenir contra a degradação do material” (CAPEK, 1997, p. 36). A partir da capacidade de sentir dor, os robôs desenvolvem outros sentimentos e acabam se revoltando contra os homens, numa perfeita revolução aniquiladora. O monstro criado por Frankenstein, assim como o computador HAL, do mencionado filme de Kubrik, são figuras clássicas dentro desta tradição de revolta da técnica que Capek encena aqui. A alavanca se revela como arma que atinge seu próprio criador, ou como Capek formula na boca de um de

131 seus personagens: “Se transformamos pedras em homens, logo seremos apedrejados” (CAPEK, 1997, p. 77). Domin lamenta o fracasso de seu sonho de

liberar a humanidade da escravidão. Do trabalho de- gradante e duro, da corvéia suja que matava. [...] Eu quis que o homem se tornasse o mestre do universo e que ele não vivesse apenas para ganhar o pão. Eu quis que ele fosse outra coisa além de um simples ser em- brutecido diante de uma máquina que sequer pertence a ele. Oh, eu detesto a humilhação e a dor, eu detesto a miséria. (CAPEK, 1997, p. 73)

Aqui Capek apresenta a humanidade como reduzida à miséria e ao esforço do trabalho alienado, uma visão típica de sua época. Mas ele mostra também de modo irônico como a sociedade automatizada e livre do trabalho apenas aprofundará a miséria e não significará a concretização da promessa do retorno ao paraíso pelo meio da tecnologia. Ao final do drama, dois robôs, Helene e Primus, mostram paixão e compaixão um pelo outro. Alquist conclui que eles poderão se reproduzir. A peça se encerra com Alquist relendo o capítulo da criação no Gênese. Depois ele afirma que a vida renasce, “sua raiz se lançará no deserto. [...] A vida não acabará. Não acabará. Não acabará” (CAPEK, 1997, p. 105). Essas são as últimas palavras deste texto paradigmático fundamental. Trata-se da sobrevivência, da continuação da vida que é apresentada de modo enfático, nessa grande obra de Capek. Ele vê uma nova espécie que substituirá a humana: como os homens vieram após os macacos (e estes após os homens, na versão de O planeta dos macacos de 1968, dirigido por Franklin James Schaffner). Os robôs, quando se transformaram em seres autoconscientes, perguntam a Alquist qual o segredo da vida dos robôs – assim como, Roy Batty, o líder dos replicantes o fará em Blade Runner. Alquist diz que a receita da construção dos robôs se perdeu, mas a resposta que a peça dá é a própria capacidade de sentir emoções. Esse fim, de resto, pode ter inspirado o final do primeiro filme da sérieJurassic Park, de Spielberg, quando os dinossauros, que haviam sido produzidos por engenharia genética com

132 o cuidado de serem apenas masculinos, para não se reproduzirem de modo descontrolado, começam a se transformar em hermafroditas e a se reproduzir. A vida, a mera vida, é a luta pela reprodução de si e a ficção científica é um gênero que se especializou em explorar essa força germinante e destruidora da vida na sua interface com a técnica. Ele explora a ambiguidade da tecnologia, mas também a questão primordial: quem somos nós? Um conterrâneo de Capek, Franz Kafka, como sabemos, foi talvez um dos que mais foi a fundo nessa interrogação sobre o homem moderno. Capek, Kafka e Freud, três grandes perscrutadores desse homem e três testemunhas do fim do Império Austro-Húngaro, perceberam como poucos o significado das mudanças biopolíticas de sua época. Lembro aqui de um curto mas impactante texto de Kafka. Se é evidente que Kafka não escreveu propriamente ficção científica, por outro lado, ele foi um dos autores que mais longefoi na apresentação das novas paisagens biopolíticas do século XX. Recordemos, por exemplo, o texto “Ein altes Blatt” (“Uma folha antiga”), do volume Um médico rural (publicado, aliás, em 1920). Essa curta narrativa trata de uma pequena cidade que foi invadida por “nômades do norte”. Assistimos então – como é frequente em Kafka – à operação de animalização dos homens, ou de despimento desses animais envergonhados de sua tênue roupagem humana. No texto, esses bárbaros do norte comem carne crua – assim como os seus cavalos também o fazem. Eles muitas vezes compartilham o mesmo pedaço de carne que devoram juntos. E se uma vaca viva lhes é lançada, bárbaros e cavalos a dilaceram loucamente com seus dentes afiados, de um modo que só Eurípides havia antes descrito em suas Bacas, referindo-se ao frenesi das tebanas enfeitiçadas por Dioniso. Essa narrativa kafkiana conta a história da dissolução da cidade realizada pela inoculação dessa invasão “animal” (aliás, bem dionisíaca também). Mas ela é mais do que isso. Ela apresenta o rei impotente no palácio imperial como uma metáfora da crise no poder soberano que, por sua vez, para existir, precisa domar a “vida natural” (zoe), a “vida nua”, como escreveu outro contemporâneo de Kafka, Walter Benjamin (1974).

133 Ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise da soberania e da nossa autoimagem. Essas duas crises são postas lado a lado. Ele mostra o animal em nós, como Freud e, antes dele, Darwin o fizera. Kafka mostra também um poder amorfo, teoricamente o monopolizador da violência, que tenta gerir essa vida nua que lhe escapa (à qual Penteu e Cadmo, avô de Dioniso, também sucumbiram por não saberem venerar e sacrificar aos deuses). O final da narrativa mostra a cidade sendo tragada pelos bárbaros: “O palácio imperial atraiu os nômades mas não é capaz de expulsá-los. O portão permanece fechado. [...] A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar” (KAFKA, 1994). Esse portão fechado, uma figura muito frequente nos textos de Kafka, simboliza também a lei e sua tendência a excluir o indivíduo. A lei é um muro que barra o indivíduo. Esse indivíduo está preso apenas à sua ínfima intimidade. O Estado o exclui e a cidade, ao invés de proteger, prende-o e quer controlá-lo. Town, como recorda Arendt, em inglês, originalmente, como o alemão Zaun, significa cerca. “A polis tinha originariamente a conotação de algo como ‘muro circundante’ e, ao que parece, o latim urbs exprimia também a noção de um ‘círculo’ e derivava da mesma raiz que orbis” (2008, p. 73). A cidade-muro assim como a lei é ambígua. Muro e leis protegem mas também podem servir para banir. Arendt, pensando no significado da esfera privada e na sua inserção na esfera pública, recorda também que na antiguidade grega havia uma clara relação entre o pertencimento a um lugar e a possibilidade de se ter cidadania e proteção da lei. O local da morada definia este duplo pertencimento, às esferas privada e pública. Mas o que se passava na esfera da moradia era algo privado, relativo ao campo das coisas ocultas e impenetráveis. Tratava-se do local do nascimento e da morte (2008, p. 72). A lei funcionava como um muro entre estas esferas, como um muro dentro do muro da cidade. A esfera política no mundo grego se dava entre estes muros das casas e os da cidade. A esfera privada, protegida e contida pelo muro das leis, era a contraparte da esfera

134 política e a sua garantia, assim como, escreve Arendt, a propriedade privada é protegida por cercas. De um lado, o processo “biológico vital da família”, do outro, a vida política. Esta complementaridade é essencial: de um lado, a vida política, como máximo da existência humana, do outro, a esfera privada, sem a qual se deixava de ser humano. Podemos pensar que com o esfacelamento da esfera pública esta geografia dos muros se alterou profundamente. A lei-muro volta-se para o controle, agora no coração da política, da vida nua, domínio que antes era patrimônio apenas da esfera privada. Pode-se dizer que ocorreu uma fusão entre os muros da polis e a lei-muro da esfera privada. E os muros da cidade-estado passam a funcionar como barreiras de isolamento contra o que se considera uma vida indesejada: os imigrantes, os terroristas, os portadores de epidemia etc. Estes estão barrados da esfera humana e da proteção das leis. Eles ficam de fora também, como é evidente, das cercas que protegem a propriedade privada. Se a esfera privada era a que garantia o pertencimento à humanidade, esta nova forma de esfera pública, colonizada pela privada, leva a uma revisão constante dos que pertencem a esta humanidade. Leis, muros e o próprio estatuto da humanidade vão sendo retraçados. Kafka retrata esta nova paisagem humana. Ele percebeu como estas leis e muros guardam uma força mítica, uma violência que se manifesta a céu aberto na era biopolítica. Para Kafka haveria algo como uma dialética da razão jurídica: as leis nasceram para retirar a humanidade da guerra de todos contra todos, mas ela para fazer isto teve que incorporar a violência. Kafka pensa sobre esta lei/violência do mesmo modo que reflete sobre a humanidade reduzida à ausência de propriedade: em um sentido ontológico e materialista. Como na obra de Capek, também ao ler Kafka nos perguntamos, mas afinal, o que é o ser humano? Nunca é demais recordar que Kafka escreveu dentro de um espaço amplamente aporético: sua literatura, como ele mesmo o escreveu em uma carta de 1921 a seu amigo Max Brod (falando da literatura de “jovens judeus que começaram a escrever em alemão”...), nasceu de algumas impossibilidades fundamentais: “a impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever de maneira diferente”.

135 Mas em seguida ele arrematou: “Também se pode acrescentar uma quarta impossibilidade, a impossibilidade de escrever...” (apud ALTER, 1993, p. 76). Esta escritura que nasceu da impossibilidade e da necessidade – como o testemunho de um modo geral – criou parábolas e configurações imagéticas – paradoxalmente iconoclastas – que desdobram as aporias em que Kafka viveu. Se ele se sentia como estando sobre um barco – como a sua narrativa “O foguista” se passa toda ela no mar, apenas com a imagem da terra prometida surgindo na janela ou como o menino de sua primeira história publicada, que se senta em um balanço e olha para o céu – é porque ele sabia, na própria carne, o que significa diáspora e “exílio”. Ele era membro da minoria judaica de cultura germânica que, por sua vez, era uma parte da minoria da “classe alemã” da Praga de então. Além do alemão, ele dominava o tcheco, estudou hebraico e era fascinado pelo ídiche e pelas tradições judaicas da Europa Oriental. Contemporâneo do nacionalismo tcheco que culminou, em 1918, com o fim do Império austro-húngaro, ele conviveu tanto com um recrudescimento do antissemitismo, como também com a multidão de judeus da Europa Oriental que fugia dos pogrons. Se ele oscilou entre o sionismo e o socialismo, como muitos judeus-alemães de sua geração, ele decerto não encontrou uma solução para estes dilemas na sua literatura: mas com certeza uma expressão para eles. Assim, para citar um entre muitos exemplos, sua famosa parábola da construção da Muralha da China pode ser lida (KAFKA, 2002; SCHILLEMEIT, 1986) como uma parábola da situação dos judeus em busca da sua unidade e de uma Heimat. O tom de epopeia e saga de suas descrições da construção do muro não está livre de uma profunda ironia. O trabalho é apresentado como desproporcional: sua temporalidade extrapola em muito a da medida de uma vida. O muro é construído a partir de inúmeros pontos e apenas uma precisão sobre-humana poderia garantir a sua completude. Em suma: a queda e o exílio poderiam ser revertidos, se houvesse uma garantia de que este muro – como uma segunda Torre de Babel – pudesse garantir a unidade. Mas nós sabemos que na versão que Kafka cria da construção da Torre de Babel, os intérpretes fazem parte do staff de construção desde sempre. A unidade está perdida de

136 antemão. Esse muro perfurado e impossível de ser completado, mesmo que nele trabalhe uma legião de operários, representa também o esburacamento do muro da esfera pública. Esta fusão entre o muro da polis e o muro-lei, que antes envolvia a esfera privada, é absolutamente visível nessas e em outras histórias criadas por Kafka. Questões políticas tornaram-se questões étnicas, raciais, em suma, questões biopolíticas. A grande política é definida por debates em torno do estatuto da vida e de seus limites. Mas Kafka sabe que a palavra, ainda assim, circula e abre caminho, com a marca da origem no seu peito. Esta origem é a própria queda. Ao invés do muro-lei, que exclui e diferencia via outricídio, vemos em Kafka a apresentação do Eu nômade, que escapa, é resto, excluído da lei. Outro judeu de Praga, Vilém Flusser, soube, na segunda metade do século XX, transformar este ser- nômade em um trunfo. Ele saudou na sua filosofia do exílio a Heimatlosigkeit, ou seja, a não pertença às pátrias, assim como a Bodenlosigkeit, a ausência de fundamentos transcendentais. Ele fez uma filosofia da imanência e tentou repensar a identidade a partir de sua experiência de judeu expatriado. A dura perda da origem foi transformada em uma filosofia da não origem, pós- romântica e, lamentamevelmente, ainda hoje, difícil de ser aceita na era de novos muros e fundamentalismos. O fundamentalismo é a lei do muro, contra a qual pensadores como Kafka e Flusser se opuseram. Em O Processo, a lei é transformada em uma mega-rede de juízes e advogados, cujo topo hierárquico nunca pode ser vislumbrado. K. fica “diante da lei”, vor den Gesetz, e, como na parábola do mesmo nome, acaba por morrer por ter ousado tentar penetrar a casa da lei. Kafka apresenta a singularidade que nega o universal da linguagem e nos remete “diante da lei”, “Vor dem Gesetz”, mas ao mesmo tempo exige e cobra esta mesma lei. “Vor dem Gesetz” pode ser traduzido tanto como “diante da lei” como também como “antes da lei”, fora dela, sendo que este “fora” reproduz a estrutura psicanalítica da cripta, do encriptamento/recalcamento, do banimento para o interior3. Kafka apresenta em sua obra quilo que foi banido, recalcado. O porteiro diante da lei não deixa ninguém entrar por mais que reconheça que a porta seja específica

137 para aquele que está diante dela.3 Kafka põe em cena o espaço-tempo pré- edipiano e pós-uterino: este é, nos termos de Julia Kristeva, o tempo do abjeto, ou seja, daquilo que escapa ao trabalho do significado; é o tempo do esquecido, do não-idêntico, para falarmos com Adorno. Com essa inscrição do abjetado, Kafka nos permite uma leitura crítica da história dos muros que nos constituem. Essa passagem por Kafka e, antes, pela ficção científica nos permite retornar a Hanna Arendt, que, poucos costumam lembrar, mas abriu seu ensaio sobre A condição humana ressaltando tanto a capacidade da ficção científica de prever os desdobramentos da técnica, como também lamentando a pouca respeitabilidade pública desse gênero (2008, p. 10). Ela também vê nesse gênero um importante “veículo dos sentimentos e desejos das massas” e, portanto, como uma entrada para se estudar tanto o presente como para se especular sobre o nosso porvir. Seu ensaio sobre a condição humana foi marcado pelo lançamento dos primeiros satélites (o primeiro, o Sputinik, foi lançado em 1957), que mostraram que o homem agora poderia se libertar daquilo que sempre marcou sua vida, ou seja, a Terra. Como ela escreve, esse homem também já caminhava para a sintetização da vida e criação do que ela descreveu como “seres humanos superiores”, talvez numa alusão aos terríveis experimentos eugênicos do terceiro Reich. Esses homens também ultrapassarão os 100 anos de vida, realizando o sonho de longevidade do animal laborans e dos replicantes do filme de Ridley Scott, Blade Runner. Mas essa sociedade futura, Arendt especula, poderá ser marcada também pela escravidão “não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja” (ARENDT, 2008, p. 11). Tratando do processo de automação do trabalho, ela formula que o que temos diante e nós é uma “sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior” (ARENDT, 2008, p. 13). De certo modo, encontramos tanto em Capek, em sua obra de 1920, como em muitos outros livros e filmes de ficção científica essa mesma conclusão. Proponho que nos

138 dediquemos mais a ler, seja na literatura, seja no cinema, tanto nossos desejos utópicos como também a terrível ambiguidade da tecnologia.

Referências

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ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

______. Da Revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Ática, 1988.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense 1985.

______. “Zur Kritik der Gewalt”. In: Gesammelte Schriften. Org. por R. Tiedemann und H. Schweppenhäuser. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. II: Aufsätze, Essays, Vorträge, 1974. p. 179-203.

CAPEK, Karel. R.U.R. Reson’s Universal Robots. Trad. Jan Rubes. Édition de l’Aube, 1997.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 1 A vontade de saber. 15. ed. Trad. M. T. da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

KAFKA, Franz. Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Uma polêmica. Trad. Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. Jenseits von Gut und Böse, Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift. In: Kritische Studienausgabe, org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV/ Berlin- New York: Walter de Gruyter, vol. 5, 1988. SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W.

139 Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

______. “Arte, dor e kátharsis, ou variações sobre a arte de pintar o grito”. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.

VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1994.

Notas

1 Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin (1996), Mestre em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1991). Realizou pós-doutorados pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998, CNPq e 1999, FAPESP); pelo Zentrum Für Literaturforschung Berlim (2002); e, pelo Department of German, Yale University (2005). É Professor livre-docente de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2 Cf. Arendt, 1988 e 2008; com relação a Adorno, cf. Seligmann-Silva, 2009, p. 101ss.; cf. Foucault, 1988, p. 128ss.; cf. Agamben, 2002, p. 79ss. 3 Cf. J. Derrida, “Fora. As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok”, trad. F. Landa, in: Fábio Landa, Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise. Seguido de Fora de Jacques Derrida, S. Paulo: UNESP/FAPESP, 1999, pp. 269-319 e Derrida “Préjugés. Devant la loi”, in: J.F. Lyotard e outros, La Faculté de Juger, Paris: Les Édi- tions de Minuit, 1985, pp. 87-139.

140 DO CORTIÇO À FAVELA A VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA EM PERSPECTIVA

Nivaldo Medeiros Diógenes 1

Consideremos inicialmente a nossa condição de testemunhas de um período em que as incertezas estão presentes em qualquer segmento cultural, se observado com mais cuidado. Diante desse quadro, ainda que o espaço desse texto não nos permita refletir o tema de forma plena, demonstraremos alguns aspectos importantes que, entre a ruptura e a continuidade, podem evidenciar algumas, mas não menos importantes, fissuras no tecido da crítica literária acerca do tema violência na literatura. Para que possamos discutir com mais profundidade, trazemos à baila o romance Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins, bem como três análises críticas que integram a edição comemorativa dos dez anos de lançamento do livro. Respectivamente dispostos com os trabalhos de Roberto Schwarz, Vilma Arêas e Eduardo de Assis Duarte. Vale destacar que pretendemos, também, escarafunchar alguns aspectos da biografia de Paulo Lins e a formação de seu livro, uma vez que o surgimento, tanto do autor como da obra, marcam ineditismos em nossa literatura brasileira em relação à violência como efeito de construção artística . Além disso, tentaremos aproximar comparativamente as obras Cidade de Deus e O cortiço, de Aluísio de Azevedo. Com essa última, observaremos como o aparente espaço abismal que separa os autores, mesmo superando a dimensão textual, pode ser de certa forma dirimido no que tange à visão cosmopolita de ambos artistas. Para iniciar, precisamos nos situar como analistas de uma obra pós- moderna, denominação essa que, famigeradamente, é caótica, mas não nos impede de procurarmos algumas invariantes que constituem o seu tecido artístico. A exemplo disso, citamos as duas atuais vertentes literárias brasileiras, a neodocumentalista e a experimentalista, que refratam uma

141 literatura, mormente reflexiva em relação ao social, mas não menos dinâmicas o suficiente para desautomatizar o olhar e a experiência urbana. Por outro lado, tem-se colocado em discussão pela crítica literária, com rigor, a validação de uma obra e, consequentemente, a denominação daquilo que se entenda como uma literatura com um éle maiúsculo em detrimento, é claro, de uma outra, vista como menor, ou até mesmo não sendo literatura, com éle minúsculo. Ainda vale destacar que, para essa classificação da obra, há a preocupação da crítica em determinar o vínculo do autor com o literário, ou seja, o quão a atenção do autor está voltada para a receptividade de seu trabalho como um produto a ser bem aceito pelo público e capaz de promover uma ascensão econômica em sua vida. O autor depende de quem? Quem paga o livro? Qual a relação com os patrocinadores? Aqui temos a relevante problemática que toca o aspecto mercadológico da arte – é possível conciliar o fazer artístico e a necessidade humana que se tem de conseguir um trabalho? Mike Featherstone diz algo muito importante a respeito dessa questão mercadológica que cerca a cultura e marca uma espécie de violência bastante peculiar, como pode ser visto no excerto que se segue:

O problema dos intelectuais, em situações de merca- do, é que eles precisam alcançar e conservar aquele grau de fechamento e de controle que permite aos bens culturais continuar a ser mercadorias encravadas. Com efeito, conforme assinalaram muitos comentaris- tas, este é o paradoxo dos intelectuais e artistas: sua dependência do mercado e, no entanto, sua repulsa e seu desejo de independência em relação a ele. (FEA- THERSTONE, 1997, p. 43-44)

Diante desse quadro, passemos, agora, a levantar dados a respeito da vida e da obra de Paulo Lins, para que possamos entender melhor como se deu a recepção desse romance e o motivo pelo qual o autor, ainda, não tenha garantido o seu espaço no campo literário – Paulo Lins seria vítima de um preconceito? –, condição essa questionável e que exploraremos um pouco

142 mais aqui. Por outro lado, com a fundamentação nas palavras de René Wellek e Austin Warren, vale destacar que não procuraremos na vida do autor uma resposta para a sua produção artística, pois “até quando entre a obra de arte e a vida de um autor exista uma estreita relação, tal não pode ser interpretado como querendo dizer que a obra de arte é uma mera cópia da vida” (WELLEK; WARREN, 1972, p. 91). Mas, sim, entender melhor como a rotina de um sujeito aparentemente fora do universo intelectual dos grandes centros é eficaz para adensar a sua arte, posto que “a obra do poeta pode ser uma máscara, uma convencionalização dramática, mas é frequentemente uma convencionalização de suas experiências” (idem, 1972, p. 93). Nesse sentido, temos a possibilidade de vislumbrar na obra Cidade de Deus um todo, mesmo que complexo, muito rico e artisticamente insólito para uma mera denominação de autor contador de histórias. Paulo Lins nasceu no Rio de Janeiro em 11 de junho de 1958. Iniciou sua carreira como poeta em 1980, em um grupo denominado Cooperativa de Poetas. Desse contato e formação artística, foi publicado seu primeiro livro de poesias pela UFRJ: Sobre o sol, em 1986. Residente na comunidade Cidade de Deus, setor periférico da cidade do Rio de Janeiro, atuou como professor e pesquisador no departamento de antropologia da UFRJ. No ano de 1995, ganhou a Bolsa Vitae de Literatura. Enquanto morador de comunidade, presenciou o nascimento e o sucesso do tráfico de drogas emCidade de Deus – conjunto habitacional em que vítimas de uma enchente no Centro do Rio foram deslocadas na década de 60. Segundo Paulo Lins, ele não teve contato direto com o tráfico, mas, de sua janela, observava tudo o que acontecia. Após a apresentação do livro, foi reconhecido como um dos principais autores da literatura brasileira contemporânea, passando a ser uma das figuras mais procuradas para fazer roteiros para o cinema e TV, haja vista a sua participação na transposição de Cidade de Deus para o cinema, e, recentemente, o filme foi eleito o sexto melhor de todos os tempos, no gênero ação, pelo jornal britânico The guardian. Paulo Lins também assina os roteiros dos filmes Orfeu (1999), Quase dois irmãos (2004), Maré – nossa história de amor (2007), Era

143 uma vez – atua na formatação do roteiro – (2008), Faroeste Caboclo (2010) e os episódios da série Cidade dos homens, na rede Globo. Agora, passemos a buscar, no que chamamos de terceira margem da crítica, as informações relevantes para entendermos a obra como um todo bastante peculiar, altamente provocadora, mas não menos interessante e, quiçá, por esse motivo incorre a sua possível incompreensão. Enquanto pesquisador do departamento de antropologia da UFRJ, Paulo Lins estava sob a orientação da professora Alba Zaluar. Assim, a sua ocupação era a de realizar inúmeras entrevistas com os moradores da comunidade, focando a questão da violência urbana. Então, a convite da professora, sabedora que Paulo escrevia poemas, surgiu a possibilidade do mesmo fazer um sobre o assunto. Com esse material em mãos, Alba Zaluar levou-o para que Roberto Schwarz examinasse. Dada essa passagem, Paulo Lins obteve a recomendação para que escrevesse, em vez de poemas, um romance. A partir desse fato e com essa ideia em mente, sendo praticamente inegável a presença de Roberto Schwarz e Alba Zaluar, Paulo Lins é contemplado com a Bolsa Vitae de Literatura, que ainda assim não propiciou condições para que o autor findasse a obra, uma vez que a mesma, segundo o próprio Lins, em entrevista a Heloísa Buarque de Holanda, levou mais de vinte anos para ser escrita. E só foi concluída depois de um encontro com o seu psiquiatra, durante a consulta após uma crise existencial, que o incentivou para que o livro fosse terminado. Com a obra colocada no mercado, vem o reconhecimento de parte da crítica, principalmente de Roberto Schwarz, que nos diz ser “uma obra com ação cinematográfica e lirismo da poesia” (SCHWARZ, 2007, p. 563-72). Vale destacar também que na afirmação de uma pessoa tão reconhecida academicamente, oblitera-se uma participação ativa na produção e indicação do livro à editora Companhia das Letras. Faz-se menção a uma curiosa peculiaridade desse contato entre crítico e autor, em que temos nas próprias palavras de Paulo Lins, em entrevista concedida a Heloísa Buarque de

144 Holanda, dizendo que Roberto Schwarz pediu que fosse colocado sentimento no romance. É importante ressaltar, também, que Roberto Schwarz teve participação considerável na transposição do livro para o filme, uma vez que foi com a presença do sociólogo que se deu o contato com o diretor Fernando Meirelles e o roteirista Bráulio Mantovani. Em relação a esse contato intrínseco entre artista e crítico, observemos as palavras de Vilma Arêas, no fragmento que segue:

Tamanho interesse – afinal, não passava de um livro de estreia – opôs juízos equilibrados, alguns mesmo surpreendidos, o que conta ponto para o livro, a outros francamente indispostos: a poeira levantada teria sido obra não do próprio livro, mas da influência indiscutível de Roberto Schwarz no campo intelectual. (A tempo: a indicação editorial foi também de Alba Zaluar.) Defeitos, nem sempre inexistentes, foram pescados aqui e ali como prova de que Paulo Lins não é do ramo e frisou-se de maneira reveladora, segundo penso, o apelido do autor de “Paulo Maluco”. A mesa-redonda do Boletim publicado pela Universidade de Brasília e que colheu artigos eloquentes no calor da hora, contra e a favor, num louvável esforço de isenção à semelhança de O Estado de S. Paulo, acabou fechando a folha de rosto com uma afirmativa solta do autor (“Não sou intelectual. Sou escritor.”) a sublinhar com certeza sua compreensão mediana e equivocada do ofício. (ARÊAS, 2007, p. 574)

É importante dizer, nesse instante e com base no excerto supracitado, que não entendemos tais acontecimentos como uma explicação que possa macular o valor da obra, pois, em verdade, Roberto Schwarz não arriscaria colocar o seu nome e o “carimbo” em uma produção artística que não tivesse certeza do alto valor de sua forma e conteúdo. Diante desse panorama, surge a outra perspectiva de crítica por nós sugerida. Ao buscarmos tais dados que extrapolam os limites do texto, flagrantemente, no caso de Paulo Lins,

145 a pesquisa etnográfica surge como material riquíssimo e o literário pode ser encontrado, mormente, na transposição de conteúdos para uma forma híbrida, posto que o romance tem traços de diversas mídias, desde a televisão, o jornal, o gravador, até o poema. Assim, é nesse espaço que se concentram os pontos de vista de um autor incipiente, negro e ex-morador de favela, mas plenamente apto a renovar as significações já consolidadas pelo tempo, trazendo a violência ao palco. Continuando com as palavras da teórica Vilma Arêas, ainda vale destacar a relevância artística de Cidade de Deus, ao anúncio do romance como algo que “funciona como uma dessas câmeras invisíveis solicitadas pelo jornalista, excluindo-se desta vez o espetacular televisivo” (idem, 2007, p. 574). No estudo de Eduardo de Assis Duarte é patente a sua opinião acerca da dificuldade de se comentar o romance, posto que sua matéria falade problemas escandalosos da sociedade brasileira, mas ao mesmo tempo ele próprio, o romance, constitui-se como questão, trazendo problemas para o crítico, o que pode ser situado, pelas próprias palavras da crítica, como um divisor, visto que o autor é negro e ex-favelado (DUARTE, 2007, p. 590). Parece importante tocar, a rigor, que as palavras do crítico não necessariamente correspondem a uma iniciativa de criação do que se convenciona, de forma perigosa e de pouca relevância crítica, denominar literatura negra, ou escrita por um negro. Não obstante, ainda que tal vertente possa desvelar fios invariantes de uma urdidura densa socialmente, asua existência não pode se libertar, por exemplo, tal qual outra denominação – literatura feminina –, da condição de produção humana. O que parece razoável pensar como ineditismo a tocar o social seria, na nossa compreensão, a apresentação artística da voz de um sujeito oriundo daquela camada normalmente impossibilitada de expressar a sua visão de mundo – a literatura de um trânsfuga. Ainda pontua Eduardo de Assis Duarte algo bastante interessante e que também deve ser refletido, isso é, Paulo Lins apresenta um romance que tem duas vertentes: uma individual e coletiva, que, por sua vez, retoma uma

146 apropriação do gênero romance etnográfico brasileiro. Isso porque o artista, em tela, vale-se de amplo material coligido em suas pesquisas para Alba Zaluar. Nesse sentido, o romance se fundamenta em um trabalho de equipe, vale dizer, com os devidos agradecimentos às margens do texto. Assim, Cidade de Deus é, a rigor, a figuração de uma espécie de paródia do mito do autor-criador e podemos acrescentar, dizendo que a tão famigerada “áurea” e a inspiração vislumbradas na imagem do escritor, passam à margem, ou, pelo menos, amalgamam-se, sem deixar vestígios “na era da reprodutibilidade”, com o capital. É, nesse sentido, que a imagem do escritor parece ser algo diferente de uma visão romântica a respeito da arte, mas, anterior a isso, sob a condição humana de viver em uma era do capital, a crítica pode sugerir a propugnação do autor por aquilo que poucas obras contêm, isso é, a excepcionalidade. Portanto, cumprimos, aqui, o papel de desvelar alguns pontos que fazem Cidade de Deus, para nós, ganhar dimensões artísticas, a rigor, muito peculiares e completamente felizes para tal momento em que a literatura brasileira se volta para o cosmopolitismo, como bem aponta Jefferson Agostini Mello.2 Para tanto, a partir desse momento, passaremos a buscar nos textos – Cidade de Deus e O Cortiço – algumas outras informações para que possamos nos posicionar diante da aproximação sugerida entre o Naturalismo e a Pós- modernidade, com suas respectivas formas de violência. Vejamos nos excertos, a seguir, as respectivas descrições da Cidade de Deus e O Cortiço. Cidade de Deus deu a sua voz para as assombrações dos casarões abandonados, escasseou a fauna e a flora, remapeou Portugal Pequeno e renomeou o charco: Lá em Cima, Lá em Frente, Lá Embaixo, Lá do Outro Lado do Rio e Os Apês. (LINS, 2007, p. 19) Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do

147 Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte escrito a tinta encarnada e sem ortografia: ‘Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras.’ (AZEVEDO, 1988, p. 21)

Pontualmente temos, em ambos os textos, a descrição que recupera a formação dos espaços em que as respectivas narrativas se desenvolverão. No entanto, ao buscarmos uma invariante para as duas obras, podemos perceber, salvaguardadas as devidas peculiaridades dos estilos – Naturalismo e Pós-modernidade –, que os planos de fundo trazem a noção de desordem e principalmente a perspectiva de construções que reaproveitam algo já existente. Ao inferirmos pela imagem das acomodações que, à vista da desordem populacional e da própria condição de construção daquilo que se entende por cidade, deixa ver uma arquitetura singular a sugerir a derrocada da condição existencial humana. Isso é ainda mais marcante em Cidade de Deus. Para tanto, observemos o fragmento abaixo.

