42º Encontro Anual da Anpocs GT 31 – TEORIA POLÍTICA E PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO

PODER, LEGITIMIDADE E ORDEM EM CARLOS DE LAET E JACKSON DE FIGUEIREDO.

Christiane Jalles de Paula

Poder, legitimidade e ordem em Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo.

O presente trabalho dedica-se a investigar a militância na imprensa brasileira de dois intelectuais católicos: Jackson de Figueiredo e Carlos de Laet1. A hipótese que subsidiou a investigação foi a de que a articulação da ação com a pertença católica alimentou uma interpretação do Brasil marcadamente reativa ao liberalismo e à democracia no país. Analisamos artigos de Carlos de Laet (1847-1927) e Jackson de Figueiredo (1891-1928) na imprensa carioca. Este escreveu nas revistas América Latina: Revista de Arte e Pensamento (RJ) e Gil- Blas: Pamphleto de Combate (RJ); já Carlos deLaet escreveu na Revista Americana (RJ). Não será possível traçar pormenorizadamente a história desses periódicos.Há poucas informações sobre eles e foge aos nossos objetivos, apesar disso quero destacar que todos eram essas publicações eram importantes porta-vozes de teses antiliberais que circulavam no campo das ideias no país, ou nos termos da época “nacionalistas” de direita (SODRÉ, 1999). Para dar conta deste objetivo, a primeira seção apresenta as trajetórias dos autores aqui tratados, a seção seguinte analisa as concepções dos autores sobre poder, legitimidade e ordem, e a terceira seçãodefende que tais autores integram uma “família” intelectual.

1) Oposto e complementares: Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo

Como dito, antes de expor os argumentos dos autores, vou apresentá-los brevemente, seguindo a ordem cronológica de suas atuações na esfera pública brasileira.

Carlos de Laet (Carlos Maximiliano Pimenta de Laet), jornalista, professor e poeta, nasceu em 3 de outubro de 1847, no , RJ, e faleceu também no Rio de Janeiro em 7 de dezembro de 1927. Convidado para a última sessão preparatória da instalação da Academia, em 28 de janeiro de 1897, foi o fundador da cadeira n. 32, que tem como patrono Araújo Porto-Alegre. Filho de Joaquim Ferreira Pimenta de Laet e de Emília Ferreira de Laet, aos 14 anos

1 Agradeço o apoio da Universidade Federal de Juiz de Fora com o seu programa institucional de bolsas de iniciação de pesquisa da instituição. matriculou-se no 1º ano do Colégio Pedro II. Laureado bacharel em Letras, matriculou-se na Escola Central, depois Politécnica. Formado em Engenharia, não seguiu a carreira preferindo voltar-se para o magistério e o jornalismo. Em 1873, fez concurso no Colégio Pedro II para a cadeira de Português, Geografia e Aritmética, disciplinas que formavam o primeiro ano do curso. Em 1915, com a reforma do ensino, desapareceu aquilo que Ramiz Galvão chamara “anomalia”, a reunião de três disciplinas tão díspares numa mesma cadeira e Laet foi então nomeado professor de Português.

Em 1889 seus amigos monarquistas insistiram com ele para aceitar uma cadeira de deputado. Foi eleito, mas o advento da República privou-o da cadeira. Manteve-se monarquista e fiel ao culto de D. Pedro II. Proclamada a República, deliberou o Governo Provisório substituir o nome do Colégio Pedro II pelo de Instituto Nacional de Instrução Secundária. Na sessão da congregação da casa de 2 de maio de 1890, Laet requereu fosse feito um apelo ao governo republicano para conservar-se o nome antigo do estabelecimento. No dia seguinte, o Diário Oficial trazia a demissão de Carlos de Laet. Pouco depois, Benjamin Constant, o primeiro ministro da Instituição do Governo provisório, conseguiu transformar o ato de demissão em aposentadoria. No governo de Venceslau Brás foi ele reconduzido ao posto no magistério.

Carlos de Laet exerceu, desde então, até aposentar-se, em 1925, o cargo de professor, e foi também, durante longos anos, diretor do Internato Pedro II. Foi professor do Externato de São Bento e do Seminário de São José, entre outros estabelecimentos de ensino particular.

