33º Encontro Anual da Anpocs

GT 19: Entre Fronteiras e disciplinas: Estudos sobre África e Caribe

A presença créole entre os ameríndios na fronteira Brasil/Guiana francesa

Artionka Capiberibe

Caxambu/2009 1

Esta comunicação se propõe a introduzir, a partir de uma realidade amazônica e ameríndia, uma discussão que pode encontrar afinidade com outras realidades locais do Caribe e do mundo africano, onde se fazem presentes línguas francas. Tratar-se-á aqui de mostrar como os Palikur, população indígena que vive nos dois lados da fronteira entre o Brasil e a Guiana francesa, entendem a inserção em sua socialidade do créole, uma língua proveniente do francês, forjada na rede de relações que interligava: colonos franceses, escravos de origem africana e os índios da região. Apesar de a Guiana francesa ter como língua oficial o francês, é o créole a língua, por excelência, de comunicação entre os mais diversos habitantes deste departamento francês1 situado na América do Sul. Mas, se é fácil notar que esta língua é o principal elo de ligação entre as diferentes populações - ou, como dizem os Palikur, as diferentes “gentes” - que habitam a região, torna-se um pouco mais complicado apreender os múltiplos significados que ela pode alcançar para cada uma destas “gentes” as quais põe em conexão. Aproprio-me aqui do termo “gente”2 - modo como os Palikur denominam a diversidade de habitantes do cosmos, sejam eles humanos, animais ou espíritos (de animais, de mortos ou seres de configuração a priori espiritual, como certos monstros) – por entender que o uso desta concepção é mais apropriado para o caso aqui tratado, por conter, ao mesmo tempo, a idéia de um cosmos subdividido formado de “gentes” diferentes, mas, onde as unidades componentes não estão isoladas umas das outras por barreiras impermeáveis. As relações dos Palikur com os outros habitantes do cosmos são marcadas por uma abertura, um caminhar em direção à alteridade, abertura presente entre os ameríndios de uma forma mais geral (cf. Lévi-Strauss, 1993: 14). É nessa abertura que o créole encontra, cada vez mais, espaço para rivalizar com a língua nativa, o parikwaki. Pelas falas palikur, a mudança de um idioma a outro não se dá sem controvérsias. É a respeito das inquietações e reflexões palikur sobre a transformação linguística (que, diga-se traz em si outras transformações sociais) e, mais exatamente, a adoção do créole, que esta comunicação irá tratar.

1 A Guiana francesa é um departamento de ultramar, ou DOM (département d’outre-mer), que junto com os TOM (Territoire d’outre-mer) formam o Estado francês fora da Europa. Os departamentos de ultramar (DOM) são: as ilhas da região do Caribe, Martinica, Guadalupe, São Martinho e São Bartolomeu; a Guiana francesa, na América do Sul; e, no Índico, a ilha da Reunião. Os territórios de ultramar (TOM) são: as ilhas Nova Caledônia, Wallis e Futuna, todas na polinésia ocidental. 2 Este vocábulo, em parikwaki (língua palikur), se apresenta na forma de um sufixo, –ene, agregado ao tipo de gente a que se refere, como por exemplo: o clã Kawakukyene “gente do abacaxi”, ou a designação para os índios Galibi-Marworno, vizinhos dos Palikur, chamados de Wahamayene “gente do rio Wahama”.

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Os Palikur nos dois lados da fronteira

Os Palikur, povo falante de uma língua própria, o parikwaki, pertencente à família linguística e filiada ao tronco Maipure oriental, encontram-se, há mais de quatro séculos, na região do baixo Oiapoque. Região que, em 1900, foi cortada pela definição burocrática da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa3. Atualmente, a população Palikur é de aproximadamente duas mil pessoas, divididas à metade em núcleos populacionais fixos localizados em cada um dos lados da fronteira. Para os propósitos deste trabalho o foco principal recairá nos Palikur franceses. É entre eles que a presença do créole é mais forte, gerando discussões frequentes nas conversas cotidianas. A diferença na relação com o créole, estabelecida por Palikur franceses e brasileiros, fica mais clara quando comparados os contextos em que eles vivem. Os Palikur do lado brasileiro, vivem em uma Terra Indígena demarcada e homologada4 (cf. mapa 1 em anexo), numa situação de maior afastamento em relação aos estrangeiros (índios e não-índios) - até mesmo de um certo isolamento - se comparada à situação presente no lado francês da fronteira. Na Terra Indígena, os grupos locais compõem, atualmente, treze aldeias - cuja população varia de um mínimo de sete a um máximo de seiscentas pessoas -; os casamentos são, em grande maioria, intraétnicos; e a vida segue o curso das duas estações do ano, sendo ordenada principalmente pelo ciclo do plantio da mandioca brava. Viver dentro de uma área indígena permite aos Palikur brasileiros, inseridos no sistema econômico regional, um modo de vida menos dependente do mercado regional, pois pode-se obter a maioria da alimentação via extrativismo, caça, pesca e produção agrícola, e

3 Ao longo desta apresentação, a denominação Guiana francesa poderá surgir simplificada pelo uso solo do termo Guiana. O contexto prevenirá confusões em relação a outros dois dos usos dessa palavra: a Guiana, como é conhecida a República da Guiana, ex-Guiana Inglesa; e a região etnográfica conhecida como “Guiana”, entendida aqui de acordo com a delimitação geográfica estabelecida por P. Rivière (1984), compreendendo a área cercada pelos rios Amazonas, Negro, pelo canal de Cassiquiare, pelo rio Orinoco e pelo Oceano Atlântico. Área comp artilhada por cinco países: Brasil, Guiana Francesa, República da Guiana, e Venezuela (1984: 2). 4 Os quatro povos indígenas que habitam na margem brasileira do baixo rio Oiapoque (Palikur, Galibi- Marworno, Karipuna e Galibi-Kaliña) vivem em três reservas contíguas: a Terra Indígena Galibi, com uma extensão de 6.689 (ha), está localizada na margem direita do baixo rio Oiapoque, onde vive a família Galibi do Oiapoque (Kaliña), grupo falante de uma língua Carib que emigrou da região de Mana, na Guiana Francesa, nos anos 1950. Ainda no rio Oiapoque, bem próximo à foz, fica a Terra Indígena Juminã, que tem 41.601(ha) de extensão e é habitada por famílias Galibi-Marworno e Karipuna. E, na bacia do Uaçá, a Terra Indígena Uaçá I e II, a mais extensa de todas, com 470.164 (ha), nela estão situadas as aldeias Palikur, Galibi-Marworno e Karipuna e cada povo se localiza em um de seus três rios que formam a bacia do Uaçá: no rio Urukauá, ficam as aldeias Palikur; no Curipi, as aldeias Karipuna; e, no Uaçá, a grande aldeia-vila de Kumarumã, que concentra a maioria da população Galibi-marworno.