Os moradores levaram lixo, latas, cães vira-latas, exus e pombagiras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser desconectado, restos de raivas de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as de domingos, vermes velhos em barrigas infantis, revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo de bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões arrebentados (...). (LINS, 2007, p. 19)

É importante destacar, que por meio da descrição dos pertences levados à comunidade, virtualiza-se o ponto exato em que se encontra a população descrita, que ao retomarmos o traço biográfico de Paulo Lins,

148 faz menção ao deslocamento para a Cidade de Deus, sugerindo, ainda que embrionariamente, uma condição de rebaixamento de vida ou, pelo menos, a gênese de uma nova ordem social – o pupulacho.3 Aluísio de Azevedo também construiu algo muito próprio, quando, por meio da descrição, deixa ver a condição das pessoas residentes no O Cortiço.

Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes piores e mais grossas que as serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo. (AZEVEDO, 1988, p. 21)

Notemos que as palavras utilizadas revelam de forma bastante sugestiva, à medida que as vidas – tanto humanas quanto animais – adentram o espaço, uma espécie de inchamento populacional e, por seu preenchimento desordenado, metaforicamente pela noção de peso excessivo sobre a terra, tem-se a imagem de um solo não capaz de suportar tamanha quantidade de pessoas, que, nesse sentido, traz a noção de que essa construção não é segura, uma vez que a sua base, “o solo” não apresenta tais condições. Recuperemos a imagem sagrada4 da moradia para uma cultura antiga que, aqui, no excerto, é profanada ou, de certa forma, colocada em xeque. No que toca à caracterização das pessoas que ocupam os respectivos espaços, podemos citar, primeiramente, em Cidade de Deus, o instante em que:

Inferninho nada falou. Alguma coisa o fez lembrar-se de sua família: o pai, aquele merda, vivia embriagado nas ladeiras do morro do São Carlos; a mãe era puta da zona e o irmão, viado. A mãe piranha até que passava, era conhecida por sua personalidade forte, não levava desaforo para casa, tinha palavra e era respeitada no

149 Estácio. O pai também não era o seu maior problema, porque, quando sóbrio, as crianças não riscavam seu rosto de giz, não lhe roubavam os sapatos, e, apesar disso tudo, ele era bom de e ritmista da escola de samba. Mas o irmão... era muita sacanagem... Ter um irmão viado foi uma grande desgraça em sua vida. (LINS, 2007, p. 27)

Já, em O Cortiço, cabe recuperar a observação do excerto que se segue:

(...) das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se da janela as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se as conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam- se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. (AZEVEDO, 1988, p. 28)

Em ambos os casos, deixa-se ver claramente que o ato comunicacional em relação à vida das pessoas estabelecidas nos respectivos locais estava interposto por ruídos. E essa poluição sonora, mormente no que tange à emissão de sons animais, condiciona a voz humana a uma tentativa de sobreposição para a compreensão. No entanto, nesse caso, é nula. Portanto, o humano – em sua comunicação com os semelhantes – está, de forma sugestiva, em uma condição próxima à animalesca, flagrantemente negativa

150 e pouco eficiente. Ainda, assim, podemos observar, a seguir, a prática das pessoas desordenadamente a serviço de uma vida, que, ao ser aproximada à dos animais, tem alguns níveis de equiparação possíveis. Observemos.

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. (idem, 1988, p. 28-29)

Faz-se necessário salientar a importância que adquirem os dejetos e como os mesmos são capazes de simbolizar a condição humana dos sujeitos em tela. Adensa-se, ainda, nesse quadro, a imagem das crianças, e, de forma pressuposta, o odor das fezes que circulam pelo espaço do cortiço. A água e o terreno também merecem destaque ao pensarmos em uma junção dos símbolos, dando origem à figura da lama como um elemento que já pressupõe uma das condições mais baixas e que impossibilita um chão seguro e limpo para os moradores. Fiquemos, portanto, com o sentido negativo do símbolo, uma vez que, na esfera positiva da criação, parece não haver contexto nessa

151 narrativa que o torne possível de ser pensado. Outro ponto de intersecção relevante entre as obras tangencia a forma de convivência estabelecida entre as pessoas desses respectivos espaços. Isso porque, na aparência de uma condição miserável, pode-se figurar uma latente significação dada ao semelhante e, consequentemente, ao ser humano. Vejamos como isso está posto nas narrativas estudadas.

Quando dobrou a esquina, viu um grupo de pessoas assistindo a duas mulheres trocando palavrões. Uma mulher tinha dito à vizinha ter muita pena da dona Margarida, outra vizinha, porque ela só comia carne uma vez por mês e porque o marido a espancava sem- pre que chegava bêbado em casa. (LINS, 2007, p. 75)

– Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz! Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado: as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham, com os braços nus, cheios de espuma e sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas querer meter-se no barulho. Os homens riam e atira- vam chufas às duas contendoras, como sucedia sem- pre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com outra. – Isca! Isca ! Gritavam eles. Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma formidável pancada na cabeça. (AZEVEDO, 1988, p. 125-126)

É assaz importante perceber como fica marcado que, em ambas as obras, não há a presença do diálogo como ferramenta de interação a ser utilizada pelos pares. A rigor, a violência é que deflagra as centelhas de inconclusibilidade dos impasses sugeridos pelos diálogos. A frase de Paulo

152 Lins, em referência à carência da comunicação na Cidade de Deus – “Falha a fala, fala a bala” (LINS, 2007, p. 25) – demonstra que o fato de se ter a possibilidade do diálogo não necessariamente indica uma condição melhor de existência, ou, em uma melhor hipótese, não é ela que nos garante a vida. Essa questão da derrocada do diálogo é muito importante para entendermos como se dá a valoração da vida humana nas narrativas, ou seja, ela não tem valor e, assim, é por meio da força – as armas – que não a da palavra, que as ações e os juízos de valor são tomados em ambas as narrativas. O julgamento de um homem é feito por meio de suas ações ante um outro homem e a pena surge justamente da retirada do que lhe é mais precioso – a vida. Com isso, a possível transformação de vida, ainda, soa como uma pequena esperança para algumas personagens nas narrativas, tangenciando a própria condição humana no que diz respeito ao sentimento da esperança e toda a cultura criada em torno dessa visão de mundo, por exemplo, nos dizeres populares e nas frases de efeito do universo do crime, como podemos observar abaixo. (...) tinha medo de amanhecer com a boca cheia de formiga, mas virar otário na construção civil jamais. Essa onda de comer de marmita, pegar ônibus lotado pra ser tratado que nem cachorro pelo patrão, não, isso não. Recordou-se de quando trabalhara nas construções da Barra da Tijuca. O engenheiro chegava sempre depois do meio-dia (...) (idem, 2007, p. 145)

– Minha filha é mulher! Minha filha é mulher! O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e felicitações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório, e nesse dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado. “Que não apanhasse umidade! Que não bebesse coisas frias! Que se agasalhasse o melhor

153 possível e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer imprudência poderia ser fatal!...” O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urgência. (AZEVEDO, 1988, p. 97)

Temos, com base nos excertos acima citados, a confissão de duas personagens e as respectivas esperanças de deixarem o meio em que vivem. Em Cidade de Deus, a possibilidade de trabalho é indicativo de uma realizável transformação de vida, ou seja, ter, ainda que pouco, um dinheiro para garantir a subsistência, mesmo que o trabalho para essa comunidade do tráfico seja percebido como uma forma de exploração do homem branco em relação ao negro, haja vista a percepção que se tem do engenheiro e a sua chegada ao trabalho – o atraso em vistas da posição de destaque, ser chefe. Já em O Cortiço, a felicidade com que a mãe recebe a notícia da primeira menstruação da personagem Pombinha é, consequentemente, com a mudança de estágio de menina para moça, o patamar necessário para que ocorresse o casamento da menina com João da Costa. Logo, a menina poderia se ver em uma condição melhor de vida, posto que seria possível sair daquele espaço – labirinto de casas. No entanto, nas duas narrativas, não são todas as personagens que logram êxito com essas sugestivas transformações de vida.

Conseguiu um emprego na empresa Luís Prateado, onde foi explorado por muito tempo, mas não ligava. A fé afastava o sentimento de revolta diante da segre- gação que sofria por ser negro, desdentado, semi- -analfabeto(...) Teve dois filhos com Cleide e sempre que podoa voltava em Cidade de Deus para pregar o Evangelho. (LINS, 2007, p. 160) Na passagem acima, temos o momento em que a personagem logra êxito, ou, pelo menos, a vitória que ocorre em sua vida não é a da ascensão

154 econômica, mas sim a possibilidade de uma vida um pouco mais durável em relação aos demais companheiros da favela. Haja vista a quantidade superior a uma centena de personagens anunciados em Cidade de Deus, em que as respectivas mortes dessas personagens resultam em uns poucos sobreviventes ao final da narrativa. E com relação a O Cortiço, há que se mencionar a frustrante condição em que a personagem Pombinha atinge ao final da narrativa – prostituta, uma vez que a expectativa do casamento resultaria na saída daquele espaço, mas um estupro haveria de mudar a sua trajetória e/ou destino de sua vida. Outro aspecto fundamental é visualizarmos nas obras em destaque as brigas entre as personagens, que, por outro ângulo de análise, refratam algumas questões maiores. No caso de Cidade de Deus, parece claro pontuarmos a disputa entre os brancos e os negros, como pode ser visto a seguir:

O assaltante não gostava de branco bem-arrumado. Achava que eles tomavam o lugar dos negros em tudo. Até mesmo na Baixada Fluminense, e agora no conjunto, quando via um branco bem-arrumado, assaltava, cometia violências para vingar o negro que teve seu lugar roubado na sociedade. (idem, 2007, p. 162)

Em O Cortiço, tem-se o instante em que:

E o rolo a ferver lá fora, cada vez mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. (AZEVEDO, 1988, p. 126)

155 De forma patente, tem-se, em O Cortiço, a disputa entre as duas nações – Brasil e Portugal – que, também, em Cidade de Deus, é mencionada de uma forma indireta, no que diz respeito à colonização portuguesa no Brasil e, consequentemente, resultando no processo de escravidão. Mas Aluísio de Azevedo consegue imprimir à narrativa, por meio da disputa entre duas forças que se oprimem, a primeira virtualização de um circuito social fechado, que, nesse caso, literalmente curto-circuita. Como considerações finais, podemos destacar que a obra Cidade de Deus tem um ponto muito importante a garantir uma constante visibilidade, ou seja, a famigerada prerrogativa crítica anunciada por Vilma Arêas, ame ou deixe-o. Assim, coube, aqui, ao que chamamos de terceira margem da crítica lançar mão de uma, ainda que tímida e diminuta, intenção. É insofismável que um ponto de vista possa ser volátil mediante as condições que cercam o observador, porém o ponto em que nos encontramos hoje, juntamente com o material que se tem produzido sobre Paulo Lins, não podem pressupor suficientes para macular tal obra. Ainda que alterar as concepções à medida que o futuro lhe seja outro, no nosso caso, é diferente do trabalho de certo grupo intelectual que precisa antes de mais nada de um estopim para que seus ideais, às vezes, sejam interpostos entre o público e a própria vontade artística falha. Ao nosso ver, o eixo da crítica pode centrifugar questões no âmbito até da recepção da obra. Com isso, anterior ao início das análises do texto, pode-se trazer à tona como se configurou, no caso específico de uma obra, o que se reconhece como “campo literário”. E, dessa forma, por meio da nossa própria experiência com a leitura da Cidade de Deus, que inicialmente foi feita sem o conhecimento prévio dos detalhes, comedidamente vistos como insólitos quando pensamos na questões mercadológicas de um capitalismo, ainda, voraz. Nesse sentido, dado o conhecimento dessas peculiaridades de bastidores, o simulacro criado com a primeira leitura, mais uma visualização romântica do gênio do autor poderiam colocar a obra em xeque. No entanto, devemos nos render ao observamos uma primeira apreciação da cor local do

156 texto, como um ineditismo criativo e um árduo labor ao cunhar e extrair da palavra a sua potencialidade significativa de uma realidade crua e engessada. Cumpre dizer que entre a Literatura e a literatura, para a obra central em tela – Cidade de Deus –, seguindo os ensinamentos de Frye, tem-se sempre um material que não pode ser obliterado por qualquer crítica, ou seja, a arte.

Quase toda obra de arte do passado teve uma função social em seu tempo, uma função que amiúde não foi absolutamente uma função estética. A concepção social de “obras de arte”, como classificação para todas as pinturas, estátuas, poemas e composições musicais, é relativamente moderna. Podemos ver um impulso estético agindo nos tecidos peruanos, nos desenhos paleolíticos, nos ornamentos equinos dos citas ou nas máscaras kwakiult, mas com isso fazemos uma refinada abstração que bem pode ter estado fora dos hábitos mentais da gente que produziu. Assim, a questão de saber se um objeto “é” ou não uma obra de arte é das questões que não podem ser decididas apelando-se para algo na natureza do próprio objeto. A convenção, o acordo social e a obra crítica no sentido mais lato é que determinam o seu caráter. Pode ter sido feito originalmente para utilização e não para deleite, e assim se exclui a concepção geral aristotélica de arte, mas, se existe agora para nosso deleite, é o que nós chamamos arte. (FRYE, 1973, p. 336-337)

É interessante, por fim, pensar a literatura como um veículo de denúncia da sociedade real, já com o Naturalismo isso era flagrante. Agora, o mais impressionante a ponto de se pasmar é que, ainda hoje, na Pós-modernidade, mesmo com uma outra estrutura, forma de narrar e como constituir o material literário, no caso de Cidade de Deus, por meio do material científico-etnográfico, o problema é exatamente o mesmo no que tange à vida cosmopolita. Assim, parece a melhor opção, na via da terceira margem da crítica, ficarmos com a Literatura da Cidade de Deus de Paulo Lins a denunciar uma violência sem fim.

157 Referências

ARÊAS, Vilma. Errando nas esquinas da Cidade de Deus. In: LINS, Paulo. Cidade de Deus: edição comemorativa de 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 19. ed. São Paulo: Ática. 1988.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2010.

DUARTE, Eduardo de Assis. Sertão, subúrbio: Guimarães Rosa e Paulo Lins. In: LINS, Paulo. Cidade de Deus: edição comemorativa de 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Studio Nobel, 1997.

LINS, Paulo. Cidade de Deus: edição comemorativa de 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MONTAIGNE, Michel de. Os pensadores. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

SCHWARZ, Roberto. Cidade de Deus. In: LINS, Paulo. Cidade de Deus: edição comemorativa de 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 5. ed. Trad. José Palla e Carmo. Porto: Europa-América, 1972.

Notas

1 Doutorando em Literatura Portuguesa na Universidade São Paulo (2010), Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008). 2 O lente destaca que a pós-modernidade brasileira é marcada por esse fechamento em si, principalmente, no que tange à perspectiva cosmopolita da visão de mundo do autor. 3 Termo entendido, aqui, como uma depreciação da condição humana, desvelando pessoas das classes infe- riores, também denominados como ralé. 4 Ressaltemos a condição do sagrado na moradia a partir dos ensinamento de Mircea Eliade, ao se referir que a escolha desse espaço passa pelo crivo de uma mensagem divina, que, no nosso caso, é completamente oblite- rada, a sugerir a precariedade do humano em um meio esquálido.

158 CIENCIAS MORALES DE MARTÍN KOHAN UNA PEDAGOGÍA DE LA VIGILANCIA

Roberto Ferro (UBA) 1

La mirada vigilante posee un poder inmaterial que se ejerce continuamente como un mecanismo perpetuo de formación del saber. Erbóreo R. Frot

La voz narradora de la novela Ciencias morales de Martín Kohan va diseminando un conjunto de indicios y de marcas que remiten veladamente al contexto histórico-político contemporáneo a los sucesos que va relatando. Su gestualidad parece replicar la circulación de los discursos sociales durante aquellos años, en los que los sobreentendidos desbordaban los silencios impuestos por la dictadura; aunque es preciso señalar que esos sobreentendidos no eran habitualmente una forma de resistencia, sino que, por lo general, eran señales de convalidación del discurso oficial. Asentada en ese registro, la narración se constituye en torno a un conjunto de episodios que exhiben la imposibilidad de producir la supresión irreversible de los acontecimientos en toda su consistencia histórica, inevitablemente siempre quedan rastros de los que emergen una y otra vez los fantasmas de lo reprimido. El movimiento del texto no pretende reponer esa contextualización sino que tan sólo la alude, presentando el eje de las acciones para que funcione como un gran resonador que atrae lo que ocurre en la periferia del colegio exponiéndolo a través de las modalidades discursivas más afines con el imaginario de los personajes. Ese desplazamiento tensa la trama hasta transformarla en el tejido sintomático de un aparato represivo que procuraba que lo oculto no era sólo lo no dicho, sino que lo oculto era únicamente una fantasía, puesto que la norma de vigilar y castigar pretendía decretar su inexistencia concreta.

159 María Teresa, la preceptora de tercero décima del turno tarde en el Colegio Nacional de Buenos Aires, forma parte del personal encargado de controlar la disciplina; recientemente incorporada a su empleo ejerce su función con un celo obsesivo. Hasta los más nimios episodios que transgreden la normativa disciplinaria la perturban a tal punto que llegan a imponerse sobre la inquietud por la situación de su hermano, que en cumplimiento del servicio militar obligatorio puede ser destinado al frente de batalla en Malvinas. Mientras sus enigmáticas cartas anuncian su traslado hacia el sur puntuando las peripecias de la narración, María Teresa se desvela por cumplir con su tarea específica: vigilar el comportamiento de los alumnos y comunicar a sus superiores los mínimos desvíos a los efectos de que se dispongan los correctivos correspondientes. A su vez ella también es vigilada por el jefe de preceptores, quien es supervisado por el vicerrector. La voz narradora se desliza en el entramado de ese dispositivo de miradas en el que siempre hay otra que está por encima vigilando al vigilador. En su propósito de desempeñar sus funciones con la mayor eficiencia, María Teresa va urdiendo una conjura personal en la que el mecanismo perverso que ha concebido para tender una celada a los infractores se revierte sobre ella que termina atrapada en su propia trampa. A partir de un conjunto de indicios muy vagos, se siente movilizada por la sospecha que, tan rápida como inexplicablemente, se trastorna en certeza de que algunos alumnos varones se ocultan en el baño para fumar durante los recreos. En consecuencia, la joven preceptora se complica en una serie de arriesgadas acciones que la llevan a transformarse en trasgresora de las normas que reglamentan el ejercicio de su empleo así como las que rigen el colegio y su propia moral, con el deseo de recibir el reconocimiento su jefe, el señor Biasutto, por su eficacia en el control de los desvíos de la buena disciplina y el orden. En todo ese proceso de degradación, el objetivo que se impone María Teresa nunca es perturbado por ningún freno inhibitorio, la voz narradora da cuenta de sus vacilaciones, que aparecen más como pruebas de su empeño para superar los obstáculos que pueden dificultar alcanzar sus objetivos.

160 La narración se constituye en la tensión de dos instancias que están entrelazadas, pero que se va desplegando con autonomía. Una de estas instancias es la que se configura sobre la borradura de cualquier mención explícita del contexto histórico en el cual transcurren los hechos: que abarca un lapso que va desde fines de marzo de 19822, hasta el final de la guerra de Malvinas; la otra es la que va exhibiendo todas los resquicios de la represión que María Teresa ejerce sobre sí misma para ignorar o tergiversar cualquier signo deseo. La guerra en la que estaba involucrada la Argentina, encuentra sus resonancias en los muros interiores del colegio y en la atribulada conciencia de la protagonista. Lo reprimido, lo no dicho, que más allá de la sofocación a que los somete, asoman inexorablemente traspasando las barreras impuestas como un estremecimiento incontenible; esa convulsión atraviesa el relato a Ciencias morales con un tono amenazante y perturbador, hasta culminar con la irremediable irrupción de lo siniestro que se presenta como una escabrosa y obscena imagen de múltiples superficies facetadas impresas sobre lo que llamamos realidad, emergiendo más allá de todas las presiones y subterfugios que pretendían mantenerla oculta. Ciencias Morales trasgrede los protocolos de la novela de aprendizaje y de iniciación de la literatura argentina, poniendo en crisis el modelo del bildungsroman instalado con la canonización de Juvenilia (1884). Al igual que en la novela de Miguel Cané, la narración ubica las acciones en el interior del Colegio Nacional de Buenos, que desde el siglo XIX tiene una larga tradición en la formación de jóvenes de las élites intelectuales 3. Juvenilia evoca una serie de episodios de la adolescencia protagonizados por el propio autor durante los años de su formación. Kohan, que ha sido alumno del Colegio en la época en la que transcurre la ficción, desecha toda marca de registro autobiográfico y, además, no centra el relato en la esfera de los alumnos y profesores sino en la del personal encargado de la disciplina. Otra diferencia notable es de orden histórico, Cané participó de la generación del 80, fundacional de la Argentina moderna, que imaginaba un

161 horizonte de grandeza ilimitado para el país; Kohan, en cambio, pertenece a una generación cuya adolescencia fue estigmatizada por la guerra de Malvinas en el final de la dictadura militar, en un presente en el que aquellos sueños utópicos no se han realizado. Un tono de radiante añoranza de los años juveniles circula en la prosa de Cané:

De nuevo, pues, abren sus alas esos recuerdos infanti- les que se vuelen hoy en una atmósfera tan simpática y afectuosa como aquella que cruzaron por primera vez, evocando a su paso imágenes sonrientes y serenas, son los votos de quien los escribió con placer y acaba de releerlos con cierta suave tristeza.4

En la novela de Kohan, por el contrario, la voz narrativa que va desplegando la historia, se sitúa en una perspectiva parcialmente omnisciente, ya que comparte el imaginario y los saberes de María Teresa, una celadora de veinte años, que hace pocos meses que ha comenzado a desempeñar sus funciones. En ese período, el Estado era una gran máquina de institucionalización de múltiples estatutos reglamentarios de formas de ser, de saber y de hacer, que regulaban hasta los más mínimos detalles de la vida cotidiana. El minucioso detalle de la normativa que se imponía a los alumnos aparece como una reproducción en escala de la fajina cuartelera:

[…] es obligatorio que los alumnos hayan formado fila, en perfecto silencio y en el orden progresivo de las respectivas estaturas, delante de la puerta del aula que corresponde a cada una de las divisiones […] pero todos saben que no ha habido repetición alguna, que las ordenes se dan una sola vez y con eso es suficiente. Tomar distancia es un aspecto fundamental en la formación de los alumnos del colegio5.

162 María Teresa asume como propia la tarea de vigilancia que debía ejercer durante la formación de los alumnos, funcionado como una dócil extensión del aparato de control:

Lo emplea para controlar a ese chico de aspecto indolente que se llama Capelán. Todos sus compañeros, con excepción de Iturraga, lo superan en estatura, y por esa razón le toca ser el primero de la fila. Justamente delante de él se ubica Marré. Puede tocarla: lo tiene permitido. Y aún más: está obligado a hacerlo. Tiene que tocarla con la mano en el hombro, y mejor que con la mano con la punta de dos dedos, para tomar distancia. María Teresa finge adoptar entonces una mirada dispersa, no una mirada distraída, que resulta inverosímil, pero sí una mirada general.

Su lealtad irrestricta al régimen disciplinario, pone de relieve una perspectiva de convalidación del régimen dictatorial imperante:

No era fácil obtener eso que el señor Biasutto denominó “el punto justo”. El punto justo para la mejor vigilancia. Una mirada alerta, perfectamente atenta hasta el menor detalle, serviría sin dudas para que ninguna incorrección, para que ninguna infracción se le escapara. Pero una mirada tan alerta, por estar alerta precisamente, no podía sino manifestarse, y al tornarse evidente se volvería sin remedio una forma de aviso para los alumnos. El punto justo exigía una mirada a la que nada le pasase inadvertido, pero que pudiese pasar, ella misma, inadvertida.

Esa aceptación sin objeciones es uno de los núcleos que el relato expone detalladamente, estableciendo una correspondencia implícita entre los militares que ejercían el poder y aquellos que le otorgaban consenso:

163 El cuerpo de preceptores tiene la facultad, pero más que la facultad la obligación, de interceptar la alumno que nada suelto por el colegio, requerirle su carnet, verificar allí la foto y el nombre y el turno al que pertenece el alumno en cuestión, y si el alumno del turno tarde se encuentra en el colegio durante el horario de la mañana, o un alumno de turno mañana se encuentra en el colegio durante el horario de la tarde, exigirle la explicaciones del caso.

El cuerpo de preceptores cumple la misma función que la policía como auxiliar del régimen militar en las tareas de considerar como sospechoso a todo aquel que se aparta de la escrupulosa malla de obligaciones establecidas con el objeto de mantener bajo control a toda la población. El jefe de ese cuerpo, el señor Biasutto, aparece a la mirada de María Teresa, como alguien digno de respeto y valor dado que ha sido capaz de llevar adelante una riesgosa tarea en los años anteriores:

El señor Biasutto, que es el jefe de preceptores, cuenta con gran prestigio en el colegio porque es sabido que, hace unos años, fue el responsable principal de la confección de listas, y se da por seguro que en algún momento, cuando la dinámica de la designación de autoridades lo permita, ocupará a su vez el cargo de Prefecto.

En esta cita la voz narrativa exhibe desaforadamente la postura ideológica desde la se profiere el relato, el prestigio alcanzando por Biasutto es producto de un acto deleznable: ha confeccionado listas de alumnos de un colegio secundario, cuya edad máxima puede ser 18 años: esos alumnos sospechados de participar en actos subversivos -esa era la denominación oficial- han sido desaparecidos a partir de la denuncia movilizada por el tan admirado jefe de María Teresa.