No jornalismo, estreou no Diário do Rio em 1876, passando em 1878 para o Jornal do Comércio, onde durante dez anos escreveu os textos do seu "Microcosmo". Trabalhou também, como colaborador e como redator na Tribuna Liberal, no Jornal do Brasil, do Comércio de São Paulo e do Jornal, nos quais deixou uma vasta produção de páginas sobre arte, história, literatura, crítica de poesia e crítica de costumes. Por suas convicções monarquistas sofreu perseguição também em 1893, por ocasião da revolta da Armada. O jornalista refugiou-se então em São João delRei, onde dedicou-se a escrever o livro Em Minas. Católico fervoroso, serviu à Igreja no Brasil, como presidente do Círculo Católico da Mocidade, sendo-lhe conferido pelo Vaticano o título de Conde.

Dir-se-á que foi reacionário porque combateu o Modernismo, tendo-lhe escapado o sentido renovador do movimento. Graça Aranha foi alvo de suas críticas e zombarias, tendo-lhe fornecido assunto para três sonetos galhofeiros. Na Academia Brasileira, Laet foi eleito presidente em 1919, na vaga de Rui Barbosa, exerceu três mandatos até 1922, quando renunciou. Foi presidente da primeira comissão do Dicionário da Academia.

Tendo produzido um acervo jornalístico que, reunido em livros, chegaria a dezenas de volumes, Carlos de Laet deixou poucas obras publicadas.

Jackson de Figueiredo Martins nasceu em Aracaju no dia 9 de outubro de 1891, filho de Luís de Figueiredo Martins e de Regina Cândida Jorge de Figueiredo. Seu avô paterno, Jacinto Martins de Almeida, foi duas vezes prefeito de Aracaju e presidente da Associação Comercial de Sergipe. Ainda estudante, participou de vários grupos que se dedicavam às letras e publicou seu primeiro livro, Bater de asas, em 1908. Em 1913 bacharelou-se em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade Livre de Direito da Bahia e logo após a formatura voltou a Sergipe. Em março de 1914 mudou-se para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e trabalhou como professor e jornalista, colaborando na Gazeta de Notícias e em O Jornal. Ainda em 1914 foi apresentado ao filósofo Raimundo Farias Brito e começou a publicar livros biográficos ou de análise filosófica. Sob a influência dos escritos de Farias Brito, adotouperspectivas espiritualistas. Segundo Hamilton Xavier, a relação dos dois “foi mais uma influência moral, afetiva, do que propriamente intelectual”.

Em 1916 casou-se com Laura Alves, cunhada de Farias Brito. Ainda em 1916, passou a corresponder-se com o arcebispo de Olinda e Recife, dom Sebastião Leme. Essa aproximação ocorreu após a divulgação da Carta pastoral de dom Leme, por ocasião de sua posse à frente da arquidiocese. Na Carta, dom Leme diagnosticava que “os católicos, somos a maioria do Brasil e, no entanto, católicos não são os princípios e os órgãos da nossa vida política”. Para reverter esse quadro, dom Leme propunha algumas medidas básicas, tais como a realização de obras de estímulo intelectual para os sacerdotes, o desenvolvimento da doutrinação nos centros urbanos e da catequese das populações rurais, a criação do ensino religioso facultativo e de escolas superiores francamente católicas. Segundo Thomas Bruneau, a Carta pastoral de 1916 foi o primeiro passo significativo para a reorientação e mobilização da Igreja no Brasil. Para AntônioCarlos Vilaça, o documento teria um papel fundamental na conversão de Jackson ao catolicismo. De fato, após ter contraído em 1918 o vírus da gripe espanhola, Jackson converteu-se ao catolicismo entre 1918 e 1919. Dom Leme, por sua vez, assumiria a arquidiocese do Rio, inicialmente como coadjutor, em agosto de 1921, depois como cardeal, e por fim como titular, em 1930.