3 dessa mesma forma, conseguir dinheiro para o consumo de alimentos e roupas manufaturadas. Além disso, não há água encanada, a luz elétrica fornecida por motores geradores não é contínua e os telefones são públicos, em suma, não há contas fixas a pagar. Outro aspecto que sobressai na comparação dos dois contextos são as formas distintas de lidar com a religião cristã5 presente entre os Palikur de ambos os lados da fronteira. No Brasil, o maior isolamento em que vivem os Palikur promoveu, nos últimos trinta anos, uma centralização da população em torno da Igreja Evangélica Assembléia de Deus (IEAD). Esta Igreja foi introduzida nos anos 1970, após um processo de missionação conduzido pelo Summer Institute of Linguistics (SIL). A evangelização é vista pelos próprios Palikur como uma reordenação de suas práticas e relações sociais, principalmente no que diz respeito ao domínio do xamanismo, que foi lançado para um plano discreto da socialidade palikur, tendo seus xamãs banidos da região do Urukauá, rio no qual estão localizadas as aldeias palikur no Brasil. Na G uiana francesa, os Palikur compõem bairros indígenas em pelo menos quatro localidades diferentes: na cidade fronteiriça de S aint-Georges; nos municípios de Régina, a cerca de 100 km de Saint-Georges e de Roura, que fica a aproximadamente 20 km de Caiena, capital da Guiana; e em Macouria, cidade do entorno de Caiena (Cf. mapa 2, em anexo). A pesquisa de que resulta este paper6 concentrou-se no bairro palikur de Saint-Georges de l’Oyapoc7. Esta pequena cidade fica na margem esquerda do rio homônimo, a dez minutos de travessia fluvial desde o município brasileiro de Oiapoque. Passando para o lado francês, não há Terra Indígena, e os Palikur vivem num espaço comum, localizado na periferia de Saint-Georges, chamado Village Espérance, que constitui uma espécie de bairro indígena, subdividido em três outros espaços – Village Espérance I, Village Espérance II e Savanne – sutilmente separados dentro do bairro maior que é o Village Espérance. Apesar das diferenças contextuais, a socialidade no Village Espérance em muito lembra as aldeias do lado brasileiro. Aqui como lá, os Palikur mantêm a produção em torno da mandioca brava, abrindo roças a uma distância média do bairro, semelhante às distâncias que,

5 A religiosidade cristã palikur foi o tema de meu mestrado, iniciado em 1996 no PPGAS/Unicamp. Nesta pesquisa busquei compreender o processo de introdução do protestantismo evangélico e de constituição de uma Igreja nativa da denominação Assembleia de Deus entre a população palikur do lado brasileiro (A. Capiberibe, 2007). 6 Esta pesquisa foi realizada no âmbito do doutorado, iniciado em 2004, no PPGAS/Museu Nacional-UFRJ. Nesta etapa da pesquisa, estendi o trabalho de campo para a Guiana francesa, tendo como foco central as relações com a alteridade estabelecidas pelos Palikur, de ambos os lados da fronteira, e as transformações sociais decorrentes destas relações e dos contextos em que se encontram fixados (A. Capiberibe, 2009). 7 Ao longo deste trabalho irei me referir diversas vezes aos ‘Palikur da Guiana’ ou aos ‘Palikur franceses’, quando aparecerem essas expressões, entenda-se que se trata dos Palikur que vivem em Saint-Georges.

4 no lado brasileiro, separam as aldeias das roças; a caça coletiva feita pelos homens depende, aqui, de carros ou bicicletas como meio de transporte, ao invés das canoas usadas no lado de lá; e, em Saint-Georges, também se observa a pesca solitária feita por homens e mulheres, que aqui é feita nos igarapés do entorno da cidade. No Village Espérance, apesar do constrangimento espacial, fazem-se arranjos de toda sorte para que um marido possa vir para junto da família de sua esposa, respeitando a tendência uxorilocal, mesmo que isso signifique uma prolongada moradia conjunta, com genros e sogros coabitando sob o mesmo teto, o quê, nos casamentos com homens não palikur, costuma gerar conflitos agudos. E a organização política nas subdivisões deste bairro é bastante parecida com o que se observa do lado brasileiro, girando em torno de um líder-sogro fundador do espaço habitado. Mas, por outro lado, há, na Guiana francesa uma dependência maior em relação ao dinheiro. Afinal, energia elétrica, água tratada, comidas e roupas manufaturadas, aparelhos eletrônicos e os vários gadgets que hoje fazem parte da vida dos Palikur na Guiana não podem ser adquiridos via escambo. O sistema econômico tem por efeito aproximar o modo de vida palikur do de seus vizinhos não índios. Todos precisam produzir dinheiro, seja vendendo sua força de trabalho para os empregadores locais, comércio ou prefeitura; seja fazendo negócio com os produtos da biodiversidade ou produzindo artesanato e farinha de mandioca; seja alistando-se no exército; ou movendo-se pelos meandros da assistência social francesa8. Todavia, mesmo que a roça, o extrativismo, a caça e a pesca não pareçam dar conta das necessidades de consumo da população, essas atividades continuam sendo muito importantes para a sua socialidade. E é ainda nestas práticas que sobressaem as diferenças em relação aos estrangeiros (guianenses e brasileiros, sobretudo), chamados em parikwaki de nawwotunye. Quanto à religiosidade cristã, entre os Palikur da Guiana, o que se vê é uma pluralidade religiosa. Em Saint-Georges, as atenções são divididas igualmente entre a Igreja Assembléia de Deus (IEAD) e a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Essa descentralização também tem como efeito uma presença marcante do xamanismo na vida cotidiana, e do xamã como um especialista a ser consultado quando for preciso. A linguagem do xamanismo é o outro aspecto que aproxima os Palikur dos não índios e dos outros índios da região. A prática

8 Entre os Palikur, as rubricas mais acessadas são: as allocations familiales – abono pago em dinheiro pelo governo francês por cada criança à título de “ajuda social8 à infância” e o revenu minimum d'insertion (RMI), auxílio monetário, que faz parte da categoria “ajuda social aos adultos”, pago a pessoas de mais de 25 anos que estejam, entre outras coisas, comprovadamente desempregadas e “desprovidas de recursos suficientes” para sua sustentação adequada (A. Thévenet, 2004: 69-71).