164 La novela de Kohan hace un repaso por los lugares comunes de un imaginario social del que participaban todos aquellos que de una u otra manera constituían el consenso “silencioso” de la dictadura militar. El narrador de Ciencias morales parece ser parte de un Estado que no sólo pretende ver todo sino que también establece el orden de la realidad, lo que no nombra no existe. Los ecos en sordina de la Guerra de Malvinas, puntuados en la historia por las cartas que el hermano de María Teresa, soldado conscripto al momento de los sucesos narrados, le envía a ella y a su madre desde los distintos puntos de un vago itinerario que va realizando su regimiento hacia el lugar de los combates, sin llegar nunca a destino. Las cartas contienen postales, con muy pocas palabras, como contraparte de las elipsis del narrador que no da cuenta en su relato de las circunstancias por las que atraviesa el país. María Teresa movida por el deseo de no pasar desapercibida ante la mirada del señor Biasutto, a partir de vagos indicios se propone descubrir en falta a los alumnos que fuman, para lograr su objetivo se esconde en el baño de varones, en el que pasa largas horas de espera infructuosa. En un cruce deceptivo con el género policial, la protagonista, siguiendo el programa narrativo del detective clásico, rastrea pistas e infiere una posible hipótesis; pero no hay secreto, porque no hay trasgresión que sea necesario ocultar:

María Teresa empieza a poner en práctica su propósito de vigilar los baños durante los recreos.[…] Si en efecto, tal como ella supone, hay alumnos que fuman en el colegio, tiene que ser ahí donde lo hace y no en otra parte. La puerta de baño chirría al abrirse. Es imposible percibirlo durante el día, cuando los claustros se colman de pasos y de conversaciones. Pero ahora, en el silencio, la puerta suelta un silbido que parece una delación. María Teresa ya ha puesto un pie en el baño de varones, […] Ha razonado concienzudamente sobre el proceder que vino siguiendo en su indagación en el baño de varones. Detecta el error: la experiencia de incursión en el baño después de hora se lo reveló con

165 nitidez. […] Si alguien como ella fuma en el colegio, como ella firmemente sospecha desde que su olfato sensible le dio la pista, ha de hacerlo en el baño […]

A través de un relato en tercera persona focalizado en la perspectiva de la protagonista, se narran los procesos de edificación y significación de una memoria traumática gestada a partir de un acontecimiento que funciona como metonimia y metáfora de la represión impuesta por la dictadura militar. En Ciencias Morales Martín Kohan hace una sutil cartografía de la configuración de los supuestos que se consideran viables; es decir, de aquellos que aparecen en el horizonte de expectativa de la protagonista como los más adecuados para cumplir su función correctamente. Este registro de la vida cotidiana de una subjetividad en el más prestigioso colegio secundario de Buenos Aires aparece como un espacio en el que confluyen los modos de configuración de una memoria colectiva compartida por una porción considerable de la población argentina en aquellos años. Ciencias Morales es el relato de los avatares de una conciencia que acepta no solo como normales sino también como dignos de admiración los procedimientos de vigilancia que apuntan disciplinar a los alumnos bajo un régimen represivo. La novela expone los paralelismos entre el régimen vigente en el colegio con el modelo de avasallamiento impuesto por la dictadura militar, que imponía la rigidez autoritaria de su visión del mundo al conjunto de la sociedad. Los años de la última dictadura en la Argentina, entre 1976 y 1982, han sido objeto de indagación desde diversas formas narrativas en las que, más allá de las diferencias genéricas, ha predominado el sesgo testimonial.6 La necesidad de probar las iniquidades atroces de la época ha encontrado en esa modalidad discursiva un vehículo eficaz para apoyar tanto el reclamo de justicia como el lamento trágico por los siniestros crímenes cometidos por los militares y civiles que se apropiaron del poder.7 En su novela y Ciencias Morales (2007) como antes en Dos veces junio (2002) y Museo de la Revolución (2006) - Martín Kohan aborda historias situadas durante el período del llamado Proceso de Reorganización Nacional a partir de

166 perspectivas narrativas que se apartan de toda especulación moral vinculada a alguna forma de condena, explorando la brutalidad y el horror de la dictadura desde las posibilidades de la ficción. La adhesión, que es la convocatoria primordial del texto de testimonio y que la distingue de forma radical del texto literario, conlleva el riesgo siempre inminente de convertirse en una tropología cristalizada, una forma retórica sin desvíos. La novela de Kohan figura una temporalidad exenta de sacralidad y ajena a la redención. Un tiempo que solo se puede reponer en la cruda materialidad de las acciones, alejado de toda posible visión heroica de los sujetos que las llevan a cabo. La memoria como objeto de especulación en sus relatos exhibe un modo desaforado de anacronismo centrado en los deshechos, en las reapropiaciones y en la museización de los restos sacralizándolos como ruinas. El territorio de la memoria aparece figurado como una dimensión atravesada por vacíos, discontinuidades, cribada por grumos de silencio y acumulación de restos. Mientras tanto, el devenir narrativo inscribe un entramado en el que el pasado emerge como una magnitud heterogénea y abierta a la espera de una operación de restitución. Esa reescritura del pasado nunca se contamina con gestos irónicos, nunca se produce una distancia paródica entre las voces narrativas y el conocimiento que tiene el lector.de los hechos Ciencias Morales explora uno de los imaginarios dominantes en la época de la dictadura, lo que ningún historiador ni nadie puede evitar por principio es que la otrora estabilizadora y reguladora donación de sentido de una comunidad política se quiebre en zonas inesperadas, y que de esta nueva brecha surja y rebrote el sinsentido latente en la historia relatada, y se redescubran sorpresiva y dolorosamente los agujeros taponados por el día a día del olvido. Pues la historia también se hace y escribe abriendo las suturas de la memoria, antaño cerradas. E incluso la más asentada e incontestada historia contiene un trozo de verdad olvidada que ha sido sometida a deformaciones y confusiones en el curso de su evocación. Eso es lo que regresa inopinadamente,

167 haciéndolo no obstante como si nunca se hubiese marchado, porque en su retorno reinstaura y vuelve a traer al presente la quiebra fundante y efectiva, reprimida pero nunca extinguida, de la memoria. Martín Kohan en Ciencias Morales revisa los pliegues de un imaginario sometido a la vigilancia, que ni siquiera vislumbró las consecuencias de esa imposición violenta, sino que fue forjando sus ilusiones a partir de esas imposiciones autoritarias. Ese mundo ideal de jerarquías impolutas se va a derrumbar dentro y fuera de los muros del colegio. El relato se despliega a la mirada de lector como un transcurso inevitable, que elige la configuración de la alegoría de la violación para aludir a la consistencia inenarrable del horror. La restitución del sentido al final de la espera propia del policial transforma su paranoia por descubrir la transgresión al reglamento en el escenario propicio para que Biasutto, imponiendo la fuerza de su poder, la someta a vejaciones sexuales en su subrepticio lugar de vigilancia. La reacción de la subalterna será el silencio:

Entonces el señor Biasutto, con un ademán que al fin de cuantas es muy simple, cierra la puerta. Cierra la puerta y de inmediato la traba con el pestillo. Ahora los dos, ella y él, María Teresa, la preceptora, y el señor Biasutto, el jefe de preceptores, están encerrados en el cubículo del baño de varones del colegio. […] El señor Biasutto no es demasiado alto, más bien al contrario. Por lo pronto no es más alto que ella, y si lo es, lo es por muy poco. No obstante es evidente que ella lo mira ahora desde abajo hacia arriba. […] María Teresa procura serenarse, repasando lo que ya sabe: que el señor Biasutto es el jefe de preceptores del colegio, que goza en la institución del mayor prestigio posible, que es lo que se dice una autoridad, que le consta que con las damas sabe ser propiamente un caballero. Lo piensa y lo sabe y sin embargo no consigue tranquilizarse. […]El la toma de los hombros y la hace girar. Firme, algo severo. Ella se encuentra así

168 de cara a la pared recubierta de azulejos, con la cara poco menos que pegada a la pared. […] María Teresa todavía alcanza a decirse a sí misma, no sabe bien en qué sentido, que se trata del jefe de preceptores del colegio. Con manos confusas el señor Biasutto le levanta la pollera […] le baja la bombacha con un tirón bien brusco de la mano que tiene libre. No puede gritar, tampoco quejarse. El instinto de cautela para pasar desapercibida en el baño permanece por alguna razón en sus reacciones. Aprieta los labios, y detrás de los labios los dientes, con la respiración polvorienta del señor Biasutto demasiado cerca de sus orejas. […] María Teresa estremecida vuelve a pensar en la cosa, en la cosa terrible del señor Biasutto, pero no logra ver que sigue aparte de lo que está pasando. […]Más tarde, cuando pueda, María Teresa va a llorar por todo esto, pero por el momento no llora.

La escena tiene líneas de correspondencia con los episodios históricos que están ocurriendo, la narración se detiene morosamente en los instantes en que se reconfiguran los dominantes que alineaban el imaginario social en el que se inscribía la conciencia de María Teresa hasta ese momento; se abierto una grieta procura le resultará imposible restablecer los nexo de continuidad y sucesión lineal entre el presente y los tiempos pasados, como si entre pasado y presente hubiese ocurrido un seísmo inesperado. Estos efectos, el modo en que María Teresa incorporará la violación, en cambio, son derivados de su propia existencia y el sentido del aquel episodio, le impone la necesidad de encontrar una explicación causal de lo acontecido, incluso elaborar una barrera que colme las lagunas y los vacíos, haciéndolos así más vivibles. Pero también proviene de la imperiosa necesidad de seguir adelante con buscando la inevitable salvación que otorga el olvido.

La agobia pensar que dentro de unas horas, quizás tres, quizás cuatro, sonará el despertador en esta misma habitación, que pasará una mañana nerviosa,

169 que almorzará sin hambre, que saldrá para el colegio. En el día que sigue, y que en sentido estricto ya es el día de hoy, tendrá que ir al colegio, lo mismo que en los días sucesivos, y allí cumplir diligente, con sus obligaciones de preceptora.

La caída de Puerto Argentino tiene un efecto en el Colegio Nacional de Buenos Aires, hay tres días de asueto y al retomarse las actividades se han renovado completamente las autoridades del colegio. Dos meses después, Francisco, el hermano de María Teresa, que no ha llegado a participar en los combates, consigue un puesto de trabajo en una fábrica automotriz de la provincia de Córdoba. Allí se radica junto con su madre y su hermana, quien buscará un puesto de empleada administrativa en la empresa Renault. La novela de Martín Kohan configura no tanto el archivo de una memoria como los movimientos de construcción y la gestación de las acciones recortadas sobre un imaginario comunitario sometido a la represión violenta. El relato está centrado en la conciencia de la protagonista, atrapada en ese devenir traumático, confinada en el asfixiante espacio que permite un régimen totalitario que se replica en todos los ámbitos de la vida cotidiana, pero sin manifestar ningún tipo de rechazo, al contrario tratando de que sus acciones estén en orden a la escala de valores que ella tiene incorporado como el más apropiado para la formación de los alumnos y, por ende, para la comunidad toda en la que ella vive. Esa memoria anclada en un orden cerrado tiene clausurada toda posibilidad de establecer vínculos con los acontecimiento históricos que se están viviendo en ese momento; Ciencias Morales es el relato de una mente obturada, incapaz de percibir el efecto de realidad. Entonces, en el curso de la novela lo real se vuelve fantasmático, una zona indecible que va amenazando a la protagonista sin que ella tenga ninguna posibilidad de advertir el peligro. Los fantasmas que persigue exhiben la doblez, el pliegue del tejido, para terminar haciendo visible como violación lo que no que aparecía como normal y correcto.

170 La novela narra la fisura tendida entre el presente de la conciencia y el pasado de una memoria trabajada por la imposición de un orden aceptado como modelo. El trazado de los recorridos al parecer irreconciliables se va a intersectar en el momento culminante de la historia. Habrá revelación, pero no habrá epifanía, la violación a la que la somete el señor Biasutto no implica una toma de conciencia inmediata. Pero, acaso como alegoría de un proceso colectivo que marco a una franja considerable de los argentinos de aquellos años, los efectos de la represión y de la violencia a la que estaban siendo sometidos no dejan de percibirse, lo que implica que el registro de los mismos sea inmediato.

Buenos Aires, Coghlan, marzo de 2011.

Notas

1 P r o f e s o r y i n v e s t i g a d o r d e l a F a c u l t a d d e F i l o s o f í a y L e t r a s , U n i v e r s i d a d d e B u e n o s A i r e s . 2 Los sucesos a los que alude la novela evocan la movilización del 30 de marzo de 1982, que fue la mayor manifestación de lucha obrera del período dictatorial autoproclamado “proceso de reorganización nacional” perteneciente a la dictadura que gobernara la Argentina entre 1976 y 1983. Convocados por la CGT, bajo la consigna “Paz, pan y trabajo”, cincuenta mil jóvenes y trabajadores coparon la Plaza de Mayo en una verdadera huelga política de masas. La movilización del 30 de marzo de 1982 fue la mayor expresión de lucha obrera del período dictatorial autoproclamado “proceso de reorganización nacional” perteneciente a la dictadura que gobernara la Argentina entre 1976 y 1983. Convocados por la CGT, bajo la consigna “Paz, pan y trabajo”, cincuenta mil jóvenes y trabajadores coparon la Plaza de Mayo en una verdadera huelga política de masas. El dirigente sindical peronista Saúl Ubaldini que comandó la movilización, será uno de los participantes de actos de adhesión a la dictadura militar que a partir del 2 de abril invadía las Islas Malvinas. 3 La genealogía histórica de Colegio Nacional de Buenos Aires se remonta a1767, cuando el virrey Vértiz fundó el Real Colegio de San Carlos, en el que estudiaron relevantes figuras de la historia argentina, como Manuel Belgrano, Cornelio Saavedra, Mariano Moreno, Bernardino Rivadavia, Manuel Dorrego, Bernardo de Monteagudo, y Juan Martín de Pueyrredón. Esa institución se continúa en el Colegio Unión del Sur creado por Pueyrredón y luego en el Colegio de Ciencias Morales fundado por Rivadavia. Hacia 1863, Bartolomé Mitre creó en el mismo lugar el Colegio Nacional, pivote de su política integradora de porteños y provincianos. Es el colegio de Amadeo Jacques y Miguel Cané, quien relata sus aventuras en el Colegio en el libro Juvenilia. Incorporado a la Universidad de Buenos Aires en 1911, estudiaron en él los dos primeros Premios Nobel argentinos y cuatro presidentes. 4 CANÉ, Miguel. Juvenilia. Buenos Aires: CEDAL, 1980. 5 KOHAN, Martín. Ciencias morales. Barcelona: Anagrama, 2007. Todas las citas remiten a esta edición. 6 En este trabajo el concepto de “testimonial” es una caracterización amplia y no restringida, que hace referencia a formas narrativas periodísticas, historiográficas y ficcionales, centradas o parcialmente vinculadas a las voces de las víctimas directas o indirectas del terrorismo de Estado, ya sea reales o imaginarias. 7 Pichiciegos (1984) y En otro orden de cosas (2001) de Rodolfo Fogwill, Villa (1995) de Luis Gusmán, La Flor Azteca (1997) de Gustavo Nielsen (1997), Las Islas (1998) y El secreto y sus voces (2002) de Carlos Gamerro, son novelas que proponen modalidades narrativas acerca de la dictadura militar y de la Guerra de Malvinas que se apartan del registro testimonial. Esta enumeración no pretende ser exhaustiva, sino más bien nombra algunas de las alternativas a la forma discursiva dominante que se dieron en la literatura argentina durante el período de la posdictadura.

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RESTOS INDISSOLÚVEIS DA CRUELDADE CONSIDERAÇÕES SOBRE VIOLÊNCIA, MAL E ESCRITA LITERÁRIA

Roberto Vecchi (UniBo)1

Sobre o problema da violência, a violência no século XX – que talvez possua uma especificidade própria em relação à violência tout court –, há um texto célebre e enigmático de Walter Benjamin que ainda não esgotou a sua força crítica e continua desafiando as interpretações. Foi de fato objeto de algumas leituras fundamentais a que constantemente nos remetemos falando de violência. Um texto seminal, em suma. Trata-se de Zur Kritik der Gewalt (“Para a crítica da violência”), texto precoce, escrito em 1921 (com uma curiosa assinatura datada, “Walter 1921”, que originou uma leitura desconstrucionista chave de Jacques DERRIDA, 2003) e que, no entanto, permanece em algumas partes ainda relativamente obscuro ou apoiado em visões em conflito ou até de árdua decidibilidade. Ao mesmo tempo, deve-se assinalar que é este o texto onde aparece pela primeira vez, ainda que opacamente, a expressão “vida nua” (bloß Leben), que se tornará uma categoria reflexiva chave de pensamentos (por exemplo, o de Agamben, com Homo sacer, que nele se inspira) voltados para rever e reformular um campo como o da biopolítica e desmontar dispositivos articulados como o da soberania, extremamente fértil para pensar as aporias da contemporaneidade. Um primeiro elemento de complexidade – e de riqueza crítica – do ensaio de Benjamin decorre da polissemia do termo alemão Gewalt, que significa violência, mas também autoridade e poder. O problema da violência projeta-se, portanto, já dentro de um emaranhado de relações que impede qualquer via de fuga conciliatória ou simplificadora. Mas esta é só a primeira de um conjunto de relações conceituais do ensaio. Outra estruturante é, de fato, a que inscreve a tarefa da crítica da violência na exposição da sua relação com o direito e com a justiça. O que atrai do texto de Benjamin é o seu caráter disjuntivo, que opera constantemente inversões, inscrevendo-se num

173 limiar de legibilidade e ilegibilidade. Neste sentido, Derrida – que desconstrói o que chama de um fantasma de texto em ruína (DERRIDA, 2003, p. 113) – mostra um dispositivo presente no ensaio benjaminiamo: a demonstração de um raciocínio destrói sob os olhos do leitor a distinção que propõe. Ou seja, uma escrita sobre a violência de certo modo se transmuda, na prática, numa violência da escrita. A forma contribui para esclarecer, pelo menos em parte, algo que fica menos claro no movimento semântico do texto. Existem múltiplas leituras de conjunto do texto benjaminiano (como a eficaz de Márcio SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 25-30). O que aqui nos interessa são só alguns recortes que articulam uma discussão menos imediata sobre a violência. De fato, Benjamin, ao analisar o ato, ou a força, que se torna violência “quando incide nas relações morais” (BENJAMIN, 1962, p. 5), de direito e justiça, observa como a violência, do ponto de vista jurídico, não pode senão pertencer ao reino dos “meios”, o que deixa em aberto a questão se pode ser assumida como moral a violência, como meio para fins justos. O que na verdade ocorre no texto é a tentativa de construir uma crítica imanente da violência, que vai muito além das leituras também importantes que evidenciam a natureza instrumental da violência dentro da dinâmica de meios e fins (cf., por exemplo, ARENDT, 1996, p. 73). No entanto, pensar a violência fora do perímetro de uma moralidade dos fins e dos meios conduz a uma aporia inexorável. Pondo em confronto direito natural e direito positivo, que se distinguiriam o primeiro por uma crítica dos fins, e o outro, por uma crítica dos meios, Benjamin observa que se, por um lado, as duas tendências convergem no dogma pelo qual, quiasmicamente, fins justos podem ser alcançados por meios legítimos e meio legítimos podem ser utilizados para fins justos (BENJAMIN, 1962, p. 6), por outro, nada garante o fundamento deste pressuposto dogmático e, portanto, poderia ser que meios e fins se tornassem irredutíveis uns aos outros (idem, p. 7). No limiar de violência legítima e ilegítima, resenhando o jusnaturalismo de Spinoza que esteve na base do terror jacobino, o que se depreende é que a violência funciona muito mais como um “produto natural”, uma “matéria-prima”

174 (idem, p. 6) que pode ser usada desde que não se exceda, subjetivamente, com a injustiça dos fins. Nesta linha, a pluralidade de sentidos do termo Gewalt, entre violência e poder, recupera toda a sua força semântica. Em casos-limite (ou situações próximas de “estados de exceção” como as estuda SELIGMANN- SILVA, 2005, p. 26), como a guerra (ou, como outro caso, a greve), o direito de guerra se baseia no fato de que sujeitos jurídicos sancionam poderes cujos fins são naturais e em casos graves podem entrar em conflito com os seus próprios fins naturais ou jurídicos. Apesar da violência da guerra ser, de imediato, uma “violência assaltante” [raubende Gewalt], nela se inscreve como caráter relevante a possibilidade de “criação jurídica” (BENJAMIN, 1962, p. 12). O ensaio benjaminiano aprofunda também a dimensão da violência mítica como violência sem fins: ela conduz a uma reflexão que mostra como o poder é responsável como princípio de toda a institucionalização mítica do direito. Na violência divina também configurada, suspensa entre norma e exceção, Agamben, em Homo sacer, detecta algumas analogias na função da violência justamente na criação jurídica, com a violência da soberania (AGAMBEN, 1996, p. 74). Mas, para nós, o que interessa é pensar os meios sem fim, a violência subtraída de uma condição ética e que pode assumir seu estado de violência pura e não determinada por relações externas. Trata-se, de certo modo, de uma tentativa destinada a permanecer num horizonte ideal, mas que merece ser pensada. Étienne Balibar, sempre do ponto de vista de uma abordagem materialista ao tema da violência, chega a mostrar o limite intransponível desta tentativa. A Gewalt seria marcada por uma incompletude dialética. Isto tornaria necessário, portanto, encontrar outro conceito viável: Balibar, ao resenhar algumas possibilidades – “terror”, mas que seria historicamente marcado, “barbárie”, que porém apresentaria um indesejável etnocentrismo –, propõe assim o termo “crueldade” (BALIBAR, 1997, p. 51). A fenomenologia da violência, então, junto com a sua relação intrínseca – na Gewalt inclusive lexical – com o poder, também implicaria sempre uma outra relação com a crueldade. Se é necessária uma dialética “espiritual” entre poder e contra-

175 poder, pode-se constatar na crueldade, enquanto realidade outra, a presença de uma intrínseca heterogeneidade, observa Balibar, subsumindo o termo na acepção de Bataille. Nesta linha, nos processos de simbolização das forças materiais e dos interesses (numa relação nua da crueldade com a materialidade sempre da violência), Balibar conclui admitindo que algo resiste a uma possibilidade de pensar a violência só em termos de uma materialidade pura, “deve sempre existir um resto não convertível ou um resíduo material do idealismo, inútil, desprovido de “sentido”. Saber porque este resíduo emerge frequentemente, ainda que não só sob forma da crueldade, é – concordo – algo de extremamente embaraçoso para quem não esteja disponível a articular um discurso sobre o mal” (idem, p. 53, grifo do autor). A materialidade da violência assim repensada apresentaria sempre um resíduo idealístico que instaura uma conexão possível com o mal ou com a possibilidade também de admitir, se diria dilatando a intuição de Balibar, uma moralidade da violência. Falar de uma violência “moral” é extremamente escorregadio (como mostra, aliás, o próprio Bataille, em seus escritos sobre o fascismo quando aproveita justamente a categoria da heterogeneidade). Inscreve-se naquela perigosa linha de pensamento que decorre de Georges Sorel e passa pelos fascismos europeus do século XX, que emendaram a violência reconhecendo nela uma força moral que de certo modo justificava o seu uso (TORNO, 2003, p. 102). Na violência, poderíamos dizer como desfecho provisório, se constitui e atua uma espécie de paradoxo: por um lado, ela pode ser pensada como matéria ou imanência autônoma em relação a qualquer moralidade dos fins, por outro lado há um resto constitutivo dela que sempre remete, como fetiche ou emblema, para uma idealidade cruel, uma relação com um campo genericamente definível do mal que, se nem sempre possui uma dimensão hegemônica ou ideológica, no entanto simbolicamente não deixa de produzir figuras (ou espetros). O âmbito mais adequado onde esta aporia sepode configurar tornando-se assim pensável em todos seus extremos cortantes,

176 pode ser o da “guerra” (em sentido também metafórico) e para encontrar a sua forma é preciso assumir um campo onde toda a complexidade figural pode encontrar um seu correlativo material adequado, que é, sem dúvida, o campo literário. O tema da guerra parece nos afastar do contexto brasileiro. A guerra, no plano histórico, sempre tem sido uma fatualidade externa, em parte remota e abstrata. Pense-e no imaginário – do ponto de vista da cultura brasileira – da Guerra do Paraguai, ou a Segunda Guerra mundial vivenciada de longe através da FEB. No entanto, se assumirmos uma definição clássica da guerra, ou do tempo da guerra, como a que Thomas Hobbes elabora, não como contato violento de forças similares, mas onde “The nature of the war consisteth not in actual fighting, but in the known disposition thereto” (HOBBES, 1989, p. 143), podemos entender como esta disposição para a guerra é uma permanência da história do Brasil e da modernização do seu Estado. Fora de todas as narrativas identitárias baseadas no mitologema da conciliação nacional (étnica, racial, social etc.), a história do Brasil, portanto, pode se repensar a partir de uma permanência de um estado de exceção, usando a figura do “campo” agambeniano como paradigma biopolítico da modernidade (cf. AGAMBEN, 1996, p. 185-201). Uma permanência que podemos reconduzir à subsistência da colonialidade também depois da descolonização, que a cultura nacional de certo modo contribuiu a atenuar (podemos pensar, porém, em consideráveis exceções, e entre as mais impressionantes, inclusive pela forma literária com que se realiza, está a exposição da guerra latente e silenciada entre a Casa grande e as Senzalas de um romance como Menina morta, de Cornélio Penna, numa chave de desidealização da relação de familiaridade ente o patrão e o escravo). Portanto, assumir a “guerra” como campo analítico diz diretamente respeito ao contexto histórico e cultural do Brasil. Inclusive porque a guerra é um dispositivo que permite um jogo citacional de amplo alcance interpretativo. Sobre a característica da guerra ser o evento de uma “citação” – em seus atos, massacres, rituais – de outros eventos congêneres, há uma discussão em curso bastante ampla. André Glucksmann, por exemplo, observa que “as

177 guerras do futuro nunca imitam as guerras do passado” (apud MONTANARI, 2004, p. 154), posição esta contestada por Federico Montanari, que nota como as guerras imitam sempre as guerras do passado, porque “se recompõem de acordo com elementos anteriores, são sempre formações heterogêneas e híbridas” (idem). O dilema entre a guerra única ou guerra como citação lembra em parte a reflexão sobre o caráter único ou paradigmático da Shoah. É verdade que a história não é um texto, e, portanto, a citação, como metáfora da “imitação” de fatos, remete para um campo de forças extremamente perturbado, que impõe uma semiologia própria. O autor que mais explora a possibilidade de usar a citação como forma de uma contra-história, Walter Benjamin, assinala a ambiguidade da citação histórica quando admite pelo menos duas posições em conflito: de fato, na tese XIV de Sobre o conceito de história, observa: “Assim, para Robespierre, a antiga Roma era um passado carregado de agora [Jetzeit], de que ele extraía a força do continuum da história” (BENJAMIN, 1997, p. 47), quando nos materiais de Passagen-Werk, no fragmento J 76a, 4, anota que o interesse ardente do historiador materialista é dirigido para o passado, “para a sua qualidade de ter completamente passado, acabado, de ser definitivamente morto” (idem, p. 111), o que lhe confere a possibilidade de ser citado, justamente. A citação de um passado concluído ou aberto remete de maneira indireta para a possibilidade ou não de citar a guerra por uma outra guerra: como se pode efetivamente pensar o problema da citação a partir de uma instabilidade do próprio ato de citar, sobretudo quando o objeto da citação já é algo em si não apreensível, não simbolizável, como a brutalidade da violência imediata, a violência da guerra, do massacre, ou o trauma da experiência histórica? Talvez o problema se possa contornar pensando a citação de tais lugares problemáticos, como um objeto politicamente vivo e ativo, a partir de outras citações menos imediatas que permitem uma desmontagem dos mecanismos de poder que as originam e reproduzem. Ou seja, a violência, assim como o espaço, embora de certo modo com um maior índice de

178 complexidade devido à inserção de uma instância temporal, dá uma forma ao poder cujas microfísicas se captam dentro de dispositivos e tecnologias extremamente sofisticados, produzindo um “saber” da violência, fragmentário e pouco constituído, que proporciona um “diagrama” – para Peirce, um signo que representa, em miniatura, a totalidade de um processo ou de um fenômeno (sobre esta acepção de diagrama, cf. VIRNO, 2005, p. 10). E a literatura pode ser o campo onde a citabilidade histórica, inclusive da violência da guerra, pode se tornar efetivamente viável. É preciso, porém, como sugerido acima, contar com “escritas da violência” para possibilitar o jogo citacional. Refiro-me aqui não só a um grande projeto internacional com este título, coordenado por Márcio Seligmann-Silva, Jaime Ginzburg e Francisco Foot Hardman, que realizamos ao longo de quatro anos (2006-2010) de diálogo e discussão intensos. Mas refiro-me sobretudo a casos onde a escrita da violência, de fato, consegue plenamente superar a sua aporia constitutiva: essencialmente ter que equacionar o infinito da violência, em si desmedida e sem forma, com o finito da escrita, de uma forma literária ou cultural. Um lugar onde certamente ocorre a textualização da violência, apesar de todas as suas inúmeras contradições e problemas, é em Os sertões, de Euclides da Cunha, no limiar da modernidade cultural brasileira (aliás, já plenamente no seu interior). Em outras ocasiões, já tentei discutir como Euclides chega a constituir uma escrita da violência (VECCHI, 2007) a partir de uma multiplicidade de técnicas não só literárias. Aqui me interessa sublinhar a operação de desmontagem crítica que opera no dispositivo da violência, da “guerra” de Canudos, que aproxima sua escrita das posições acima ilustradas, de uma violência que é, ao mesmo tempo, material, mas que conserva um resíduo de crueldade que não se dissolve. O ponto onde esta torção temporal entre a violência moderna e a barbárie ocorre é parte de um trecho dos mais conhecidos da obra euclidiana, mas vale sempre a pena “re-citá-lo”:

179 Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntesis; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava. Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo [...]. A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro. (CUNHA, 1998, p. 464)

A violência de Canudos exibe portanto a dupla vertente: uma matéria prima do poder que assim pode exercer sua soberania (pela “vida nua” do sertanejo), mas, ao mesmo tempo, o resíduo de barbárie que remete ao horizonte do mal que parece não poder prescindir da prática da guerra. É relevante também assinalar que o “diagrama” desta violência se fixa em uma escrita que se abre às possibilidades de citação e re-citação. Um evento como a guerra, que representa um “fato social total”, na esteira da reflexão de Durkheim ou Mauss (MONTANARI, 2004, p. 37), que coagula uma qualidade e uma quantidade de violência não só instrumental, cuja intensidade alimenta tanto o terror como o horror, as duas componentes do “horrorisimo” da violência contemporânea (CAVARERO, 2007, p. 18); coagula-se numa forma, numa escrita, e pode assim circular, não linearmente, através da citação, por outros contextos bélicos. Tornando-se material de outras escritas, portanto. Um exemplo onde a literariedade contribui, pela força da citação, para uma apreensão não literal da violência e do horror de outro modo não representáveis, surge justamente, a partir do gesto de fundação de Euclides, em Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (1911). Como se sabe, na terceira parte do romance, é a repressão da Revolta da Armada de 1893 no Rio de Janeiro que forma o pano de fundo histórico da guerra e da

180 violência. O romance é fortemente tributário de Os sertões e, de maneira mais geral, de toda a obra euclidiana: pense-se, por exemplo, no célebre retrato do General Floriano Peixoto inspirado em “O marechal de ferro”, crônica de 1904, ou na ficção “A esfinge. De um diário da revolta”, ambos publicados em Contrastes e confrontos (1907). Mas é no momento da escrita da violência que a “citabilidade” do horror é acionada para dar conta de uma Gewalt imanente cujo resíduo de mal, porém, é indissociável, como se depreende da carta que Policarpo escreve à irmã Adelaide depois de ter participado na repressão sangrenta da insurreição militar:

Que combate, milha filha! Que horror! Quando me lembro dele, passo as mãos pelos olhos como para afastar uma visão má. Fiquei com um horror à guerra que ninguém pode avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, chorões sinistros, imprecações – e tudo isto no seio da treva profunda da noite... Houve momentos que se nos à baioneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de trogloditas, uma cousa pré-histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... Eu não vi homens de hoje; vi homens de Cro- Magnon, do Neanderthal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo também fez das suas, também foi descobrir dentro de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim... (BARRETO, 1997, p. 239-240)

181 Neste tributo a Euclides (cujo idealismo ingênuo, aliás, é parte da construção da própria personagem principal) não se trata só da valorização de uma tática de massacre que ocorre de acordo com rituais predeterminados (por exemplo, o uso da faca etc.), mas de certo modo de uma citação que ativa um circuito simbólico que torna uma escrita da violência a chave de desmontagem de uma outra cena de violência. O horror encontra assim nos palimpsestos textuais o modo para reciclar a matéria-prima da violência representada, possibilitando, no plano literário, outras potenciais representações. O romance de Lima Barreto, além de um clássico justamente consagrado, é, como se sabe, um poderoso dispositivo de desmontagem das retóricas autoritárias da República Velha e, de modo mais geral, dos depósitos simbólicos que se acumularam desde os tempos da colônia. Seu funcionamento foi já em vários momentos dissecado, mas ainda hoje uma leitura que não perdeu sua cortante força crítica é a de Silviano Santiago (1982). Nela, o crítico propõe uma leitura do romance barretiano a partir de uma releitura da Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha, texto iniciático do Brasil, mostrando que, enquanto no texto limiar da colonização a escrita coagula uma polissemia marcando como principal o significado figural do termo, no romance se realiza uma desmetaforização do termo historicamente atestado em prol de uma valorização do seu sentido próprio (SANTIAGO, 1982, p. 180). O operador desta desmetaforização é o próprio protagonista, que assume como literal o que pelo contrário é literário, inscrito nos cinco séculos do arquivo da Brasiliana. E o equívoco desmistificador, que revela o caráter puramente retórico do ufanismo nacionalista que dissolve no contato com a realidade, conduz ao desfecho trágico da obra. Ou seja, o discurso é virado às avessas por contínuas inversões realizadas através de figuras discursivas de contraste (como a ironia). No entanto, é oportuno assinalar uma cesura na parte dedicada à guerra decorrente da Revolta da Armada: como viu Alice Áurea Penteado Martha, há de fato uma acentuação na carnavalização da história justamente na parte da

182 reconstrução bélica, onde a excentricidade baktiniana das ações configura um conflito insuperável com a subversão do contexto onde a guerra é descrita como festa, numa troca grotesca, excêntrica, justamente, de significados (MARTHA, 1992, p. 124). O trecho em questão também é bastante famoso:

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu. Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: "Queimou Santa Cruz! Agora é o 'Aquidabã'! Lá vai!" E dessa maneira a revolta ia, familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade. Nos cais Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornais, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinários, das árvores, a ver, a esperar a queda das balas; e quando acontecia cair uma, corriam todos em bolo, a apanhá-la como se fosse uma moeda ou guloseima. As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relógios, lapiseiras, feitas com as pequenas balas de fuzis; faziam-se também coleções das médias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam os consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os "melões" e as "abóboras", como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estátuas. (BARRETO, 1997, p. 206-207)

Agora ocorre notar, em relação ao romance como um todo, que, no caso da guerra, a desmontagem do discurso ocorre de maneira própria e diferente em relação, por exemplo, às duas primeiras “utopias” narradas – a

183 do nacionalismo cultural e a da fertilidade edênica da terra. Aqui a exceção é revelada através do excesso da textualização. A narração nesta circunstância também acaba por expor os mesmos limites inscritos na utopia política relacionada com o mito da ideologia do cordialismo, porém, mais do que uma desmetaforização, temos uma inversão radical que mostra a realidade pelo seu drástico avesso, onde o ato ficcional revela de imediato as regras que o articulam e o sustentam. Um investimento assim se motiva só pela complexidade de um objeto, a guerra, que de outro modo poderia ficar no horizonte do irrepresentável. Sobretudo se, aqui como em Os sertões, o excesso procura radiografar, ou melhor, espectrografar (no duplo sentido, literal e figurado, do termo) o horror da violência, a sua conexão com o mal e a crueldade. Um irrealismo proporcionado ao idealismo que sempre se associa ao material da violência, mesmo quando se procura a sua (impossível) escrita imanente. Sem literatura, a possibilidade de escrita da violência escaparia. Sem querer confundir textos tão heteróclitos como o ensaio de Benjamin e o romance de Lima Barreto, no seu decisivo eixo final, pode-se, no entanto, considerar que as duas escritas possibilitam uma transcrição da violência a partir da “violência” do gesto que as origina enquanto escritas. Se a violência extrema, como a da guerra ou do massacre – sendo este uma técnica que paradoxalmente implica uma “narrativa” comunitária, assim como evidencia Arjun Appadurai a propósito dos massacres étnicos (2005, p. 48) –, está marcada por uma economia do excesso (SOFSKI, 1998, p. 155), do mesmo modo a sua escrita se conota por uma contrapartida figural adequada. A apreensão da exceção surge pela acumulação possibilitada pelo excesso da escrita sobre o excesso da violência. A força da sua citabilidade decorre justamente daí. Por isso, a escrita da guerra, no momento em que se realiza como um todo (Euclides), já se tramita (Lima Barreto) abrindo-se para outras possibilidades de citação. Nela, a violência pode exibir o rosto oculto, espectral, mas não racalcável, da crueldade, que, apesar de tudo, do esforço de presentificação da violência em si, de uma violência material, não se dissolve

184 e resta. E para encerrar por onde começamos, talvez seja esta condição dual, de uma violência indissociável em absoluto do mal ou de restos da crueldade, legível e revelada pela escrita literária, que torna sempre a crítica da violência, como intuiu Benjamin, “a filosofia da sua história” (BENJAMIN, 1962, p. 29).

Referências

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APPADURAI, Arjun. Sicuri di morire: la violenza nell’epoca della globalizzazione. Roma: Meltemi, 2005 [1998].

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BARRETO, Afonso Henrique de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Ed. Crítica Antonio Houaiss e Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo. Madrid: ALLCA XX, 1997.

BENJAMIN, Walter. Angelus novus. Saggi e frammenti. Torino: Einaudi, 1962 [1955].

______. Sul concetto di storia. A cura di G. Bonola e M. Ranchetti. Torino: Einaudi, 1997.

CAVARERO, Adriana. Orrorismo ovvero della violenza sull’inerme. Milano: Feltrinelli, 2007.

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DERRIDA, Jacques. Forza di legge. Il fondamento mistico dell'«autorità». Torino: Bollati Boringhieri 2003 [1994].

185 HOBBES, Thomas. Leviatano la materia, la forma e il potere di uno Stato ecclesiastico e civile. Roma-Bari: Laterza, 1989.

MARTHA, Alice Áurea Pentendo. “Policarpo Quaresma: a história carnavalizada” In: Revista de Letras. São Paulo: 1992, n. 32, p. 119-125.

MONTANARI, Federico. Linguaggi della guerra. Roma: Meltemi, 2004.

SANTIAGO, Silviano. “Uma ferroada no peito do pé (dupla leitura de Triste fim de Policarpo Quaresma). In: Vale quanto pesa (ensaios sobre questões político- culturais). São Paulo: Paz e Terra, 1982, p. 163-181.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Walter Benjamin. O estrado de exceção entre o político e o estético”. In: Outra Travessia. 2005, n. 5, 25-38.

SOFSKY, Wolfgang. Saggio sulla violenza. Torino: Einaudi, 1998 [1996].

TORNO, Armando. La moralità della violenza. Considerazioni sul male della storia. Milano: Mondadori, 2003.

VECCHI, Roberto. “Spazio, storia, classe nei Sertões euclidiani”. In: ARSILLO, Vincenzo; FIORANI, Flavio (eds). Sertão-Pampa. Topografie dell'immaginario sudamericano. Venezia: Cafoscarina, 2007, p. 22-43.

VIRNO, Paolo. Motto di spirito e azione innovativa. Per una logica del cambiamento. Torino: Bollati Boringhieri, 2005.

Notas

1 Doutor em Iberística pela Universita degli Studi de Bologna (UNIBO, Itália). Professor Associado de Literatura Portuguesa e Brasileira na Facoltà di Lingue e Letterature Straniere, Università degli Studi di Bologna.

186 AS CICATRICES DA CENSURA NA NOVA NARRATIVA GALEGA 1

Maria Teresa Bermúdez Montes (UVIGO) 2

As consequências da Guerra Civil espanhola: a “longa noite de pedra” da ditadura franquista

A Guerra Civil espanhola se produziu entre 1936 e 1939, como resultado do levantamento militar de orientação fascista liderado pelo general Franco, contra a democracia espanhola da 2ª República (1931-1936). Conseguida a vitória pelo bando fascista, instaurou-se o regime ditatorial franquista entre 1939 e 1975, ano do falecimento do ditador. Esta mudança violenta teve consequências catastróficas para a edição em língua galega. A literatura conhecera momentos de expansão, modernização e atualização muito notáveis durante a 2ª República. Paralelamente, as consequências também foram trágicas para os escritores e editores republicanos que defendiam o nacionalismo galego, chamados galeguistas. Assim, deram-se diversas possibilidades de desenlace para esses autores e editores: em primeiro lugar, a execução pelas mãos das forças golpistas de Franco. Isto foi o que aconteceu ao editor Ánxel Casal e prefeito de no momento do início da Guerra Civil, que fora o principal impulsor da edição em galego, à frente das editoras Nós e Lar. Em segundo lugar, o exílio, sofrido pelo escritor e deputado do Partido Galeguista no Parlamento Espanhol, Alfonso Daniel Rodríguez Castelao, até sua morte em Buenos Aires em 1950. Em terceiro lugar, a represália e o afastamento da função docente, como foi o caso do escritor e catedrático de Geografia Ramón Otero Pedrayo, que só muitos anos depois recuperaria seu posto no ensino público e acenderia à cátedra universitária (Universidade de Santiago de Compostela). No pólo oposto, existiu também uma quarta possibilidade representada pelo escritor : a adesão ao Regime, fosse por medo ou por simpatia ideológica.

187 A recuperação editorial da literatura galega

Entre 1949 e 1950 produziu-se importantes projetos editoriais. Se em 1949 nasciam Bibliófilos Gallegos e Edicións Monterrey, 1950 será o ano de Galáxia, navio insígnia do galeguismo. Na época, o nacionalismo galego ou galeguismo fundamentava-se na defesa da identidade histórica e do fato diferencial galego, com o objetivo de lograr a sua reivindicação de uma autonomia plena para a Galiza. A editorial Galáxia foi o motor fundamental da recuperação da edição galega. Formada por sobreviventes do galeguismo de pré-guerra e com Ramón Piñeiro (militante do PG represaliado pelo Regime) como diretor literário, Galáxia contou com um conselho editorial de sólidas convicções e com um firme compromisso de impulsionar a cultura, o pensamento e a literatura galegas. Eram tempos de dificuldades dobradas para aqueles que escreviam em línguas regionais, isto é, para os que, em opinião dos guardiães do Regime, escreviam “com faltas de ortografia na pluma e na alma” (APARICIO, 1951 apud DASILVA, 2009). Esse foi o caso de Galáxia, ao pretender difundir na coleção Grial textos de Martin Heidegger que ainda não tinham sido traduzidos mesmo ao espanhol (DASILVA, 2009). Durante décadas, os homens da geração Galaxia lutaram com perseverância contra os contratempos e a perseguição da censura: deverão suspender a coleção Grial a princípios dos anos 50, pois não era admissível expressar pensamento filosófico ou ensaio científico em língua galega. De fato, a censura franquista “revestiu um duplo caráter: a “ordinária”, comum ao resto de elaborações culturais; e a “idiomática regional”, pois o projeto de unidade nacional concebido por Franco excluía toda língua que não fosse o castelhano” (MORENO CANTANO, 2008, p. 144), isto é, o catalão, o vasco e o galego. Com força, empenho e vontade, os impulsores de Galáxia conseguiram ganhar novas plumas para a língua galega e enriquecer o panorama das letras galegas. A maioria das obras do movimento da nova narrativa galega serão editadas por este editorial.

188 Desde o exterior, na América Latina, os exilados galegos também contribuíram de modo decisivo para a sobrevivência e continuidade da edição de livro em galego, para a reedição de clássicos dos séculos XIX e XX e para a publicação de novidades que não teriam franqueado a censura (como A esmorga, de Eduardo Blanco Amor). Os exilados se dedicaram também à edição de revistas (Galícia emigrante, Vieiros en México), bem como à promoção de novos talentos graças aos prêmios de entidades prestigiosas como o Centro Galego de Buenos Aires. Na narrativa, nutriram as coleções de Galáxia grandes vozes, que são clássicos indiscutíveis na literatura galega, com o que se reinicia a atividade interrompida por causa da guerra: Ramón Otero Pedrayo, Alvaro Cunqueiro e Ánxel Fole são as grandes figuras da época.

Novas vozes. A vanguarda narrativa

A denominação nova narrativa galega se refere a um conjunto de obras narrativas de jovens autores, caraterizadas pelo seu afã renovador na técnica e na temática. Publicadas na Galiza no período compreendido entre 1954 e 1971, o nome se inspirou na etiqueta nouveau roman francês, com o que alguns de seus autores se sentiram identificados nessa época. Os escritores e escritoras agrupadas na nova narrativa nasceram na década dos 30 e 40 do século XX e não viveram a Guerra Civil de modo direto, mas sofreram suas consequências ao crescer na Espanha franquista e estarem sujeitos ao sistema educativo da ditadura, que impunha um discurso ideológico nacional-catolicista, impossibilitava o acesso aos textos e ideias proibidas e, fundamentalmente, reprimia as chamadas “línguas regionais”. O elemento identificador desta geração de jovens dos anos 50 e 60 – homens e mulheres com formação universitária, viajantes e abertos a Europa (Gonzalo Rodríguez Mourullo, Xosé Luís Méndez Ferrín, María Xosé Queizán, Camilo Gonsar, Xohán Casal, Vicente Vázquez Diéguez, Lois Diéguez, Carlos Casares e Xohana Torres) – era a vontade de atualizar -se, de expressar-se e de fazê-lo de um jeito

189 moderno, com um “desejo de renovação absoluta do relato, de acordo com as mais novas técnicas da ficção” (MÉNDEZ FERRÍN, 1984). Os novos narradores compartilharam a vontade de recuperar e normalizar a escrita em galego, com a vontade de reestabelecer o contato com a tradição de uma literatura própria, anterior à Guerra Civil. Na atualidade, tanto na crítica como no sistema educativo, esta tendência vanguardista se considera uma das linhas principais de criação e renovação na narrativa galega do século XX, fundamental no desenvolvimento do gênero até a época contemporânea. A nova narrativa galega está caracterizada pela subjetividade e a conotação, pelo uso do símbolo e a alegoria, pela ausência de localização espacial e temporária, pelas reduções temporárias, pela temática do absurdo da existência, pela ausência de nomeação dos personagens (identificados como máximo por iniciais ou por nomes exóticos) e, finalmente, pelos ambientes misteriosos. No seu aparecimento, foram fundamentais fatos como a restauração das Festas Minervais (festival literário da USC), a colaboração dos jovens intelectuais galeguistas no jornal La Noche e a criação duma coleção (Illa Nova), reservada aos jovens autores na editorial Galáxia. Também foi determinante o aparecimento na década dos 60 do nacionalismo marxista (MÉNDEZ FERRÍN, 1984). Em definitiva, a nova narrativa galega supôs um fenômeno literário com pretensões de ruptura com o estabelecido, marcado pela vontade de atualização da narrativa galega e pela vontade de assumir correntes de pensamento européias e norte-americanas já dominantes na escrita de criação em nível mundial, tudo isso combinado ao afastamento da estética realista e social-realista presente na narrativa espanhola da época.

Censura e autocensura

A censura se considera um fenômeno universal, presente em quase toda época ou lugar. Mas, com certeza, o controle sobre o que é conveniente ou não conveniente expressar se evidencia com maior intensidade e menor

190 conserto no caso dos regimes ditatoriais, acompanhado de uma violenta repressão cultural. Entendemos por censura literária “o conjunto de atuações do estado, grupos de fato ou de existência formal capazes de impor a um manuscrito ou às provas de granel da obra de um escritor –antes da sua difusão– supressões ou modificações de qualquer classe, contra a vontade ou aprazimento do autor” (ABELLÁN, 1987, p. 16). O estado franquista exerceu uma clara censura institucional desde seus primeiros dias. Isto já se expressou de jeito explícito na legislação do bando insurreto no mesmo ano 1936, ao indicar textualmente que era preciso impedir que se semeassem “idéias perniciosas” nos “intelectualmente débeis” (BOE, 550, 1936, p. 6940). Nesse mesmo texto se estabelece a potestade do Ministério correspondente para castigar todo escrito que o faça. Em realidade, baixo a retórica paternalista só se procura a anulação das liberdades dos indivíduos, ao “impedir a difusão de valores simbólicos e semióticos julgados contrários” àqueles admissíveis pelas forças que exercem a autoridade (ABELLÁN, 1980, p. 108) para assim impor os próprios. Já está presente a pretensão de invisibilidade, característica do controle censório, que persegue a imposição da ideologia dominante sem deixar pegada dos seus esforços. O conjunto do sistema literário vê-se afetado pela ameaça da censura (CURRY, 2006, p. 91). Além da idoneidade da obra literária em si, se examinava o perfil de autores e editores. Era preceptiva a petição às delegações provinciais dos relatórios político-sociais dos escritores: se forem “não-afetos”, “não afins” ao Regime, a licença de publicação podia denegar-se. Também se vigiava o perfil e trajetória da editora, à que se podia negar a publicação de uma obra por culpa da sua desafeição ou falta de respeito ao Regime ou por choques anteriores com a censura. Portanto, as editoras galegas deviam harmonizar com as regras impostas pelo governo ditatorial tanto o seu compromisso com a construção do futuro da Galiza como a sua aposta pela recuperação cultural.

Uma das manifestações da censura é a autocensura, que se define como aquelas medidas de prevenção

191 que, consciente ou inconscientemente, um escritor adotar com o propósito de iludir a eventual reação ou repulsa que seu texto possa provocar em todos ou alguns dos grupos ou corpos do Estado com a potes- tade para lhe impor supressões ou modificações com seu consentimento ou sem ele. (ABELLÁN, 1982, p. 169; 1987, p. 18)

Assim, a autocensura pode ser consciente, se produzir modificação ou recorte de textos, sejam estes prévios à apresentação ou bem posteriores: a censura podia pôr como condição que se fizessem determinadas supressões para a obra ser publicada. Mas também se dá a autocensura inconsciente, mais sutil, mas provavelmente dotada de maior efetividade, pois nasce da interiorização da censura por parte do escritor ou editor. Consiste assim numa autorrepressão na consciência dos próprios indivíduos que são vítimas da censura, que se vêem obrigados assim a acomodar um pequeno censor em sua mente. O resultado é também o desenvolvimento de estratégias expressivas para cifrar e disfarçar a mensagem, para conseguir que esta passe de contrabando. Portanto, esta autocensura (enquanto interiorização dos limites impostos pela censura) se converte em consequência inevitável do processo de controle do discurso público.

A censura franquista

O Regime franquista adotou o nacional-catolicismo como ideologia, com o catolicismo tradicionalista e o anticomunismo como valores centrais (TORREALDAI, 1999, p. 22). O dirigismo da censura franquista mantém-se no essencial ao longo de todo o período, incorporando “algumas variantes e modificações”, mas sem afastar-se no substancial do “modelo cultural, linguístico e informativo” de origem fascista do partido no poder, a Falange Española (TORREALDAI, 1999, p. 24). As modificações perseguiam atualizar as medidas para adaptar-se assim às necessidades de controle da informação do Regime, num caminho que pretendeu transitar do “dirigismo à vigilância”

192 (TORREALDAI, 1999, p. 7). Depois da 2ª Guerra Mundial e numa conjuntura internacional marcada pela guerra fria, muda o cenário político e o Regime de Franco não só não foi sancionado mas também começou a ser aceitado internacionalmente, graças a seu anticomunismo militante. O Regime franquista saiu reforçado desta mudança. O controle censório ganhou em rigor e dureza. Além das preocupações ideológicas constantes da ditadura, destaca o cuidado obsessivo com que se tratam os aspetos relacionados com a sexualidade, tanto no plano temático como no expressivo – manifestado na repressão da linguagem indecorosa (ABELLÁN, 1980, p. 87-89, 114-115). No plano temático, a hierarquia das proibições era a seguinte: em primeiro lugar, não falar de sexualidade (sobretudo feminina), para apresentar o amor de modo abstrato e indireto; em segundo lugar, as proibições políticas; e em terceiro lugar, as proibições religiosas (NEUSCHÄFER, 1994, p. 9-10). A promulgação em 1966 de uma nova “Ley de Prensa e Imprenta” (LPI) trouxe consigo uma esperança de abertura. Mas a reforma supôs apenas uma aparência de liberalização: eliminava-se a obrigação de consulta prévia à edição para substituí-la pela “consulta voluntária” anterior ao “depósito prévio”. Na prática, o castigo para as obras impressas não aceitas era muito grande: a possibilidade de sequestro das edições, as fortes multas que se previa impor e as diversas represálias pelo que se considerava um delito com consequências penais. Tudo isto convertia em obrigada aquela consulta voluntária (ABELLÁN, 1975, p. 64).

A censura no caso galego

Os instrumentos de controle e repressão postos em funcionamento já no período da Guerra Civil perseguiam, como se disse, cortar a livre expressão e difusão das ideias não afins, para poder doutrinar com a máxima eficácia no sentido da ideologia oficial. A expressão escrita foi uma das modalidades afetadas e, especialmente, a escritura nas chamadas “línguas regionais”. No

193 marco de uma política linguística homogeneizadora do castelhano-espanhol, e claramente hostil aos usos formais de outras línguas do Estado, produziam- se manifestações públicas que qualificavam de “inconcebível disparate, um vandálico sacrilégio verbal, algo próximo à blasfêmia” (SIERRA, 1948) os usos formais do galego e, em concreto, o seu uso na “novela pós-freudiana” (LOSADA, 1987, p. 61). Portanto, existiram particularidades que agravaram o peso da censura no caso da literatura galega. Já atingida pela repressão linguística e pela diglossia que sofria a língua, sobre a que se transmitia desde o poder uma série de preconceitos para potenciar a ideia de sua inferioridade, a literatura galega padeceu uma censura acrescentada: não se considerava pertinente seu uso fora de determinados âmbitos aos que se pretendia relegar. Assim, no relativo à cultura galega, “outra preocupación da censura consistiu en ollar con lupa o emprego que se facía do galego como canle de expresión, por se traspasaba os espazos de uso nos que estaba confinado, reprimindo calquera desvío potencial” (DASILVA, 2009, p. 97). Além disso, parece que a confiança dos responsáveis da ditadura no peso esmagador da diglossia para os usos formais da língua galega, assim como o auto-ódio que, em consequência, sofriam muitos galego falantes, poderia ter causado uma aparente “brandura” ou certa permissividade com respeito às produções galegas, paradoxalmente. Os comentários dos censores incluíam palavras como “rural” ou destacavam um pretenso tom “lírico” de difícil identificação em algumas obras, por exemplo. No entanto, este aspeto benevolente não é em qualquer forma de menor eficácia censora nem repressiva, senão todo o contrário:

Conscientes os censores do complexo de inferioridade lingüística do galegofalante campesinho, insistiam uma e outra vez no caráter de língua rural, de língua que impedia a quem a usasse o acesso aos níveis de representação e de cultura. Neste sentido, a repressão,

194 mais psicológica do que violentamente impositiva, foi de uma eficácia induvidável LOSADA,( 1987, p. 62-63).

Tudo isto vinha por ser o “separatismo” uma “das causas primeiras que empurraram a Espanha para o caos e a desordem, na consideração das forças do Regime ditatorial” (MORENO CANTANO, 2008, p. 148). O controle destas literaturas diferentes perseguia um objetivo claro, visto que se precisava de “uma nova política, uma nova ordem, uma nova cultura” para construir o novo Estado que fosse o “alicerce sobre o que assentar a ideologia do Estado franquista” (MORENO CANTANO, 2008, p. 149). Os efeitos da censura nas literaturas das línguas minorizadas (galego, catalão e vasco) tiveram muito em comum, com pequenas nuances. Assim, topamos nos três casos: autocensura profilática, ruptura geracional (que os novos narradores galegos tratam de superar), perda de vocações literárias e, fundamentalmente, criação de códigos semânticos, isto é, “desenvolvimento de uma escritura entre linhas, uma linguagem elíptica, imperceptível para o censor, só para iniciados, sugeridora e evasiva” (TORREALDAI, 1987, p. 86-88). Entre os novos narradores, alguns reconhecem uma autocensura consciente (Casares admitiu a autolimitação), enquanto outros apontam à elaboração inconsciente: Méndez Ferrín faz referência a estratégias de expressão alternativas, quando indica: “inconscientemente había que ter algunha estratexia elíptica” (BERMÚDEZ, 2002, p. CXXII).

A nova narrativa galega, censura e autocensura

Os informes das leituras feitas pela censura se guardam no Arquivo Geral do Estado Espanhol (Madri). As considerações efetuadas pela censura a respeito das obras da nova narrativa galega refletem em geral uma atitude paternalista, favorecida pela juventude dos autores e pela localização das obras em ambientes neutros ou estrangeiros. Assinalam-se detalhadamente as alusões ao poder e aos militares, a aspetos sexuais ou, simplesmente, a utilização de vocabulário sexual. Em geral, o fato de não ter “tendência

195 política” explícita e de não ir para além da sugestão e da alegoria contribuiu grandemente para abrir o caminho da publicação de obras da nova geração de vangarda, assim como a presença de ironia e a introdução do subconsciente dos personagens. No caso de Cambio en tres (CASARES, 1969), o fato de o protagonista se identificar pelo apelido Cachorro resultou ser providencial, para conseguir publicar a forte crítica ao sistema econômico, à injustiça e, sobretudo, à exploração da classe trabalhadora que se desenvolve na obra. O censor caiu na confusão ao interpretar um nome próprio (o apelido, escrito sempre com maiúscula) como um nome comum. Definitivamente, a consideração da literatura galega como popular, vinculada ao campo e à atividade agrícola, à tradição do conto popular e, em qualquer caso, longínqua de reivindicações explícitas, parece ter propiciado uma atitude não beligerante contra os textos da nova narrativa. Esta atitude situa-se umas vezes próxima ao paternalismo, mas paradoxalmente pôde favorecer a leitura de contos como os de Méndez Ferrín em O crepúsculo e as formigas (1962) como totalmente inocentes. Nesta valoração influiu também sem dúvida a juventude e a carência de “antecedentes políticos” dos jovens autores e autoras, que não contavam nessa altura com uma significação ideológica explícita nem com um passado marcado negativamente ante os olhos do Regime.

Escritas oblíquas

Com relação à submissão ao controle censório, podem distinguir-se dois tipos de textos: 1) os que sofreram supressões, modificações, mudanças aconselhadas, etc, por uma parte; 2) os que não sofreram incidências, sobre os que se deve ter presente que “o fato de que um texto não sofresse incidências não significa que a autocensura não atuasse”; pelo contrário, “pode ser indício de que o autor conseguiu passar a mensagem ‘de contrabando’” (DE BLAS, 2007, p. 10).

196 Estendeu-se por parte da literatura produzida baixo o franquismo o que se veio denominando “linguagem em espiral”, “linguagem de alusões”, “linguagem camuflada”, “linguagem rebuscada, reptante, sinuosa, astuciosa”, que produz uma “escritura contorcida e difícil, com uns códigos criptográficos feitos de subentendidos e símbolos, uma linguagem clandestina para uso de minorias” (TORREALDAI, 1999, p. 293).

Freud e o disfarçamento das mensagens. Efeitos da censura na nova narrativa

Resulta muito útil lançar mão do paralelismo entre sonho e criação literária, da mão da Interpretação dos sonhos (1900), de Sigmund Freud, que é para Neuschäfer “texto fundamental sobre o discurso da censura” (1994). O ponto de conexão vem dado pela existência de repressão interna (autocensura), por causa da interiorização da censura: pretende-se comunicar questões “indecentes”, no sentido de proibidas e convertidas em tabu pelo sistema social de valores vigente nesse momento. Então, além de estudar a censura como “fator inibidor da comunicação”, resulta indispensável rastrear e analisar os “recursos que utiliza a imaginação para evitar os obstáculos que se opõem à comunicação” (NEUSCHÄFER, 1994, p. 56). Fruto da dialética entre inibição e camuflagem surgem determinados mecanismos para falar em código e “passar de contrabando as mensagens”. Em primeiro lugar, falar “por meio de alusões em lugar de utilizar expressões diretas”; em segundo lugar, a moderação do discurso, isto é, o fazer parecer inofensivo; em terceiro lugar, desfigurar, camuflar, disfarçar, cifrar de maneira que o sentido passe despercebido ao censor (NEUSCHÄFER, 1994, p. 56-57). As técnicas de camuflagem fundamentais são odeslocamento (projetar um contexto conceptual à periferia ou ao exterior: situar a ação no estrangeiro ou projetá-la “a um lugar periférico”) e a condensação –símbolo, equivalência e pars pro toto, ou representação da parte pelo todo – (NEUSCHÄFER, 1994, p. 57). Graças a isto, um texto alegórico pode não ser percebido como tal, mesmo

197 se atingir a alegoria política. Nos textos da nova narrativa empregaram-se frequentemente uma série de recursos que são coincidentes com as táticas para vencer a censura às que acabamos de nos referir. Entre eles se encontram saltos cronológicos, desdobramento de personagens, confusão entre fantasia e realidade, entre outros. O recurso a atmosferas mais ou menos irreais, à ausência de nomes ou à invenção de nomes irreconhecíveis resultava, com certeza, muito efetivo para burlar o controle do sistema. Também o recurso a localizações no estrangeiro, a ausência de nominação, os saltos temporários ou a disgregação dos personagens (com frequência seres marginais ou animais) ajudam a burlar à censura. Por sua vez, Mª Xosé Queizán manifesta a influência da censura à hora de deslocar os cenários e épocas, mas fala também de outras consequências no aspeto formal e estilístico dos textos. A autora faz alusão implícita ao deslocamento e à condensação, quando vincula “a mutilación que se facía da nosa expresión literária nacional a cargo da censura gubernamental” com o uso de “nomes exóticos, a ubicación da acción narrativa, as alegorías e simbolismo en xeral” (QUEIZÁN, 1979, p. 77). Nestas circunstâncias, a autocensura consciente ou inconsciente impunha-se. Um exemplo de recortes conscientes de mão do editor, proporciona-no-lo o caso do relato “Cinco mortes” de Xohán Casal, incluído em O camiño de abaixo (1970). Por tratar-se de um relato em que se narra um episódio cruento do confronto entre guerrilheiros fugidos no monte e forças da ordem (“guárdia civil”), os editores tomaram a decisão de fazer uma série de modificações no original, antes de submetê-lo à censura. Assim, eles substituem “Garda Civil” (no original manuscrito) por “Polícia rural” (que para um espanhol não quer dizer nada), também se substitui a cor verde dos uniformes pela cor marrom (uniformes “pardos”) e os topônimos reais que Casal tinha utilizado por outros inventados, para obter assim um verdadeiro deslocamento que permitisse burlar os controles.