Politicamente, nesse período Jackson era um entusiasta da causa nacionalista, e combateu especialmente a presença de portugueses em certos setores econômicos brasileiros. No mesmo mês em que dom Leme se tornou coadjutor da arquidiocese do Rio, juntamente com Hamilton Nogueira, Perilo Gomes, José Vicente de Sousa e Durval de Morais, fundou a revista A Ordem. De acordo com Odilão Moura, “o espírito que insuflava a publicação, identificado com a mentalidade do líder do grupo, estava revelado no próprio nome: espírito de ordem, de obediência à autoridade e de justiça”. Com o agravamento da situação política no governo de Epitácio Pessoa (1919-1922), Jackson poria a revista a serviço da defesa da autoridade. Durante a campanha presidencial de 1921-1922 apoiou a candidatura de Artur Bernardes, tendo sido uma das vozes na imprensa brasileira a reagir quando da publicação pelo Correio da Manhã, em outubro de 1921, dos fac-símiles de cartas supostamente escritas por Bernardes contendo graves ofensas ao marechal Hermes da Fonseca e ao candidato adversário Nilo Peçanha. Embora o Clube Militar tivesse atestado a falsificação, as chamadas “cartas falsas” deflagraram uma grave crise e alimentaram o debate até a confirmação da vitória de Bernardes. De acordo com Francisco Iglésias, Jackson, em seus artigos, criticou tanto o recurso da falsificação como a aliança entre os até então adversários Nilo Peçanha e Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã. Em março de 1922, Bernardes foi eleito.

Com o apoio de dom Leme, em maio seguinte Jackson fundou o Centro Dom Vital, associação civil ligada à Igreja voltada para o estudo, a discussão e o apostolado da religião, e destinada a “catolicizar a inteligência brasileira”. Fundado, portanto, no mesmo ano em que se realizou a Semana de Arte Moderna e se criou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Centro Dom Vital seria o principal núcleo intelectual do catolicismo brasileiro até 1941, quando foi criada a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Segundo Thomas Bruneau, foi “através do Centro e de seu órgão, A Ordem, que dom Leme e Jackson procuraram estimular, mobilizar e aumentar a influência da Igreja,visando principalmente a elite intelectual do país”.

A vitória de Bernardes em março de 1922 não amainou, contudo, o clima político. A oposição de setores militares à sua posse, prevista para novembro, aumentou ainda mais a tensão, até a eclosão no dia 5 de julho do primeiro levante do ciclo de movimentos tenentistas da década de 1920. A revolta, deflagrada em protesto contra o fechamento do Clube Militar e a prisão do marechal Hermes da Fonseca, envolveu o forte de Copacabana, a Escola Militar e efetivos da Vila Militar, no Rio de Janeiro, e ainda o contingente do Exército estacionado em Mato Grosso, e foi debelada no mesmo dia. Na ocasião Jackson defendeu a repressão ao movimento tenentista e, segundo Odilão Moura, ocupou o cargo de “chefe da Censura da Imprensa do Rio de Janeiro” no governo Bernardes (1922-1926). Na campanha presidencial de 1926, apoiou o nome de Washington Luís, que venceu a disputa. Jackson de Figueiredo faleceu no Rio de Janeiro no dia 4 de novembro de 1928, ainda como diretor de A Ordem e do Centro Dom Vital. Foi substituído nos dois cargos por , um dos mais destacados nomes da crítica literária nacional, que, por influência de Jackson, poucos meses antes se havia convertido ao catolicismo. De seu casamento com Laura, teve quatro filhos. Colaborador em vários jornais e revistas e produziu, entre outras obras, Afirmações (1921), A reação do bom senso (1922) e A coluna de fogo (1925). Jackson Figueiredo em “Gil-Blas: Pamphleto de Combate (RJ)”, entre 1919 a 1923, foi responsável por três artigos, sendo eles: Sobre o Problema da Colonização; O Verdadeiro Nacionalismo e por fim, A Respeitosa Contradicta, que analisaremos aqui.

2) Poder, legitimidade e ordem

Passemos aos argumentos dos autores contrários ao liberalismo e à participação. Todos responsabilizam as elites pelo atraso brasileiro. Todos relacionam elites e liberalismo. Todos percebem as demais camadas da sociedadebrasileira como incapazes. Vamos a eles:

Na Revista Americana, Laet escreveu “O discurso de recepção” publicado na edição de março 1911 e “Rio Branco” publicado em abril de 1913. Para ele, a República trouxe para primeiro plano homens despreparados. O primeiro artigo é o discurso de Laetproferido em 7 de janeiro de 1911na posse do general Dantas Ribeiro, na Academia Brasileira de Letras, que estava assumindo a cadeira de . O intelectual brasileiro construiu seu discurso de maneira irônica, poética e, sobretudo, impiedosa. Monarquista convicto, repudiava o que o general representava, principalmente pelo autor ter sofrido perseguições dos militares após a proclamação da república. Isso fica evidente logo no início. Fala ainda sobre os contos de guerra do general, ao dizer que os “tratadistas republicanos” compreendem a verdadeira e clássica história por estarem presentes nos combates e fazer, basicamente, um relato de presença individual nesses acontecimentos. Prossegue atacando as obras literárias do novo acadêmico como o livro “Impressões militares”, citando de forma irônica relatos que classificou como “revelações graves e deprimentes”, acusando-o de romantizar e classificar capítulos tristes da nossa história como “acidentes da guerra”, tais como: a brutalidade da Guerra do Paraguai, despreparo do exército e da marinha, assim como a ineficiência dos mesmos diante da decretação do exílio de D. Pedro II, a revolta no Paraná e a Guerra de Canudos. Por fim, faz uma relação entre política e a unidade literária, presente na Academia Brasileira de Letras, dizendo que o temperamento revolucionário presente no recinto não passa de uma mera aparência, e que, na prática, todos eram conservadores, formando uma corporação conservadora.Já o segundo artigo, intitulado “Rio Branco”, Laetfala sobre a trajetória do Barão do Rio Branco (1845 -1912), desde seus serviços à nação até a sua recente morte. José Maria da Silva Paranhos Júnior, ou Barão do Rio Branco, foi professor, político, diplomata e biógrafo brasileiro. Tece fortes críticas nas decisões do Barão durante as missões, e ressalta a administração do dinheiro público, que para ele fora utilizado de maneira abusiva, pois foram feitas despesas extraordinárias que eram legitimadas por se tratar de homem que era rotulado de grande bem-feitor da nação, mesmo diante do seu despreparo e dos benefícios que a sua vida nobre lhe garantia.

Jackson, nacionalidade e exclusão. No primeiro artigo: “Sobre o problema da Colonização”, o autor Figueiredo escreve esta obra com o intuito de propagar ideais nacionalistas e parabenizar o seu amigo jornalista Roberto Lopes, que escreveu um artigo criticando a colonização, inspirando-o a escrever este texto. No decorrer do texto Jackson lança um ataque contra à imprensa carioca, dominada segundo ele pelos portugueses que tentavam desqualificar a causa. O problema para o autor são os estrangeiros que mudam para o Brasil para explorar e roubar nossas riquezas. Jackson defende que o governo só deveria incentivar a vinda de camponeses europeus.O segundo artigo: “O Verdadeiro Nacionalismo” é uma propaganda da causa nacionalista, serve para esclarecer ao leitor quais as diretrizes que os membros do movimento apoiam. Segundo Jackson de Figueiredo, o estrangeiro tem que se portar como estrangeiro.Em“RespeitosaContradicta”, defende o movimento nacionalista da acusação de ser um movimento xenofóbico. Seu argumento é o de que o brasileiro imigrante em qualquer parte do mundo não é acolhido como compatriota e nem tratado como tal. Consequentemente, o mesmo tratamento que é concedido aos brasileiros residentes nesses países deveria ser o praticado pelo governo brasileiro. Dessa forma, as políticas imigratórias do governo brasileiro seriam exemplares da decadência de nossas elites que não atuariam na proteção do país. Para Corção, no texto em questão, o erro das elites era a filiação ao liberalismo. Partindo de uma crítica mordaz às filosofias iluministas, Corção propõe a criação de uma força de combate, de um exército, de defensores de uma nova filosofia, baseada nas exigências “supremas da natureza humana, e não no realismo pragmático e imediatista que se detêm na periferia dos fatos”. (p.331). O conjunto filosófico do racionalismo e iluminismo, Corção denomina-o como “Filosofias da Inimizade”. Nesse sentido, o problema da sociedade moderna, portanto, liberal, é que o egoísmo ocupa o cerne, é a própria essência de sua filosofia. E ao penetrar em todos os poros do mundo moderno, ao alcançar o status de modelo ideal de comportamento, para Corção, o liberalismo impôs um ideal de homem, um arquétipo, calcado na inimizade. Esse ideal transformou-se numa atmosfera cultural que está entranhada na vida da Cidade, pois está objetivada nos valores, nas hierarquias, nos critérios de cultura, e que “existe, sobretudo, na mentalidade das elites dirigentes, tornando-as adversas, consciente ou inconscientemente inimigas da multidão dirigida”. (p.338). Em oposição a este conjunto filosófico, Corção milita pelo retorno aos ensinamentos de São Tomás de Aquino, ou seja, a volta a uma ordem anterior à liberal.

3) Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo: membros da “família” intelectual católica de direita

Todorov, em seu livro O jardim imperfeito: o pensamento humanista na França (2005), também estabelece famílias para dar conta do quadro do pensamento social da modernidade. Em seu texto, o autor explica que famílias são as tendências que surgiram no seio da modernidade e que nos permite desnudar as particularidades de cada representante da família, ao mesmo tempo em que deixa aberta a possibilidade para vislumbrar as alianças entre membros de famílias diferentes, pois:

“É sempre difícil reagrupar o pensamento de autores individuais sob etiquetas genericas. Ninguem gosta das palavras terminadas em „ismo‟, e não é para menos: cada reagrupamento tem algo de violento e arbitrário,..., pois sempre nos podem opor casos intermediários ou híbridos”. .. Não ignoro os inconvenientes do procedimento. Decido-me, contudo, a me servir dele, pois também entrevejo suas vantagens: primeiramente, é preciso de algum modo dispor de uma linguagem comum para poder falar do passado (os nomes próprios não bastam); em seguida, a freqüentação dos textos me persuadiu, embora me seja impossível prová-lo, que certas afinidades, certas diferenças são mais importantes que outras e justificam, portanto, este ou aquele reagrupamento. “Enfim, o amálgama entre famílias distintas me parece ser um dos obstáculos principais à análise lúcida de nossa situação atual.” (Todorov, 2005, p. 20/21).

No Brasil a construção de linhagens ou famílias intelectuais políticas é assunto nas Ciências Sociais. Guerreiro Ramos foi o precursor (1961), segundo Gildo Marçal, a abordar a vida intelectual em termos de "famílias". No livro A crise do poder no Brasil (1961), Ramos mapeia três grupos de pensadores que, aproximados por suas afinidades, comporiam famílias intelectuais no país. São eles: a ideologia da ordem, a jeunessedorée e a do inconsciente sociológico.

“No domínio da vida intelectual, há famílias. Isto é, grupos cujos integrantes são marcados sutil ou ostensivamente por um ar de família. Existe uma morfologia social do espírito ou da inteligência”. (RAMOS, 1960, p. 141)

Sobre a família de "A ideologia da ordem", disse Ramos, era composta por um grupo intelectual católico brasileiro formado por Jackson de Figueiredo, Hamilton Nogueira, Alceu Amoroso Lima, Cardeal D. Jaime Câmara, Arcebispo D. Helder Câmara, Gustavo Corção, Juarez Távora, Eduardo Gomes, Fernando Carneiro, Carlos Lacerda, José Artur Rios e outros, que primariam pela defesa do integrismo, concepção cujo excessivo compromisso temporal tenderia a identificar o catolicismo com a defesa da organização econômica em voga e a "civilização ocidental", aferrando-se a isso como valores e distanciando-se das camadas populares – sua expressão máxima seria o pensamento de Jackson de Figueiredo – e teria dado origem intelectual ao integralismo como movimento ideológico. Para Guerreiro Ramos

“como categoria social, a intelectualidade católica no Brasil ainda não superou a ideologia da ordem....Representa assim forma de conduta anacrônica. É licito supor que essa insensibilidade ao atual decorre do despreparo de nosso clero e dos intelectuais católicos...Nos dias correntes, com o Sr. Carlos Lacerda feito governador da Guanabara, a ideologia da ordem domina um grande estado da União. A administração do Rio de Janeiro de hoje é o melhor testemunho dessa ideologia na prática”. (Ramos, 1961, p. 151)

Já Paulo Mercadante (1965), embora não explicite tratar de famílias, não é uma incorreção abordá-lo pela chave das duas famílias: liberal-conservador/social- democrata. Seu ponto é de que há a hegemonia na história brasileira da “consciência conservadora”, estilo de pensamento (a la Mannheim) que organiza todos os aspectos da sociedade brasileira. Seu fundamento está fundado na psicologia política brasileira, cujo traço é a conciliação.Herdado da colonização portuguesa, a conciliação está voltada aos valores espirituais (vide a importância da Companhia de Jesus), do ponto de vista da política econômica destinada ao mercado externo e acomodada em institutos jurídicos que uniam as ordenações portuguesas à jurisprudência comercial.