5 e o compartilhamento de conhecimentos (tratamentos, curas, ervas, encantações) é algo comum aos habitantes da região, bem diferente do que se vê do lado brasileiro9. Comparada ao Brasil, a situação dos Palikur em Saint-Georges é sem dúvida de maior proximidade em relação aos não-índios, seus produtos e objetos, e de maior transformação em diversos planos da socialidade. Penso aqui, em particular, na ordenação do tempo, muito ditado pela escola, pelo trabalho e, ironicamente, pelo seguro desemprego (Revenu Minimum d'Insertion – RMI), que cria um tempo de ociosidade preenchido pela televisão e por jogos eletrônicos. Essa transformação ao mesmo tempo em que se dá pela aproximação dos Palikur aos “outros” do contexto onde estão inseridos, também tem o efeito de aproximá-los ainda mais destes “outros”, tornando-os cada vez mais parecidos a seus interlocutores. Mas, quem são esses outros?

As populações da Guiana francesa

Embora a travessia do Brasil para a Guiana seja curta, cruzar para a margem esquerda do rio Oiapoque significa mudar de país, mudar de língua, mudar de povo, de modelo de urbanização, de moeda etc. Esse contraste é bem visível em Saint-Georges10, que, comparada ao Oiapoque - onde a vida fervilha 24 horas por dia nas ruas, lojas, Igrejas, bares e prostíbulos - é uma cidade modorrenta. Onde, com exceção dos comerciantes chineses, as lojas fecham de meio-dia às quatro da tarde deixando as ruas desertas como se fora uma cidade fantasma. À noite, o movimento acaba por volta das dez horas e a partir desse horário não se vê uma viva alma nas ruas. Atravessar o rio Oiapoque significa entrar num território francês equatorial cuja população11, que gira em torno de 210 mil habitantes, é bastante diversificada, composta hoje

9 Ao contrário da Igreja Assembléia de Deus dos Palikur brasileiros, que subtrai o xamanismo e o xamã e se apropria de seu espaço com o pentecostalismo, o xamanismo na Guiana vem se somar à religião adventista, dando conta de uma experiência transcendente, ausente no culto desta Igreja. O desenvolvimento desta proposição encontra-se em A. Capiberibe (2009: 280-378). 10 Saint-Georges de L’Oyapock é uma commune, capital do canton de Saint-Georges, que está localizado no arrondissement de Caiena.A Guiana francesa é composta por dois arrondissement, cujas capitais são: Caiena, no arrondissement ocidental; e Saint-Laurent du Maroni, no oriental. Não há no Brasil esse tipo de divisão, uma aproximação possível seria considerar as regiões geográficas (norte, sul, centro-oeste etc) como regiões político- administrativas. Cada um dos arrondissement é dividido em cantões, algo como uma divisão em Estados, e cada cantão é composto de communes, que são como nossos municípios. 11 No censo populacional de 1999, realizado pelo Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE), a população da Guiana era de 157.749 habitantes e a de Saint-Georges de 2.153 pessoas. De 1999 para cá, o INSEE só fornece atualização do número de população geral do departamento. De acordo com informações pessoais do ex-prefeito Georges Elfort, a população de Saint-Georges teria crescido neste período cerca de 50%, contando hoje em torno de quatro mil habitantes. Ainda segundo Elfort, esse crescimento seria devido ao retorno

6 da seguinte maneira: 38% créole; 32% imigrantes provenientes em sua maioria do Haiti, do Suriname e do Brasil; 10% francesa da França, conhecidos como métropolitains, ou simplesmente métro; 6% , também chamados de Marrons, termos que designam de maneira genérica as etnias de origem africana (, Ndyuka, Aluku (ou Boni12) e Paramaka); 5% ameríndia (Palikur, , Wayãpi, Émérillon ou Teko, Arawak e Kaliña); 4% das Antilhas, sobretudo as francesas; 4% chinesa; e 1% Hmong13. Os créoles, que formam a maioria da população da Guiana, são os descendentes dos negros das mais diversas origens africanas que, após a abolição da escravatura francesa, em 1848 (S. Mam Lam Fouck, 2002: 138), foram emancipados. A abolição foi vinculada à concessão da cidadania francesa aos negros libertos. Para o historiador Serge Mam Lam Fouck (2002) a passagem direta de escravos a cidadãos teria orientado uma marcha da sociedade guianense em direção à assimilação política ao regime francês, implementada pela “lógica da igualdade à francesa” que desembocou na “departamentalização” (idem: 180), como foi denominada a transformação política em departamentos ultramarinos das velhas colônias francesas, que nessa transformação passaram a ter a mesma estrutura administrativa da França metropolitana (cf. A. J. T. Cleaver, 2005: 42). Nessa mudança de estatuto, os créoles foram pouco a pouco assumindo os postos de mando na Guiana, ocupando os lugares antes dominados pelos colonos brancos (S. Mam Lam Fouck, 2002: 138) e se firmando, sobretudo, dentro da administração pública do estado. Sendo demográfica e politicamente majoritários, eles construíram, a partir do modelo de assimilação à “sociedade” e “cultura” francesa metropolitana, uma identidade coletiva guianense em torno de sua própria identidade créole (G. Collomb, 2005: 23). Isso criou uma identidade guianense hierarquizada, distinguindo os créoles dos outros grupos presentes há tempos na Guiana, ou seja, os ameríndios e bushinengues, que, por terem se mantido à margem do processo de assimilação, passaram a ser considerados como “primitivos” (idem: ibidem). Mas, essa identidade guianense créole vem sendo questionada desde os anos 1970: [...] Nessa época, o processo de creolização não podia mais integrar de maneira eficaz os fluxos migratórios (provenientes do Brasil, do Haiti, do Suriname...) que se tinham desenvolvido consideravelmente durante os anos de fausto econômico (Mam Lam Fouck, 1996) [esses anos de fausto, são os da construção do centro espacial de , importante base francesa de lançamento de satélites, construída no final dos anos 1960]. Essas transformações, e particularmente o aporte dos imigrantes,

de guianenses residentes na França, atraídos pela cooperação entre a Guiana e o Brasil, iniciada nos anos 1990; mas, sobretudo, pela massa de imigrantes brasileiros, em boa parte ilegais. 12 e Aluku são nomes de dois grandes chefes desse grupo, o primeiro deles foi difundido como nome do grupo pelos franceses, o segundo pelos próprios Marrons (R. & S. Price, 2004: 40). 13 Dados do site www.cr-guyane.fr do Conseil Regional de la Guyane.

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multiplicaram por três, em trinta anos, a população da Guiana, e aumentaram grandemente a diversidade cultural do país. Ao mesmo tempo, as populações até então mantidas apartadas (ameríndios, ) tinham entrado na cena política; experimentavam um considerável renascimento demográfico e se viam, doravante, desempenhando um papel no espaço político e econômico regional. (G. Collomb, 2005: 23 – tradução minha).