198 Neste marco, deve-se ter em conta também o leitor: uma literatura em cifrado precisa de um leitor e mesmo de uma crítica em cifrado (DE BLAS, 2007, p. 12). Mas nem todos os leitores serão capazes de assumir o desafio, pelos próprios efeitos da censura. Talvez não foram alheios a este fenômeno a rejeição e a incompreensão de uma parte da crítica galega para as obras da nova narrativa, às que recriminavam seu carácter evasivo, sua falta de realismo e seu pretendido desarraigamento. Os novos narradores se defenderam destas acusações e apontam aos controles censoriais como as verdadeiras raízes da ausência de referências visíveis (BERMÚDEZ, 2002, p. XCVI).

Cicatrices invisíveis. A sombra da censura

Em primeiro lugar, a existência da censura impõe sempre a moderação do discurso. Deste modo, a inibição da comunicação pode considerar-se um dos resultados intratextuais da censura. Esta inibição supõe silêncio, isolamento, incompreensão, que se representam em boa parte dos relatos da nova narrativa. Assim, a impossibilidade de uma comunicação completa é marca fundamental dos contos de Rodríguez Mourullo (“Carta sen direção”, em Memórias de Tains), da narrativa pungente e lancinante de Casal nos seus contos. A incapacidade de compartilhar códigos e conseguir uma comunicação provoca nos personagens sensações de vazio gélido, de medo e desconcerto. O distanciamento e o estranhamento do narrador é uma das características da modalização na nova narrativa. O discurso narrativo chega- nos com frequência desde a voz de personagens periféricos, marginalizados ou, em todo caso, sem posição central na sociedade (mendigos, bêbados, animais). Isto supõe para o narrador uma limitação da perspectiva, isto é, um recorte da mirada. Deste jeito manifesta-se o recurso à moderação. A projeção da ação à periferia ou ao exterior e a localização no estrangeiro são técnicas de camuflagem por deslocamento. No estrangeiro situam-se os romances A orelha no buraco e Como calquer outro dia (Londres), ou o conto “Viaxe a traveso da noite” (de Lonxe de nós e dentro). O próprio

199 título desta coleção de contos bem poderia se entender como paráfrase do “estrangeiro interior” (inneres ausland) de Freud. A ausência de nomes e o uso de iniciais para designar pessoas e lugares é caraterística dos relatos de Rodríguez Mourullo (S., M.V., avenida T). Por outra parte, são típicos da narrativa de Méndez Ferrín os nomes exóticos ou literários – como Percival – e frequentemente inventados (Ok, Grieih, Els Bri, Eikof, Nijmenk, O. Phea, Nokao, Anceps, etc.), além de expressões genéricas (“Vella”) e pouco concretas (“home do Sul”). Ademais, em “Percival” (Percival e outras histórias) produz-se um deslocamento consistente na atualização do mito do cavaleiro do ciclo artúrico: situa-se ao herói num meio urbano e contemporâneo, posto ao serviço da representação da problemática da Galiza. Produz-se com frequência, nos textos da nova narrativa, a presença de personagens marginais e alienados. Um alcoólico protagoniza o terrível “Monólogo” (em Vento ferido), enquanto a deformidade e a marginalidade social determinam o caráter dos personagens dos contos de Méndez Ferrín, como “Lorelai”, “Crime do chalet vermello” ou “O verdugo”, entre outros. No melhor dos casos, os personagens vagam sem rumo por ruas de cidades com frequência desconhecidas para eles (Arrabaldo do norte, contos de Camilo Gonsar em Lonxe de nós e dentro, por exemplo). Também são numerosos os protagonistas infantis, em ocasiões como testemunhas, vítimas ou mesmo agentes de episódios violentos. Encontramos isto em relatos de Méndez Ferrín (“O Suso”) ou de Casares (Vento ferido, Cambio em três), por exemplo. Certamente, enquadrar situações de abuso, agressão ou confronto num contexto infantil pôde contribuir a que não se lessem de um modo tão problemático como se fossem protagonizadas por adultos (deslocamento). Com frequência são protagonistas os animais que prestam voz e perspetiva à narração. Sucede isto nos relatos de Xohán Casal em O camiño de abaixo (“O sapo” e “A visita”, protagonizado por uma aranha com sentimentos humanos), de Méndez Ferrín (“Grieih”, protagonizado por um grilo, ou “Mantis relixiosa”). Também se dá na narrativa de Casares nesta primeira época: assim,

200 no seu primeiro romance apresenta como protagonista a um jovem que tem o apelido de “Cachorro” e serve-se das moscas como símbolo da degradação das condições de vida do ser humano, num procedimento que se pode vincular com o “encapsulamento interior”. Por outro lado, são muito significativos na nova narrativa os recursos vinculados ao procedimento da condensação. O símbolo e a alegoria articulam o discurso narrativo em Arrabaldo do norte, de Méndez Ferrín. Na novela, os vizinhos desse “bairro” do norte sentem-se diferentes da gente do sul, intrusos, e procuram liberar-se de seu poder sobre eles. Um paralelismo com a situação da Galiza e do galeguismo da época permite uma leitura em chave de alegoria político-social, referida à Galiza (nação periférica e, portanto, arrabalde do Estado, com pretensões de autonomia ou independência) submetida pelo franquismo, afetada pelas dissensões entre galeguistas do interior e exilados e em plena transformação sócioeconômica (em trânsito do âmbito rural ao urbano). Carente de significação política para a censura nos anos cinquenta, em 1964 Méndez Ferrín começava a intensificar a expressão de seu compromisso político. Os espaços fechados, escuros e opressivos destacam nas obras da nova narrativa. Os ambientes noturnos e os cenários marcados pela escuridão estão presentes em diversos relatos (em “Cinco mortes”, por exemplo), vinculados ao símbolo do huis clos ou da casa isolada (NEUSCHÄFER, 1994, p. 57).

Uma conclusão

Definitivamente, a censura condicionou a literatura galega tanto de modo direto como indireto. No que atinge à nova narrativa galega, a impressão do controle da censura se deixa notar muito pouco em recortes diretos – certamente escassos –, em proibições ou sequestros, para se manifestar, sobretudo na utilização de estratégias discursivas de camuflagem. Os efeitos do emprego destes recursos (deslocamento, situação no estrangeiro, símbolo) coincidem com as características que definem a nova narrativa. As estratégias

201 de disfarçamento e de contrabando conseguiram fazer passar com tal eficiência as mensagens – profundamente comprometidas com a Galiza e com a liberdade, no fundo – destes jovens escritores, que inclusive conseguiram confundir a uma parte da crítica da época.

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Notas

1 Este trabalho representa uma contribuição na pesquisa sobre a relação entre repressão, controle censório e produção literária. Centraremo-nos no acontecido na literatura galega e, mais em concreto, no tratamento recebido pelos textos incluídos na chamada nova narrativa galega, a narrativa com vontade de vanguarda escrita entre 1954 e 1971. 2 Professora Doutora do Departamento de Filologia Galega e Latina da Universidade de Vigo (Galiza, Espanha). Este texto é uma reelaboração da palestra proferida na Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas a 20 de agosto de 2010, com o título “Narrativa galega e censura franquista”, a convite da Cátedra Amazonense de Estudos Literários.

203 204 PRÊMIO DE CRÍTICA LITERÁRIA FERREIRA DE CASTRO – EDIÇÃO 2010 1º LUGAR REVISITANDO OS EMARANHADOS D´A SELVA

Maria Heloísa Martins Dias (Unesp)1

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Homi Bhabha

Uma das mais férteis aberturas que os estudos culturais têm promovido no campo da literatura, em especial para seu enfoque crítico, é a percepção de que se torna quase impossível abordar o objeto literário sem considerá-lo parte de uma dinâmica em que relações múltiplas e transitórias permutam seus sentidos. Pela própria natureza da linguagem, signo plurissêmico e móvel, o seu funcionamento estético incorpora as tensões entre Eu e Outro, identidade e alteridade, bem como os desdobramentos que essa dialética acaba pondo em jogo: o familiar e o desconhecido, o aquém e o além, tradição e invenção, afirmação e rasura, dentre outras tantas ambivalências. Na produção literária, sobretudo no âmbito ficcional, a presença desse jogo tensivo adquire diversas formas de representação, graças às estratégias composicionais colocadas em cena pelo discurso narrativo. Seja em contos ou romances, o espaço da ficção é permeável a essa trama de impulsos ou apelos contrários existentes no tecido cultural. Colocando em foco um cenário individual ou coletivo, a linguagem narrativa faz despontar os conflitos que emergem da relação entre o sujeito e o mundo, movidos ambos pela crise ou clivagem de suas identidades, o que acentua a não-sintonia, o desconcerto entre essas instâncias. Não rimar com o mundo (lembremos os versos de Carlos Drummond de Andrade: “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me

205 chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução.”) transforma-se, enfim, numa condição ideal para a escrita. Um desconcerto (e desencanto) apre(e)ndido de uma longa tradição lírica, que teve em Camões uma de suas matrizes. Em alguns momentos da história literária, se atentarmos a um recorte sincrônico, há determinadas estéticas que tornam mais intenso tal embate, fazendo de sua materialidade o objeto mesmo da obra ficcional. O Neo- Realismo, por exemplo, movimento das décadas de 30 e 40 do século XX, em Portugal, tem como preocupação central de seu programa estético justamente a focalização da engrenagem problemática que enreda o homem em seu meio social. Em que pese à intransigência da crítica em relação a muitas obras neo- realistas por seu caráter esquemático2, o que nos interessa aqui não é essa polêmica, muito menos o Neo-Realismo enquanto movimento literário ou a análise de uma obra sob o viés de seu enquadramento nessa estética. Nossa preocupação é revisitar um texto que, passados setenta anos, ainda pode se oferecer como objeto para o olhar crítico, na medida em que nos coloca diante de um cenário aberto permanentemente a questionamentos. Trata-se de A selva, de Ferreira de Castro, obra escrita em 1926 e publicada em 1930. Uma das primeiras questões a nos chamar a atenção é a natureza híbrida desse texto, uma narrativa que, apesar do cunho autobiográfico explicitado já em seu prefácio, mescla o real observado e experimentado concretamente com a ficcionalização da matéria rememorada, fundindo romance e diário, ficção e documento. No que denomina de “Pequena história de ‘A selva’”, o próprio autor escreve: “Tão fatigado me sentia por essa nova fusão com a vida dos seringais, tão doloroso me fora beber, na transposição literária, do meu próprio sangue, que, na mesma noite em que concluí o livro, disse a Diana de Liz que não voltaria, durante muito tempo, a escrever romances” (CASTRO, s/d, p. 23). Uma transposição que o leva, por exemplo, a criar a personagem Alberto como protagonista, um português monarquista que, obrigado a fugir de seu país, exila-se no Brasil, passando a viver por um tempo na selva

206 amazônica para, após a anistia concedida pela República, retornar a Portugal. No entanto, se a experiência pessoal de Ferreira Castro se converte em matéria ficcional, como ele declara, tal “pacto autobiográfico”, conforme nos mostra Phillipe Lejeune (1980), implica estratégias mediadoras que acabam criando uma distância entre o sujeito histórico e o sujeito narrado, de modo que é à verdade instituída pelo jogo da ficção que devemos creditar nossa credibilidade. A narrativa de A selva, composta de quinze capítulos, é comandada por um narrador onisciente, porém, esse foco em terceira pessoa não exclui a perspectiva e o posicionamento crítico da personagem. Em muitas passagens, o pensamento de Alberto se explicita, já que é colocado entre aspas, ou se infiltra na própria fala do narrador, graças ao discurso indireto livre: “Não só o crime o importunava a gora, mas também o seu consórcio com a vida que era imposta ali a todos eles e com aquelas profundidades selváticas onde Agostinho fora buscar impunidade e que só por si metiam medo” (CASTRO, s/d, p. 195-196). È interessante como, ao longo do romance, vão despontando reflexões que mesclam senso crítico (possibilitado pela distância) e envolvimento passional (proximidade), propondo questões sobre as diferenças culturais e suas implicações na consciência do sujeito, um ser dividido entre o passado e o presente:

Já Alberto conhecia, da sua estada no Pará, aquelas saudades toponimizadas que os colonizadores portugueses levaram, outrora, a longínquas plagas (...). Mas, agora, a recordação desse tempo remoto, que a distância cobria de fausto e de heroísmo, afagava-lhe o espírito, numa íntima vingança contra a indiferença que os cearenses e até os moços de convés, todos uns rudes párias, manifestavam pela condição de civilizado que ele creditava a si próprio. (CASTRO, s/d, p. 58)

207 O conflito entre colonizador e colonizado, o topos da saudade, o deslocamento, os contrastes, o estranhamento, expressos neste fragmento, estarão presentes na narrativa, assim como outros elementos implicados no tema da viagem.3 É justamente nesse espaço intervalar ou entrelugar – o de Portugal distante e acenando na memória da personagem com os recessos confortantes do espaço doméstico e o do Brasil amazônico oferecendo-se-lhe ao mesmo tempo como fantástico e estranho – que reside a experiência vivida por Alberto. Não se trata de alternância, mas de sobreposição, como se o lá (estrangeiro) e o cá (nacional) fossem faces de um círculo e se (con)fundissem pelo próprio movimento. Desse modo, a figura materna reitera-se na narrativa como fixação desencadeadora de lembranças para a personagem4, coexistindo com as figuras humanas do presente que Alberto passa a conhecer. Sentir-se estranho ao lar (que Homi Bhabha denomina de unhomeliness) implica o movimento de “re-locação do lar e do mundo” (BHABHA, 1998, p. 29), condição própria das iniciações extraterritoriais e interculturais, conforme assinala o estudioso indo-britânico. No romance, é esse reajustamento das dimensões, em que tanto o conhecido quanto o desconhecido se remodelam, que possibilita à personagem perceber o outro como o estranho-familiar que o complementa: “A pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e agora compreendia-as melhor. Já eram outras para ele, assim vestidas com farrapos dramáticos que a Europa ignorava” (CASTRO, s/d, p 187). É por essa contradição intersticial, como diria Homi Bhabha, que podemos ver na personagem Alberto uma permanente oscilação tensiva entre o olhar do alto (armado de consciência e soberba) e o olhar cúmplice (passional e próximo), porém, de modo a tender, em seu percurso pelo romance, ao segundo pólo. O drama narrativo, que tem como impulso/motivo a extração da borracha pelos seringueiros, favorece o retrato do multi-racial, pois a diversidade de etnias e classes sociais é atraída para aquele mundo para onde “convergiam copiosas ambições dos quatro pontos cardiais” em que a

208 audácia se antepunha aos escrúpulos, como o narrador comenta (idem, p. 37). Caboclos, como o Lourenço, negros de origem africana, como Tiago, mulatos, os índios parintintins, os tuxauas, os imigrantes japoneses, o português Alberto, enfim, essa diversidade humana aciona conflitos que alimentam o próprio sistema da exploração capitalista, pois o embate de forças e suas divisões mais acentuam o poder do explorador. Este, encarnado na figura de Juca Tristão, é o protótipo do capitalismo com todos os seus ingredientes: manipulação desumana, pragmatismo, interesse pelo lucro, injustiça5. Curioso notar que, após a aproximação com o patrão, o qual convidou Alberto para trabalhar como empregado em seu armazém, fato que se dá a partir do oitavo capítulo do romance, a referência do narrador a Juca Tristão transforma-se em Juca, apenas, diferenciando-se daquele respeito e temor presentes até então. Ainda explorado, mas numa posição bem mais confortável e não trabalhando como seringueiro, Alberto toma consciência dos cruéis papéis desempenhados pelos seres na engrenagem capitalista comandada por Juca Tristão. Torna-se flagrante, em A selva, a preocupação de Ferreira de Castro com um cenário que desperta atenção, não apenas pelos episódios ou fatos que neles teriam lugar e, portanto, gerariam um enredo complexo, mas, principalmente, pelo próprio espaço tomado em si mesmo como objeto do olhar. Ou seja: menos que o interesse por uma trama bem elaborada ou os enredos complicados6, o que desponta em sua escrita é a focalização do impacto do espaço geográfico sobre o sujeito e as possibilidades dos efeitos de sentido dessa vivência do “unhomeliness”, segundo Homi Bhabha. Penso, justamente, ser aí que reside a força de sua escrita: a descrição de uma paisagem que desempenha importante papel, menos como motivo de um enredo ficcional do que como agenciamento de um novo modo de encarar “as fronteiras entre representação espacial e outras representações que por ela são arrastadas”, como afirma Helena Buescu (2005, p. 43). É graças à focalização dessa paisagem – a selva amazônica – que vão ganhando corpo, ao longo da narrativa, observações críticas, modalizações espácio-temporais, referências históricas, sensações e episódios dramáticos.

209 Eis o que merece, de fato, considerar em A selva. Note-se, a propósito, uma das primeiras impressões apontadas pelo narrador quando da aproximação da personagem ao espaço amazônico:

Em cada curva que fechava a perspectiva desenhava- se e crescia, subitamente, uma interrogação. Tudo era brenha e tudo era dado admitir para além do que não se via. O estranho, vindo de outro cenário, com a sua ambição, subia o mundo ignorado, entregando-lhe a vida. (CASTRO, s/d, p. 88)

Qual uma câmera que vai deslocando e ajustando seu foco para captar a paisagem desconhecida, a ótica do narrador acompanha os meandros e mistérios vindos da natureza, a um tempo hostil e fascinante. Os aspectos climáticos e características típicas da região são retratados por uma linguagem que se concentra em pormenores, cujo efeito é semelhante ao de um quadro naturalista, em alguns momentos, como este em que se descreve o resultado da seca de verão:

A água tornava-se para sempre negra, exalava cheiro fétido, que ia empestando os arredores (...) À super- fície reluzia, agora, a escama dos cadáveres e, no céu, os urubus iam riscando os seus adejos sombrios. Tudo aquilo se corrompia e fermentava, vendo-se já no fun- do os galhos enlamaçados, as folhas que apodreciam e as espinhas dos que mais depressa asfixiaram. (idem, p. 149)

E, mais adiante, outro fragmento que retrata o sertão castigado, a “terra em fogo”: “O sertão ficava abandonado, com suas planuras ígneas e lombas a arderem também. Quem entrasse nele [...] só encontraria destroços, restos das vidas que se foram, esqueletos mirrados [...]” (idem, p. 188). Estamos diante de um cenário realista que nos reporta aos quadros/flashes de outra ficção, agora brasileira, escrita em 1938: Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

210 Em outros momentos da narrativa, a paisagem descrita adquire matizes expressionistas, o que nos permite traçar um paralelo entre as linguagens verbal e pictórica. Trata-se da cena em que se avizinha uma tempestade, apanhando Alberto e Firmino em seu retorno aos barracões do seringal:

A brenha uivava, ramalhava, contorcia-se sob o vendaval que conduzia para longe a sua música épica e desesperada. [...] Estreitavam-se e tremiam as copas exuberantes, parecendo, no seu desgrenhamento, não presas mas correndo na mesma direção do vento, com louca velocidade. Era um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados [...]. (idem, p. 201)

Os verbos alinhados sob a forma do imperfeito e com sons semelhantes, aliterando-se o v (“uivava”, “ramalhava”) que se reitera em vendaval, a sensação do ser contorcido, o animismo ou páthos colocado no elemento natural e materializado nos signos “desesperada”, “tremiam”, “desgrenhamento”, “correndo”, “louca velocidade”, e, em especial, o movimento alucinado que deforma as imagens e dá relevo à intensidade da expressão – são técnicas que aproximam essa escrita narrativa da pintura expressionista, se nos lembrarmos de quadros como “A noiva do vento” (1914) de Kokoscka, ou mesmo de um Van Gogh, como “Noite Estrelada” (1889), cenário varrido por um irracionalismo passional. Digamos que o elemento natural, em A selva, existe em relação de homologia com o elemento humano, permutando sentidos que atestam a interpenetração dessas duas esferas num espaço que parece não oferecer saídas às personagens, em virtude do caráter envolvente, deglutidor da selva. Desse modo, o fantástico ameaçador da mata se mescla ao erótico, quer pela força instintiva impregnada nos elementos, quer pelo mistério a ser desbravado, quer pelas sensações que desperta no homem (ruídos, cheiros, visões, claro-escuro, densidade, etc), quer pelo exotismo que desperta da própria vegetação. Assim, por exemplo, a atração de Alberto pela orquídea,

211 flor que ele descobre e pretende levar a Portugal, transparece na linguagem descritiva do narrador, em que aflora o desejo da personagem, com palavras marcadas pelo erotismo:

Era um jardim suspenso, cores de aguarela no verde imperante – surpresa com que a floresta aligeirava a sua densa monotonia. Faziam-no pensar em lábios carnudos de mulher, teimavam em sugerir-lhe órgãos secretos femininos; e ele arrancava ao sonho pares excitados, que as colheriam voluptuosamente. (idem, p. 197)

Tal apelo exótico-erótico, despertado pela flora amazônica, funciona como índice de outra atração: a que passará a sentir pela Dona Yayá, mulher de Juca Tristão, após se empregar no armazém e se tornar mais próximo do casal. E outra atração, a investida de Alberto em Vitória, a lavadeira de roupas, episódio de que o protagonista sairá com sua imagem ameaçada, aos olhos de Guerreiro, o guarda-livros que disso toma conhecimento. A ambivalência força x fraqueza se demarca não apenas na relação entre os seres humanos recortados no espaço da selva como também na relação entre homem e natureza, de modo a se exibir a vitória do mais forte, seja o patrão ou senhor, seja a selva. É o princípio da dominação, impondo uma seleção “natural” que vai ceifando o que não interessa ou não dá lucro, e dificultando a sobrevivência; é o que transparece na fala do narrador:

[...] e os anônimos desbravadores iriam caindo, inexoravelmente, sob as febres palustres, traspassados pelas flechas envenenadas, desvairados pela ausência do amor – escravos, pobres, miseráveis, ali onde a natureza erguia as suas mais fastigiosas pompas! (idem, p. 282-283)

Embora o discurso indireto tenha maior força na narrativa de A Selva, até mesmo por conta do caráter descritivo na focalização da paisagem, os

212 discursos diretos ilustram situações que dão relevo aos posicionamentos das personagens em relação a determinados fatos. Assim, por exemplo, comentemos a conversa entre Juca Tristão e Alberto, já ao final do romance, quando o protagonista passou a uma convivência mais próxima com o empregador:

– Você, então, é monárquico mesmo? – Fui, fui. – Ah, aderiu à República? – Não. Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos tempos. Sobretudo depois que vim para aqui. – Então?... – Não sei. É uma aspiração ainda mal definida. Um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida, a Humanidade está longe ainda da elevação coletiva que eu sonho para ela. [...]. (idem, p. 310)

Num primeiro momento, parece-nos que o diálogo pode estar apenas revelando a posição política de Alberto em relação ao seu país de origem, como se ao seu interlocutor pouco importassem suas tendências pessoais, se monarquista ou republicana. No entanto, esse aparente descompromisso ou desprendimento de Juca em relação às falas de Alberto ocultam um interesse inconfesso pelo que o outro poderá ou irá fazer. Na verdade, a amenidade no trato entre eles disfarça uma preocupação de ambos os lados: a permanência de Alberto no espaço que lhe é estrangeiro o incitaria a colocar em prática seus ideais de justiça e humanidade, ameaçando a ordem ali mantida até então? Mesmo dizendo ter aprendido muito com a vida ali, na Amazônia, essa tomada de consciência não poderia dificultar sua saída daquele espaço, ameaçando a quebra de um privilégio conquistado a duras penas? Talvez seja por isso o tom reticente que fica nas falas de Alberto, temendo abrir-se por completo ao outro: “penso que a sede de justiça que há por toda a parte acabará por marchar à frente [...]. Eu, hoje, sou diferente do que fui [...]. A minha

213 mãe...” (idem, p. 301-302). As reticências e a busca de palavras que “não tivessem expressão arrogante”, quando comunica a Juca Tristão que decidiu partir para Portugal, demonstram que o temor imposto pelo dominador permanece, mesmo quando este aparenta ter amolecido suas rédeas. Somente após a morte do patrão, consumido no incêndio que o negro Tiago provocou na casa, é que Alberto pode abrir-se, colocando-se frente a si mesmo, dono de um discurso que não mais precisa do apoio do narrador. Curiosa essa estratégia narrativa, que revela a autonomia da personagem, mas só depois de tirado de cena a figura do tirano. Aí, sim, pode a voz do protagonista soltar-se, não como acusadora ou indignada, mas como uma consciência alimentada pelas contradições vividas:

Depois do que vira, em si e nos outros, quando o ins- tinto pode mais e acorda mil reações ignoradas, mil imposições que tiranizam os próprios lúcidos e os des- variam, e os amarrotam, e os igualam aos que trazem alma primitiva, só havia a acusar a origem remota, que não fora perfeita na sua criação. Mas também ela era irresponsável e perdia-se na lenda ou na hipótese, lon- gínqua e obscuramente. (idem, p. 335)

De fato, essa espécie de monólogo da personagem, no qual desponta o balanço de sua experiência de vida, justifica uma narrativa empenhada em focalizar um cenário singular, o qual não poderia deixar de ser registrado. Drama e linguagem, fato e ficção, realidade e documento confluem na textura da escrita. E não escapa ao narrador confessar a importância desse registro: Do assombro que nas almas lusíadas, audazes, cobiçosas e rudes, erguera aquele mundo embrionário, que séculos depois ainda espanta e amedronta, não ficara linha nas crônicas. (idem, p. 87)

Mas à “crônica” romanceada de Ferreira de Castro coube cumprir esse papel. Graças a ela, o leitor pode tomar contato com um cenário que, mesmo

214 depois de tantos anos e não mais como um “mundo embrionário”, ainda nos assombra pelo espantoso desafio que provoca para enfrentarmos a tensão entre barbárie e civilização.

Referências

BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BUESCU, Helena Carvalhão. Cristalizações: fronteiras da modernidade. Lisboa: Relógio D’Água, 2005. CASTRO, Ferreira de. A selva. 25. ed., Lisboa: Guimarães, s.d. GOMES, Álvaro Cardoso. A literatura portuguesa em perspectiva. v. 4. São Paulo: Atlas, 1994. LEJEUNE, Phillipe. Je est un autre. Paris: Seuil, 1980. MINÉ, Elza e CAVALCANTE, Neuma. Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias), ed. crítica das obras de Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 2002. TORRES, Alexandre Pinheiro. O Neo-Realismo literário português. Lisboa: Moraes, 1977.

Notas

1 Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa (2002). Livre-Docente (MS-5) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. 2 Alexandre Pinheiro Torres, por exemplo, é um dos críticos que comentou sobre o tratamento redutor que recebeu a problemática social em muitos romances do Neo-Realismo, ao apresentarem os estereótipos da visão marxista quanto à luta de classes, ao antagonismo patrão x empregado, ao materialismo reificador, etc. Cf. O Neo-Realismo literário português (1977). 3 Nesse sentido, Ferreira de Castro parece inserir-se numa linhagem de escritores portugueses que tomam a viagem como motivo de suas obras, acentuando um dos veios dessa cultura literária que tem em Fernão Men- des Pinto (Peregrinação, 1614) uma de suas matrizes. 4. Poderíamos dizer, a propósito da lembrança materna na personagem Alberto, que tal nostalgia corresponde ao que Helena Buescu denomina “a visibilidade da aura como distância”, aproveitando-se da noção benjami- niana que ela aplica à poética de Antonio Nobre, no capítulo “Mães de poetas: Antonio Nobre e a origem de nunca ser”, em seu livro Cristalizações: fronteiras da modernidade. (2005, p. 126). 5 Talvez se pudesse aplicar a esse comportamento as palavras de Eça de Queirós que, já em Ecos de Paris, revelava, pelo viés cronístico, as diferenças entre “civilizados” e “bárbaros”: “O animal inconsciente foi posto sobre a Terra para alimentar o animal pensante – e por isso com bois se fazem bifes. (...) Eu sou civilizado, tu és bárbaro, logo, dá cá primeiramente o teu ouro, e depois trabalha para mim.” (2002, p. 368-369). 6 Alguns estudiosos vêem neste ponto, a meu ver injustamente, uma falha na ficção de Ferreira de Castro, como se nela faltasse essa complexidade dramática que se espera de uma narrativa. Remeto o leitor aos comentários de Álvaro Cardoso Gomes, em A Literatura Portuguesa em Perspectiva, v.4, São Paulo: Atlas, 1994, p. 163.