“A forma de pensamento adotada pela intelligentsia brasileira realmente repousaria no espírito da restauração...Diante da escolástica decadente, coberta pelo sarcasmo já desacreditada, e à face de um materialismo afoito que ainda não aprendera a ruborizar-se nem a disfarçar-se sob fórmulas eufemísticas, outro caminho não haveria para o pensamento senão aceitar a ideologia que procurava conciliar as diferentes escolas. Conciliar, antes de tudo, a revolução nas relações externas de produção com o escravismo nas relações internas de produção, foi essa a preocupação da intelligentsia de 1822” (Mercadante, 2003, p. 276-7).

Wanderley Guilherme dos Santos (1978), por seu turno, ao estabelecer uma espécie de balanço da doutrina e da ação política liberal no Brasil desde 1822, fundada nas seguintes teses sobre o liberalismo brasileiro:

1) De que nunca conseguiu conquistar e fundar a ordem sociopolítica brasileira. 2) Apesar disso, entre nós, pouco se percebeu o caráter histórico (e, portanto, a seu ver, em certa medida, acidental) da associação entre os conceitos relativos aos direitos civis e políticos e a instauração das sociedades de mercado. 3) De que os nossos liberais se moveram sempre no espaço restrito de um falso dilema, de uma ambiguidade recorrente, trazidos à luz pela primeira vez por Oliveira Vianna na década de 20 -"como construir um sistema político liberal sem uma sociedade liberal"?

Santos (1978) busca responder essas questões construindo, embora não explicitamente, famílias de liberais. São elas: o "liberalismo doutrinário" e o "autoritarismo instrumental". Liberais doutrinários crêem idealisticamente que a liberalização política por si só é suficiente para implementar o liberalismo econômico. “São portanto as sucessivas facções de políticos e de analistas que, desde meados do século XIX, sustentaram a crença de que a reforma político- institucional no Brasil, como em qualquer lugar, seguir-se-ia naturalmente à formulação e execução de regras legais adequadas. A linhagem começou, talvez, com Tavares Bastos...Assis Brasil e Rui Barbosa podem, talvez, ser considerados como os mais notáveis exemplos ...nas primeiras décadas da República” (Santos, 1998, p. 39). Já os liberais "autoritários” – autoritários instrumentais –, “creem que as sociedades não apresentam uma forma natural de desenvolvimento, seguindo antes os caminhos definidos e orientados pelos tomadores de decisão...Em segundo afirmam que o exercício autoritário do poder é a maneira mais rápida de se conseguir edificar uma sociedade liberal” (p. 45/46).

Bolívar Lamounier (1978) debruçou sobre o pensamento político brasileiro e constituiu a família dos autoritários – “... a transformação do pensamento político no período considerado deve ser entendida basicamente como a formação de um sistema ideológico orientado no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade” (2006, p. 384). Para Lamounier o pensamento autoritário é uma “ideologia de Estado”, uma “construção intelectual” que sintetizaria e daria “direção prática a um clima de idéias e de aspirações políticas de grande relevância nas últimas décadas do século XIX e na primeira metade deste”.(Lamounier, 1978:357) Sintetizando, o modelo da “ideologia do Estado” pretende “apreender a inflexão do pensamento brasileiro no início deste século como uma resposta bastante específica aos problemas da organização do poder”.(Lamounier, 1978:358 – grifo do autor).

Luiz Werneck Vianna (1997), ao incorporar a temática gramsciana da revolução passiva, busca extrair do ensaísmo clássico nacional categorias e modos de entendimento que elucidem a dinâmica civilizatória brasileira à luz de um quadro mais amplo, aparentado das grandes linhagens da sociologia história. Assim, seu estudo sobre Tavares Bastos e Oliveira Vianna (1997) trabalha os conceitos de americanismo e iberismo não apenas como objetos de uma historiografia das idéias, mas como modos de articulação entre Estado e sociedade. Ou seja, trata-se de utilizar essas categorias para pensar caminhos de modernização não-clássicos, sem que isso necessariamente traduza um lamento diante da não coincidência entre as teorias produzidas no mundo europeu e a realidade das margens.Segundo Werneck Vianna, o iberismo representaria, portanto, um andamento no qual o Estado conheceria grande protagonismo, por vezes movendo-se como ator modernizador numa constante dialética entre mundo social e elites burocráticas. Se na fabulação liberal o Estado seria expressão contratual de interesses e sujeitos delimitados no mundo privado, no caso iberista o moderno seria produzido sob influxo criativo do ator estatal.