Os bushinengues ou Marrons são populações de origem africana que se formaram como seis etnias distintas (Saramaka, Ndyuka, Aluku, Paramaka, Matawai e Kwinti), compostas de escravos fugidos das plantações da antiga Guiana Holandesa (Suriname), nos séculos XVII e XVIII. Como explicam os antropólogos Richard & Sally Price (2004) – que há mais de trinta anos desenvolvem pesquisas sobre os descendentes de escravos na América – , o marronnage foi a criação, pela fuga dos escravos, de comunidades duradouras, instaladas seja no interior das florestas (como é o caso dos quilombos brasileiros), seja perto das plantações - para pilhá-las em busca de armas e ferramentas e para libertar mulheres cativas (em geral, parentes) - (2004: 10-1). Nessas comunidades, os Marrons desenvolveram um modo de vida próprio. De acordo com R. & S. Price: A originalidade cultural das sociedades Marrons do Suriname e da Guiana francesa repousa em sua fidelidade profunda aos princípios “africanos” – estéticos, políticos, religiosos ou domésticos – mais do que na frequência de elementos isolados mantidos no curso dos séculos. Ao ter desenvolvido suas culturas longe das influências européias, os Marrons interpretaram livremente as idéias africanas e as adaptaram às circunstâncias. E, é entre eles que se encontram as culturas afro-americanas que são, ao mesmo tempo, as mais verdadeiramente africanas e as mais “vivas”. (2004: 13 – tradução minha).

De acordo com Mam Lam Fouck (2002: 137-8), as revoltas de escravos na Guiana nunca tiveram as dimensões das revoltas no Suriname que, no final do século XVIII, constituíram verdadeiras guerras dos holandeses contra grupos armados de Saramaka, Ndyuka e Aluku. Os escravos da Guiana, ao invés de montar quilombos próximo à região onde se encontravam, seguiam a estratégia de reunir-se aos quilombos do Amapá (F. dos S. Gomes, 1999; R. & S. Price, 2002). Assim, os quilombos da Guiana foram formados, em realidade, por escravos fugidos do Suriname. Embora os Hmong tenham uma representatividade populacional mínima na Guiana e não possuam relações estreitas com os Palikur, são dignos de nota, pois sua presença no espaço guianês faz parte de uma história em comum aos habitantes desse lugar. Os Hmong são uma etnia originalmente localizada na fronteira entre a China, o Laos e o Vietnam, que fala uma língua pertencentes ao conjunto Miao-Yao (M-O. Géraud, 1997:24). Sua história com a Guiana começa ainda na antiga Indochina (ex-colônia francesa que compreendia os

8 atuais Vietnam, Laos e Camboja) quando, entre os anos 1940-50, os Hmong passaram a privilegiar o comércio de ópio com os franceses e, porque sua produção agrícola tinha se voltado exclusivamente para o ópio, tornaram-se dependentes do dinheiro e de víveres dos ocidentais. Essa mesma situação se reproduziu na guerra do Vietnam, mas agora os aliados eram os norte-americanos. Com o fim da guerra e a ascenção ao poder do Movimento do Front Patriótico Lao (Pathet-Lao), dominado pelos comunistas, sua situação na região tornou- se bastante complicada. Em 1975, os Hmong, mais diretamente ameaçados, partiram em massa para o exílio na Tailândia. Segundo Géraud, entre 20 a 30.000 Hmong, ou seja, um décimo da população Hmong do Laos deixou o país nesse ano. Entre 1976 e 1977, o Laos viu partir mais 20 a 30.000 Hmong de seu território, ao todo estima-se que 100.000 Hmong, ou seja, um terço da etnia, tenha deixado o Laos, mas somente 75.000 teriam chegado vivos à Tailândia (1997: 43). De lá, houve uma diáspora Hmong pelo mundo. Grande parte dessa população rumou mesmo para os Estados Unidos da América. É também desse grupo exilado na Tailândia que vêm os Hmong hoje presentes na Guiana. Sua migração para o território francês se deu no quadro de uma política instaurada pelo ministério de ultramar de ocupação populacional e desenvolvimento econômico. Para os políticos franceses da metrópole, a Guiana não passava de um espaço vazio, que precisava ser conquistado, valorizado e submetido (M-O. Géraud, 1997: 53). Não por acaso, o modelo de ocupação desse “deserto humano” era o do avanço pioneiro sobre a bacia Amazônica feito pelos militares da ditadura brasileira, nos anos 1970 (idem: ibidem). Assim, o governo francês lançou uma campanha na Tailândia de atração dos Hmongs para a Guiana com a finalidade especifica de trabalhar na agricultura. Incentivados por missionários católicos franceses – que haviam atuado entre eles no Laos, desde o final dos anos 1940, e os acompanhado à Tailândia - várias famílias Hmong foram atraídas pela proposta francesa, mais por ser uma oportunidade de sair dos campos de refugiados em que se encontravam do que de ir para a Guiana. Foi assim que, entre setembro e novembro de 1977, cerca de 500 pessoas com o estatuto de refugiados foram instaladas na erma região de Cacao (cf. localização no mapa 2 em anexo), um antigo canteiro de prospecção de ouro encravado no meio da floresta amazônica. As decepções dos Hmong com o local onde foram instalados, tiveram a mesma proporção que as reações dos créoles guianenses àquela invasão patrocinada pelo Estado francês. Os créoles, detentores do poder local, recriminava a vocação colonialista do projeto Cacao e, ao mesmo tempo, sentiam-se ameaçados de perder financiamentos de desenvolvimento da Guiana para os Hmong; tinham medo de que estes se desviassem da vocação de agricultores e engrossassem a classe proletária urbana, formadas por membros das

9 etnias consideradas “primitivas” (ameríndios e bushinengue) e por imigrantes ilegais do Brasil, Haiti e Colômbia, que já traziam sérios problemas sociais para o país; havia ainda as críticas feitas pelos militantes guianenses do movimento independentista às alianças feitas pelos Hmong no Laos com os “imperialistas” norte-americanos (M-O. Géraud, 1997). Hoje, os Hmong fazem parte dessa sociedade pluriétnica da Guiana francesa, ocupando um papel importante no abastecimento alimentar, principalmente de hortifruti, das cidades. Ao contrário dos Hmong que se mantêm nas áreas rurais, os chineses da Guiana vivem nas cidades, onde dominam o varejo de alimentos. Sua migração é também mais antiga que a dos Hmong, mas, diferente desta que se revelou episódica, a migração chinesa mantém-se constante. Todavia, a primeira migração chinesa para a Guiana tem em comum com a migração Hmong ter ocorrido por incentivo do governo colonial francês, em meados do século XIX. O objetivo do Estado, naquela época, era contratar mão-de-obra para as plantações de cana-de-açúcar, algodão, cacau, urucum e café ocupando os lugares vagos pelos escravos libertos. No entanto, não foi uma migração numericamente importante, a maior parte da mão-de-obra foi composta de indianos e de trabalhadores africanos, também atraídos pela imigração planificada francesa (S. Mam Lam Fouck, 2002: 64-5, 89-93). E os chineses foram aos poucos passando das plantações para o comércio.