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PRÊMIO DE CRÍTICA LITERÁRIA FERREIRA DE CASTRO – EDIÇÃO 2010 2º LUGAR A SELVA: ROMANCE E TESTEMUNHO NA AMAZÔNIA

Adriana Aguiar 1

De longe a longe, Alberto surpreendia também quatro ou cinco cruzes rústicas apodrecendo entre a erva alta, nos pontos mais elevados da margem. A visão perdia-se rapidamente, abafada pela selva que avançava sobre o pequeno cemitério, a espalhar vida sobre a terra da morte. Contudo, essas necrópoles humildes, onde não existiam mármores, nem solenes epitáfios, constituíam o único elemento romântico daquelas solitárias paragens. Ferreira de Castro, A selva

O fragmento que nos serve de mote, retirado do romance A selva, lembra- nos a tese VII de “Sobre o conceito de história”, em que Walter Benjamin afirma: “todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão” (1994, p. 225). A história, na perspectiva benjaminiana, é marcada pela humilhação e pela morte de inúmeros seres humanos. Criticando o procedimento aditivo da história, Benjamin afirma que “ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio” [tese XVII] (1994, p.231), deixando submersas as tragédias2 vividas pelos antepassados. Ao navegar por espaços asilados da Amazônia, Alberto, o protagonista do romance castriano, parece ir aos poucos descortinando o véu de esquecimento em que subjazem os herdeiros da barbárie abafada pela selva. Na contramão da história oficial, que se lançou como discurso poderoso, abarcando realidades universais e lançando à margem os silenciados e vencidos, Benjamin (1994, p. 223) propõe [tese III] que “nada do que um dia aconteceu

217 pode ser considerado perdido para a história”. Nesse contexto, se a história monumental (cf. DUBY, 1991) só se interessa pelos grandes acontecimentos, o cronista não deveria distinguir entre os grandes e os pequenos, porque a história autêntica deveria ser contada a partir da história dos vencidos, dos que, efetivamente, tomaram as rédeas do processo: os operários, os pobres, os sobrepujados. Como observa Michael Löwy (2005, p. 60), “contra a visão evolucionista da história como acumulação de conquistas, [...] ele a percebe de baixo, do lado dos vencidos, como uma série de vitórias de classes reinantes”. O que Benjamin propõe, portanto, é uma apreensão, de forma fragmentária, das diferentes realidades humanas, sobretudo aquelas varridas para longe do historicismo. Se a história não foi capaz de narrar a dor dos vencidos, quem poderá contá-la? Onde o cronista poderá catar as marcas daqueles que foram espezinhados pela massa dos fatos? Na perspectiva de Antoine Compagnon (2006, p. 222),

a história dos historiadores não é mais una nem unifi- cada, mas se compõe de uma multiplicidade de histó- rias parciais, de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios. Ela não tem mais esse sentido único que as filosofias totalizantes da história lhe atribuíram desde Hegel. A história não é uma construção, um re- lato que, como tal, põe em cena tanto o presente como o passado; seu texto faz parte da literatura.

A partir da concepção de uma micro-história, do particular em detrimento do universal, é possível buscar, então, a história fora da História e abrir possibilidades de um encontro entre o que durante séculos tratamos como antípodas: ficção e realidade. Antípodas que tendem a se fundir, uma vez que a consciência de que história e literatura são formas de narrar, tomou parte na construção de outro paradigma tanto no campo da Teoria literária quanto da História, como se verifica nesta afirmação de Roger Chartier, no artigo “A História hoje: dúvidas, desafios e propostas”:

218 uma razão abalou ainda mais profundamente as certezas antigas: a conscientização dos historiado- res de que seu discurso, qualquer que seja sua forma, é sempre uma narrativa. [...] De fato, toda história, mesmo a menos narrativa, mesmo a mais estrutural, é sempre construída a partir de fórmulas que governam a produção das narrativas. As entidades com que os historiadores lidam (sociedades, classes, mentalidades, etc.) são “quase personagens”, dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares ou dos indiví- duos ordinários que compõem as coletividades que essas categorias abstratas designam. (1994, p. 3-4)

O estudioso francês corrobora as idéias de Walter Benjamin de que a macro-história é um discurso oficial que está a serviço dos vencedores e busca assegurar o poder nas mãos das elites, na tentativa de desviar o olhar dos oprimidos das tragédias. Chartier, ainda no mesmo artigo, estabelece uma analogia entre a história e o romance como gênero literário, ao afirmar que aquela “não traz mais nem menos um conhecimento verdadeiro do real do que o faz um romance” (1994, p. 10), ligando-os por serem ambos formas de apreender o real. Para Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 375), a verdade é que o “limite entre a ficção e a realidade não pode ser delimitado. E o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no real para apresentá-lo. Mesmo que para isso precise da literatura”. Nesse sentido, torna-se imprescindível rever o paradigma do texto literário unicamente como ficção e refletir sobre as potencialidades do discurso silenciado habitar os subterrâneos narrativos, a partir do testemunho dos que ficaram sem História e para os quais restou somente a ficção como caminho para narrar o real, a dor, a catástrofe. Com a proposta de refletir sobre literatura na perspectiva da história social, o historiador e crítico literário, Nicolau Sevcenko (2003, p. 30), também acede à possibilidade de, a partir da literatura, apreender-se outras concepções acerca da história, uma vez que a literatura “fala ao historiador sobre a história

219 que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram [...]. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens vencidos pelos fatos”. E mais adiante afirma:

Pode-se, portanto, pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não consumidas. A produção dessa Historiografia teria, por conseqüência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginalizados ao sucesso dos fatos. Estranhos ao êxito mas nem por isso ausentes, eles formaram o fundo humano de cujo abandono e prostração se alimentou a literatura (2003, p. 30-31)

Ora, é desse alimento que a narrativa de Ferreira de Castro se constrói. Numa época em que a corrente crítica da nova história ainda era incipiente, para não dizer quase inexistente, o escritor concilia memória afetiva e factual com a literatura para narrar a história dos desejos não consumados, dos marginalizados da Belle époque. Como afirma Márcio Souza,

o romancista, também seringueiro, tirou sua literatura desse cadinho de irritação que os melhores intelectuais brasileiros cultivavam, naqueles anos de republicanismo falido e provincianismo ideológico. Romance a clef, A selva foi a explosão de um outro mundo insuspeito, terrível e diferente do mundo das capitais amazônicas (2010, p. 136)

Pensamos, portanto, o romance de Ferreira de Castro como uma das formas de apreensão de uma micro-história, sem, contudo, cair no desacerto de reduzir a literatura ao real e a História à ficção. No prefácio intitulado “Pequena história de A selva”, presente na edição comemorativa dos vinte e cinco anos de publicação do romance, o romancista afirma:

220 A selva, drama dos homens perante as injustiças de outros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (1995, p. 24)

Contrapondo o fluido contínuo e equilibrado do desenvolvimento advindo da comercialização do látex, fluido que também é contínuo e equilibrado como a história monumental, o escritor parece apreender um novo conceito de história, almejando uma literatura que fosse capaz de narrar a dor; e pela impossibilidade de expressá-la (a dor), tal qual sentiram ele e os anônimos da história, espera ao menos apresentá-la. Ao escrever a tese IX de “Sobre o conceito de história”, Benjamin evocou a queda e a expulsão do homem do jardim do Éden (LÖWY, 2005, p. 89), o Paraíso do mito judaico-cristão. Essa alegoria, ao que nos parece, encontra-se com a alegoria do Seringal Paraíso descrito no romance A selva. As personagens parecem rememorar que se houve um Paraíso, com árvores frondosas, não mais podemos degustá-lo. Partindo desse argumento, é possível pensar em dois paradigmas de paraíso: o autêntico, dos vencedores, habitantes do Éden e o perdido no meio da floresta Amazônica, lugar dos vencidos. Alberto, ao longo da narrativa testemunha esse aforismo:

[...] o tempo decorria e os que de começo, espalhavam energias, acabavam mostrando depauperamentos; os que haviam trazido expressão de futuros vencedores, arrastavam-se como vencidos; e por um que regressava ao ponto de partida, quedavam ali, para sempre, centenas de outros, esfrangalhados, palúdicos, escravizados ou mortos. (AS, p. 116)

Contrariando o mito do Eldorado amazônico, da cidade encantada onde a harmonia e a justiça social regem a todos, Alberto, entrevendo escritor

221 Milton Hatoum no seu último romance, adverte: ficamos órfãos do Eldorado. O seringueiro de A selva suscita a imagem do paraíso corrompido e inundado, do qual o homem da Amazônia tornou-se herdeiro e prisioneiro. O romance de Ferreira de Castro aviva a consciência de que aquela cidade encantada permaneceu no fundo rio, foi fruto de um devaneio, um mito antigo que não pode mais sustentar-se e dele a única herança que temos é somente um testemunho.

Alberto: catarse e testemunho

É sabido que Ferreira de Castro escreve A selva depois de morar num seringal às margens do Rio Madeira, e que por esse motivo o seu romance foi estudado muitas vezes a partir de um viés biográfico. Nossa proposta não segue essa linha, antes queremos tratar de um conceito de testemunho, no sentido etimológico daquele que viu, experimentou e sobreviveu. Dizer “eu vi” é mais intenso que dizer “eu ouvi” ou “eu senti”, de modo que a visão é genuinamente o sentido usado por aquele que testemunha. Na narrativa, Alberto engendra essa imagem ao sonhar com seu retorno a Portugal: “ele a falar do que vira e do que fizera, dos seus heroísmos anônimos e das suas abominações [...] (AS, p. 174). Ver e viver fundem-se na experiência do protagonista do romance. Não obstante a ressalva feita sobre o viés biográfico encontrado em alguns estudos castriano, devemos admitir o tom confessional do romancista, que ao escrever sua obra é compelido a rememorar uma experiência traumática. Esses dois argumentos – o teor confessional e o rememorar o trauma (cf. SELLIGMANN-SILVA, 2003) – assumidos pelo escritor português, tão somente corroboram a nossa perspectiva de estudar o elemento testemunhal presente na composição de A selva, anunciando, até certo ponto, um duplo contexto para o estudo do testemunho “na obra” (o protagonista) e sobre a obra (o escritor). Vejamos o que escreve o autor:

222 [...] durante muitos anos tive medo de revivê-la literariamente. Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, no grande mistério da floresta, as chagas das seringueiras. Um medo frio, que ainda hoje sinto, quando amigos e até desconhecidos me incitam a escrever memórias, uma larga confissão, uma existência exposta ao Sol, que eu próprio julgo seria útil às juventudes que se encontrassem em situações idênticas às que vivi. [...] Enfim, quinze anos volvidos tormentosamente sobre a noite em que abandonei o seringal Paraíso, pude sentar-me à mesa de trabalho para começar este livro. Tudo parecia já clarificado no meu espírito, a síntese dir-se-ia feita e os pormenores inúteis retidos, como sedimentos, no grande filtro que a memória emprega para não se sobrecarregar. (1995, p. 19)

Ferreira de Castro almeja apresentar ao leitor uma perspectiva ficcional e ao mesmo tempo realista da barbárie ocorrida na Amazônia, para tanto recorre a uma memória de fatos históricos para escrever o romance, alegando para o texto ora uma visão objetiva ora uma visão subjetiva. Esse entremear literário marcado pelo real e pela ficção toma força a partir do testemunho, que se associa tanto a um campo objetivo e histórico quanto subjetivo e ficcional. Para Alfredo Bosi (1995, p. 310),

o testemunho vive e elabora-se em uma zona de fronteira. As suas tarefas são delicadas: ora fazer a mímese de coisas e atos apresentando-os ‘tais como realmente aconteceram’ [...], e construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações evocadas.

223 A selva inscreve-se no emaranhado da memória factual e ao mesmo tempo afetiva do autor e, a partir de ambas, é que se dá a (re)elaboração do real. Contudo, o entrelace entre literatura e testemunho, ou seja, a transposição para a literatura não ocorrerá de forma imediata e genuína. Não entendemos o romance de Ferreira de Castro, portanto, nem como pura historiografia somente ficção, mas como um paradigma dessa complexidade textual, como ressalta Luiz Costa Lima em História. Ficção. Literatura: “por mais forte que seja a determinação do ficcional, por mais que saibamos que não é o uso de recursos literários que favorece ou prejudica uma obra como historiográfica, ainda assim não conseguiremos separar totalmente as escritas da história e da ficção” (2006, p. 385). O teórico compreende a literatura para além de um fenômeno isoladamente estético. Para Costa Lima, literatura deve ser lida como manifestação cultural, que abre a possibilidade de registro do movimento que o homem realiza na sua historicidade. Dessa maneira concebidas, tanto historiografia quanto narrativa de ficção são formas de conhecimento do mundo, em sua temporalidade. Não se trata, contudo, de substituir a ficção pela história, mas de possibilitar uma aproximação em que todos os pontos de vista, contraditórios, mas convergentes, estejam presentes. Nessa perspectiva, consideramos que no romance em questão convergem ficção e testemunho da história, uma vez que a escrita extraída da memória do sobrevivente vincula-se não somente à experiência pelo choque (cf. BENJAMIN, 1994) de um indivíduo em particular, mas a uma coletividade de não-sobreviventes, de silenciados que ficaram sem história: os vencidos da Amazônia do ciclo da borracha. João Camillo Penna, no artigo “este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano”, compreende que “a importância do testemunho [...] está ligada à possibilidade de dar expressão a culturas com uma inserção precária no universo escrito e uma existência quase que exclusivamente oral” (2003, p. 305). Na narrativa, somos dados a conhecer o espaço do seringal e a rotina dos que ali residem, por intermédio de Alberto, que além de sobrevivente é detentor da cultura letrada e dela se utiliza como

224 caminho para dar voz aos excluídos. Para Seligmann-Silva (2006, p. 8), testemunho pode ser entendido em duas correntes: a) no sentido jurídico-histórico; b) de sobreviver; “de ter- se passado por um evento limite, radical, passagem essa que foi também um atravessar a morte, que problematiza a relação entre a linguagem e o real”, e completa: “toda obra de arte, em suma, pode e deve ser lida como um testemunho da barbárie” (2006, p. 12). Alberto, ao narrar o que viu, dá- nos testemunho, não apenas de uma experiência individual da barbárie, mas das histórias coletivas dos que com ele conviveram. Assim, é necessário destacar que o sujeito testemunhal opõe-se ao sujeito autotélico, posto que o testemunho elabora-se a partir de uma experiência coletiva (cf. PENNA, 2003). É pelo caminho que realiza o protagonista durante o percurso narrativo que o testemunho da barbárie vai sendo composto, como podemos observar no fragmento: “eram tardes quase sempre tristes, fizesse Sol ou chovesse, a escutar os cearenses, os seus sonhos derrotados, os seus amores interrompidos [...] (p. 124)”. Alberto não apenas passa pelos locais, mas se detém em cada lugar e colhe os elementos duplos que envolvem o testemunho: testis e superters. Ao escutar as histórias pessoais de cada um, o estudante de direito que abandonou Portugal por disputas políticas vai aos poucos descobrindo o seringueiro e, como detentor da escrita, passa a testificar, a partir de sua passagem por todos os ambientes que compõem o seringal, a condição inumana em que estão postos os homens que ali convivem. Como nos chama atenção Cytrynowicz, “é preciso que cada documento da barbárie seja [...] estudado, criticado, [...] e exposto, de forma a tornar a história uma forma presente de resistência e de registro digno dos mortos, muitos sem nome conhecido e sem túmulo” (p. 137). É por intermédio de Alberto que o leitor passar a ter conhecimento da vida de Firmino e de outros tantos imergidos na imensidão da selva. Além disso, é também a partir dos deslocamentos do protagonista que o leitor conhece a casa de Juca, proprietário e explorador dos homens e da terra, e passa a ter uma compreensão holística do ciclo exploratório operado naquele espaço: “a casa aviadora explorava Juca, ele,

225 por sua vez, explorava os seringueiros, que eram, no fim, os únicos explorados. Mas Juca podia, ao menos, protestar, enquanto aos seringueiros nem sequer isso seria permitido” (AS, p. 201). Desse modo, aos poucos se compõe o testemunho da vida no seringal. Além da incursão espacial que possibilita conhecer por vivência a servidão humana nos seringais, o protagonista realiza uma viagem ao interior de si mesmo (cf. RIOS, 2009): se na primeira parte do romance vive entre as fronteiras do imigrante, do europeu civilizado (cf. SANTIAGO, 1982), de um lado; e caboclo, selvagem, de outro; ao longo da narrativa essa fronteira é transposta pela experiência de uma dor coletiva. Aí, não se pode mais falar em fronteiras geográficas, em local e em global separando os indivíduos, uma vez que há apenas um único espaço em que todos estão submersos: o dos herdeiros da catástrofe. Desde a saída do porto, em Belém do Pará, até a possibilidade da fuga no seringal Paraíso, o imigrante sofre uma experiência que o possibilita vivenciar um processo de catarse da visão que tem do homem local, como escreve: “a pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se e agora compreendia-as melhor. Já eram outras para ele, assim vestidas com farrapos que a Europa ignorava” (AS, p. 124). A partir de uma relação de alteridade, Alberto modifica não apenas o seu pensamento em relação aos seringueiros, mas o modo como vê a si naquele espaço e descobre que, se obteve o benefício de residir na casa de Juca Tristão e de colaborar no centro comercial do seringal, não foi exatamente por sua pele européia, mas por sua condição de homem letrado que em algum momento serviu aos interesses capitalistas do seu senhor, assim como o seringueiro só era útil enquanto tinha força para extrair o látex. Como estudante de direito, Alberto não se portou como advogado fidedigno na defesa do homem da Amazônia, em certa medida por temor, mas, sobretudo, por julgar que aquele espaço não respeitaria às leis seguidas nos tribunais europeus. Talvez o estudante precisasse ainda de uma aula no grande tribunal que é a história para tornar-se, de fato, bacharel. Todavia, dentro dos aspectos testemunhais no percurso narrativo Alberto torna-se

226 autêntica testemunha: tanto no sentido jurídico-histórico quanto no sentido de ter sobrevivido para testificar a barbárie.

Os seringueiros: margem e títere

Uma pergunta indica o tom desse último tópico: qual o lugar do seringueiro na narrativa de Ferreira de Castro? Comecemos pela caracterização do seringal: no centro, a casa onde residia o proprietário, logo ao lado, próximo ao rio, o barracão, centro comercial de onde partiam os abastecimentos para o serviço extrativista; afastados da casa do explorador, localizavam-se os seringueiros, embrenhados na selva onde os galhos da seringueira quase adentram suas miseráveis habitações, saiam apenas uma vez na semana para pegar os escassos alimentos que mal repunham as energias gastas na viagem de ida e volta ao casebre e, na maioria das vezes, acabavam por encarecer o preço de sua carta de alforria. A organização do seringal já revela traços de uma relação entre opressores e oprimidos: enquanto no centro o senhor vivia abastecido por seus mandatários; às margens os homens ansiosos por melhorias de vida, consumiam no trabalho inumado todas as esperanças de progresso. “Findadas suas forças, [...] os anônimos desbravadores iriam caindo, inexoravelmente, sob as febres palustres, transpassados pelas flechas envenenadas, desvairados pela ausência de amor – escravos, pobres, miseráveis [...]” (AS, p. 185). Como afirmamos anteriormente, Alberto logo que chega ao seringal é deslocado para o sítio de Todos-os-Santos, onde passa a residir com Firmino. Ali, aprende o trabalho de extração do látex e conhece de perto a floresta que tanto o assombrava. O período de convivência entre o nordestino e o português, mais do que mostrar os primeiros passos de um “brabo” na extração do látex, revela que havia, sim, uma outra existência para além da do barracão. A selva não era apenas o quadrado limpo a golpes de terçado e com a casa de Juca ao meio.

227 Fora dali estavam o Firmino, o Chico do Paraisinho, o Procópio, o Joaquim, o Dico, o João Fernandes, os quatrocentos que saíam, todos os sábados, da maranha interminável. Vinham por uns litros de farinha, um quilo de jabá e a garrafa de cachaça que os fizesse esquecer o mundo inteiro e a eles próprios especialmente. (AS, p. 155)

Iletrado e isolado em torno de sua convivência com a fauna e a flora, o seringueiro é posto à margem da narrativa, como os anônimos da História, e raramente tem a oportunidade de falar por si próprio e testificar por si a dor e condição miserável em que sobrevive. É emblemática a passagem do navio “Justo Chermont” por Manaus, quando os seringueiros, sonhando em conhecer a cidade que centralizava o comércio do látex, quedam-se obrigatoriamente a contemplá-la das margens. Somente Alberto, a revelia, decide aproximar-se do centro urbano, mas logo descobre que não há lugar na cidade para homens da terceira classe. Tratado como mercadoria, expulso para longe da cidade moderna, asilado no interior da floresta, o seringueiro passa seus dias a vislumbrar a mesma paisagem e a seguir a mesma rotina de extrativista, alterando-a, raramente, por ocasião de ferimentos graves ou doenças mortais, quando precisava caminhar longos percursos para chegar ao centro do barracão em busca de socorro ou apenas para proceder ao sepultamento dos corpos. A estrutura da narrativa cunha poucos momentos de fala do seringueiro, ora porque executa solitariamente o seu trabalho, ora porque não lhe é dado o direito a reclamar e a colocar-se diante das situações adversas. Aprendida a lição da mordaça, Firmino é quem aconselha Alberto, quando ensaia uma reclamação ou cobrança de melhores condições de trabalho a Juca Tristão. Ao colocar os seringueiros como personagens periféricos na narrativa, Castro, muito mais que expor uma conjuntura do seringal, evidencia a condição histórica a que estão submetidos.

228 Além do emudecimento a que estava obrigado, o homem mais fraco naquele sistema econômico de exploração experimentava todo tipo de violência: “a ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente” (AS, p. 123). Não apenas ameaça natural, em certa medida realidade e imaginário, o seringueiro também sofria a violência dos jagunços e dos próprios colegas que se colocam como delatores da tentativa de fuga:

Você é empregado dele? -Não. Nós somos todos seringueiros. Alberto quedou-se a olhá-los, surpreendido. Como podia ser, como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdida matéria era formada a alma de alguns homens, que gozavam em castigar a desgraça alheia, mesmo quando era igual à deles? (AS, p. 208)

Homem de caráter humilde, leal e justo, Firmino aceita a situação de degradado, vivendo solitariamente em Todos-os-Santos. Mas numa tentativa fracassada de romper com o ciclo, lança-se ao rio, num último entusiasmo de encontrar a liberdade e, quem sabe, o caminho de volta à terra natal. Contudo, rema apenas alguns metros e tem suas esperanças sucumbidas. Encarcerado, privado de alimento, apanha com couro de peixe-boi durante toda a noite para descontar a raiva do patrão injustiçado pela sua ingratidão. A atitude dos seringueiros ao interromper a fuga do grupo, denuncia que mesmo entre os excluídos há também aqueles que espezinham os corpos silenciados. Agindo como títeres do seringalista, os trabalhadores e os jagunços que fazem cumprir as ordens do patrão se colocam contra os próprios colegas. Na ânsia de obter favor pessoal, reconhecimento e prestígio, servem com a própria alma aos mandos e desmandos de Juca Tristão, às vezes aterrorizando mais intensamente do que o patrão.

229 Condição parecida com a do seringueiro já havia experimentado o negro Tiago, usado agora como boneco nas brincadeiras de tiro ao alvo. Sempre servil, além de títere, o negro, exibe a proximidade entre os hábitos de punição no seringal e os da sociedade patriarcal escravista. É justamente por reviver uma experiência traumática, ao presenciar os castigos impostos ao Firmino e seu grupo, que Tiago se encoraja a ter atitude de justiceiro na terra onde não havia justiça. Tomado por recordações do horror, o “Estica”, como era chamado em alusão a sua deficiência física, põe fim aos mandos de seu senhor e às ameaças de perenizar o mal. A ação de Tiago marca o fim da narrativa. Reunidos ao redor da fogueira as personagens esperam a manhã que chegaria juntamente com o vento a espalhar as cinzas de uma história, até então, silenciada.

Últimas palavras

O romance luso-brasileiro de Ferreira de Castro revelou-se ao longo de nossa análise como um violento testemunho da barbárie, avivando a consciência de que a Amazônia, por mais distante da Europa (onde se testemunhou o século do horror), possui também as marcas de tragédias travadas em suas pequenas aldeias e vilas, deixando rastros nas páginas literárias. Como assegura Walter Benjamin, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (1994, p. 225). A selva, além de romance, é narrativa amazônica de testemunho da guerra emudecida, forjada no labirinto da floresta. Seu enredo expõe que ao sustento da civilização na capital amazonense, correspondia o horror e o encarceramento humano na imensidão da selva. Se o ciclo da borracha representou o progresso para as capitais amazônicas, na mesma medida, o progresso tornou-se sinônimo de catástrofe (cf. BENJAMIN, 1994) e desmantelo do homem com a vida. Incrédulo, miserável, sem esperanças de retorno à terra natal, os operários da borracha contemplam o Eldorado ir-se embora, afundar-se como o ciclo trágico da borracha.

230 Referências

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CASTRO, Ferreira. A selva. 37. ed. Lisboa: Guimarães, 1989.

CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. Trad. Dora Rocha. In: Revista Estudos Históricos. n. 13, 1994. Disponível em: http://www. cpdoc.fgv.br/revista/arq/140.pdf. Acesso em 11 out. 2009.

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231 RIOS, Otávio. O outro lugar: os viajantes descobrem o Paraíso. In: O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p. 84-98.

SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 13-24.

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SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. 3. ed. Manaus: Editora Valer, 2010.

Notas

1 Mestranda em Letras – Estudos literários, pelo PPGL da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), graduada em Letras pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Bolsista FAPEAM. Professora licenciada da rede estadual de ensino em Manaus (AM). 2 Certamente não pensamos tragédia como gênero literário. Pensamo-la como um acontecimento histórico em que o homem encontra-se em estado de degradação e de destruição, ocasionado pela barbárie.

232 PRÊMIO DE CRÍTICA LITERÁRIA FERREIRA DE CASTRO – EDIÇÃO 2010 3º LUGAR MEMÓRIA E ESCRITA NA OBRA DE FERREIRA DE CASTRO UMA LEITURA POSSÍVEL D’A SELVA

Juliana da Costa Teodolino 1

O instrumento definitivamente socializador da memória é a linguagem. Ecléa Bosi

Tão fatigado me sentia por essa nova fusão com a vida dos seringais, tão doloroso me fora beber, na transposição literária, do meu próprio sangue [...]. Ferreira de Castro

A selva: uma escrita em descoberta

Na intrínseca relação entre memória e escrita, entre o factual e o ficcional, é que habita o romanceA selva, de Ferreira de Castro, escrito em 1926, mas só publicado em 1929, durante a amarga experiência do exílio sofrida pelo autor durante a recém-instaurada República em Portugal (1910). A emigração lusitana no início do século XX foi um fenômeno alarmante, na medida em que diante de uma república ultra-instável, o camponês e a população pobre das cidades só viam através do exílio a possibilidade de crescimento econômico, e com isso, grande parte da população, principalmente, provenientes da região do Algarve, emigra para países como o Brasil em busca de fortuna. Não distante disso, Ferreira de Castro (1898-1974) emigra para o Brasil com a promessa de fortuna na Amazônia, pois seu tio também a conseguira no mesmo local. Ao chegar, desilude-se de qualquer possibilidade de riqueza, pois o que lhe restou foi o trabalho como caixeiro-viajante e outros

233 três empregos que nada lhe acrescentaram. Seringal Paraíso: é para lá que Alberto é intimado pelo seu tio a ir após dois meses de desemprego no Brasil. Afirmando ser de sua vontade, é na mente do narrador que circundarão suas verdadeiras opiniões:

Não o atraíam esses rios de lendárias fortunas, onde os homens se enclausuravam do Mundo, numa labuta de martírio para a conquista do oiro negro – e até onde os ecos da civilização só chegavam mui difusamente, como de coisa longínqua, inverossímil quase. (CASTRO, 1968, p. 37)

No início da viagem, são “olhos leigos” os de Alberto. Acomoda-se como é possível, entre redes, indígenas, nordestinos e estrangeiros conduzidos para a mesma promessa de crescimento econômico com a exploração da borracha. Esquecem-se, porém, de que o ciclo da borracha no Brasil tem seu auge de 1890 a 1912, e a viagem que todos estavam fazendo aconteceu no ano de 1914, época, portanto, de declínio da produção. Os homens que lá se encontravam eram homens falidos, financeira e espiritualmente. A subida do rio Madeira para alcançar-se o seringal Paraíso era “lenta”, de “quinze dias bem puxados”, o que muito “impacientava Alberto”. Cada vez mais o que tinha diante dos seus olhos eram rios afinados, braços e leitos cada vez menores, que podem ser lidos como a redução passo a passo da sua condição de ser humano para membro subordinado à natureza, “[...] despersonalizando o indivíduo em prol do conjunto.” (idem, p. 57). Ao chegar à capital do Amazonas, a pausa na cansativa viagem representa para Alberto uma “lufada de ar”, Entretanto, mesmo sendo uma capital, em nada se comparava à menor vila camponesa da Europa. É, portanto, na viagem ao seringal, que as projeções de Alberto se vão ruindo lentamente. Contudo, nada se comparava ao que ainda estaria por vir. Assim, o romance vai se delineando na constante quebra dos sonhos de Alberto e dos homens ao seu redor e termina com a tênue redescoberta daqueles indivíduos, para quem a selva significa apenas o ponto de partida

234 para a reaprendizagem dos sujeitos. N’A selva, a escrita nos conduz à sobreposição de diversas realidades e de diversos tempos: a do emigrante português, a da exploração nos seringais e a realidade esmagadora de Alberto, sendo a selva o abrigo para todos estes corpos sociais oprimidos. Entretanto, simultaneamente, a selva também é um agente opressor que elimina qualquer possibilidade de superação das situações vividas quando impõe sua grandeza e é agenciadora do medo. Isso se dá, não só pela imponência de árvores e animais, mas também porque se guarda em cada ser animal/vegetal a memória coletiva e angustiante dos homens que por lá passaram. Através de uma linguagem coloquial e tipicamente brasileira (“cuidado seu moço” ou “Intão? Qui tal é a cidade?”), a narrativa explica-nos diretamente as sensações experimentadas amargamente no ambiente da selva e da exploração desigual do ciclo da borracha no início do século XX. Não é só a selva amazônica que dá título ao romance, mas também a selva das experiências vividas e sentidas. Este ambiente pode ser encarado como um simples pano de fundo de uma história verossímil, assim como pode ser a metáfora do selvagem, do grotesco e do feio vivido, experimentado. Assim, o que rege a escrita de AS2 é a memória, esta “franja movente do tempo” (HALBWACHS, 1990), promovida por um “eu-recordador”, representado pela figura do narrador. Há na obra de Castro um compromisso em reconstruir esteticamente o que foi traumático para o jovem português e, por conseguinte, para os homens ao seu redor: o desprezo do tio, a vida dura nos seringais, a falta de esperança e a superação, entre outros. O romance encena a luta pela sobrevivência, único motivo pelo qual esses migrantes, principalmente os nordestinos, e emigrantes podem se orgulhar: a luta pela vida, pois já não há mais dignidade a se achar. É na selva amazônica que as suas dignidades se perdem, se misturam e são agredidas, pois

Ali tudo perdia as proporções normais. Olhos que enfiassem pela primeira vez, no vasto panorama, recuavam logo sob a sensação pesada do absoluto [...]