Gildo Marçal Brandão (2007) retoma a arqueologia das famílias e define assim seus objetivos: “O que me interessa, pois, é investigar a existência destas "famílias intelectuais" no Brasil, reconhecer suas principais características formais e escavar sua genealogia. Verificar em que medida os conceitos de "idealismo orgânico" e "idealismo constitucional", formulados originariamente por Oliveira Vianna, são capazes - desde, é claro, que trabalhados de modo a neutralizar suas petições de princípio e a esvaziar o que contém de justificação ideológica de um projeto de monopólio de poder e de saber - de descrever e analisar as principais "formas de pensamento" que do último quartel do século XIX para cá dominaram o pensamento social e político brasileiro. Em seguida, circunscrever aquelas que no processo de naturalização do Brasil industrial se esboçaram na contramão e, malgrado suas debilidades, constituíram as primeiras concepções anti-aristocráticas do país, fornecendo os lineamentos gerais de todas as reformas sociais e econômicas propostas até a ascensão do neoliberalismo - como o "pensamento radical de classe média" e o „marxismo de matriz comunista‟, estes frutos legítimos da "nossa revolução". E formular, por fim, uma hipótese sobre o modo como essas correntes responderam aos desafios postos pelo desenvolvimento histórico-político do país. Sem deixar de examinar o conteúdo substantivo das ideologias e visões- de-mundo, a ênfase analítica será posta na descrição das "formas de pensar" subjacentes - estruturas intelectuais e categorias teóricas, a partir das quais a realidade é percebida, a experiência prática elaborada e a ação política organizada. Mapear estruturas intelectuais que se cristalizam historicamente como a priori analíticos, e ver como se articulam com a perspectiva política mobilizada - eis o núcleo do trabalho”.

Com isso, Brandão classificou as seguintes linhagens intelectuais no Brasil: conservadorismo, liberalismo e radical de classe média e marxismo de matriz comunista. Todas elas foram interpretadas a partir da matriz lançada por Oliveira Vianna (idealismo orgânico/idealismo constitucional).

Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo são exemplares de certa tradição de direita no Brasil, que é refratária aos princípios do liberalismo político (liberdades civis) e à participação popular, mas que apresentam diferenças importantes entre eles no que tange ao poder, à legitimidade e à ordem. Carlos de Laet e Jackson de Figueiredo pertencem a mesma temporalidade, mas a gerações diferentes, tampouco rede de sociabilidade. O ponto em comum é a pertença e militância católicas. A um mesmo catolicismo: tridentino e reativo à modernidade, ao liberalismo e à democracia. Esta é a hipótese que subsidia a investigação: a de que a ação pública destes intelectuais foi orientada pela pertença católica, formando uma “família intelectual católica” (IANNI, 2000). Essa “família” produziu uma interpretação de que o Brasil estava fadado ao fracasso por causa de suas elites dirigentes, que eram despreparadas, uma vez que adeptas do liberalismo.

Considerações finais.

Esses intelectuais católicos tinham visões parecidas dos dilemas e das soluções para o Brasil. Todos contrários ao liberalismo, pois mostram-se avessos à ampliação das liberdades civis e políticas, defendem uma ordem política restritiva à participação, uma ideia de poder autoritativa e legitimada pela religião católica. Portanto,para tais intelectuais a doutrina da ordem era o antídoto para qualquer conflito. Houve, portanto, em parcelas do catolicismo brasileiro a constituição de uma visão de mundo de direita, definidas nos parâmetros de Norberto Bobbio, ou seja, apego à tese da desigualdade natural e na tradição.

Porém, os conflitos entre eles também são importantes. A família tem fissuras, como ficou claro em 1926 por ocasião da querela entre Jackson de Figueiredo e Carlos de Laet sobre o governo de Artur Bernardes. As críticas de Laet atingiram também a revista A Ordem e o Centro Dom Vital. Em suas defesas, Jackson usou como argumento de autoridade o apoio do Cardeal d. Sebastião Leme, inclusive destacando o fato de que vinha sendo “ajudado” pelo arcebispo (Fernandes, 1989:504). O poder entendido como autoritas e legitimado pela ordem da hierarquia católica.

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