O melting pot em Saint-Georges

Em Saint-Georges (StG) é possível localizar cada uma dessas populações de origem diversa pelo espaço que ocupam e pelo modo como se inserem na vida do município (commune). O centro da vila é a parte mais antiga desta cidade que foi criada, em 1853, para ser uma penitenciária de degredados franceses14 (R. & S. Price, 2004). A prisão não durou muito tempo, e a região, que já era rota de fuga de escravos da coroa portuguesa (Flávio Gomes, 1999: 225-318), foi sendo pouco a pouco ocupada por créoles e Saramaka. Como é comum nas cidades amazônicas, o centro de Saint-Georges, assim como o da cidade de Oiapoque, fica na beira do rio Oiapoque. Este local é sinalizado pelo porto de atracação das catraias15, que, ao invés de representar a fronteira como uma barreira, é uma

14 Do outro lado da fronteira, a cidade de Oiapoque também nasceu como penitenciária com a criação da colônia penal de Clevelândia do Norte, que se configurou numa espécie de degredo brasileiro ao receber os prisioneiros paulistas da revolução de 1924. 15 Espécie de embarcação composta por uma canoa (feita de metal) com motor de popa, também conhecida na amazônia por voadeira.

10 espécie de portal de entrada e saída. Logo em seguida, vê-se a praça principal na qual se encontra uma baliza de fronteira e onde, no cair da tarde, brasileiros, guianenses, ameríndios e franceses encontram-se para degustar uma culinária variada, vendida em carrinhos ambulantes e feita de comidas amazônicas (como tacacá, vatapá, mingau de milho branco e maniçoba) e asiática, como arroz cantonês, rolinhos primavera, nem (espécie de bolinho feito com verduras e carne de porco), bami (um tipo de massa chinesa) e frango agridoce. Em frente à praça, fica a prefeitura (mairie), e, dos lados, bares, restaurantes, mercearias, a principal padaria e o correio (la poste), que faz as vezes de banco. Esse espaço é majoritariamente ocupado pelos créoles e Saramaka, habitantes mais antigos da região e detentores do controle da administração pública local16. O comércio é controlado pelos chineses, cuja imigração é recente, o que fica patente no pouco francês e no créole truncado que articulam. Ainda no centro, na rua que margeia o rio, encontra-se a Aduana, comandada pelos franceses da metrópole, ou métro, como são designados os franceses brancos na Guiana. Os métro são, em geral, funcionários que fizeram concurso para trabalhar num departamento de ultramar, no qual ganham um salário 40% mais alto em relação aos mesmos postos na França metropolitana. Formam a maioria do quadro de professores das escolas de StG, que vão do ensino básico ao fundamental; dos médicos e enfermeiros do hospital da cidade; e das polícias federal (PAF) e militar (gendarmerie). Os Hmongs só são vistos no sábado de manhã, quando saem da cidade de Cacao para vender frutas, verduras e legumes na feira da cidade. Esse é ainda o dia do mercado de peixe, dia dos pescadores brasileiros. Os brasileiros também ocupam a parte central da cidade, o que demonstra sua proximidade, consolidada por intercasamentos, e certa longevidade nas relações com os guianenses (créoles e saramaka). Os brasileiros que conseguiram a cidadania francesa, seja por terem casado com um cidadão francês ou por tempo de residência com trabalho registrado, encontram-se economicamente melhor colocados, possuindo pequenos estabelecimentos comerciais ou mesmo empregados em alguma função pública. Mas, há os migrantes mais recentes que se instalam no centro alugando dos créoles quartos ou pequenos apartamentos, para passar temporadas fazendo serviços desprezados por estes – trabalhando como garçons, empregadas domésticas, faxineiras, ajudantes de pedreiro, prostitutas etc –

16 Até 2008, o prefeito era um Saramaka que estava à frente da gestão havia 16 anos. Hoje, a prefeita é uma mulher créole.

11 enquanto esperam a oportunidade de seguir para Caiena, Kourou ou para algum garimpo, sem serem apanhados pela gendarmerie. O centro é então ocupado por créoles, métro, chineses e brasileiros. Na medida em que se vai rumo à periferia encontra-se os ameríndios, e quanto mais distante do centro, menos urbanização. A localização espacial de cada grupo social está relacionada à história da ocupação do território, mas também às suas posições de influência política e econômica. No entanto, não se deve superestimar a correlação de forças na distribuição espacial. Pelo menos para o caso palikur - diferentemente do que é apresentado por Andrello em relação ao deslocamento contra a vontade dos índios do centro para a periferia de São Gabriel da Cachoeira, para dar lugar aos brancos comerciantes e funcionários públicos (2006:194) –, sua localização em Saint-Georges parece ser decorrente de uma vontade em manter uma certa distância. Isso pode explicar que tenham escolhido manter-se no mesmo local onde se instalaram quando, em meados dos anos 1960, a parentela fundadora do local, por motivos que envolvem acusações de feitiçaria, resolveu atender aos apelos do governo francês de transferir-se da borda brasileira para se fixar na francesa. Ressalte-se que, esta migração não representa uma mudança dos palikur do Brasil para a Guiana, pois, desde pelo menos o período histórico, eles se encontram em ambos os lados da fronteira. E o que se observa, de mais constante, é um incessante deslocamento de um lado a outro17. Mas, se existe uma vida própria no bairro palikur, que é distinta da vida no resto da cidade e bastante semelhante à vida de seus parentes do lado brasileiro, os Palikur do Village Espérance não estão a passeio ou de passagem por Saint-Georges, eles moram em Saint- Georges e vivem essa cidade. Vão ao centro para fazer suas compras, vão à escola, vão ao hospital, vão “tomar um trago” nos bares da cidade ou apenas passear na beira do rio. A cidade é deles, assim como é dos créoles, dos chineses, dos brasileiros...

A língua créole

O créole é a principal língua que se fala em Saint-Georges, mas, ultimamente, com o adensamento da migração brasileira para a Guiana, o português vem ganhando cada vez mais espaço e, na região da fronteira, começa a disputar com o créole o estatuto de língua franca. Entretanto, ainda é o créole que se ouve predominantemente nos armazéns, nos bares, na rua

17 Nesses deslocamentos, os Palikur sempre enfrentaram as importunações dos agentes de aduana, tanto brasileiros (cf. Nimuendaju, 2009 [1926]), quanto franceses (inf. pessoais), mas isto não representou e nem representa um empecilho para as travessias transfronteira.