235 A selva virgem parecia querer assim castigar aquele que ousava violar o seu mistério [...] À noite, os lusíadas atracavam, acendendo fogueira na margem e ficando um de atalaia, porque a selva rugia e nenhum deles estava convencido de que as feras dali não fossem iguais às da África. (AS, p. 89-91)

Ao chegar ao seringal Paraíso, Alberto descreve sua sensação como uma “estranheza”, como algo que o causa choque e diversos preconceitos. Com o decorrer dos dias, que se tornam incontáveis, a iniciação de Alberto em si mesmo através do isolamento que a selva lhe proporcionava, permite-lhe viver a profunda experiência na arte de sobreviver naquele ambiente hostil, ainda que de modo medíocre e humilhante. A intuição, embebida do silêncio opressor dos igarapés, era a sua forma de sobrevivência. Segundo Leão (2009, p. 63), na Amazônia, o emigrante português tem sua nacionalidade diluída nos caudalosos rios diante dos princípios que regem o trabalho e o dinheiro. Possibilidades de compatriotismo e solidariedade não são permitidas àqueles homens. O objetivo do romance não é a atuação sócio-política, no entanto, traços neo-realistas são percebidos, devido à escolha da realidade factual como matéria estética, mas não caracterizam o romance como neo-realista; o que se delineia em AS é a opressão e a ditadura da natureza, pensada no Romantismo como acolhedora e ingênua, e narrada no romance de Castro como desabrigo opressor e angustiante.

A memória coletiva esconde-se na selva: Maurice Halbwachs e “Al- berto”

O testemunho da vida de Alberto, dado pelo narrador, aglutina a memória daqueles homens perdidos nos seringais, iludidos por uma suposta riqueza, não encontrada anteriormente em seus países e cidades de origem. Segundo Halbwachs (1990), o sujeito é composto pela memória individual,

236 inserida, por sua vez, numa memória coletiva ampla que abarque todos os corpos sociais dos quais ele faz parte. Assim, é pelo traçado da escrita de Castro, transposta na memória de um narrador onisciente, que a vida de Alberto se confundirá com a vida dos homens oprimidos ao seu redor. O sujeito reconhece-se parte de seu meio. Todo sujeito individual tem, necessariamente, em si um ser coletivo que o abarca. O romance constrói-se através da “[...] expressão dos rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados [...]” (HALBWACHS, 1990, p. 68). Para o filósofo francês, a nossa memória encontra na sociedade “[...] todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado” (idem, p. 77). Ou seja, nossa memória individual e restrita vai encontrar na memória coletiva e irrestrita todos os meios necessários para se reconstruir, ainda que por meio de imagens abstratas. Para que a memória coletiva aja sobre a memória individual, há a necessidade de que os eventos coletivos se relacionem de alguma forma com os eventos individuais. Trata-se da ideia da associação por semelhança já dita por Henri Bergson (1999). São as “imagens- lembrança”3 que emergem na memória e na escrita de Ferreira de Castro. Com essa memória coletiva transposta na selva dos inconscientes daqueles homens, Alberto constrói sua identidade e amadurece na dor, tendo ainda um longo percurso a prosseguir. O personagem é a marca da complexidade humana no romance, sintetizando em si todo o arruinamento e a angústia sofrida entre os igarapés e vitórias-régias. Ser a grande personagem do romance reserva-se à selva, que recebe adjetivos (as palmeiras vestem-se de luto, agridem a quem as ofende, entre outros) e qualificações próprias de um ser humano e que, em vez de ser a figura dominada, é a figura dominante. Contudo, é por meio da figura humana principal – Alberto – que tem por função olhar para a floresta e dar voz a ela, que a selva recebe na escrita o poder que merece. Numa escrita que se inicia por um determinado recorte de tempo, o autor não objetiva esclarecer inicialmente as intenções do romance, mas o local de destaque para a selva amazônica já se encontra no pórtico do livro:

237 Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazônica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. (AS, p.16)

A floresta amazônica “[...] não aceita ser dobrada pelo trabalho do homem ocidental, independente da nacionalidade [...]” (RIOS, 2009, p. 91), porque ela própria tem sua nacionalidade, e esta não é brasileira nem lusitana, é a da selvageria que age em silêncio, corroendo e corrompendo os homens que a tentam invadir. No capítulo IV, encontramos toda uma leitura da terra amazonense em contraposição à terra lusitana, em que “evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez” (AS, p. 91). O Tejo é objeto do risível quando comparado ao rio Madeira e tantos outros rios cujos nomes todos desconheciam. Diante da selva, do silêncio que agride, do mistério inviolável dos igarapés, “[...] havia ruído o sonho que os trouxera até ali” (AS, p. 100). Diante da angústia e da ruína dos homens, pobres, humilhados e maltrapilhos, não é só a “fogueira que morria pouco a pouco”, mas também cada homem ali, principalmente Alberto, que, mesmo que saia daquele local, deixa uma parte sua enterrada ali, de forma dolorosa e silenciosa. São os homens despedaçados pela selva, que ao pó voltam e pelo vento são dispersados. Numa clara reminiscência à origem adâmica e bíblica, em que do pó somos formados e ao pó voltaremos, é na selva que os homens encontram sua essência, sua origem e a ela retornam, definitivamente. Euclides da Cunha, na epígrafe do livro, diz-nos que “realmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Génesis.”. Na Amazônia, há uma estrutura de forças das quais o homem não consegue se defender e a que não consegue se opor. Através do pecado original de Adão e Eva, o homem ganha o livre-arbítrio, ou seja, o conhecimento do bem e do mal. No entanto, na selva é retirado do indivíduo todo o livre-arbítrio concedido anteriormente e estes sujeitos retornam à sua condição adâmica de dependência e subordinação. Estar n’A selva é encontrar- se com a própria essência divina e humana de todos nós.

238 Referências

ALBUQUERQUE, Gabriel. Brasil, Brasis: insulamento e produção literária no Amazonas. In: RIOS, Otávio (org.) O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p. 49-61.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CASTRO, Ferreira de. A selva. 32. ed. Lisboa: Guimarães, 1968.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990. p. 53-130.

LEÃO, Allison. A selva: uma obra em fronteiras. In: RIOS, Otávio (org.). O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p. 62-83. RIOS, Otávio. O outro lugar: os viajantes descobrem o Paraíso. In: RIOS, Otávio (org.). O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p. 84-98.

Notas

1 Mestranda em Literatura Portuguesa/UFRJ. 2 As referências ao romance A selva serão escritas com as iniciais AS, e referem-se à ed. 32, de 1968. 3 Em Matéria e Memória, o filósofo francês Henri Bergson defende que a memória se associa de duas formas: associações por contigüidade e por semelhança. Na contigüidade, toda lembrança está relacionada ao que se foi/fez e ao que se será/fará e na associação por semelhança, as lembranças só se relacionarão com o presente se ambos possuírem algum ponto semelhante. Já as “imagens-lembrança” é um conceito utilizado pelo autor para ressaltar como nossa percepção atual é veiculada ao que nossa memória armazena de nosso passado.

239

CONTO INÉDITO DE RINALDO FERNANDES1

O ASSALTO

Bem ali, após o teto das palhoças, as areias alvas do rio, as águas meladas de lua. Paula observa as areias, as águas, os matos da margem. Pássaros noturnos movem-se na folhagem, largam sons que tremem e brilham como o rio. Geme no céu, do outro lado da cidade, a luz da torre de TV. Os carros passam na pista distante. A varanda da casa de Paula, à meia-noite, é paz na rede esmagando o travesseiro. Paula, bebendo vinho, ouve o ronco do filho no quarto, borbulha nesse branco conforto. Até que, seca, a mão bate, espreme-lhe o pescoço.

Notas

1 Rinaldo de Fernandes é contista, romancista e antologista. Autor, entre outros, do romance Rita no Pomar (fina- lista do Prêmio São Paulo de Literatura/2009), do livro de contos O Professor de Piano (2010), e das antologias Contos Cruéis (2006) e Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (2008).

241 DOIS POEMAS INÉDITOS DE EDUARDO STERZI1

Salvo-conduto

Aquele que usa barba se esconde atrás da sua barba como aquele que tem nariz se esconde atrás do seu nariz mas ninguém lhe pede que raspe o nariz para o retrato da carteira de identidade nem lhe pede que raspe o nariz se quiser voltar um dia ao seu país

242 Talvez de amor

Fico tão bem de gravata que deveria sempre usar gravatas deveria sempre usar gravatas inconvenientemente coloridas que é para não dizerem que me ajustei e que agora só me resta especular sobre o dia da aposentadoria deveria usar gravatas deveria aliás vestir somente gravatas e todo dia (mesmo aos domingos dia de missa e família) vir ao escritório despido de tudo a não ser de uma bela gravata vir ao escritório engravatado sentar ao computador e tentar escrever um poema um poema talvez de amor ou de ódio um poema de ódio como escrevem de resto todos os homens que [vestem gravatas somente gravatas nada mais que gravatas nem nada menos mesmo nas tardes de domingo

Notas

1 Eduardo Sterzi nasceu em Porto Alegre em 1973 e desde 2001 vive em São Paulo. Em 2006, doutorou-se em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com tese sobre Dante Alighieri e a origem da lírica moderna. Realizou estudos de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e na Universidade de São Paulo (USP) e, há três anos, é professor convidado do curso de pós-graduação em História da Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). É autor de Prosa (poesia, 2001), Por que ler Dante (ensaio, 2008), A prova dos nove (ensaio, 2008) e Aleijão (poesia, 2009), além de ter organizado o livro Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos (2006).

243

CONTRACORRENTE ENTREVISTA: ONDJAKI

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (UFRJ)1

Ondjaki é um jovem escritor angolano que reside no Brasil, no Rio de Janeiro, desde 2007. Nasceu em 1977, em Luanda, após a Independência de Angola. Com uma obra multifacetada, além da literatura, tem produções no campo do cinema, do teatro, das artes plásticas. Até o momento, possui publicados 15 livros2 de diversos gêneros: poesia, romance, contos, teatro, estórias infantis. Traduzido em diversos países, o escritor já foi bastante premiado.3 CT (Carmen Tindó) - Ondjaki é um pseudônimo literário. O que quer dizer? Por que o usa? Qual o seu verdadeiro nome? Fale um pouco de sua infância e adolescência passadas em Luanda, cidade que se tornou personagem, em muitos de seus livros. Ao relembrar o passado, a escola, você focaliza os professores cubanos. Qual a importância deles em sua formação e qual o papel da memória na sua escrita literária? O (Ondjaki) – Dizem que Ondjaki quer dizer “guerreiro”, em umbundu. Mas já ouvi tantas versões, que prefiro acreditar que quer dizer várias coisas. Vou-me servir dos variados significados ao longo da vida. O meu verdadeiro nome deixo-o reservado à família e aos amigos. Começar a ser Ondjaki fez-me bem, foi-me libertando para esse eu de escritor. O nome de verdade, mesmo dentro de mim, agora é um refúgio. Já não sei falar muito da minha infância e adolescência, sem ser, quase sempre, caindo numa espécie de memória inventada. Foi uma infância muito feliz, calma, cheia de conteúdos espontâneos, isto é, as poucas dificuldades que vivi não as encarei como tal. Tudo era riso, escola, brincadeira, família, praia. A adolescência foi diferente. Levarei anos a apaziguar-me com o meu eu de adolescente. Contudo, foi importante. As dores internas e os livros. Os sonhos e as lágrimas. O riso e a poesia. A vida, afinal. Quanto aos professores cubanos, nem saberia por onde começar. Cada

245 vez que falo neles, que penso neles, o que vem à cabeça é o ainda intenso desejo de os reencontrar. Dar-lhes um abraço. Passar uma tarde inteira a falar com eles... Só assim se cumpre, para mim, o ciclo do livro Bom dia camaradas. Acho que foi para pessoas como eles que eu escrevi esse livro. Essa Luanda que foi tão minha quanto deles. Esses ensinamentos humanos que eu recebi deles. Tudo isso extravasou as minhas memórias e chegou aos livros em forma de literatura. Agora, é tarde para tentar entender onde se dá a transição. Eles são parte, portanto, de tudo o que da “memória” eu invoco para escrever. E parte da minha obra é memória, sim: inventada, reinventada, redescoberta, refeita, ressonhada, revivida. No fundo, só há memórias inventadas. CT – Você começou na literatura pela poesia e possui já quatro livros de poemas. O que é a poesia para você? Ou seja: como você caracteriza sua poética? Manuel de Barros é um dos autores que marcam sua escrita. De que modo? Que outros autores você também arrolaria? O – Gostaria de saber o que é a poesia para mim. Gostaria mesmo. Mas talvez essa descoberta seja demasiado perigosa. Na poesia é que vejo, cada vez mais, quanto só se escreve aquilo que realmente grita e é importante. Em fases distintas, em ecos internos, distintos. E é boa porque não se controla, ela chega, aparece, deixa-se trabalhar, porque já lá estava. Mas não sei caracterizar a minha poesia. Sinto que ela tem um lado bem mais ‘leve’ (“há prendisajens...”, “materiais de confecção...”) e um outro, mais denso, e que me custa mais revelar (os outros dois). Manoel de Barros foi muito importante, sim. Foi uma nova janela. E não é todos os dias que encontramos uma “nova janela” dentro de nós. Outros nomes? Ana Paula e Ruy Duarte. Sylvia Plath. Paul Celan. Natália Correia. Sophia de M. B. Andersen. Ficam nomes por dizer. CT – Seu último livro reapresenta sua primeira obra de poesia, mas a grafia de Acto sanguíneo está diferente. Essa alteração foi proposital? Explique a razão. No título, aparece também a metáfora do “sul” que, agora, parece estar na moda (lembro, por exemplo, que Boaventura de Sousa Santos publicou recentemente As epistemologias do sul). Peço-lhe para explicar os metafóricos sentidos do “sul” em sua poesia, Ondjaki.

246 O – Sim, eu decidi mudar simplesmente, porque “actu sanguineu” foi uma invenção minha, anos atrás, para que intencionalmente o título ficasse estranho. Mas, depois, ninguém sabia bem como ler, e não interessa nada isso. Então ficou Acto sanguíneo, que é a ideia sempre presente por detrás de tudo isso... Quanto ao “Sul”, eu tenho os meus... Não é nenhuma alusão, acredite, à Sociologia ou até ao mundo... Vezes demais, dentro de mim faz sul... E é só isso. Um certo sul, um sul-de-estar, um sul-de-menos-sonhar, um sul nostálgico que vem de dentro. Na vida real, quando penso Sul, sim, talvez seja geográfico, o Lubango, terra que eu adoro, fica a sul de Luanda; o Namibe, terra do meu avô, do meu pai, da minha tia, fica a sul também; Angola fica no sul... É uma palavra bonita de se dizer ou de se pensar. Ou de nos deitarmos com ela. CT - As fronteiras entre história e ficção são, em geral, bastante tênues. Como isso está presente em sua obra? Seria possível você discorrer um pouco sobre essa questão, abordando alguns de seus romances e contos? O – Sim, fica difícil, mesmo quando se escreve, encontrar ou saber essa fronteira. Talvez, mesmo, escrevamos em busca dessa não-fronteira entre o lugar que existe e o local que passa a existir depois de o escrevermos como se tivesse alguma vez sido verdadeiro. Às vezes, como diz o camarada Mia, o escritor quer “brincar de Deus”. E brinca mesmo. A diferença está em que nós, os autores, sabemos onde os encontrar e podemos colocar questões assim diretamente. Já Deus, como se sabe... Eu trabalho com essa fronteira. Com a memória de Angola e de Luanda. Importo alguns desses referentes para a minha ficção, mas o que me interessa é o resultado literário. Por vezes, em obras como Bom dia camaradas ou Os da minha rua, acontece-me fazer um certo trabalho semi-intencional de fixação de memórias e de linguagens. Gosto disso, mas não pela vertente linguística ou antropológica, senão literária mesmo. Ao escrever, falar desse modo antigo, sinto-me lá, sorrio, sinto-me mais perto, sou imbuído de sensações que chegam pela linguagem, me devolvem afetos, momentos, ritmos: e isso me orienta na minha ficção. A linguagem também é um lugar, sabe? Invoca rostos,

247 gestos, causos, expressões faciais, episódios, relatos, laços, direções. Eu, na quarta classe, fui ensinado a distinguir estas três palavras: “História”, “história” e “estória”. E nunca me passou pela cabeça quanto isto seria crucial na minha vida. Porém, senti, muito cedo, que eu optava pela palavra “estória”. A História realmente poucas vezes me interessa; a história era a vida, um pouco sem graça; e as estórias eram o que de fato davam vida à minha vida; é nelas que eu sou animal e escritor, ouvinte e contador, criança e velho. Brinco de ter a pele de Deus? Não sei. Reservo-me apenas alguns cuidados: ao fazer trabalhos intencionais entre o “real histórico” (por exemplo, em AvóDezanove...) e a minha ficção-feita-memória, julgo que é preciso ter alguma delicadeza no tratamento dos fatos: não ofender o país; não ofender a nossa querida cidade de Luanda; não ofender a memória dos outros; respeitar o delicado assunto de todas as guerras; não falar demasiado sobre aquilo que não sei; evitar as especulações oportunistas (isto é, os “efeitos especiais” que sirvam apenas à minha prosa). Não sei se cumpro (sempre) estas minhas pequenas regras, mas acredite que me esforço muito para o fazer. Já há tanta gente sempre pré-disposta a falar à toa (e mal) do nosso país e do nosso continente, por que seria eu mais um a contribuir para isso?! Onde ficaria o meu respeito pelos mais-velhos e pela terra?! Portanto, repito: é delicado. Andamos na corda bamba. Em cima de cactos. E escrever é como viver: é perigoso mesmo... CT – A propósito, em sua ficção, há a presença recorrente de crianças. O que significam elas em sua obra? Elas também são frequentes em Luandino Vieira, Guimarães Rosa, Manuel Rui. Gostaria que comentasse um pouco acerca da importância desses autores na sua obra. O – Eu não sei onde terei lido ou escutado esta frase: “as crianças estão em toda a parte”, mas acredito muito nela. Cresci, como todo mundo, no meio de crianças (casa, rua, escola), cercado de brincadeiras, gritos, correrias, medos e fantasias. E, na escola, os textos da disciplina Língua Portuguesa tinham muitas crianças, sempre: desde excertos de obras nacionais, ou de Moçambique, ou de Cabo Verde, ou alguns textos isolados, poesias, sempre com crianças

248 neles. Depois, o contato com o texto, marcante, belíssimo, Nós matamos o cão tinhoso. Não há como enganar: em Luanda, nos anos 1980, todos sabíamos quem era o Cão Tinhoso e a Isaura. Alguns (como eu) teriam tido sonhos relacionados com esta estória. Depois líamos Quem me dera ser onda. Estes dois livros deram-me, de fato, a importância da criança-personagem e da linguagem das crianças como fazedora de ritmos e conteúdos. Devo muito também às leituras de Luandino Vieira, obviamente, mas, em Honwana e Manuel Rui, penso eu, pode estar a semente que viria a brotar, do ponto de vista da linguagem e do posicionamento afetivo do narrador, em Bom dia camaradas (BDC), as outras duas pontas desse vértice (por enquanto) tríptico. Descobri em BDC que as crianças eram os amigos e os aliados do narrador. Pode até ser viciante, contudo, esse narrador, onisciente, semi- inocente, semicruel, tendenciosamente predisposto a defender o ‘suspanse’ da narrativa, ele aparece-me sempre que viajo à infância. E vem carregado, como que de mãos dadas, com amigos, momentos, episódios, cheiros, linguagens e conexões afetivas que não posso evitar. Sofro um pouco (para não dizer muito), quando vou lá a essa terra das minhas infâncias. Saio de lá muito triste, às vezes, esvaziado, assustado: já nada disso existe. A vida é real, aconteceu para a frente. Volto de lá com saudades de todos, de todos eles: os que até já morreram e os que vivem, claro, cada um a sua vida, longe de mim e da cidade de Luanda dos anos 80. Volto sempre dessa viagem com o grande título do camarada Luandino na cabeça: “No antigamente, na vida”. E não sei arrumar- me por dentro. Não sei colocar o misto de dor e ternura que sinto. Talvez escreva essas obras na tentativa (vã?) de me explicar como é que o tempo passou; e, humanamente, literariamente, o que poderei fazer com o tempo que já passou. Será isso? CT - Tanto na sua poesia, como na sua prosa, a alegria e a tristeza, a utopia e o desencanto, a noite e o dia, o medo e a coragem encontram-se, no meu entender, profundamente entrelaçados. Estou certa? Em caso afirmativo, peço-lhe que exponha algumas das razões dessa mesclagem de contrários. O – Sim, eventualmente estará certa. Todavia não sei explicar. Será a tal

249 corda bamba que usamos para fazer a travessia na escrita de um livro? É um reflexo meramente pessoal do que vejo e sou, no sentido mais profundo? Sei bem que muitas vezes me sinto confuso com as coisas que os outros veem fora de mim e aquilo que na realidade se vai passando cá dentro. Bem sei que não é só comigo, mas, de qualquer modo, esta minha experiência a mim diz respeito e trago-a comigo, no dia-a-dia. E não a resolvo. E não a resolvi ainda. Sou mais de noite, eu. Da noite (o “de” e “da” aqui foram intencionais, não vale a pena usar nenhum corretor). Quase que ia dizer que sou bem mais desencanto que utopia, mas isso seria ser excessivamente sincero. Porque há uma crença em mim: que a minha geração tem como destino ser otimista. Ser criativa. Trabalhar, revelar, dignificar o nosso país. Então, de certo modo, claro, não me posso autorizar a ceder ao desencanto. Opto, conscientemente, pela construção de uma nova utopia. A nossa, pós-independência, pós-tanta-coisa. Mas!..., dentro de cada um, só cada um sabe as texturas que o vestem, que o fazem. E acho que hoje aceito bem isso: uma coisa é o que sou; outra, as coisas que tenho mesmo de fazer. Não temos outra hipótese. Produzir, fazer, inventar, sorrir, multiplicar os esforços. Acho que vai ser assim para a minha geração. Oxalá tenhamos suficiente coragem e lucidez para que, mais tarde, possamos ser dignos da nossa caminhada. Oxalá. CT - Você não viveu a guerra de libertação, pois nasceu dois anos após a independência de Angola. Contudo, cresceu ouvindo as estórias contadas por seu pai, o Comandante Juju. Sua infância e adolescência transcorreram durante a longa guerra civil que desfigurou bastante seu país. Você seria capaz de apontar diferenças estruturais entre essas duas guerras ocorridas em Angola? O – Eu seria capaz, sim... Mas, mais uma vez, toca esse lado delicado do assunto guerra. Isto é, nós, os privilegiados de Luanda, não sabemos quase nada da guerra. Quatro dias de combates em 1992? Isso é algo, se compararmos às experiências das pessoas no Huambo, Kuito, Kuando Kubango, Malange, etc? O que eu sei mesmo, ouvi de contar. Aprendi muito (ainda aprendo) com os meus pais, sobre o tempo deles de guerrilha, as suas convicções, opções

250 pessoais e políticas, implicações familiares de tudo isso. Contudo, vive-se também de “memórias emprestadas”, dos meus pais, da Avó Agnette, do Avô Aníbal, do tio Joaquim, da tia Tó, do que se leu, do que era verdade e do que afinal, anos mais tarde, fomos descobrindo que eram grandes mentiras nacionais. Bom, de tudo isso, se faz uma pessoa e uma memória. Porém, isso é assunto para outros lugares, outras discussões... E Angola terá, sim, de fazer uma longa reflexão sobre todas essas guerras. Até para saber melhor do seu futuro. CT - Era bom, agora, que explanasse um pouco a respeito de sua vertente de cineasta, explicando algumas das principais intenções de seu documentário Oxalá cresçam pitangas, feito em parceria com Kiluanje Liberdade. O – A minha vertente de cineasta é a de um escritor que quis ir espreitar Luanda por um outro prisma e contar uma estória escrita de outro modo. Claro, chamando o Kiluanje Liberdade e a Inês Gonçalves, que são quem realmente entende de documentários. Na realidade, uma coisa eu tinha em comum com o Kiluanje: a ideia de mostrar Luanda, os luandenses, sob um prisma mais próximo, mais verdadeiro; deixando-os falar, explicar os seus anseios e razões, as suas preocupações, mas também as suas fantasias. Uma outra Luanda que não aquela que as televisões exploram sempre de modo negativo. Foi um exercício e penso que correu muito bem. É apenas uma visão parcial da cidade e dos cidadãos luandenses, entretanto é uma visão sincera e muito válida. Outros projetos virão. Tem de ser. Parece-me que tem de ser... CT – Para encerrar a entrevista, trago, para que comente, uma questão formulada pelo Prof. Allison Leão, o organizador deste número da Revista ContraCorrente: “Em relação ao AvóDezanove..., gostaria que você falasse da constituição do contraste entre a lógica infantil e o ambiente hostil ali posto. Para mim, a beleza do livro está nisto, na fantasia como um outro modo de pensamento, não alternativo, mas de igual (ou de maior) importância operacional que a lógica racionalista. Paul Valéry via a fantasia como uma forma mais eficaz de organização da realidade do que a razão. Por outro lado, como Hannah Arendt observou, havia muita aparência racional e lógica no discurso

251 nazista, ao menos na sua ascensão e um pouco depois. Queria que você fizesse uma consideração sobre isso, tanto no que se refere ao pensamento infantil, como sobre o discurso literário em si – que pode ser outro avatar da fantasia”. O – No livro AvóDezanove... eu quis intencionalmente deixar as crianças tomarem conta do relato. Isto é um pressuposto falso, visto que sou eu (o escritor) quem escreve o livro, e não as crianças. Mas a literatura também é esse exercício sempre arriscado de dar “voz própria” ao personagem. Com essa ideia, surge, inerente, a questão da fantasia, do “outro lado das coisas” que as crianças-personagens podem ver e praticar. A título pessoal, no meu dia-a-dia, sou um pouco desinteressado desse universo cínico dos adultos... As crianças, até nas suas pequenas preocupações, são mais sinceras e criativas. Então, sim, a construção desse romance passa pelo tratamento de questões reais, depois ficcionalizadas (Luanda, os soviéticos, o Mausoléu, as guerras, as tensões) e, finalmente, tratadas pela lógica infantil das crianças que é constituída por duas prioridades: a resolução imediata dos seus problemas e a fantasia. Não sei, sinceramente, se existe um ambiente assim tão hostil. O curioso (para não usar outra palavra...) é que acabo de descobrir que as velhas casas da Praia do Bispo vão mesmo ser demolidas num futuro muito próximo. Isso deixou-me triste e mais uma vez leva-me ao livro: ah!, se as crianças pudessem resolver essa questão à sua maneira... Está tudo escrito, pensado (risos), é só executar... Além da fantasia, o que está nesse livro é o ritmo próprio (do dia-a- dia, das noites, dos planos infantis...) da vida e da linguagem de Luanda. Isso é algo que me sai naturalmente e que fica fixado nos livros. A linguagem, a real e a inventada. Porque, em crianças (e ainda hoje), em Luanda, estamos sempre a inventar novas palavras e linguagens. Portanto, é natural que isso apareça no decorrer da obra. AvóDezanove... foi, talvez, o livro que me causou mais felicidade no momento de escrita... Pude estar na Praia do Bispo durante alguns dias, pude brincar com aquelas crianças, inventar o maluco EspumaDoMar (que é baseado num personagem real, mas há algo de Fellini/ Amacord nele...) e, sobretudo, estar com essa minha AvóAgnette dos anos 80 e

252 a sua irmã, a AvóCatarina. Escrevi esse livro para celebrar a ideia de liberdade das crianças, do bairro, mas também para estar numa Luanda que já não existe. E o presente é também, sempre, feito de saudades do passado. Um passado real e um passado que, no presente, inventamos ter existido. Quanto à “fantasia como uma forma mais eficaz de organização da realidade do que a razão”, não sei se é propriamente mais eficaz, contudo, certamente, mais divertida, mais criativa e até mais humana. Eu penso que as lógicas associadas à razão são muito úteis para organizar a vida humana, todavia elas devem ser vistas apenas como “mais um” instrumento; e não, constantemente, como o instrumento principal. Eu apelo aos narradores infantis, porque eles trazem uma voz e um “modo de contar” que é útil para aquilo que quero fazer literariamente, isto é, serve ao meu propósito literário que é de contar e, ao mesmo tempo, trazer um ritmo linguístico que seja, ele mesmo, conteúdo. E, quando estes narradores aparecem com a sua generosidade, a fantasia de contar resulta bem. É incrível como, durante a escrita, sou surpreendido pelas “novas” ideias que são os personagens a trazer, durante as suas falas, no modo como os diálogos acontecem, e isso muda, tantas vezes, o rumo da estória, da narrativa. A voz das crianças permite dizer muitas outras coisas e seguir essa via, sim, da fantasia, que é a literatura no seu sentido mais abstrato e potente. Lembrar para escrever; escrever para lembrar coisas que nos esquecemos de inventar ou de viver. Pelos olhos das crianças, muitas vezes, o que é hostil, simplesmente, passa a ser doce, criativo, divertido. Acho que isso é uma grande lição para a vida de qualquer pessoa.