12 e, enlouquecendo os professores franceses metropolitanos, no pátio de recreio das escolas. É a língua onipresente, pois atravessa a malha linguística da região do baixo Oiapoque composta principalmente pelo francês, o português e o parikwaki. E, ainda, é a base das línguas dos ameríndios Galibi-Marworno e Karipuna, ambos falantes de variações do créole, às quais dão o mesmo nome de patois, mesmo concebendo-as como distintas entre si. Como afirmou um Galibi-Marworno a Lux Vidal: “...o nosso patois galibi é mais índio, porque mais próximo do francês, fonte originária do patois. Os Karipuna falam um patois mais aportuguesado” (1996:14). Quanto às diferenças do patois para o créole, ouvi a seguinte explicação de uma moça Karipuna casada com um homem Galibi-kaliña: Eu falo o patois com os meninos, o seu Geraldo [avô paterno das crianças que é da etnia Galibi-Kaliña] é sempre contra, porque ele diz que é o crioulo, mas não é o crioulo, é o patois, é totalmente diferente, porque uma época dessas eu fui em Saint Georges e achei de falar esse meu patois com eles lá, eles riram de mim dizendo que eu tava falando errado, mas eu não tava falando errado, porque é o meu idioma. (Santa dos Santos, aldeia São José dos Galibis, 2002).

Ser multilíngue é uma realidade na Guiana como um todo, o que decorre diretamente da composição multiétnica deste lugar. Na cidade de Saint-Laurent du Maroni, localizada na fronteira oposta a do Brasil, na divisa entre a Guiana francesa e o Suriname, além do francês e do créole fala-se correntemente o Galibi-Kaliña e o takitaki – termo utilizado para designar indistintamente um dialeto falado pelos bushinengue do Suriname, que mistura inglês, holandês e línguas africanas. Já no alto Oiapoque, onde vivem os Wayãpi setentrionais, Sílvia Tinoco descreve um quadro linguístico também múltiplo, mas ligeiramente distinto da região do baixo Oiapoque e da fronteira com o Suriname: [...] Desde [1971], os Wayãpi possuem um contato constante com essas instituições [uma escola e um posto de saúde] e com a língua francesa. O português e o créole guianense são também línguas faladas nas aldeias. O émereillon é a quarta língua falada em Camopi [na commune de Camopi, ver localização no mapa 2] pelos falantes émereillon18, assim como por alguns wayãpi. Os casamentos mistos – e seus descendentes -, assim como a co-habitação em Camopi, contribuem para essa difusão do émereillon entre os Wayãpi. (S. Tinoco, 2006: 116 – tradução minha)

O ponto em comum nos diferentes contextos são o créole e o francês, não é exagero dizer que o créole disputa o espaço na Guiana mano a mano com a língua oficial. Sua influência é fenomenal, principalmente se pensarmos que o Estado francês age de maneira

18 Os Emerillon ou Émereillon, em francês, são um povo Tupi-Guarani, dividido em dois grupos: um pequeno grupo localizado nos rios Tampok e Maroni, na fronteira entre a Guiana e o Suriname; e outro, no alto Oiapoque e Camopi, na fronteira com o Brasil (P. MÁhl, 2004: 19-20). É a respeito desse segundo grupo que vive nas vizinhanças dos Wayãpi, que Tinoco se refere neste trabalho.

13 sistemática para impor sua língua e seus valores, tendo como principal instrumento o sistema escolar. Em território francês, os pais têm obrigação de matricular seus filhos na escola, e para isso recebem € 150,00 por filho matriculado – o que é uma fonte de renda importante, principalmente para os migrantes mais recentes. No Village Espérance não há criança fora da escola e o ritmo da vida social é, para a grande maioria das famílias, ditado pela escola. Crianças e adolescentes passam quase o dia inteiro nos estabelecimentos escolares, são seis horas de carga horária, divididas em dois períodos, o matutino que vai de 7:30 às 11:00 e o vespertino, de 13:30 às 16:00. O ensino em Saint-Georges vai da educação infantil (École Primaire) à educação fundamental (École Elémentaire e Collège), fazendo-se presente na vida de uma pessoa dos 3 aos 14 anos, mais ou menos. Para continuar os estudos no ensino médio, os habitantes de Saint-Georges têm que se deslocar para as cidades maiores, como a capital Caiena, para Kourou, a cidade que abriga o centro aeroespacial, ou para a França. Nos departamentos e territórios de ultramar o ensino  segue o currículo das escolas da França. Refratário a mudanças ou adaptações à realidade local, o Estado francês vem se recusando a aprovar uma lei sobre “as línguas regionais”, e somente a duras penas a educação pública francesa abriu espaço para a figura do “monitor cultural bilíngue”. Este é um projeto desenvolvido na Guiana francesa, desde 1998, pela linguista Odile Lescure, que envolve ameríndios, bushinengues e Hmongs. Esses monitores agem como mediadores com formação pedagógica, encarregados de auxiliar as crianças cuja língua materna não é o francês, na passagem do aprendizado oral para o escrito (F. & P. Grenand, 2005; O. Lescure, 2005). Em Saint-Georges, há uma monitora cultural bilíngue palikur. Mas, enquanto a mediação nas línguas de origem de cada uma das populações que frequentam a escola não se estabelece de maneira efetiva, pode-se dizer que o créole vem, de certa forma, cumprindo esse papel. Por conta da escola e do meio social em que estão inseridos, os Palikur da Guiana vêm aos poucos abandonando o parikwaki, algumas crianças e jovens mal compreendem termos básicos na língua materna de seus pais e avós, que a falam em casa, entre si. E, Apesar de os jovens falarem fluentemente o francês aprendido na escolarização, a língua que vem ocupando o espaço do parikwaki é o créole. Os casamentos entre Palikur e guianenses ajudam a reforçar o vínculo com o créole, porque, na maioria das vezes, os filhos desses casamentos mistos aprendem a falar a língua de comunicação entre o casal. Nos casamentos com brasileiros (as), o mesmo fenômeno só ocorre com o português se o cônjuge brasileiro não falar créole; caso fale, esta passa a ser a

14 língua de comunicação da casa. O certo é que a vida no Village Espérance não é monolíngue. É comum as conversas caminharem pelas quatro línguas faladas pelos Palikur: português, francês, parikwaki e créole, um fenômeno típico de países multilíngues, como o Canadá e a Suíça. Mas, como dito acima, os Palikur têm uma língua própria, o parikwaki, que é falada, em maior ou menor grau, no Brasil e na Guiana francesa e que é vista como um elemento importante para a constituição dos Palikur como um grupo diferenciado frente às outras “gentes” da região. Apesar de o parikwaki possuir diversas palavras de origem franco- créole19, a substituição do parikwaki pelo créole é vista com certo pesar, principalmente pelos mais velhos. Como me disse, logo de minha primeira estadia em campo, o falecido pastor evangélico Palikur, Paulo Orlando (que, naquele período, tinha por volta de sessenta anos): Os Palikur da Guiana tão começando a abandonar a língua do Palikur e trocando pelo patois. Se eles tivessem trocando pelo francês não ia ser ruim, porque o francês e o português são línguas comerciais, e o crioulo não tem nem alfabeto. (Paulo Orlando, Kumenê, 1996).