253 Notas

1. Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976). Atualmente é pesquisador pq - nível 1 c - consultor ad hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) . 2. Actu sanguíneu (poesia, 2000), Bom dia camaradas (romance, 2001), Momentos de aqui (contos, 2001), O assobiador (novela, 2002), Há prendisajens com o xão – O segredo húmido da lesma & outras descoisas (poesia, 2002), Quantas madrugadas tem a noite (romance, 2004), Ynari: a menina das cinco tranças (infantil, 2004), E se amanhã o medo (contos, 2005), Os da minha rua (estórias, 2007), AvóDezanove e o segredo do soviético (romance, 2008), O leão e o coelho saltitão (infantil, 2008), Materiais para a confecção de um espanador de tristezas (poesia, 2009), Os vivos, o morto e o peixe-frito (teatro, 2009 - Ed. especial, BRASIL), O voo do Golfinho (infantil, 2009), Dentro de mim faz sul seguido de Acto sanguíneo (poesia, 2010). 3. Actu Sanguíneu, Menção Honrosa no prêmio António Jacinto (Angola, 2000); E se amanhã o medo, Prêmio Sagrada Esperança (Angola, 2004), Prêmio António Paulouro (Portugal, 2005); Bom dia camaradas, finalista do prêmio Portugal TELECOM (Brasil, 2007); Os da minha rua, Grande Prêmio APE (Portugal, 2007), finalista do prêmio Portugal TELECOM (Brasil, 2008); Grinzane for Africa Prize, Young Writer (Etiópia/Italia/2008); AvóDezanove e o segredo do soviético, Prêmio FNLIJ 2010, Literatura em Língua Portuguesa, Prêmio JABUTI, categoria juvenil (2010), finalista do Prêmio Literário de São Paulo 2010, finalista do prêmio “Portugal TELECOM” (Brasil, 2010).

254 UMA NOVA EDIÇÃO DE CANÇÕES – ANTÓNIO BOTTO

Cláudia Souza (PUC/MG)1

Fernando Pessoa publicou em vida, entre outros escritos, muitos textos de crítica literária, manifestos em seu nome e também com a assinatura de Álvaro de Campos, poesias do ortónimo e de seus heterónimos e prefácios. Estava, além disto, envolvido com a elaboração da Revista Orpheu – que marcou o primeiro momento do modernismo português –, da qual também foi editor. Entre suas tentativas empresariais destacam-se: a “Empresa Ibis” e “Olisipo – Agentes, Organizadores e Editores”. Os projetos que envolvem essas duas empresas são numerosos no espólio pessoano. Alguns foram realizados em vida como a publicação em 1922 da segunda edição do livro Canções de António Botto. A relação de Fernando Pessoa com a obra de António Botto foi complexa. Durante a sua vida, Fernando Pessoa publicou alguns textos bastante elogiosos sobre a criação poética de Botto, além da segunda edição de Canções, lançada pela Olisipo e apreendida pelo Governo Civil de Lisboa a pedido da Liga de Acção de Estudantes de Lisboa. Essas e outras informações encontram-se em uma versão de Canções realizada pelos investigadores pessoanos, Nuno Ribeiro e Jerónimo Pizarro, pela editora Guimarães. Esse livro faz parte de uma série intitulada “Pessoa Editor”, em que cada livro pertence aos projetos editorais da Olisipo. Nessa edição de Canções, constam: a edição publicada pela Olisipo, a tradução do livro realizada por Pessoa para inglês, os artigos escritos por Pessoa sobre a obra de Botto e uma série de importantes documentos sobre o livro (testemunhos da apreensão, o rascunho da tábua bibliográfica de Pessoa, o horóscopo de Botto realizado por Pessoa, entre outros). O livro Canções, editado por Nuno Ribeiro e Jerónimo Pizarro, é um estudo completo sobre essa obra e sua relação com os escritos pessoanos. No prefácio, há uma explicação da importância dessa obra de António Botto

255 nos muitos projetos encontrados no espólio de Fernando Pessoa. Explicam-se também as alterações realizadas nessa obra ao longo das edições publicadas. Duas importantes cartas inéditas escritas por Pessoa a Botto (a primeira datada de 08 de Março de 1927 e a segunda datada de 25 de Março de 1927) encontram-se presentes nesse livro. É necessário ressaltar que, na carta datada de 08 de Março, Pessoa faz referência a Álvaro de Campos, como pode-se ler no fac-símile:

Pelas considerações acima feitas terá o Antonio verificado que está em Lisboa o senhor Engenheiro Alvaro de Campos. Elle saúda-o em gyrassol e cysne, e a essas saudações, assim serenas e hieraticas, junto as minhas – jardim velho para o gyrassol, lago triste para o cysne.2

O engenheiro Álvaro de Campos, primeiro heterónimo a ter a sua obra divulgada publicamente, participante do namoro entre Pessoa e Ofélia, também está presente na relação pessoal e profissional entre Pessoa e Botto, como pode-se confirmar através desse testemunho inédito. Quando o livro Canções foi apreendido, Fernando Pessoa escreveu “Protesto pela apreensão das Canções” (p. 119) e Álvaro de Campos “Aviso por causa da moral” (p. 127), um testemunho impresso em 1923 e distribuído por toda Lisboa. Além disso, Álvaro de Campos também publicou na revista Contemporânea número 4, “De Newcastle-on-tyne”, (p. 108) uma réplica ao texto “António Botto e o ideal estético em Portugal”, publicado por Fernando Pessoa no número anterior da mesma revista. Todos esses documentos apresentados no livro Canções demonstram a importância da obra de Botto na criação pessoana, importância tal que ultrapassa os limites de Pessoa ortónimo, invadindo a obra heteronímica. Publicamos aqui um dos documentos presentes nesta recente e completa edição de Canções, “Aviso por causa da moral” de Álvaro de Campos3.

256 Essa nova edição de Canções, com todos os documentos que a acompanham, serve como excelente fonte de informação sobre a relação Pessoa-Botto e, como possuí um caráter histórico e elucidativo, poderia ser uma ótima fonte de referência em curso ministrado sobre Fernando Pessoa e a poesia de sua época.

Notas

1 Doutoranda em Literatura de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Edito- ra do livro O Marinheiro pela Editora Ática (Lisboa, 2010), com inéditos do espólio pessoano. 2 BOTTO, ANTÓNIO. Canções. Tradução para o inglês Fernando Pessoa. Edição, Prefácio e Notas Jerónimo Pizarro e Nuno Ribeiro. Lisboa: Editora Guimarães, 2010. p. 159. 3 [BNP/E3-66-27v].

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ESCRITAS DA VIOLÊNCIA1 APRESENTAÇÃO DOS ANAIS DOS COLÓQUIOS DE 2007 E 2010

Moacyr V. Godoy Moreira (USP)2

Os colóquios Projeto Temático Escritas da Violência I e II, ocorridos entre 16 e 18 de outubro de 2007, e entre 29 e 30 de abril de 2010, trouxeram a público o conteúdo de trabalhos com os quais estão envolvidos pesquisadores, professores e alunos, tanto de graduação quanto inscritos em programas de mestrado, doutorado e pós-doutorado, ligados ao Grupo de Pesquisa Escritas da Violência, coordenado pelos professores Márcio Seligmann-Silva e Francisco Foot Hartman, da UNICAMP, e Jaime Ginzburg, da USP. A pluralidade acadêmica dos participantes é o primeiro ponto a ser ressaltado nos colóquios, visto que, em geral, a proposta dos seminários e congressos é convidar professores, ficando os alunos restritos à participação em mesas e eventos isolados. Essa integração reflete a ideia de pluralidade do Grupo de abrigar o máximo possível de estudiosos em seus mais variados níveis de complexidade na trajetória universitária. O objetivo dos pesquisadores tem sido mapear representações literárias de regimes autoritários e experiências históricas de violência, considerando o contexto ideológico e cultural, lançando um olhar sobre o Brasil, a América Hispânica e a Alemanha, fundamentalmente. Os dois dossiês estão publicados na revista Literatura e Autoritarismo3, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por iniciativa da professora Rosani Umbach. A revista se destaca no meio acadêmico por veicular trabalhos que investigam as relações entre obras literárias e situações históricas totalitárias e condições de violência e exclusão. Os estudos apresentados buscam encontrar nas obras produzidas em contextos violentos aspectos que permitam elaborar uma discussão, de maneira mais detida, a respeito das relações entre os regimes políticos e sociais nos quais os livros foram escritos e a estrutura formal destes. Encontram- se aqui vieses interpretativos que passam pela sociologia da literatura, pela

259 historicidade e pela discussão de categorias como nacionalismo, testemunho, memória, constituição do sujeito e questionamento da mímese, e de como a ideia de violência histórica articula-se com questões estéticas e dos gêneros literários. Outros questionamentos levantados são: em que medida a postura ideológica ou política de um autor se relaciona com sua produção artística; como conflitos do ambiente social podem se relacionar a problemas estilísticos, tensões e ambiguidades internas nos textos; e de como as catástrofes do século XX e XXI alteraram forma, linguagem e construção dos livros pesquisados. O valor das produções testemunhais, do ponto de vista dos gêneros canônicos conhecidos, é um outro tópico abordado, desenvolvido mais detidamente abaixo. Autores como Raymundo Faoro, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre (além de historiadores como Roberto Reis e José Murilo de Carvalho) auxiliaram na leitura da formação ambivalente da sociedade brasileira, permitindo uma análise das desigualdades do país frente às obras produzidas nos períodos históricos abordados. Os massacres, genocídios e atitudes de violência extrema vivenciados na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, os regimes ditatoriais brasileiro e dos países da América Latina e as recentes guerras de independência dos países lusófonos permeiam um campo comum de discussão, aproximando as obras literárias do ponto de vista da investigação para abordar questões sobre produção, postura da crítica especializada e do público em geral, tentando estabelecer uma leitura de como a influência dos ambientes violentos e coercitivos aparecem nos textos escolhidos. Trabalhos teóricos de autores como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Anatol Rosenfeld e Benedito Nunes colaboram com a trama argumentativa utilizada pelos pesquisadores, aumentando a riqueza e a complexidade dos debates em busca das mediações mais adequadas. Em frase de Theodor Adorno, citada por Gabriela Ruggiero Nor em seu trabalho O foco narrativo em Teatro, de Bernardo Carvalho, podemos estabelecer um ponto de partida para algo que delineia os 36 trabalhos (18 apresentados em cada um dos colóquios): “Contar algo significa ter algo especial a dizer”4. A frase surge no ensaio Posição do narrador no romance

260 contemporâneo, em que Adorno desenvolve uma argumentação bastante elucidativa sobre muitas das linhas mestras que são abordadas nos ensaios aqui apresentados. A associação entre violência e narrativa pressupõe que os autores das obras estudadas, seja na forma de textos literários dos gêneros mais conhecidos (o romance, o conto, a poesia), seja na forma de testemunho, têm algo especial a contar. Contar sobre o ato de violência – ou sobre a sociedade na qual personagens ou o próprio autor sofreram reflexos direta ou indiretamente de regimes totalitários – é um dos principais objetivos do Grupo Escritas da Violência. O questionamento da forma e de critérios de classificação e inclusão de uma obra no cânone é outro aspecto que chama a atenção no conjunto dos trabalhos, como já mencionado. Vários estudiosos debruçaram-se sobre a categoria da memória e do testemunho, privilegiando a leitura de obras que, em geral, fogem à forma canônica do texto literário, como em relatos de prisioneiros, que ressignificam, através da escrita, a categoria da constituição do sujeito, em momentos incorporando ao texto regras e valores apreendidos no ambiente carcerário (como no trabalho de Maria Rita Sigaud Soares Palmeira, Ambivalências formais em Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, e Diário de um detento: o livro, de Jocenir, exposição posteriormente desenvolvida em original tese de doutorado), textos híbridos, incluindo cartas, ensaio e ficção (como no trabalho de Paloma Vidal sobre o livro Las genealogías, da escritora mexicana Margo Glanz, em que há um estudo de como se pode construir a memória através da escrita), e obras que trazem elementos linguísticos de dois países incorporados à narrativa (como no trabalho de Pablo Gasparini, No entremeio do trágico: Perlongher e os 'cadáveres' da nação, em que o autor argentino, que viveu no Brasil entre 1982 e 1992, questiona o conceito de identidade nacional, criando um texto que utiliza termos em português e em espanhol, alternadamente, e por vezes uma mistura das duas línguas). Atualmente, no campo da crítica literária, a categoria do nacionalismo tem sido estudada em múltiplas vertentes. Uma das mais produtivas é a que

261 aproxima a literatura brasileira das literaturas latino-americanas de língua espanhola e da literatura lusófona (Angola, Moçambique e Cabo Verde, principalmente), visando a um distanciamento do foco eurocêntrico. Afastando- se do eixo europeu como perspectiva de comparação e modelo, considerando que os países europeus perpetraram regimes de extrema violência em seus processos de colonização – as guerras de independência de Moçambique e Angola ocorreram há menos de 50 anos – propõe-se um ponto de partida para análise destas obras diferente do adotado até o momento, havendo assim uma outra gama de valores calcados na ambientação e condições de produção e recepção das obras em seus países de origem, em diálogo com estas outras forças expressivas não europeias. Dos estudos apresentados, a literatura da América Latina aparece no trabalho Bolaño e a representação ficcional da ditadura Pinochet, de Carmem Cecília Rodriguez Almoncid (além do estudo já citado de Paloma Vidal sobre autora mexicana), em que faz uma análise dos romances Estrela distante e Noturno no Chile, do escritor chileno Roberto Bolaño, discutindo a questão da construção de uma memória individual e coletiva, frente a um regime ditatorial, avaliando as ligações entre texto literário e poder. O período histórico brasileiro mais estudado pelos expositores foi o que se sucedeu ao Golpe Militar de 1964, que perdurou até 1985. Os livros Em Câmara lenta, de Renato Tapajós e Memórias do esquecimento, de Flávio Tavares, foram analisados por Jayme Costa Pinto, Diego Porto Del Cistia Nietto e Carlos Augusto Costa, com articulações bem elaboradas entre a obra e o instrumental teórico. Estudando também Flávio Tavares e o livro Retrato Calado, de Luis Roberto Salinas Fortes, Fabrício Flores Fernandes ressalta a relação problemática entre a voz do narrador e o material narrado, evidenciando a dificuldade de relatar a experiência vivenciada – aqui, e em vários dos trabalhos que se referem às categorias do trauma e do testemunho, textos de Márcio Seligmann-Silva servem como aparato teórico para viabilizar a argumentação. Textos de Caio Fernando Abreu foram investigados por Valéria Freitas Pereira, Roberto Círio Nogueira e Guilherme Fernandes. Ainda

262 no referido período histórico, Ramiro Giroldo, utilizando como base teórica Adorno e Lukács, aponta relações entre autoritarismo e narrativa no livro Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, e Natália Pires Tirso de Mello ressalta aspectos da violência urbana, em diálogo com a teoria de Benjamin e Foucault, e discorre sobre o livro A casa de vidro, de Ivan Angelo. Retrocedendo na história do Brasil, abordando o período imperial, Rodrigo Cerqueira pesquisou os textos A rosa e O cego, de Joaquim Manuel de Macedo, apontando para relações entre textualidades e autoritarismo. Já no início da República e o período Vargas, surgiram trabalhos sobre Graciliano Ramos, especialmente sobre o livro Memórias do Cárcere, Lima Barreto e Cyro dos Anjos (apresentados por Eloisy Oliveira Batista, Daniela Birman, em contundente argumentação sobre a despersonalização e aniquilação do eu causadas pelo encarceramento, e Elisa Hickmann Nickel, que trabalha as relações de submissão e favores nos ambientes burocráticos dos serviços públicos), Patrícia Galvão (nos trabalhos de Larissa Satico Ribeiro Higa, que participou de ambos os colóquios, enfatizando a mudança na trajetória criativa da autora após ser torturada pela ditadura de Vargas e também após a decepção com o partido comunista), Dyonélio Machado (em excelente trabalho de Fernando Simplício dos Santos, estudando os romances Deuses econômicos, Sol subterrâneo e Prodígios, em que destaca a alegorização da linguagem para descrever a violência de Nero na Roma Antiga, traçando paralelos com a ditadura então vigente no Brasil) e Augusto dos Anjos (em trabalho de intertextualidade com Ruínas de um governo, de Rui Barbosa, de Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda). Sobre autores mais contemporâneos, Ana Carolina Teles escreveu sobre Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar e Gabriela Ruggiero Nor – já citada na abertura desta resenha - sobre Teatro, de Bernardo Carvalho (ambos, trabalhos com uma articulação entre obra e contextualização muito bem realizada, enfatizando aspectos da ambiguidade narrativa e elementos constitutivos da sociedade e da História brasileira recentes).

263 A respeito da Segunda Guerra Mundial, foram estudados autores brasileiros (José Geraldo Vieira, João Alphonsus e Boris Schneiderman, em consistente trabalho de Carlos Eduardo Fernando Netto, e Alberto Rangel, em estudo de Fabiana Bigaton Tonin), e autores estrangeiros (a notável escritora ucraniana Irène Némirovsky, cuja obra Suíte francesa foi lançada há apenas seis anos, autora que foi presa e executada no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, em trabalho de Cristiana Vieira Cancellier e Olivo, o autor austríaco Thomas Bernhad, em trabalho de Patrícia Miranda Davalos, e Pierre Seel, preso na França e enviado às forças nazistas por ser homossexual, em bem elaborado trabalho de Tiago Elídio). A frase de Adorno, citada anteriormente, alerta para um aspecto presente na maior parte dos trabalhos apresentados: em situações diversas de opressão, os narradores – ou o eu lírico dos poemas – desejam contar sua experiência do terror, da tortura ou da tentativa de aniquilação. Walter Benjamin, em seu ensaio sobre o narrador, enfatiza que frente à brutalidade da experiência extrema de violência torna-se impossível contar o ocorrido com a linearidade que, por exemplo, os antigos viajantes utilizavam para relatar suas jornadas, narrativas orais que eram responsáveis pela perpetuação das histórias. O trauma oriundo da violência física ou psicológica faz com que o texto produzido, pela impossibilidade de claramente discorrer sobre os fatos traumáticos, surja na forma de uma prosa fragmentária, calcada na dissolução da personalidade, na ruína e na tentativa de reelaboração do eu diante da perda sofrida. O deslocamento do real que se enxerga através da forma fragmentária permite uma aproximação diversa das obras considerando a interpretação conservadora que em geral se dá dos Estados totalitários, numa historiografia marcada pela necessidade de manutenção das forças hegemônicas instituídas. Um dos objetivos do grupo de estudos Escritas da Violência é verificar como esta elaboração da experiência traumática se apresenta nas obras literárias e, através de adequada mediação, traçar paralelos entre as obras e o contexto histórico dos regimes autoritários nos quais se inserem tais produções artísticas.

264 Para finalizar, destaco a originalidade dos trabalhos de Cynthia Beligni Andretta, ao estudar os livros Hiroshima, de John Hersey; A sangue frio, de Truman Capote e Olga, de Fernando Morais, e de Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista, sobre a literatura de viagem e a tradução literária, demonstrando como foram calculadamente utilizadas pelos Estados Unidos, como forma de opressão e dominação. Destaque especial para a discussão de categorias teóricas apresentada com notável clareza e riqueza argumentativa por Marcelo Rodrigues de Moraes, no estudo Estética e horror: o monstro, o estranho e o abjeto.

Notas

1 Escritas da Violência – sites do Grupo Temático Escritas da Violência: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/ detalhegrupo.jsp?grupo=0079802HRY8JT0; http://www.iel.unicamp.br/projetos/escritas/ 2 Aluno de doutorado em Literatura Brasileira do programa de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). 3 Site do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo. jsp?grupo=03278022MQMSM6. No link da Revista Literatura e Autoritarismo, podem ser lidos integralmente os dois Dossiês com os 36 trabalhos dos colóquios: http://w3.ufsm.br/grpesqla/main.php?op=conteudo_14 4 ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

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UMA ADEGA DE LIVROS

Vinícius Carvalho Pereira (UFRJ)1

Livro sobre livros – metalivro ou mesmo livro-meta, apresentando objetivos e perspectivas para a literatura e a bibliofilia no século XXI –, _não contem com o fim do livro é uma obra surpreendente, desde a grafia de seu título, com inicial minúscula e um traço horizontal (chamado de underscore ou underline na esfera digital). Embora tal símbolo de diagramação passe despercebido para um leitor mais incauto, é preciso ver que uma obra acerca do destino do livro impresso na era do e-book joga conscientemente com o caráter expressivo de tal traço, já com destaque na capa. Afinal, se o underscore, à era da máquina de escrever, servia para sublinhar palavras digitadas, inexistentes que eram os editores de texto, hoje esse símbolo marca, para os informatas, o espaço em branco em aplicações e sistemas que não suportam o caractere do simples espaço em branco, como URLs e endereços de correio eletrônico. E, a bem da verdade, é do suposto preenchimento de um espaço vazio que fala o livro publicado pela Record. Suposto porque, às apocalípticas previsões de que o livro impresso seria suplantado pela tela de cristal líquido, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière mostram que não há uma lacuna do livro a ser preenchida pelas novas tecnologias: o livro em papel é, ainda hoje, como mostram os autores, o mais eficiente recurso para fixação e divulgação da cultura e da literatura mundial. O underscore do título transforma-se, pois, não em recurso de preenchimento, mas de destaque à figura do livro, tema que percorre de forma muito poética o discurso de Eco e Carrière. Estruturado sob a forma de entrevistas conduzidas pelo jornalista Jean- Philippe de Tonnac, _não contem com o fim do livro encerra de modo agradável e literário questões fulcrais para a pós-modernidade, como os diferentes modi legendi ensejados pela diversidade de suportes, como a folha de celulose e a mídia computacional. Assim, não há que se comparar a leitura no papel ou

267 na tela, uma vez que, dos objetivos do leitor ao próprio movimento do globo ocular, trata-se de dinâmicas radicalmente distintas. Além disso, desconstroem-se, nas falas dos entrevistados, clichês como o da supremacia dos suportes digitais quanto à sua durabilidade e à sua capacidade de armazenamento. Como nos mostram Eco e Carrière, cassetes, disquetes de diversos tamanhos, CDs e DVDs já se sucederam de forma ininterrupta como pretensas tecnologias revolucionárias que poriam fim ao invento de Gutenberg, mas sempre caindo na obsolescência após alguns anos. O livro em papel, todavia, continua como suporte flexível e democrático, podendo ser utilizado a qualquer hora e em qualquer lugar, a despeito da evolução tecnológica ou da disponibilidade de uma tomada. No mesmo diapasão, o semiólogo italiano, famoso por seus romances e ensaios de estética e crítica literária, afirma que, se a função do livro é preservar o que não deve ser esquecido, separando-o do descartável ou casual, a Internet subverte essa lógica, preservando tudo. A função seletiva da memória e da cultura, que permite ao homem esquecer o banal para reter o essencial (perdida pelo personagem borgeano Irineu Funes, a quem o “excesso” de passado leva às raias da loucura), é invalidada nesse repositório virtual onde tudo cabe. Não sabemos mais, então, o que é importante e o que é circunstancial, naufragando na impossibilidade de digerir tantos dados. Levando mais além essa análise de cunho borgeana, Eco traça um prognóstico digno também de outro conto do ficcionista argentino: “A biblioteca de Babel”. No entanto, se o conto de Borges revela os espelhamentos entre o espaço da biblioteca e o próprio universo, multiplicando seus sentidos e as possibilidades de leitura, a vastíssima biblioteca digital que a Internet proporciona pode significar o cataclismo da comunicação humana. Afinal, se só nos comunicamos a partir de certos referenciais compartilhados, como enciclopédias convencionadas na vida em comunidade, a rede internacional multiplica as enciclopédias ao infinito babélico, podendo culminar até mesmo na incomunicabilidade. Sem nada em comum, não haveria troca, apenas equívocos, gritos e surdez.

268 E, se nesta resenha, parecem exageradas as referências a Borges, há que se lembrar que estas também abundam em _não contem com o fim do livro. Livro sobre livros, ou melhor, sobre as paixões de dois bibliófilos, esta obra é um grande intrincado de redes intertextuais, ligando obras famosas e desconhecidas, contemporâneas e medievais, algumas mesmo anteriores ao advento da prensa de tipos móveis. Nesse sentido, por vezes torna-se difícil acompanhar o fluxo lógico das informações do livro de Eco e Carrière, uma vez que o tom de conversa informal leva a longas digressões acerca do cheiro, do gosto ou da textura de uma obra, qual enólogos que discutissem sobre um vinho de rara safra. Embevecidos – e embriagados! – pela paixão do objeto livro, em determinados trechos os entrevistados deixam as questões formuladas sem resposta clara, preferindo recitar trechos favoritos de determinados romances de cabeceira. Aliás, o próprio Jean-Philippe de Tonnac explicita essa relação entre a biblioteca e a adega (e esse percurso ébrio nos diálogos!) no sugestivo capítulo “Todos os livros que não lemos”. Em resposta à comum pergunta se todos os livros de suas vastíssimas bibliotecas (espalhadas em diversas casas pela Itália) já foram por ele lidos, Eco responde categoricamente que não. Tê-los não significa necessariamente lê-los, até porque a vida seria muito curta para tanto. O amor pelo livro iria além, pois, da fruição do texto, evocando ainda prazeres sensuais de tato, olfato, com eventuais momentos de contemplação e um folhear fugaz. Assim, tal qual adega repleta de raridades, Tonnac afirma que é um orgulho deter tantas preciosidades, mas que não seria sábio consumi- las todas. Ler por ler, apenas para dar conta das obras, culminaria em uma ausência de gozo, qual sexo agendado ou sem desejo, ou consumo de vinho já sem o paladar apurado... Um verdadeiro enófilo não tem por objetivo tomar todos os seus vinhos, senão amá-los e admirá-los. Por fim, se não é só no corpo do texto, mas na materialidade do objeto livro que está o prazer do bibliófilo, não se pode deixar de fazer um elogio ao projeto gráfico de _não contem com o fim do livro. Sua capa é bem sugestiva no que tange à utilização de elementos visuais, como, no canto superior à

269 direita, a imagem de um retalhador de papel, daqueles usados em empresas para dar fim a documentos confidenciais. A visão de tal utensílio, imponente e destruidor, remete aos incêndios da biblioteca de Alexandria, aos bibliocaustos da Inquisição e mesmo à pretensa substituição do livro impresso pelo e-book no século XXI. Logo abaixo da ferramenta “biblicida”, mais ao centro da capa, observa-se ainda um livro aberto e retalhado, com suas páginas cortadas em tiras horizontais, mas ainda encadernadas. Todavia, se um leitor desavisado acha que isso representa a derrota do livro, ledo engano. Essa obra realmente existe e foi concebida originalmente “fatiada” em diversas tiras. Trata-se do célebre livro Cent Mille Milliards de Poèmes, de Raymond Queneau, poeta e matemático francês do grupo Oulipo. Seu livro consiste em 10 únicas páginas onde estão escritos sonetos, cujos versos são separados uns dos outros em tiras de papel independentes, que podem ser movidas sem afetar as demais. Como nos livrinhos infantis em que se pode montar uma quimera com cabeça de jacaré, corpo de pato e pé de macaco, ou algo que o valha, Cent Mille Milliards de Poèmes, em sua condição original de livro fatiado, permite a construção de 100.000.000.000.000 (1014) sonetos diferentes, por uma simples operação de análise combinatória, em que cada uma das 10 opções para o primeiro verso pode se combinar com qualquer uma das 10 opções para o segundo, e assim sucessivamente. E o que é mais espantoso: todas as combinações geram poemas coerentes e sintaticamente exatos, respeitando ainda os preceitos de métrica e rima que manda a tradição. É, pois, como obra retalhada, justaposta ao retalhador de escritório, o qual metonimiza todas as investidas contra os livros, dos incêndios ao e-book, que o texto de Queneau ganha em potência (de expoente 14, aliás!). Do mesmo modo, Eco e Carrière apontam como, graças às batalhas que tiveram de enfrentar, alguns livros, se retalhados ou rasgados, com orelhas ou rasuras, oxidação ou manchas, se tornaram potências cada vez mais intensas e apaixonantes, como bons vinhos que o tempo só faz amadurecer.

270 Referências

ECO, Umberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. _não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Notas

1 Doutorando e Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso (IFMT).

271 Esta edição contou com produção integral da Editora Universitária da Universidade do Estado do Amazonas. Possui tamanho 14x21 cm, miolo em papel off-set 75 g/m, capa em papel triplex 250 g/m, laminação fosca e aplicação de verniz local. Composta em fonte Segoe UI, tamanho 10. Foi impressa na Gráfica Ampla, de Manaus, para a UEA Edições em agosto de 2011. Tiragem 300 exemplares.