Na época, não compreendi porque a troca da língua nativa pelo créole podia ser pior que qualquer outro tipo de troca. Hoje, após ouvir diversas outras afirmações similares à citação acima, o sentido depreciativo dessa troca me parece mais claro. O problema não reside propriamente em adotar uma língua essencialmente oral, “não tem alfabeto”, mas de adotar uma língua acessada por todos indistintamente. Para os mais velhos, os jovens palikur estão deliberadamente abrindo mão daquilo que, no universo multiétnico da Guiana, os faz diferentes dos “outros”. O próprio Paulo Orlando fornece essa resposta ao dizer: “nossa língua é como um passaporte, uma identidade”. Como bem diz Manuela Carneiro da Cunha, “[...] a língua de um povo é um sistema simbólico que organiza sua percepção do mundo, e é também um diferenciador por excelência. [...]” (1986: 100). Mesmo que os Palikur falem atualmente de três a quatro línguas, e que possam traduzir nelas suas percepções de mundo, o parikwaki continua sendo o sistema simbólico que as organiza. Desse modo, a língua própria é vista como um forte elo de ligação, conectando seus falantes onde quer que se encontrem, e, como “diferenciador por excelência”, é também a marca principal de sua identidade em contraste como as outras “gentes” com quem estabelecem relações.

19 Este vocabulário franco-créole é formado, sobretudo, pelas palavras introduzidas no contato, como por exemplo: lit (litro), labahk (banco), laglas (gelo), lekkol (aula ou escola), leglis (igreja), suku (açúcar), zonyo (cebola), ilay (alho), alimet (fósforos) etc.

15

A língua aparece aqui como um forte traço diacrítico frente aos não-índios e aos outros índios da região, os quais, no entendimento dos Palikur, não possuem uma língua própria, por falar línguas de origem créole. No entanto, seria equivocado interpretar a frase de Paulo Orlando como uma afirmação de indianidade, uma vez que esta é uma questão que os Palikur não costumam se colocar. O que de fato está em jogo para os eles é a existência de um mesmo e de um outrem, que a língua créole por ser comum às mais distintas “gentes”, uma sorte de língua indistinta, parece suprimir.

O problema do créole

Para compreender porque a questão sobre a adoção do créole não repousa tanto em mudar de língua, mas em adotar uma língua cuja principal característica é ser universal, é preciso que se saiba que, para os Palikur, a humanidade só existe porque é composta de “gentes” diferentes. Isso está presente de maneira clara na subdivisão da sociedade em clãs20 e no mito que conta o surgimento dos humanos. De acordo com este mito (cf. resumo do mito em anexo), os humanos vivem hoje num terceiro mundo. Os dois mundos anteriores foram destruídos pelo Criador - um por conflagração, outro por inundação -, porque eram povoados de “gentes” indistintas que, por esse motivo, só conseguiam reproduzir-se por casamentos consanguíneos. O mundo atual nasce após o dilúvio e é constituído de “gentes” diferentes, das quais descendem os Palikur e o restante da humanidade. Essa diferenciação aparece na subdivisão dos Palikur em: gente da lagarta (Wayveyene)21; gente do abacaxi (Kawakukyene); gente do esteio (ou acapu) (Wakavunyene); gente do bagre (Paraymeyene); gente da montanha (Waxiyene); e gente da lagartixa (Wadahyene). No, passado havia muitas outras “gentes”, Nimuendaju, em 1925, ainda chegou a conhecer pessoas do clã Kamuwyene (gente do sol), que logo se extinguiu, pois não restavam mais descendentes homens para perpetuar o clã, já que a transmissão do nome clânico é feito pela via paterna. A explicação encontrada por Aparecida Vilaça para um mito wari’que conta como, após uma grande inundação, os subgrupos surgem e se espalham pela terra (assim como no mito palikur), é bastante esclarecedora do que estou querendo destacar aqui. Diz a autora: A ênfase dos Wari’ na separação dos subgrupos é, antes de tudo, uma afirmação da sua existência para um interlocutor de fora, um modo de dizer que os Wari’ devem ser vistos como um conjunto de grupos que se relacionam [...] (A. Vilaça, 2006: 93).

20 Este é o termo consagrado pela bibliografia desde Nimuendaju (2009 [1926]) e que hoje é adotado pelos próprios Palikur. 21 O ‘y’ é uma terminação de advérbio = do (a).

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No mito palikur a ‘diferença’ é o tema central, somente ela pode criar e perpetuar uma humanidade possível. Mas, o modo como essa diferença é posta em ação é a imagem que parece descrever melhor o dilema dos Palikur frente ao créole. No mito Palikur, o escolhido para sobreviver ao dilúvio, uma espécie de Noé – diga-se que o mito é repleto de referências do cristianismo -, ao percorrer a terra seca, vai aos poucos encontrando os clãs e é nesse encontro que cada grupo se torna realidade22. Em suma, a alteridade, que se cria a partir da relação, é o que funda a humanidade. Se o princípio da humanidade é a relação de diferentes, a diferença deve então subsistir à relação. Isso é o contrário do que ocorre com o créole, pois é na relação, ou melhor, na relação exacerbada com este idioma, que a diferença parece estar se diluindo. A adoção do créole implica uma transformação. Posto que, no momento em que esta língua deixa de ser uma espécie de conector, ou simples elo de comunicação entre os Palikur e os outros (créole, Saramaka, Hmong, outros índios, chineses etc), e passa a ser apropriada como veículo de transmissão do sistema simbólico palikur, ela os aproxima de forma indelével àqueles que deveriam ser os “outros”. Pelo créole os Palikur passam a compartilhar de um sistema de valores panétnico. E, quando se fala em compartilhamento na Amazônia está se falando de transformação, pois é pela via da consubstancialidade (A. Seeger, R. Da Mata e E. Viveiros de Castro, 1979) – pelo compartilhamento de alimentos, de fluidos corporais (sangue menstrual e sêmen, por exemplo), de formas de tratamento etc – que se transforma gente de estatuto indefinido em humanos (cf. por exemplo, Peter Gow, 1997), não-parentes em parentes, inimigos em amigos etc. Para finalizar, relembro uma conversa com uma jovem palikur de 17 anos, que, a época, vivia uma situação muito complicada. A moça não era casada e havia engravidado “de um créole”, como diziam seus pais para hostilizá-la. A versão da moça era significativamente distinta da de seus familiares, ela dizia com muita altivez que o pai de seu filho era um Saramaka e não um créole e, por isso, seu filho seria muito especial. Nas falas palikur ser créole ou ser um falante de créole é como não ter identidade. Por conta disso, a questão em torno ao créole não parece tanto ser de transformação, mas de se transformar aderindo a algo pouco distintivo, algo que pertence a todas as “gentes” da região e, ao mesmo tempo, a nenhuma.

22 Aqui aproximo-me da análise feita por viveiros de Castro a respeito da relação entre antropólogos e nativos, na qual o antropólogo elabora a relação com a alteridade, focando na relação e não nos sujeitos em relação (2002).

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Bibliografia citada

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18

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19

ANEXOS

20

Mapa1: baixo Oiapoque e Terras Indígenas23

23 A Terra Indígena do Uaçá abriga a maioria da população: Palikur, Galibi-Marworno e Karipuna; e a Terra Indígena Galibi, os Galibi-Kaliña.

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Mapa 2: localização dos Palikur na Guiana francesa

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O surgimento da humanidade

No princípio do mundo nasceu Parawyene (gente da onda do mar), naquele tempo não existia nada na terra, só água. Parawyene desejou e viu aparecerem as plantas dentro da água e a terra. Quando desejou ter alguém para lhe fazer companhia, o Criador [t: Uhokri] fez surgir uma mulher, chamada Paraw Ahampa (t: raiz do mar), e um homem chamado Waxi Ahampa (t: raiz da Terra). Parawyene teve uma filha com Paraw Ahampa, chamada Tip Ahampa (t: raiz da pedra). Tip Ahampa cresceu rápido e logo se casou com Waxi Ahampa, seu tio materno. Um dia, Tip Ahampa viu um bicho predador, um axtig. Sonhou com o axtig e depois ficou grávida. Seu marido, disse que o filho era do axtig. Quando ficou grande, o filho fez sua casa longe, em outro lugar. Um dia, Tip Ahampa foi visitar o filho e encontrou cobras dentro de sua casa. Ela pensou que as cobras haviam comido seu filho. Mas, o filho apareceu e disse que aquelas cobras eram sua mulher e seus filhos. Tip Ahampa quis saber de onde vinha aquela mulher e como aquelas crianças iam casar, porque a única mulher que existia era ela, tip Ahampa, e não existiam pessoas diferentes com quem casar. O filho disse que sua mulher e seus filhos não pertenciam a nenhum dos clãs que existiam. Eram irmãos e irmãs legítimos, todos “nascidos do tempo”, eram Hawkriyene (t: gente do tempo). Esses netos se casaram entre si, “fazendo um grande pecado24, porque irmão não pode casar com irmão”. Assim, as pessoas desse mundo foram aumentando até formar uma grande vila. Um dia, o Criador apareceu e falou para um bisneto de Waxi Ahampa que ele ia acabar com o mundo e que o bisneto tinha de avisar a todos de sua vila que era preciso partir para escapar à destruição. As pessoas da vila não quiseram deixar suas casas e roças. Então, o mundo foi destruído com fogo, porque o criador quis acabar com aqueles homens que nasceram do pecado. Só restaram um homem e suas filhas. Este homem se chamava Karukri Wahano25. Quando Karukri Wahano ficou tão velho que quase não conseguia andar, apareceu uma velha e disse às moças que elas tinha que tirar a semente de seu pai, embebedando-o com

24 Nesse momento, perguntei se naquela época já existia o pecado, o senhor Manoel me respondeu dizendo que não existia a palavra pecado, mas que o pecado em si existe desde “o princípio na história dos índios”. 25 A tradução de karukri wahano é ouro.

23 vinho26. Quando ele estivesse bem bêbado, era só ter relações sexuais com ele. As três filhas tiraram a semente do pai. Foi assim que o segundo mundo foi povoado. A irmã mais velha teve uma filha mulher, a mais nova teve um menino. Os irmãos se casaram entre si e, com o tempo, a população aumentou. Quando já tinha uma vila muito grande, o Criador acabou com este mundo com um dilúvio. O dilúvio Certo dia, um enviado de Deus [t: Uhokri, o deus cristão] apareceu para um homem e lhe disse para chamar sua mulher, seus filhos, todos os homens e mulheres que existiam na Terra para juntos construírem um grande pote de barro. As pessoas trabalharam no pote por muito tempo, mas, um dia, elas se cansaram, começaram a reclamar e abandonaram o serviço. Só o homem e seus sete genros, continuaram a trabalhar. Quando o pote ficou pronto, o homem recebeu de Deus um bastão para chamar  um casal de cada bicho a entrar no pote. Quando todos que construíram o pote entraram, Deus trancou a porta por fora. A chuva demorou a cair e as pessoas que estava do lado de fora passaram a rir do homem, gozando-o. Mas, depois que começou a chover, logo as ilhas do do baixo Oiapoque afundaram. Quando uma montanha igual a Cajari [uma das maiores montanhas da região] afundou, todos acreditaram no homem e foram pedir para entrar no pote, mas ele não tinha como abrir a porta. As pessoas tentavam se salvar subindo nas montanhas, mas elas estavam moles. Quando a água tava grande, veio o gahawkri tituw (t: ancestral do caracol, a tradução literal é “o avô do caracol”) e começou a comer as pessoas. Quem subia nas montanhas era chupado pelo bicho. Quando as mulheres menstruavam em cima da Cajari, elas contaminavam a montanha, que adoecia e começava a diminuir. Então, os homens passaram a jogar as mulheres lá de cima, até que não sobrou mais nenhuma. Quando a água baixou, o homem foi andar sobre a terra seca. Não havia nada, nem sementes. Mas, quando caminhava, o homem escutou vozes, cantorias, gente dançando, batendo tambor, soprando flauta, conversando e rindo. O homem seguiu na direção do barulho e, quando se aproximou do lugar, escutou uma voz, mas a única coisa que viu foi um

26 Fiz outra interrupção na narrativa, querendo saber que tipo de vinho era aquele. O dialogo que produzimos foi o seguinte: A.: Que vinho? M. L.: Vinho mesmo, que eles tomavam. A.: Vinho de mandioca? M. L.: Não, vinho mesmo, naquele tempo não existia mandioca, existia muito…é vinho mesmo. A.: da fruta uva? M. L.: acho que é dessa fruta mesmo.

24 esteio fincado em cima de um monte. Então, perguntou ao esteio quem ele era, este disse que era do clã Wakavunyene (t: gente do esteio). Enquanto falava com o esteio, o homem escutou de novo o barulho de gente conversando, dançando e tocando. Foi atrás do som e quando chegou lá viu apenas lagartas que lhe disseram ser do clã  Wayveyene (t:gente da lagarta). Essa mesma situação de cantorias, danças e conversas se repetiu mais vezes. Cada vez que o homem seguia o barulho encontrava um clã diferente. (Manoel Labonté, São Paulo, 2000).